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O enigma de Akechi Kogorō: modo de leitura e desafio tradutório na ficção policial de Edogawa Rampo

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS ORIENTAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA, LITERATURA E CULTURA JAPONESA. GABRIEL DE OLIVEIRA FERNANDES. O ENIGMA DE AKECHI KOGORŌ: Modo de Leitura e Desafio Tradutório na Ficção Policial de Edogawa Rampo. Versão Corrigida. São Paulo 2019.

(2) LOMBADA. Gabriel de Oliveira Fernandes. 2019. O ENIGMA DE AKECHI KOGORŌ: Modo de Leitura e Desafio Tradutório na Ficção Policial de Edogawa Rampo. MESTRADO. FFLCH/USP.

(3) GABRIEL DE OLIVEIRA FERNANDES. O ENIGMA DE AKECHI KOGORŌ: Modo de Leitura e Desafio Tradutório na Ficção Policial de Edogawa Rampo. Versão Corrigida. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Letras.. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Neide Hissae Nagae. São Paulo 2019.

(4) Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.. Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. F363e. Fernandes, Gabriel de O. O enigma de Akechi Kogoro: modo de leitura e desafio tradutório na ficção policial de Edogawa Rampo. / Gabriel de O. Fernandes ; orientadora Neide Hissae Nagae. - São Paulo, 2019. 174 f. Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Letras Orientais. Área de concentração: Língua, Literatura e Cultura Japonesa. 1. Romance Policial. 2. Literatura Japonesa. 3. Tradução. 4. Cognição. 5. Hermenêutica. I. Nagae, Neide Hissae, orient. II. Título..

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(6) FERNANDES, Gabriel de O. O enigma de Akechi Kogorō: modo de leitura e desafio tradutório na ficção policial de Edogawa Rampo. Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras. Aprovado em:. Banca Examinadora. Prof. Dr.__________________________Instituição:____________________________ Julgamento:_______________________ Assinatura:____________________________. Prof. Dr.__________________________Instituição:____________________________ Julgamento:_______________________ Assinatura:____________________________. Prof. Dr.__________________________Instituição:____________________________ Julgamento:_______________________ Assinatura:____________________________.

(7) AGRADECIMENTOS. À Prof.ª Dr.ª Neide Hissae Nagae, por sua indispensável orientação, confiança e paciência. À FAPESP, pela concessão de bolsa ao projeto n°2017/12483-7, que resultou nesta dissertação. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor não necessariamente refletem a visão da FAPESP. Aos Profs. Drs. Julio Cesar Pimentel Filho e John Milton, pelas valiosas sugestões durante a banca de qualificação, bem como ao Prof. Dr. Seth Jacobowitz e a Prof.ª Dr.ª Kyoko Sekino, pelos comentários e pela calorosa recepção dessa dissertação, durante sua defesa final. Aos professores do Curso de Língua e Literatura Japonesa da Universidade de Brasília (UnB), que reanimaram em mim o interesse pela pesquisa. Principalmente, ao Prof. Dr. Ronan Alves Pereira, por acreditar no meu potencial desde a graduação, e à Prof.ª. Dr.ª Tae Suzuki, por sua eterna prontidão, sinceridade e companheirismo. A todos os meus amigos, que sempre se mostraram mais confiantes sobre minha escolha de carreira do que eu mesmo. Principalmente, ao meu melhor amigo, Yuri Guzon Mainka, por seu otimismo e apoio com o qual sempre pude contar. A todos os meus familiares, que me apoiaram durante todo o tortuoso percurso até aqui, desde minha escolha peculiar de curso, até minha mudança para São Paulo. Principalmente, à inestimável ajuda e carinho de minha mãe, Ana Claudia Esmeraldo de Oliveira, e de meus irmãos, Ariadne de Oliveira Fernandes e Rafael de Oliveira Fernandes, que de alguma forma sempre souberam que eu chegaria aqui. Ao meu sogro, Maurício de Mauro, e sogra, Maristela Portela de Mauro, por me receberem em sua família de braços abertos e sempre me encorajarem a dar o meu melhor. Por fim, à minha esposa, Olivia Portela de Mauro, por todo o amor, carinho, compreensão e incentivo dos últimos cinco anos e por todos os anos que virão. Por sempre acreditar em mim, mesmo quando eu não consigo..

(8) その探偵という言葉を、空想家と訂正し て呉れ給え。実際僕の空想はどこまでと っ馳しるか分らないんだ。 江戸川乱歩、「一枚の切符」. Trate de corrigir essa palavra, “detetive”, e trocá-la por “sonhador”! Porque, pra falar a verdade, eu não faço ideia de até onde meus sonhos vão me levar. EDOGAWA, Rampo. Ichimai no Kippu..

(9) RESUMO FERNANDES, Gabriel O. O enigma de Akechi Kogorō: modo de leitura e desafio tradutório na ficção policial de Edogawa Rampo. 174f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2019. A narrativa policial, em primeiro lugar, depende de um jogo travado entre autor e leitor, com base em um conjunto de regras que instruem os contornos do texto. O interesse acadêmico pelo gênero policial japonês, contudo, principalmente em solo brasileiro, tem sido pequeno. Apesar do número de obras traduzidas estarem gradualmente aumentando, não houve ainda uma tentativa de explorar as complexidades e as implicações desse jogo no ato tradutório. Assim, com este trabalho, objetiva-se desbravar os desafios encontrados na tradução de material inferencial da ficção policial japonesa de Edogawa Rampo (1894-1965), autor japonês responsável pela criação dos primeiros materiais do gênero em solo nipônico, considerando seu modo de leitura peculiar e o caráter ambíguo inerente à língua japonesa. Para isso, traçou-se uma aprofundada análise da ficção policial enquanto gênero autônomo e o surgimento da obra de Rampo, assim como a criação de seu mestre detetive (meitantei) Akechi Kogorō. Para investigar as áreas de conformismo ou subversão em sua obra, então, focou-se na observação de como um leitor experiente com o gênero policial o lê, traçando um percurso através do texto com base em um repertório de convenções que o permitirá participar do aspecto lúdico da narrativa, batendo o material de suas obras iniciais contra as conceituações de John Cawelti e George Dove, quanto à fórmula narrativa. Por fim, conectouse essa discussão sobre o modo de leitura peculiar do gênero com uma preocupação com a busca por semelhança interpretativa na tradução, conforme promovido por Ernst-August Gutt em sua leitura da Teoria da Relevância. Com isso, percebeu-se que o tradutor de ficção policial deve se portar como um autêntico detetive, jogado em um mar de evidências que poderão, finalmente, elucidar a intenção do autor e as expectativas do leitor, conferindo a ele a responsabilidade de decidir entre ofuscar e esclarecer o enigma no cerne do texto. Palavras-chave: Edogawa Rampo; Literatura Japonesa; Ficção Policial; Tradução literária; Teoria da Relevância..

(10) ABSTRACT FERNANDES, Gabriel O. The enigma of Akechi Kogorō: reading mode and translation challenges of Edogawa Rampo’s detective fiction. 174p. (Master’s thesis). Faculty of Philosophy, Letters and Human Sciences, University of São Paulo, 2019. Detective fiction, first and foremost, depends upon a game played by author and reader, based on a set of rules that instruct the outlines of the text. However, academic interest towards Japanese detective fiction, especially on Brazilian soil, has been scarce. Although the number of translated works is gradually increasing, there has not yet been an attempt to explore the intricacies and implications of this game on the act of translation. Thus, this dissertation ventures through the challenges found in translating the inferential material found on Edogawa Rampo’s (1894-1965) detective fiction work, the author responsible for creating the genre's first Japanese works, considering the genre’s peculiar reading mode and the ambiguous character inherent to the Japanese language. To this end, a thorough analysis of detective fiction as an autonomous genre and the emergence of the work of Rampo is delineated, as well as the creation of his great detective (meitantei) Akechi Kogorō. Then, to investigate the areas of conformism or subversion in his work, a focus is given on observing how an experienced reader of the detective genre reads it, tracing a path through the text based on a repertoire of conventions that will allow him to participate in the narrative game, pitting his early works against the concepts stipulated by John Cawelti and George Dove on formula fiction. Finally, this discussion about the peculiar reading mode of the genre is connected to a concern about the search for interpretative resemblance in translation, as championed by Ernst-August Gutt on his reading of Relevance Theory. That way, we come to the conclusion that the detective fiction translator must behave like a true detective, thrown into a sea of evidence that can finally elucidate the author's intent and the reader's expectations, giving him the responsibility to decide between obfuscating and clarifying the riddle at the heart of the text. Keywords: Edogawa Rampo; Japanese Literature; Detective Fiction; Literary Translation; Relevance Theory..

