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Teorias da narrativa e análise do texto

Autor(es):

Goulart, Rosa Maria

Publicado por:

Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URL

persistente:

URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24028

Accessed :

5-Feb-2021 06:48:39

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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MÁ T H E S I S 2 1993 155-171

TEORIAS DA NARRATIVA E ANÁLISE DO TEXTO

ROSA MARIA GOULART

Quando pensámos no título deste trabalho (<<Teorias da narrativa e análise do texto» - noutro contexto teríamos preferido dizer «e her-menêutica do texto»), tivemos como objectivo relevar, por um lado, as vantagens de uma análise do texto narrativo apoiada numa sólida teorização e, por outro, a imperiosa necessidade de uma criteriosa escolha do instrumental teórico e metodológico a utilizar pelo professor de literatura. Isto porque nenhuma metodologia e nenhum conceito operatório devem ser impositivos nem inibitórios da expressão indivi-dual, tanto por parte de professores como de alunos. Uma meto-dologia e uma teorização de base são, indubitavelmente, quando bem utilizadas (o que passa obrigatoriamente por uma sólida assimilação prévia do seu funcionamento e respectiva fundamentação teorética), um precioso factor de sucesso no processo de ensino/aprendizagem. Mas para tal há que fundamentalmente ter em conta que elas, teoria e metodologia, só serão úteis e fecundas como orientadoras de um percurso que não dispensa, de modo nenhum, a pessoalidade nem o conhecimento das circunstâncias particulares em que o ensino se pro-cessa - a começar pelo próprio nível etário e cultural dos alunos. Assim, as teoáas da narrativa, que auxiliam o professor no traçado dos caminhos a percorrer na análise textual, são apenas o ponto de partida, sendo o de chegada a interpretação dos elementos constitutivos do texto, operação mediante a qual lhe é atribuído um sentido 1.

1 Quanto à interpretação, urge consciencializar os alunos - e para tal é

necessário que também o docente disso esteja consciente - de que ela é uma operação que, pese embora a inarredável subjectividade nela implicada, tem de ser devidamente controlada e de que há, por conseguinte, boas e más interpretações, interpretações que o texto admite em número variável, mas outras que ele de modo nenhum com-porta. É que, à sombra de uma mal compreendida leitura do conceito de abertura da obra de arte literária, da responsabilidade de Umberto Eco, nota-se às vezes uma tendência do intérprete (sobretudo quando ainda não possui um convívio muito amadurecido com a análise textual, ou então - mas esse já não será o caso dos

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Fica, pois, a nu a precaridade de uma análise textual cingida a uma narratologia demasiado restrita e com pretensões de uma indis-tinta aplicação a todo e qualquer texto narrativo. E não será até de esquecer o quanto tal estratégia de actuação redundará numa inevi-tável monotonia (a par de uma evidente comodidade, é certo, mas neste caso pouco compensadora e nada estimulante) para o professor, que não deixará certamente de sentir uma desconfortável sensação do já visto. ou do já dito, aquando da aplicação uniforme de esquemas pré-estabelecidos a textos que, irmanados embora por características próprias do modo ou do género em que se integram, têm de ser prima-cialmente estudados naquilo que os torna singulares. Não fora assim, e qualquer texto medíocre, mas obediente às reconhecidas características do género, se prestaria a «brilhantes» análises narratológicas, em situação de igualdade com um excelente texto artístico.

Vem isto a propósito da obra que nos propusemos hoje aqui ana-lisar. Foi tendo em conta as considerações de natureza teórica acima formuladas (mas também conhecedora de alguns desabafos de docentes do ensino secundário quanto à dificuldade em abordar uma narrativa como esta) que vos apresentaremos uma possível leitura de Aparição, de Vergílio Ferreira. Pretendemos sobretudo reflectir sobre a relação entre uma aplicação rigorosa de conceitos teóricos já consagrados, e de comprovada eficácia na prática de análise textual, e aquele suple-mento de leitura que assenta numa base individual e necessariamente subjectiva, como é a actividade interpretativa.