(11) SUMÁRIO. Introdução ................................................................................................................................. 1 Capítulo 1: O Enigma do Gênero: Desdobramentos da Ficção Policial Japonesa ............. 8 1.1. Os Contornos do Gênero Policial ................................................................................... 8 1.2. O Surgimento de Edogawa Rampo ............................................................................... 14 1.3. A Criação de Akechi Kogorō........................................................................................ 19 Capítulo 2: O Enigma da Fórmula: A Codificação Retórica da Ficção Policial .............. 39 2.1. A Narrativa Formular Como Ferramenta...................................................................... 39 2.2. A Leitura Peculiar da Ficção Policial ........................................................................... 46 2.3. As Convenções e Invenções do Gênero Policial .......................................................... 57 2.4. O Detetive Formular de Edogawa Rampo .................................................................... 66 Capítulo 3: O Enigma da Tradução: Desafios na Tradução da Ficção Policial ............... 80 3.1. A Pragmática Conversacional da Ficção Policial ......................................................... 80 3.2. A Teoria da Relevância no Âmbito da Tradução ......................................................... 86 3.3. A Tradução de Inferências em Nanimono .................................................................. 101 Considerações Finais ............................................................................................................ 115 Referências Bibliográficas ................................................................................................... 122 Anexos....................................................................................................................................127 Texto original em japonês: Nanimono ("Quem", 1929), de Edogawa Rampo..................127.

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(13) 1. INTRODUÇÃO. Logo no primeiro maki, ou volume, do Kojiki (“Crônicas de Eventos Antigos”, 712 d.C.), a primeira obra literária e repositório do passado mitológico do povo japonês, tem-se a primeira representação da morte na literatura do país, norteando a forma como o povo daquela época observaria esse fenômeno. A divindade Izanagi encaminha-se até o Yomi-no-kuni, o reino da escuridão, para trazer de volta à vida sua amada Izanami, que morrera ao dar à luz uma divindade do fogo, após os dois criarem o arquipélago japonês. Violando uma lei natural, ele entra no reino e encara uma Izanami em estado de putrefação. Izanagi foge, amedrontado e enojado, fechando a entrada para o reino com uma pedra, e Izanami promete que, a partir de então, ela mataria mil pessoas dos “povos de Izanagi”, a raça humana, todos os dias (Ō, 1975). É assim que é dada a explicação mitológica por trás da mortalidade na literatura japonesa. A partir de então, a cultura do arquipélago asiático trata o tema da mesma forma que Izanagi, como algo contaminado e impuro. É intrigante, então, como, 1217 anos depois, um leitor japonês trataria a morte de forma tão leviana, ao ponto de estranhar o porquê de Edogawa Rampo ( 江戸川乱歩 , 1894–1965) ter decidido deixar viva a vítima de sua obra Nanimono (“Quem”, 1929). Hirai Tarō ( 平 井太郎 ), nome de registro de Rampo, foi um escritor de contos de aventura e mistério que, por meio da transferência fonética e adoção do nome de Edgar Allan Poe, situou o Japão dentro da tradição da ficção de detetives (detective fiction, em inglês). Através de suas constantes leituras, o autor japonês logo percebeu que se tratava de um gênero altamente criativo, cuja escrita demandava habilidades literárias e aguçada percepção das restrições do gênero e suas áreas de maleabilidade. Assim, Rampo mantinha-se sempre atualizado sobre as ideias e enigmas desenvolvidos por suas contrapartes ocidentais, operando sob uma dinâmica de imitações e subversões que o colocou como um equivalente japonês para a posição de “pai da narrativa policial”. Segundo Seth Jacobowitz, “reconhecer as influências multifacetadas de Poe sobre Rampo de forma nenhuma mitiga a amplitude de conhecimento de Rampo, que abarcava a gama de ficção policial anglo-americana e seus predecessores literários”1 (JACOBOWITZ, 2008, p.XXVII). Durante o final do século XIX e começo do século XX, concomitantemente com a transição da força policial de um modelo investigativo baseado em intuição, para um baseado 1. To recognize Poe’s multifarious influences upon Rampo is in no way to mitigate Rampo’s breadth of knowledge, which ran the gamut of Anglo-American detective fiction and its literary predecessors (tradução nossa)..

(14) 2. na ciência forense, vários autores desenvolveram um tipo de narrativa que tinha como foco desmascarar os responsáveis por um crime, por meio da dedução lógica. Dentro desse paradigma cientificista, nos anos 1920, surge uma especialização do gênero policial que tem como objetivo a criação de uma excelência estrutural, estipulando as regras de um jogo entre autor e leitor. O whodunit (elisão de “who has done it”, ou "quem o fez", em inglês), requer engenhosidade e inteligência do autor, que deve apresentar para o leitor todas as ferramentas necessárias para desvendar o mistério. Assim, a principal preocupação dos escritores deste período está em criar réplicas fascinantes de um gênero altamente formatado (SYMONS, 1992). Para Howard Haycraft, tal gênero é baseado na presença de alguns elementos: [...] o detetive excêntrico e transcendental; o coadjuvante levemente estúpido e que o admira; a falta de imaginação e os erros bem intencionados dos oficiais da lei; a convenção do quarto trancado; o dedo acusador da suspeita injusta; a solução pela surpresa; a dedução através de se colocar no lugar do outro (agora conhecido como psicologia); ocultação através do ultra óbvio; o estratagema encenado para forçar a ação do culpado; até mesmo a explicação expansiva e condescendente quando a caçada termina2 (HAYCRAFT, 1941, p.12). A trajetória do desenvolvimento desse gênero no ocidente, então, configura-se em uma constante busca por aperfeiçoamento, de perfeição formal até o aprofundamento psicológico. Ao criar o gênero como o conhecemos, Poe estabelece duas correntes retóricas, uma sensacionalista e outra intelectual. Na primeira, o leitor é colocado no meio de um turbilhão de informações até que a solução seja apresentada no final. Já na corrente intelectual, toda a ação acontece no início da narrativa e a obra dedica-se a acompanhar a investigação do detetive. Essa corrente dá vazão ao que chamaremos de, conforme estipulado por John T. Irwin em seu The Mystery to a Solution: Poe, Borges and the Analytic Detective Fiction (1994, p.1), “ficção policial analítica”, ou a literatura que foca em estabelecer um jogo entre autor e leitor, permitindo que este possa tentar desvendar o mistério antes que o texto apresente a solução. Assim, a ficção policial parece rejeitar qualquer violação de suas normas constitutivas: o herói deve ser o detetive, o foco deve ser a detecção e o mistério deve ser complexo e inexoravelmente solucionado. Entretanto, um dos defeitos inescapáveis do gênero assim configurado está na capacidade dos leitores de se acostumarem com essa fórmula (SAYERS, 1929, p.44). Afinal, uma vez que um leitor estiver suficientemente familiarizado com o trabalho de um autor, a capacidade dele de surpreender seu público parece diminuir. Após um tempo, o jogo deixa de. 2. “[t]he transcendent and eccentric detective; the admiring and slightly stupid foil; the well-intentioned blundering and unimaginativeness of the official guardians of the law; the locked-room convention; the pointing finger of unjust suspicion; the solution by surprise; deduction by putting one’s self in another’s position (now.

(15) 3. ser entre o leitor e o detetive e passa a ser entre o leitor e o autor. Rampo, então, embora em um primeiro momento considere a necessidade de a ficção policial ser definida de forma rígida, percebe a profundidade ilimitada do gênero, tomando para si o objetivo de “mostrar que o Japão era um locus de inovação e experimentação por si só” (JACOBOWITZ, 2008, p.XXVIII). As fronteiras do gênero, então, foram formadas através de um relacionamento de semelhanças e diferenças com suas origens, fazendo com que a ficção policial no Japão possa ser examinada como "um construto discursivo negociado dinamicamente com seu contraponto ocidental" (SAITO, 2007, p.1). Para entendermos a posição desse gênero na cultura moderna japonesa, contudo, devemos primeiro entender a relação que o Japão tem com sua própria literatura popular. No Japão, o conceito de literatura popular (taishū bungaku) foi apresentado como um contraponto ambíguo para a literatura culta (jun bungaku). Em um primeiro momento, a literatura popular não significava uma literatura que não fosse séria ou mesmo uma literatura comercialmente apreciada. Contudo, com o tempo e a criação de prêmios diferentes para os dois tipos, o termo foi usado para estabelecer uma hierarquia artística entre os dois. Por outro lado, com a expansão econômica do período pós-guerra, o desenvolvimento da mídia de massa e os experimentos com a pós-modernidade, as definições do que seria literatura culta e popular são cada vez mais incertas (STRETCHER, 1998). A forma, conteúdo e público da literatura popular no Japão variaram muito com o tempo, com autores tentando adaptar-se às mudanças e demandas dos leitores (SAKAI, 1997). Os autores populares tradicionalmente refletiam os desejos de sua época e existiam porque a comunidade de leitores julgava uma obra valiosa, seja como literatura ou como entretenimento. De acordo com Antonio Gramsci, o entretenimento neste contexto significa mais do que mera diversão, sendo um elemento cultural que se molda a mudanças dos tempos e de gostos pessoais, apelando para a moral e a “filosofia da era” científica: os “sentimentos e concepções do mundo predominantes entre uma maioria ‘silenciosa’” (GRAMSCI, 2012, p.348), maioria essa sendo lida aqui como um reflexo do público crescente do Japão moderno. Assim, os leitores são indubitável parte da equação literária e processo criativo, tendo seus gostos considerados na prática artística da narrativa policial. Sendo um dos gêneros mais populares do Japão desde sua introdução no final do século XIX, o gênero policial primeiramente estabelece um problema que abrirá a história de investigação e, no final, declara apenas uma solução ao apontar um culpado. O gênero. called psychology); concealment by means of the ultra-obvious; the staged ruse to force the culprit’s hand; even the expansive and condescending explanation when the chase is done” (tradução nossa)..

(16) 4. suporta-se na premissa de que todos os crimes, não importa quão complexos, podem ser identificados e solucionados pelo mesmo dispositivo, estabelecendo uma ordem ao caos da vida moderna por intermédio da dedução lógica. O crime, portanto, é um indicador do que uma dada cultura defende como legítimo, fazendo com que a literatura sobre crime sirva como um instrumento de medição dos valores daquela sociedade. Assim, a dinâmica de desvendar o porquê de um determinado comportamento ou ação ser considerado transgressor assim como os elementos que apontam um indivíduo como transgressor, central à narrativa policial, é indicativo de ansiedades culturais e sociais de uma dada sociedade, em um dado momento no tempo. Dentro desse paradigma, a obra de Rampo se apresenta como uma representação multifacetada da ansiedade moderna, um reflexo do mundo sombrio no qual o indivíduo japonês do início do século XX foi jogado. Sua literatura servia não apenas para explorar a vilania e crueldade humanas, mas para resgatar a inocência de seus leitores, absolvendo seus crimes e pecados pela dedução lógica de seu detetive, através de um gênero literário que se reconhecia como artefato artístico. Ao rejeitar o mundo material, Rampo reconhece uma falta de ordem no mundo moderno e estabelece a verdade como algo que se esconde sob a superfície (SAITO, 2012, p.273). Seus primeiros contos, desse modo, posicionavam a literatura policial como cura para um mal psicológico, intensificado pela modernidade: a incapacidade do indivíduo de compreender o mundo externo de forma satisfatória. Segundo o crítico e escritor Kasai Kiyoshi, em seu Tantei Shōsetsuron (“Um Estudo sobre a Ficção Policial”, 1998), Rampo teve uma trajetória única, sendo responsável ou liderando dois dos três movimentos que o gênero teve no Japão. Seu trabalho, então, se torna um útil paralelo para o desenvolvimento do gênero, começando sua carreira enquanto ele ainda era visto como parte da cultura estrangeira. Como mediador dessas duas culturas, Rampo teve que lutar pela posição de seu gênero policial em um momento histórico em que a literatura policial estrangeira, por meio de suas traduções, eram parte de um mercado grande e consagrado. Com sua ajuda, o gênero foi gradualmente amadurecendo no Japão e com isso a visão do gênero mudou de uma importação fiel para um gênero híbrido, que se apropriou da tradição romântica japonesa (KASAI, 1998, p.6). Para ele, a literatura policial no país é influenciada pela tradição romântica da literatura nacional e pelo fascínio intelectual pela investigação criminal. Assim, ele coloca o gênero na interseção entre a tradição japonesa e a importação moderna, assegurando-se de que o gênero não seria visto como mera cópia da versão ocidental de origem (JACOBOWITZ, 2008). Contudo, seu papel enquanto literato e promovedor do gênero policial é ambivalente,.

(17) 5. já que se propõe a imitar, mas percebe que não pode fazer uma imitação fiel ao original. Sua adoção da ficção policial ocidental o faz apostar toda a sua identidade literária, gerando uma ansiedade com a qual sempre digladia, provinda de um sentimento de inferioridade que se tornou indissociável na relação com o ocidente. Sob esta ótica, a obra de Rampo foi particularmente bem-sucedida em mexer com as expectativas de seu público leitor, usando a historiografia do gênero, e a cultura de traduções de seu período, como contexto préestabelecido e gerador de suspense, subvertendo a fórmula e suas premissas, invertendo suas intenções (SAITO, 2012, p.246). Para cada convenção do gênero, Edogawa Rampo tentou criar inovações que batiam de frente com as expectativas de seu público leitor, posicionadas no meio de um embate entre o discurso ocidental do gênero e a busca por identidade japonesa. Obviamente, há uma série de fatores que regem essas expectativas, que vão além de apenas aspectos estruturais da narrativa, mas passam pelo viés cultural e são regidos pelo cenário literário nacional e o período em que a obra surge. Assim, para entendermos o impacto de Rampo no consciente coletivo japonês, devemos entender a tênue relação entre o autor e seus leitores potenciais e como essa relação foi instrumental para moldar o desenvolvimento do gênero. Além disso, se mantemos como objetivo a exploração daquilo que torna peculiar a tradução desse material, devemos investigar o desenvolvimento de uma comunicação especial que se dá entre autor e leitor por meio de dispositivos retóricos encontrados dentro do gênero. Qualquer comunicação depende do compartilhamento de um contexto que será informado pelas expectativas que um receptor trará para dentro do ato comunicativo, e que o emissor usará para informar a mensagem que pretende transmitir. Um dos maiores empecilhos nessa dinâmica da ficção policial, contudo, está atrelada com um dos dispositivos narrativos mais comuns do gênero, a capacidade de um autor de esconder as implicações de uma pista até o momento certo, gerando o suspense. Para David Daiches, esse estado de suspensão é “uma intensificação do interesse no que acontecerá depois, e é necessário um certo grau disso para qualquer drama e boa parte da ficção” (DAICHES apud DOVE, 1989, p.2). Isso nos dá a chave para entender essa relação entre autor e leitor, já que a fórmula narrativa é determinada por suas convenções e representam esse contrato entre os dois. Portanto, para se depreender o significado de um enunciado, precisamos ter acesso não somente à expressão linguística, mas à forma como um leitor lê e como ele processa esse material. No ramo da tradução, contudo, essas estratégias narrativas se tornam difíceis de serem trabalhadas. A qualidade retrospectiva comum ao gênero policial cria áreas de indeterminância e esconde implicações futuras dentro de palavras e situações aparentemente.