Propositadamente escrevemos no título teorias (e não teoria) da narrativa, exactamente para enfatizar que não uma mas várias possi-alunos do ensino secundário - quando norteado por teorias da interpretação que estimulam tal atitude) para entender essa abertura como legitimadora de toda e qual-quer interpretação. Não deixa de ser pertinente observar que o próprio Um:berto Eco (que, apesar de tudo, já insistira em livros anteriores em que a leitura deve ser uma cooperação com o texto e nunca lima violência sobre ele), numa sua obra recente, se ocupa precisamente dos limites da interpretação (cf I limiti dell'interpre-taz;one, Milão, Bompiani, 1990). Leia-se ainda o que sobre a mesma questão escreve Mario Valdés: «S'i! est vrai qu'i! y a toujours plus d'un moyen d' interpréter un texte Iittéraire, ceci ne veut pas dire que toutes les interprétations son! égales et qu'elles peuvent être passées aux profits et pertes comme approximations. Le texte Iittéraire présente un champ Iimité de configurations possibles à un point don'lée dans I'histoire, ii n'est donc pas question de nombre iIIimité de variantes l ... ] II doit demeurer possible de défendre ou d'attaquer une interprétation et de confronter des interprétations rivales ou de servir d'intermédiaire et de trouver un terrain d'entente. Ainsi en va-t-i1 dans la communauté des chercheurs» (<<De l'interpré-tation», in Marc Angenot et alii, dir., Théorie /ittéraire, Paris, Presses Universitaires ·rle France, 1989, p. 285).

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TEORIAS DA NARRA T1V A E ANÁLISE DO TEXTO 157

bilidades se oferecem ao professor e que este não deve sentir pesar sobre ele a obrigatoriedade de se servir de teorias e de técnicas de análise que se revelem inoperantes na aula de literatura. Em face disso, urge tecer, em primeiro lugar, as seguintes considerações:

I. a - a eficácia de um esquema ou de uma metodologia de análise depende, antes de mais, da preparação que tem o docente para dominar as teorias a que recorre e respectivos fundamentos, inclusivamente a mundividência que lhes subjaz, sob pena de se cair em leituras por vezes contraditórias, quando não mesmo absurdas;

2.a - em face das múltiplas teorias da narrativa, o professor terá de conscientemente (isto é, fundamentadamente) fazer as suas opções, ciente de que há que atender ao nível de ensino a que se destina e de que as teorias a seguir só se justificam como reconhecido auxiliar do ensino/aprendizagem, pelo que nunca deverão constituir prescrição a seguir penosamente, quer por docentes, que às vezes não lhes atingem o alcance, quer por discentes, que as repetem maquinalmente, perdendo o essencial, que é precisamente o prazer da leitura;

3.a - importa ter primacialmente em mente que o texto não pode (não deve) ser forçado a caber em grelhas teóricas que lhe restrinjam a natural abertura polissémica, mas é a teoria que deve ir ao encontro daquele, na medida em que será a obra, na sua irredutível singulari-dade, a ditar modos particulares de abordagem. E ao hermeneuta cabe a tarefa de, com a sua perspicácia analítica e interpretativa (embora, evidentemente, com a prudência que a complexidade das questões possa reclamar), avançar onde a teoria pára. Clarificando, ditemos que certos textos narrativos - e os de Vergílio Ferreira são disso um excelente exemplo - cabem mal numa narratologia demasiado rígida ou numa lógica de possíveis narrativos que semanticamente iguale, a nível de estruturas profundas, produções literárias por demais diversificadas na sua superfície textual, por força da originalidade do impulso criador que as particulariza.

Não nos interessa, portanto, sublinhamos, percorrer os vários passos de uma grelha analítica, qualquer que ela seja; acentuamos tão-só a vantagem de se seleccionar das linguagens teóricas à nossa disposição as que se revelarem mais vantajosas para a compreensão de um determinado texto.

A leitura de Aparição, a ser aqui apresentada é, como se compreende, uma (a nossa) entre muitas outras possíveis. Todavia, conquanto a sua fundamentação parta de uma escolha pessoal, essa leitura jamais teria sido o que foi sem o apoio teórico-literário que a sustenta - na certeza, porém, de que a ele recorremos apenas na medida em que o sentimos

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como um fecundo guia da nossa marcha analítica e do nosso percurso interpretativo. Seria inaceitável uma impositividade que nos opri-misse, em vez de nos iluminar e de nos proporcionar esse prazer imenso que é penetrar nos meandros do texto até lhe descobrirmos a riqueza que se esconde em cada uma das suas páginas.