(18) 6. inofensivas. Assim, essas zonas de conflito, se traduzidas sem o devido cuidado, correm o risco de traírem o efeito pretendido pelo autor e violar o modo de jogo. Enquanto o tênue equilíbrio entre o que é dado e o que é retido por um escritor deve ser mantido na tradução, essa preocupação é ainda mais complicada no caso da língua japonesa. Afinal, “o ocultamento possível na língua japonesa, transforma-se necessariamente em aclaramento no caso do português, via interpretação de seu leitor ou tradutor” (NAGAE, 2016, p.271). Portanto, para poder contornar esse problema, devemos ter ciência dos dispositivos da fórmula narrativa e como eles modificam a sua leitura. Desse modo, este trabalho tem como objetivo central a exploração dos desafios encontrados na tentativa de transferir a dinâmica conversacional travada entre Rampo e seus leitores, dentro de suas obras de ficção policial, de seu ambiente discursivo original para um novo, brasileiro, por meio da tradução. Para isso, devemos traçar um percurso que perpassa discussões sobre a natureza discursiva do gênero e sua codificação retórica, através de uma análise bibliográfica. Como ponto de partida, o primeiro capítulo trará a exploração do conturbado contexto histórico do gênero policial, traçando seus contornos no Ocidente como forma de identificar as áreas de inovação encontradas em sua expressão japonesa, pela produção de Rampo. Com esses fundamentos estabelecidos, a discussão deságua em uma visão panorâmica da carreira do autor japonês, se demorando nos cinco primeiros contos a figurar seu “mestre detetive” (tradução nossa para o termo meitantei, que descreve o investigador nos moldes de Dupin). No segundo capítulo, então, aprofundaremos a discussão sobre o modo de leitura do gênero policial, identificando sua configuração enquanto um jogo cujas regras são constantemente manipuladas, podendo ser testadas e revistas apenas por uma comunidade ativa de leitores experientes em consenso com escritores criativos. Aqui, desbravamos as minúcias da teoria de Narrativa Formular (Formula Fiction), conforme trabalhada por John G. Cawelti (2004, 2014) e George Dove (1989, 1997), com o intuito de encontrar elementos comuns à ficção policial que poderão servir como ferramentas para o ato tradutório. Para isso, teremos que definir o leitor desse tipo de material e, mais importantemente, como ele o lê, tirando exemplos dos contos apresentados no primeiro capítulo e focando a discussão final do capítulo, sobre a figura do detetive, através do conto Nanimono (1929), obra que engloba todos os temas tratados aqui. Nossa discussão culmina, então, na dinâmica de tomadas de decisões tradutórias dentro de um material altamente formular e com alta quantidade de vazios de significado e implicações retrospectivas. Aqui, teremos que apresentar uma teoria que reconheça o papel do.

(19) 7. tradutor perante um texto com alta carga inferencial, que reconheça a necessidade de se desgarrar estritamente do texto-fonte para criar algo que se assemelhe apenas em aspectos relevantes. Para isso, exploraremos as estratégias da Teoria da Relevância, conforme estipulada por Dan Sperber e Deirdre Wilson (1995) e reconfigurada para o ato tradutório por Ernst-August Gutt (2000). Por fim, aprofundaremos nossa discussão sobre o material inferencial do conto Nanimono, apontando desafios na reconstrução do material implícito do texto e elucidando uma estratégia de tradução que considera um percurso de vai-e-vem por parte do tradutor. Desse modo, ao iniciar essa exploração do gênero policial no Japão pelo seu primeiro e principal expoente, podemos começar a traçar as áreas de conformidade e transgressão da obra de Edogawa Rampo, desbravando assim as peculiaridades encontradas na tentativa de traduzi-la. Com isso em mente, temos como ponto de partida a continuidade e aprofundamento às discussões encontradas na dissertação de mestrado “Tradução comentada de três contos de Edogawa Rampo: Uma investigação das primeiras obras da literatura policial no Japão”, de Lídia Harumi Ivasa (2017). Assim, ao analisarmos a estrutura retrospectiva e as estratégias de manipulação de informações encontradas no gênero policial, poderemos entender as regras internas dessa literatura e a forma como um leitor experiente aborda a leitura. Essas informações, por fim, deverão instruir uma tradução que tenha como objetivo central a recriação do “enigma narrativo”, ou a dinâmica de dados omitidos e revelados do texto-fonte, estabelecendo assim uma “independência restrita” para o tradutor..

(20) 8. Capítulo 1 O ENIGMA DO GÊNERO Desdobramentos da Ficção Policial Japonesa. Aqueles foram dias de liberdade, dias radiantes e tranquilos. Mas é aquele demônio chamado tragédia, movido por um intenso rancor contra a luz, que invade abruptamente o nosso mundo, ao menor sinal de luminosidade. Certo dia, um estrondo ecoou pelos corredores da mansão Yūki. E é com esse barulho de tiro que se abrem as cortinas de nossa história 3 (EDOGAWA, 1929, p.199, tradução nossa).. Ao abrirmos as portas do escritório de Hirokazu Yūki, protagonista de Nanimono (“Quem”, 1929), conto escrito pelo autor japonês Edogawa Rampo (1894-1965), encontramos uma cena habitual para o leitor de ficção policial. No chão, encontra-se a vítima de um crime que deixou até mesmo os investigadores da polícia confusos, necessitando, então, do auxílio de alguém cuja inteligência e capacidade investigativa ultrapassa a de todos, um detetive. Entretanto, na medida em que investigamos os bastidores dessa narrativa particular, percebese um nível de adestramento e transgressão de convenções, que a coloca frente-a-frente com o desenvolvimento da literatura policial no mundo. Para entendermos essa intriga, então, se faz necessário posicionar a obra de Rampo no ambiente discursivo da ficção policial e situar o autor em meio a uma teia de influências e inovações que se iniciam no gênero literário.. 1.1. Os Contornos do Gênero Policial O conceito de gênero sempre foi uma das mais complexas discussões teóricas no âmbito literário. Para definirmos as bases de um gênero e sermos capazes de analisar os méritos de uma obra de arte, é necessário, através da crítica comparativa, apontar qualidades fundamentais semelhantes entre duas ou mais obras. Segundo Mikhail Bakhtin, as formas que carregam significado na linguagem literária constituem uma estratificação, que se dá por meio de organismos específicos, chamados gêneros. Mais do que isso, essa estratificação se dá internamente em cada língua, por meio da unicidade e multiplicidade que a constitui, se. 3. 実に自由で、明るくて、のびやかな日々であった。だが不幸という魔物は、どんな明るいところへ でも、明るければ明るいほど、それをねたんで、突拍子もなくやってくるものである。.

(21) 9. adequando “aos pontos de vista específicos, às atitudes, às formas de pensamento, às nuanças e às entonações desses gêneros” (BAKHTIN, 1988, p.96). Segundo o autor, os gêneros literários possuem as maiores tendências descentralizadoras da linguagem, tendo como característica básica serem um “fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” (idem, p. 73). Um gênero literário, por sua própria natureza, reflete as tendências mais estáveis e “eternas” no desenvolvimento da literatura. Sempre preservados no gênero estão os elementos imortais da arcaica. De fato, esses elementos arcaicos só se mantêm preservados nele graças à sua constante renovação, isto é, sua contemporização. Um gênero é sempre o mesmo e, ao mesmo tempo, não o é. É sempre velho e novo simultaneamente. O gênero renasce e é renovado a cada novo estágio no desenvolvimento da literatura e a cada nova obra de um dado gênero. Isso constitui o ciclo de vida do gênero4 (BAKHTIN, 1984, p.106).. Isso faz com que as fronteiras de um gênero sejam redesenhadas constantemente, ou novos gêneros criados, devido à expansão e distorção das regras pré-estabelecidas. Segundo Tzvetan Todorov, contudo, “um gênero, literário ou não, nada mais é do que essa codificação de propriedades discursivas” (TODOROV, 1980, p.48). Para ele, a criação de uma obra literária dentro dos parâmetros de um determinado gênero requer acatar e romper com suas regras, com o intuito de encontrar novas expressões que estejam alinhadas com os gostos, historicamente informados, e a demanda do público leitor. Um gênero é criado ao cumprir as expectativas de uma comunidade de leitores, quanto à sua linguagem literária. Logo, um gênero só pode ser assim chamado com base na validação de um grupo de leitores que reconhecem as propriedades linguísticas dele. Para Todorov, o gênero não é apenas o produto de uma combinação prévia, mas também modifica essa mesma combinação. Assim, os gêneros literários devem servir como “‘horizontes de expectativas’ para os leitores e como ‘modelos de escrita’ para os autores” (TODOROV, 1980, p.53). Por outro lado, definir o gênero policial é uma tarefa mais árdua e que requer profunda análise. Apesar do argumento de Todorov de que "a maior obra prima de um gênero é precisamente aquela que melhor se adequa a seu gênero" (TODOROV, 1977, p.43), as classificações da ficção policial variam entre os críticos. Não é à toa que existem diversos termos para descrever largamente o mesmo gênero, do mistério, mais abrangente, ao enigma do quarto fechado, mais específico. Todorov, em seu artigo “The Typology of Detective. ある日、少将邸に時ならぬ銃声が響いた。 この物語はその銃声を合い図に、幕があくのである (tradução nossa). 4 A literary genre, by its very nature, reflects the most stable, "eternal'' tendencies in literature's development. Always preserved in a genre are undying elements of the archaic. True, these archaic elements are preserved in it only thanks to their constant renewal, which is to say, their contemporization. A genre is always the same and yet not the same, always old and new simultaneously. Genre is reborn and renewed at every new stage in the.

(22) 10. Fiction”, descreve três “espécies” principais desse gênero, com base na relação entre a ação realizada pelo criminoso e a investigação do detetive. Para o primeiro tipo, o autor estabelece o romance contendo um mistério sobre a identidade de um criminoso, simetricamente dividida entre a história do crime e da investigação. O segundo subgênero, o thriller, foca mais na investigação do crime e não dá garantias sobre a segurança de seus protagonistas. O último tipo que Todorov apresenta é chamado simplesmente de suspense e combina elementos do primeiro e do segundo tipos (TODOROV, 1977, p.47). Dentre estes, nosso interesse recai principalmente sobre a primeira espécie: o romance policial clássico. Tendo como foco a investigação de uma transgressão social e moral, a ficção policial nos dá ao mesmo tempo uma suspensão da ordem social, que deve ser resgatada, como também um cenário isolado em que readquirimos um sentimento de controle sobre as forças caóticas do centro urbano. É configurada como uma literatura de paradoxos, tendo como ponto chave seus elementos intencionalmente menos desenvolvidos e construindo uma forte tensão apesar de depender da promessa de que, até o final da narrativa, o problema aparentemente insolúvel terá sido solucionado. A ficção policial bem-sucedida, então, estabelece uma situação contraditória em que ninguém poderia ter cometido o crime inicial mas, ao mesmo tempo, todos são suspeitos do crime, e é apenas através da investigação de um detetive genial que um culpado é identificado e o ambiente de suspense dissipado. Assim, a literatura policial estabelece uma ordem ao caos da vida moderna ao apresentar um sistema que é válido para todos os casos. O gênero suporta-se na premissa de que todos os crimes, não importa o quão complexos, podem ser identificados e solucionados pelo mesmo dispositivo: a dedução lógica. Contudo, no desenvolvimento da ficção policial, as definições e elementos necessários não foram sempre assim tão unificados. Críticos até mesmo discordam quanto à origem do gênero, embora concordem que se trata de uma invenção puramente moderna, devido ao seu protagonista, e seu modo de investigação, ser uma criação do sistema judicial moderno (SAYERS, 1929, p. 11). A figura do detetive aparece para responder aos anseios de uma população desconfiada e insatisfeita com a criação da força policial e do poder judiciário como forma de controle social, vendo o crime como uma infração contra o Estado e o criminoso como um inimigo público. Isso dá maior força para o gênero policial, já que, segundo Todorov, os gêneros “evidenciam os aspectos constitutivos da sociedade a que pertencem” (TODOROV, 1980, p.50). development of literature and in every individual work of a given genre. This constitutes the life of the genre (tradução nossa)..

(23) 11. Desse modo, o gênero policial só pôde começar seu desenvolvimento real após a opinião pública tender para a justiça civil como um sistema válido para o julgamento de transgressões morais e sociais. Em um primeiro momento, a literatura criminal tendia a focar na figura do criminoso e sua esperteza, já que a lei era arbitrária, opressora e administrada de forma brutal. Então, o público só passa a aceitar a figura do detetive a partir do momento em que a noção de “evidência” se torna lugar comum e após a sequência de captura, tortura, confissão e morte deixar de ser o procedimento legal (SAYERS, 1929, p.11). Segundo Hirabayashi Hatsunosuke (1892-1931), crítico que mais guiou e encorajou Rampo no começo de sua carreira, “quando o criminoso e o método investigativo se tornam científicos, a investigação do crime e o julgamento subsequente são baseados em evidências físicas válidas e a condenação é baseada em leis escritas, isso demonstra a manutenção da ordem nacional”5 (HIRABAYASHI apud SEAMAN, 2004, p.3). Assim, o gênero policial clássico teve que esperar o estabelecimento de uma organização policial, no começo do século XIX, antes de os primeiros exemplares da literatura aparecerem. Não apenas isso, mas a literatura policial foi fortemente influenciada por avanços tecnológicos que efetivamente encolheram as fronteiras do mundo: O telégrafo elétrico circulou o globo; as ferrovias trouxeram aldeias remotas em contato com a civilização; fotografias revelaram àqueles que não saiam de casa as maravilhas das paisagens, costumes e animais estrangeiros; a ciência reduziu os milagres aparentes a maravilhas mecânicas; a educação popular e o policiamento intensificado tornaram a cidade e o país mais seguros para o homem comum do que jamais haviam sido6 (SAYERS. 1929, p.13).. Dorothy L. Sayers, escritora responsável pela introdução da antologia Great Short Stories of Detection, Mystery and Horror (1928), traduzida para o Japonês em 1931, aponta que, nesse novo mundo de avanços tecnológicos e ordem social, os novos heróis eram “o médico, o cientista e o policial”7 (SAYERS, 1929, p.13), deixando para trás os salvadores fantásticos de outrora. Assim, o mundo Ocidental, definido por uma abordagem racional à solução de problemas, vê no irracional e inexplicável uma origem de tensão. Apenas em uma sociedade que cumpre as leis é possível observar o fenômeno criminalístico com objetividade, uma qualidade essencial para a criação do suspense no gênero policial. Assim, quando um. 5. when the criminal and the investigative method become scientific, the investigation of the crime and the subsequent trial are founded on valid physical evidence, and conviction is based upon written laws, this demonstrates the maintenance of national order (tradução nossa). 6 The electric telegraph circled the globe; railways brought remote villages into touch with civilization; photographs made known to the stay-at-homes the marvels of foreign landscapes, customs, and animals; science reduced seeming miracles to mechanical marvels; popular education and improved policing made town and country safer for the common man than they had ever been (tradução nossa). 7 “the doctor, the scientist, and the policeman” (tradução nossa)..