Embora outros aspectos pudessem ser explorados (mas a com-preensível exigência de se respeitar, neste lugar, limites de tempo não o permitiu), cingir-nos-emos a dois tópicos fundamentais, fazendo irradiar a partir deles todas as considerações que o romance nos merecerá, a saber: a escrita do eu; a relação do narrador/personagem com o mundo narrado. No primeiro caso, ocupar-nos-emos dos processos de construção da autodiegese, os quais se desdobram em várias questões, tais como as atinentes à elaboração temporal, ao modo como o narrador que foi personagem se vê agora na sua relação com o outrora, ao modo como perspectiva todo o universo a partir de si e à maneira como pensa o acto de escrita. No segundo, daremos particular atenção às relações que se vão estabelecendo entre ele e as personagens secundá-rias e entre ele e os espaços que percorre.

1. Escrita do eu

Se a análise de toda a narrativa autodiegética tem de, naturalmente, seguir as aventuras do eu que narra e é narrado, numa diegese como a de Aparição (e como são as da maiOlia dos romances de Vergílio Ferreira, em que o narrador é também escritor) o exegeta não pode deixar de atentar no relevante papel de que se reveste o próprio acto de escrita. A narração oral, marcada pela não-durabilidade, na medida em que dUla apenas o tempo da sua enunciação, esvai-se no tempo. Bem ao contrário, a narração por escrito é feita para durar e o narrador de Aparição está disso consciente; a sua escrita pretende ser simulta-neamente uma forma de autognose, mediante a interrogação de espanto que em face de si próprio formula, e um processo de fixação do que é fulgurantemente efémero:

o

que me arrasta ao longo destas noites, que, tal como esse outrora de que falo, se aquietam já em deserto, o que me excita a escrever é o ,desejo de me esclarecer na posse disto que conto, o desejo de perseguir o alarme que me violentou e ver-me através dele e vê-lo de novo em mim, revelá-lo na própria posse, que é recuperá-lo pela evidência da arte. Escrevo para ser, escrevo para segurar nas minhas mãos inábeis o que fulgurou e morreu. 2

2 Vergilio Ferreira, Aparição, 10." ed., Lisboa Arcádia, 1976, p. 179. Todas

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TEORIAS DA NARRATIVA E ANÁLISE DO TEXTO 159 Georges Gusdorf, num extenso e notável estudo que versa exacta-mente les écritures du moi, exprime nos seguintes termos as vantagens da escrita (que corresponde à passagem da civilização do Muthos à do Logos):

La maitrise de l'écriture correspond à une montée en puissance de la conscience, qui cesse d'être prisonniêre du moment présent, et, désormais capable de tenir registre de ses parcours et détours, se dote d'une consistance neuve. Elle prend ses distances de soi à soi, elle dessine ses configurations à sa propre ressemblance, elle rebondit sur soi-même, elle est en mesure de se perdre et de se retrouver dans les linéaments et retraites du temps. L' homo loquem vaporise sa présence d'esprit dans l'environnement immédiat; l'homo

scriptor procede à la matérialisation de la pensée, incarnée dans le document écrit, capable de traverser les espaces et de survivre à l'écoulement des temps 3.

Em primeiro lugar, o eu que escreve sobre si próprio começa por instaurar um processo de desdobramento que visa não só o autoconhe-cimento - ou, como em Aparição, a auto-interrogação - como tam-bém uma exteriorização promotora de distâncias entre quem narra e quem vive e até entre quem escreve e quem é, porquanto escrever-se é ser-se de outra maneira. Gérard Genette, com a distinção proposta entre eu narrante e eu narrado (o que na teoria de língua inglesa é, res-pectivamente, designado por narrating-self e experiencing-self), dis-tinguia, no seu «discours du récit», o tempo da experiência, isto é, da ocorrência dos eventos narrados, da respectiva narração, fazendo notar que o eu que vive e depois narra é o mesmo e já também um outro 4. Mas Georges Gusdorf reafirma-o mais peremptoriamente, porque vê essa distância decorrente do próprio acto de escrita (como o seria também no retrato pictórico) e não apenas do tempo que medeia entre a vivência e a narração dela. Assim, o autor considera que o acto mesmo de escrever, ou de se representai sob qualquer outra modali-dade, implica, por si só, alteridade:

Lorsque l'homme qui écrit se prend lui-même comme sujet-objet de ses écritures, ii inaugure le nouvel espace de l'intimité, dialogue de soi à soi,

à la recherche d'une coincidence impossible, car le moi témoin n'est pas identique au moi tenu à distance, et dont ii s'agit de dessiner les configurations [ ... ]. Entre l'objet et son image sur la toile ou sur le papier s'est opéré une transsubs-tantiation, dénaturation, désincarnation et réincarnation 5.