(24) 12. crime ocorre em uma sociedade bem estruturada, se torna o papel de um herói, o detetive, restabelecer a ordem e punir de forma justa aqueles que se opõem à lei. Sejam quais forem os seus contornos, é fácil reconhecer as origens da ficção policial formal e clássica, ou analítica, como a conhecemos hoje, no século XIX, quando o americano Edgar Allan Poe (1809-1849) criou o detetive Auguste Dupin e escreveu suas narrativas de enigma: Em The Murders in the Rue Morgue (1841), Poe traz a figura do detetive amador excêntrico e seu assistente-narrador e, assim, cria um “manual quase completo de teoria e prática da ficção policial”8 (SAYERS, 1929, p. 17); The Purloined Letter (1844) estabelece a fórmula de esconder as coisas no lugar mais óbvio; The Mystery of Marie Rogêt (1842), deu legitimidade ao gênero com a dedução de um caso real; Com Thou Art the Man (1844) temos o elemento das evidências para despistar e a solução através da pessoa menos provável; e The Gold Bug (1843) é uma história de decodificação sem um objeto claro até o fim da história. Mais tarde, essa lista de cinco contos seria resumida para apenas os três primeiros, por Howard Haycraft (HAYCRAFT, 1941, p.12). Nestes contos, os fundamentos do gênero (ou “convenções”, como discutiremos no próximo capítulo) são construídos com base na exigência de um público leitor moderno por uma “história que os coloca em pé de igualdade com o próprio detetive, no que diz respeito a todas as pistas e descobertas”9 (SAYERS, 1929, p. 33). Assim foi estabelecido o que Sayers chama de fair play entre o escritor e seu público, um elemento chave que estabeleceu o gênero como algo autônomo. Além disso, a configuração dupla do gênero é estabelecida, com todas as suas nuances e lógica interna (idem, p. 17). Para Todorov, o romance policial traz duas histórias, aquela do crime e a da investigação, sem qualquer ponto em comum, a primeira contando o que realmente aconteceu e, a segunda, “como o leitor (ou narrador) tomou conhecimento [da primeira]” (TODOROV, 1970, p.97), por meio do trabalho do detetive. Essas duas histórias, então, fazem parte de uma dualidade que consiste em fabulação (fabula) e trama (syuzhet) (TODOROV, 1977, p.44), conceitos do formalismo russo. A fabulação são os eventos propriamente ditos, como ocorreram em uma linha cronológica, enquanto a trama é a própria narrativa, a forma como o escritor decide apresentar os eventos da fabulação. No romance policial formal, como a investigação se dá em resposta a um crime que já ocorreu, a fabulação corresponde à história do criminoso e a trama corresponde à investigação, que remonta as informações da fabulação com o intuito de elucidá-la, sem respeitar sua ordem cronológica. O leitor e os personagens habitam a história da investigação 8. “almost a complete manual of detective theory and practice” (tradução nossa). “a story which puts them on an equal footing with the detective himself, as regards all clues and discoveries” (tradução nossa). 9.

(25) 13. e são ignorantes sobre a história do crime, que é revelada ao final através de uma combinação complexa das perspectivas do narrador e dos personagens. Assim, a estrutura do gênero policial tem como objetivo a geração do medo pelo desconhecido, atraindo o leitor através do desafio de desvendar a narrativa (REIMÃO, 1983, p.12). Essa natureza do gênero policial, embasada no modelo de Poe, em que um detetive metódico desvenda a identidade do responsável por um crime, foi logo percebida e explorada por vários escritores posteriores, como Émile Gaboriau (1832-1873), com seu detetive Monsieur Lecoq; Arthur Conan Doyle (1859-1930), criador de Sherlock Holmes; Raymond Chandler (1888-1959) e seu detetive, Philip Marlowe; Dashiell Hammett (1894-1961) com seu Sam Spade; e Agatha Christie (1890-1976), que criou Hercule Poirot e Miss Marple, entre outros. Cada um desses autores foi bem-sucedido em explorar os contornos do gênero, criando convenções, personagens e trazendo inovações que entraram para o imaginário popular e ampliaram as possibilidades do gênero policial, em consistência com a noção de que “cada trabalho modifica a soma de trabalhos possíveis, cada novo exemplo altera a espécie” (TODOROV, 1980, p. 6). O gênero, assim, se coloca em uma posição singular na história da crítica de gêneros literários. Embora sua fórmula tenha sido criada por Edgar Allan Poe, a ficção policial só foi reconhecida como gênero próprio no final do século XIX, com a obra de Arthur Conan Doyle. Além disso, mesmo até os anos 1920, “nenhuma tentativa havia sido feita para avaliar a ficção policial como algo tendo regras que poderiam ser estritamente formuladas e que eram importantes de se respeitar”10 (SYMONS, 1992, p.104), sendo suas regras vistas, então, como um contrato entre escritor e leitores. Analisando as principais obras do gênero, assim como sua própria produção, e identificando um padrão, S. S. Van Dine (pseudônimo de Willard Huntington Wright) elabora 20 leis para um bom escritor de ficção policial, em 1928 (MASSI, 2011, p.39). Embora ele seja bem incisivo e sarcástico em dizer que aqueles que não as seguem não estão escrevendo ficção policial, contudo, o gênero acabou por se desenvolver para além dessas regras em anos posteriores, transgredindo sua validade já suspeita. Para Todorov, “um novo gênero sempre será uma transformação de um gênero ou gêneros anteriores, seja por inversão, deslocamento ou combinação” (TODOROV, 1976, p.161). Dessa forma, essas regras, resumidamente, estipulam a necessidade de apenas um detetive e um criminoso (que deve matar por motivos pessoais, não sendo um assassino profissional, assim como deve ser uma personagem importante na narrativa), que devem ser. 10. “[...] no attempt had been made to assess the detective story as something having rules which could be strictly formulated and which it was important to observe” (tradução nossa)..

(26) 14. dois personagens diferentes, assim como no mínimo uma vítima que, para Van Dine, deve ser assassinada. Para ele, o gênero deve se configurar como um jogo, dando ao leitor a oportunidade de desvendar o mistério conforme as pistas vão sendo encontradas, para que o esforço de leitura seja recompensado (MASSI, 2011, p.40). Além disso, o caso tem que ser explicado de forma racional e lógica, não dando espaço para quaisquer elementos sobrenaturais ou mesmo descrições e análises psicológicas, regra cuja transgressão veremos como o ponto chave na literatura de Edogawa Rampo.. 1.2. O Surgimento de Edogawa Rampo No prefácio de The Edogawa Rampo Reader (JACOBOWITZ, 2008, p.I), Tatsumi Takayuki estabelece oficialmente uma revitalização do interesse em Edogawa Rampo, pai do gênero policial no Japão. Infelizmente, é fácil para o Ocidente descartar a obra de Rampo como nada mais do que imitação, a partir do momento em que se percebe que esse pseudônimo, foi criado ao “pegar os sons [do nome] do americano Edgar Allan Poe, fundador do romance policial, e adequando ideogramas japoneses a eles”11 (EDOGAWA, 1992, p.212). Sem dúvida, o autor japonês foi influenciado pelo trabalho do americano, mas sua obra está muito mais próxima de uma expansão dos ideais iniciados por ele. Ao fazer clara alusão ao autor ocidental e usar a versão niponizada do nome, Rampo se autointitula o pai do gênero policial no Japão e situa o país dentro da tradição do gênero. Não há como saber a exata tradução que Edogawa Rampo leu das obras de Poe, mas compensa olharmos brevemente para a historiografia dessas traduções. Desde a Restauração Meiji, em 1868, os japoneses passaram por um processo de criação de estilos e gêneros de literatura moderna através da leitura, tradução e adaptação das obras do cânone Ocidental (SILVER, 2008, p.1). Não é à toa, então, que as traduções de Poe seriam capazes de, eventualmente, criar um gênero policial com suas nuances adaptadas. Após as primeiras traduções do autor para o japonês, feitas por Aeba Kōson (1855-1922) em 1887, a figura de Poe é reconfigurada por Lafcadio Hearn (1850-1904) e seu pupilo Ueda Bin (1874-1916). Segundo Lippit, “A introdução por Lafcadio Hearn e Ueda Bin determinou a forma como Poe seria compreendido no futuro pelos escritores japoneses… a ênfase de Hearn na exploração do reino psicológico de Poe e dos elementos de mistério e fantasia 11. 私の筆名は探偵小説の始祖アメリカのエドガー・アラン・ポーの語呂を取り漢字にあてはめたもの である。 (tradução nossa)..

(27) 15 grotesca em suas obras, juntamente com a associação, feita por Ueda Bin, de Poe com os poetas do Simbolismo francês, forneceu novos olhares e abriu um novo reino literário para os escritores insatisfeitos com o Naturalismo”12 (LIPPIT, 2014, p.168).. Dentro dessa interseção entre o gênero ocidental e o romantismo japonês, encontramse as traduções de Poe feitas por Tanizaki Jun’ichirō em 1918, tendo como objetivo a transferência do material estrangeiro sem focar em sua sintaxe (idem, p.170). Fica fácil, então, entender a escolha de pseudônimo de Rampo que, para Mark Silver, “evoca não apenas uma imagem totalmente afastada das associações usuais em inglês; também evoca a tradição de longa data entre os literatos japoneses de conceber pseudônimos inteligentes e autodepreciativos”13 (SILVER, 2008, p.133). Embora gostasse de trocadilhos e nutrisse um grande apreço por Poe, contudo, há um significado mais profundo em sua escolha do pseudônimo do que um simples jogo literário ou reconhecimento de influência. Ao longo de seus numerosos trabalhos de ficção policial e, especialmente, em suas primeiras obras, Rampo afirma continuamente que suas criações devem ser julgadas nos mesmos termos que os de proeminentes autores ocidentais, mesmo que não se considerasse à altura de Poe (JACOBOWITZ, 2008, p.XXV). A relação entre Rampo e suas influências encaixa no que Harold Bloom chama de “posterioridade” (belatedness, no original), como “uma das fontes mais frutíferas de criatividade”14 (SILVER, 2008, p.134). Assim, todo autor deve se colocar no papel de fazer o que chama de misprision, uma leitura feita incorretamente, com o intuito de corrigir. Esse movimento antagonista é importante para que o autor consiga criar um espaço discursivo próprio, domando a propriedade de sua obra e estabelecendo sua autoridade. Essa ansiedade, em Rampo, é complicada pela insegurança sobre sua legitimidade enquanto membro da ficção policial, alimentado por uma cultura que enxerga os modelos Ocidentais, iniciados por Poe, como inerentemente superiores (idem, p.133). Contudo, a obra de Rampo nos incentiva a olhar para a tradição do gênero pelo viés de suas recriações modernas e as poderosas leituras erradas (misreadings) que fez de seus precursores. A relação de Rampo com Poe foi notada logo cedo, mas foi tomada como nada mais do que homenagem pelos críticos ocidentais (LIPPIT, 1999, p.140), enquanto a crítica 12. “The introductions by both Lafcadio Hearn and Ueda Bin determined the way Poe would be understood in the future by Japanese writers… Hearn’s emphasis on Poe’s exploration of the psychic realm and on the elements of mystery and grotesque fantasy in his works, together with Ueda Bin’s association of Poe with the French Symbolist poets, provided new insights and opened a new literary realm for writers discontented with Naturalism” (tradução nossa). 13 “evokes not only an image that is wholly removed from the usual associations it has in English; it also evokes the long-standing tradition among Japanese Literati of devising such clever, self-deprecating pen names” (tradução nossa) 14 “[...] one of the most fruitful sources of creativity” (tradução nossa)..

(28) 16. japonesa foi bem mais perceptiva sobre como Rampo se apropriou dos temas e narrativas do autor americano. O uso do nome foi um movimento mercadológico calculado, posicionando Rampo como “um duplo exótico de Poe em um período em que essa seria a estratégia mais eficaz para se alcançar um público anglófono” (JACOBOWITZ, 2008, p.XVIII), assim como a massa de leitores japoneses acostumados com obras ocidentais. Seu nome escolhido, em combinação com suas frequentes alusões a obras sobre crime e detecção em sua maioria de autores ocidentais, exige que o leitor ou crítico compare o trabalho de Rampo com os dos famosos escritores ocidentais aos quais ele faz referência e considere-os todos pertencentes à mesma categoria. Mas o nome de Poe, e a associação com a tradição dos autores de detetives ocidentais que evoca, não é a única mensagem incorporada ao pseudônimo de Rampo. "Edogawa" refere-se ao rio Edo ( 江戸川 ), que faz fronteira com a atual Tóquio, e traz a imagem da shitamachi, área da antiga Tóquio habitada pela classe mercantil e cenário de seus contos. Na época de Rampo, era um lugar onde a tradicional cultura mercantil japonesa se misturava e colidia com a modernidade emergente do século XX (JACOBOWITZ, 2008, p.XVIII). O pseudônimo de Rampo incorpora a geografia de Edo, a antiga capital isolacionista do xogunato Tokugawa, com o nome de Poe. Essa composição contraditória reflete os próprios esforços de Rampo para criar uma tradição exclusivamente japonesa em um gênero importado. O nome “Rampo”, em seguida, compreende dois ideogramas chineses, o primeiro, 乱, significando “inquietação” ou “desordem” e o segundo, 歩 , “andar”. Seu nome evoca a imagem de um andarilho, trazendo uma ideia de movimento errático e sem objetivo e, assim, sendo bem-sucedido em reconstruir a imagem do flâneur. Em seu ensaio seminal The Painter of Modern Life (“O Pintor da Vida Moderna”, 1859), Baudelaire descreve esta figura como o andarilho que caminha para sentir e presenciar as constantes mudanças da vida urbana. Para ele, o andarilho é alguém que é Observador, flâneur, filósofo, chamem-no como quiserem, mas, para caracterizar esse artista, certamente seremos levados a agraciá-lo com um epíteto que não poderíamos aplicar ao pintor das coisas eternas, ou pelo menos mais duradouras, coisas heroicas ou religiosas. Às vezes ele é um poeta; mais frequentemente aproxima-se do romancista ou do moralista; é o pintor do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno. Todos os países, para seu prazer e glória, possuíram alguns desses homens (BAUDELAIRE, 1996, p.13).. E essa semelhança com o nome de Rampo não é à toa, uma vez que Edgar Allan Poe evoca esta mesma personalidade em seu Man in the Crowd, um conto sobre um homem que anda pelas ruas lotadas de Londres madrugada adentro e que parece extrair prazer de não ser.

(29) 17. percebido em meio às multidões (JACOBOWITZ, 2008, p.XXI). Essa figura em Poe, por sua vez, influenciou Yaneura no samposha (“O Andarilho do Sótão”, 1925), conto de Rampo sobre um homem que descobre um prazer voyeurístico ao observar os moradores de sua estalagem pelas frestas do teto. Contudo, antes de se apropriar do nome de Edgar Allan Poe e, assim, se prostrar na interseção entre o Japonês e o Ocidental, Hirai Tarō teve uma vida cheia de mudanças. Ele nasceu em 21 de outubro de 1894, na atual cidade de Nabari, na província de Mie, e em poucos anos sua família teve que se mudar diversas vezes, devido ao emprego de funcionário público de seu pai (membro de uma família de linhagem samurai a serviço do clã Todo). Até o fim de sua vida, Hirai Tarō se mudou 46 vezes, entre mudanças com a família até passar a viver sozinho em Tóquio e, mais tarde, voltar a viver com os pais em Osaka (LIPPIT, 1999, p.139). Com o fim do ensino médio e a falência do negócio de sua família, Rampo se muda para Tóquio e se matricula no departamento de Ciência Política e Economia da Universidade de Waseda, em 1912, mudando seu curso de política para economia devido ao “seu objeto de estudo ser a própria humanidade”15 (EDOGAWA; JACOBOWITZ, 2008, p.168). Em sua juventude, Hirai Tarō teve uma criação que não só lhe permitiu ter acesso à literatura policial, mas o colocou na interseção entre essa e a literatura culta de seu próprio país. Iniciando seu interesse em leitura através de invasões ao escritório de seu pai desde uma idade tenra (JACOBOWITZ, 2008, p.XVI), seu primeiro contato com histórias fantásticas veio por intermédio de sua mãe, que leu para ele uma versão do conto Hicchū no Hi (“Confidencial”, de 1913), de Kikuchi Yūhō. Depois disso, Rampo teve seu primeiro contato com Arthur Conan Doyle através do conto The Golden Pince-nez, publicado na revista Taiyō (“O Sol”), durante o ensino primário, sem saber quem Doyle era ou mesmo que sua literatura era uma continuação da de Poe, ficando bastante impactado (JACOBOWITZ, 2008, p.162). A partir daí, passou a ler as adaptações feitas por Kuroiwa Ruikō (1862-1920). Enquanto o Ocidente teve Edgar Allan Poe como o primeiro facilitador da história crítica da ficção policial, o Japão teve em Ruikō o mesmo papel. A forma dispersa com que adaptava a literatura policial estrangeira (usando um método de tradução livre) se aproximava das narrativas confessionais de criminosos ou registros criminais populares nos estágios iniciais da publicação em massa e pode até mesmo ser ligada aos dokufu-mono (narrativas de mulheres envenenadoras), contos populares do início do período Meiji (SILVER, 2008, p.30). Ele traduziu 22 romances completos até 1892, quando lançou a revista Yorozu Chōhō (18921940), que dominou a cultura do fim da era Meiji devido a seu baixo preço e conteúdo 15. “[...] the object of study was humanity itself” (tradução nossa)..

(30) 18. sensacionalista, além de traduções e adaptações da literatura policial ocidental (idem, p.63). No final dos anos 1890, contudo, ele deixa o mercado editorial sem material de ficção policial durante três décadas, mas não sem antes inspirar o que viria a ser a produção narrativa de Rampo. Ainda na faculdade, Rampo leu sobre o uso de enigmas e códigos na literatura ocidental e passa os dias aumentando seu repertório de ficção policial, ganhando interesse pelos contos policiais anglo-americanos de Poe, Doyle e Chesterton, lendo-os seriamente pela primeira vez em 1914. Para ele, a ficção policial, “principalmente, é a narrativa que encontra prazer no processo gradual e lógico de desvendar um segredo impenetrável, encontrado no meio de um crime”16 (EDOGAWA, 2016b, p.21). Segundo ele mesmo, ficou profundamente impressionado com a pureza da lógica da ficção policial estrangeira, mas as obras que mais o marcaram no começo da vida foram aquelas com menor qualidade formal (JACOBOWITZ, 2008, p.163). É aqui também que ganha admiração pelos trabalhos de Tanizaki Jun’ichirō e Dostoiévski, configurando assim os dois vértices de sua obra (idem, p.169). As contradições inerentes ao gênero policial japonês, de tentar duplicar os modelos ocidentais sem sacrificar a identidade nacional, refletem o processo vivido pelo próprio país. Ao tentar criar um império colonial moderno, o Japão objetivava conquistar sua legitimidade aos olhos dos poderes do Ocidente, ao mesmo tempo em que preservaria sua noção de diferença cultural e nacional dos poderes nos quais se sentia compelido a usar como modelo (SILVER, 2008, p.133). Desse modo, com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, o Japão se industrializou rapidamente, para suprir as demandas das nações em guerra. Como consequência, a economia floresceu nas maiores cidades, principalmente Tóquio, que receberam um alto fluxo de pessoas do interior, em busca de trabalho e melhores salários. Com uma nova e massiva leva de leitores, podemos ver a explosão na popularidade de um gênero que tem a morte como ponto central, em um período em que o povo sentia a necessidade de marcar a importância de cada morte (SAITO, 2012, p.261). Com sua ênfase nas minúcias da vida cotidiana (pistas das quais o detetive deriva sua solução) e sua atenção nos problemas sociais da "vida real" (corrupção, escândalos sexuais, crimes financeiros etc.), a ficção policial refletiu, mais imediatamente do que outros gêneros literários, os medos e fantasias da burguesia urbana moderna17 (SEAMAN, 2004, p.6). 16. 主として犯罪に関する難解な秘密が、論理的に、徐々に解かれて行く経路の面白さを主眼とする小 説である。(tradução nossa). 17 With its emphasis on the minutiae of daily life (clues from which the detective derives his solution) and its attention to ‘real-life’ social problems (corruption, sexual scandals, financial misdeeds, etc.), detective fiction.

(31) 19. Sentindo que o Japão não oferecia oportunidades para a criação de mistérios originais, mas também considerando que ele mesmo não teria chances de uma carreira fora do país, devido a preocupações financeiras, Hirai Tarō passa por vários empregos antes de iniciar sua carreira literária: trabalha em uma empresa comercial, vende máquinas de escrever, trabalha em uma empresa de construção naval, trabalha com um carrinho de vender macarrão, administra um sebo e edita história em quadrinhos, além de ter aberto a livraria Three Men’s Books, em Dangozaka, Hongō, com seus dois irmãos mais novos, até começar a negligenciar o trabalho (JACOBOWITZ, 2008, p.169). Entretanto, Rampo não fica muito tempo em nenhum emprego e não fica em nenhum local por muito tempo. É importante perceber que essa volubilidade dá a Hirai Tarō um vasto arcabouço de informações específicas e conhecimentos técnicos, que ele usará em seus contos. Mas, mais que isso, a falta de um local fixo em sua vida o priva de qualquer raiz e o coloca na posição de olhar para o mundo ao seu redor como um forasteiro, não importando onde ele estivesse. Isso deu a ele as ferramentas para se tornar o romancista que dominou a literatura policial das eras Taishō (1912-1926) e Shōwa (1926-1989), períodos estes de rápida urbanização e transformação radical do centro urbano. Seu objetivo inicial, então, era o de convencer os editores da época de que era possível ambientar histórias do gênero no Japão (VARTERESIAN, 2014, p.2). Enquanto a ficção policial de Ruikō tinha uma intenção mercadológica, Rampo objetivava produzir obras japonesas que competiriam com seu contraponto ocidental. Assim, colocando o gênero na interseção entre a tradição japonesa e a importação moderna, ele assegura-se de que o gênero não seria visto como mera cópia da versão original (JACOBOWITZ, 2008, p.XLIII).. 1.3. A Criação de Akechi Kogorō O gênero policial japonês, nos anos pré-guerra, nasceu de um processo de ocidentalização que fazia o Outro parecer ao mesmo tempo temido e atraente. Para Amanda Seaman, a ficção policial “teve um apelo especial nas eras Meiji (1868-1912) e Taishō (19121926) em Tóquio, que testemunhou mudanças sem precedentes não apenas em sua economia,. has reflected more immediately than other literary genres the fears and fantasies of the modern, urban bourgeoisie (tradução nossa)..

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