3 Georges Gusdorf, Auto-bio-graphie. Lignes de vie 2, Paris, Éditions Odile

Jacob, 1991, p. 12. Sublinhado do autor.

4 Gérard Genette, «Discours du récit», in. Figures III, Paris, Éditions du Seuil, 1972, pp. 71-267.

5 Cf. Georges Gusdorf, Les écritures du moi. Lignes de vie 1, Paris, Éditions

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Convém ainda recordar que se a autodiegese, mormente quando ela introduz, como em Aparição, a escrita do eu, já implica a domi-nância desse eu sobre todos os outros, em Vergílio Ferreira isso é ainda mais evidenciado pela temática de feição existencial a que os seus roman-ces dão corpo. E Aparição, porque é onde o escritor pela primeira vez a enfrenta com mais veemência, revela-o com uma premência que não pode passar desapercebida. A razão é esta: é necessário que nessa auto-revelação, nessa descoberta de si próprio, o homem seja por inteiro, sem nada deixar de fora 6; e essa experiência nova é tão intensa que parece não haver nela lugar para mais ninguém. Isto justifica, por-tanto, que toda a narração seja inteiramente submetida à perspectiva da personagem central. Uma afirmação destas só pode, todavia, se não for levada mais longe, revestir-se de um inarredável carácter de irrelevância. Até porque o privilégio de tal perspectiva é normal-mente um dado mesmo da autodiegese. O mais importante será antes seguir as aventuras do narrador/personagem, no sentido de sondarmos o uso que ele faz não apenas das suas prerrogativas de personagem central, mas também (e acima de tudo) da sua superioridade intelectual, e nomeadamente filosófica, soore todas as outras personagens. Alberto sabe-se, com efeit,o, senhor de uma mensagem a distribuir pelos outros, de uma verdade a que eles não teriam ainda tido acesso (não cabe agora aqui discutir o presumível fracasso da sua missão): «Era neces-sário que todos os homens vivessem em estado de lucidez, se, liber-tassem das pedras, chegassem ao milagre de ver» (p. 58 Sublinhado do autor). Mas, para se ver desta maneira, urge libertar o homem da sua condição animalesca, que, sendo «brutalmente pesada» (<<a parte animal do homem, a parte gorda, a que tem sono e quer dormir é brutal-mente pesada» - ibid.), não lhe permite o voo para as alturas, lá onde ele se realiza em plenitude. Sublinhe-se, desde já, que para Ver-gílio Ferreira é essencialmente a obra de arte que ensina esse milagre de ver e de ser em profundidade, sendo através dela que melhor o ser humano se avizinha da Perfeição, ou do que o autor não raro designa de Totalização ou de Absoluto.

É também essa vivência da história a partir de dentro que,

dimen-6. Essa intensidade está de acordo com o entendimento que Vergilio Ferreira

tem do existencialismo: «Assim, pois, para mim o Existencialismo é a absolutização de uma verdade, na vivência dele em cada um de nós» (Conta-corrente lll, Lisboa, Bertrand, 1983, pp. 284-285). Esta posição explica o que mais adiante afirmaremos quànto ao insuperável desfasamento entre a verdade de Alberto Soares e as verdades de cada uma das outras personagens,

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TEORIAS DA NARRATIVA E ANÁLISE DO TEXTO 161

siona, segundo certas directrizes pessoais e subjectivas, personagens e espaços, como se vê claramente na descrição que deles faz o narrador/ fautor ficcional. Ou porque certos espaços percorridos o marcaram indelevelmente, ou porque algumas personagens entraram em moldes muito especiais na sua vida, ele compraz-se na escrita em descrever-lhes as peculiaridades, com a libertação que a ausência das experiências vividas lhe faculta. Recriá-los, espaços e personagens, na memória (ou, como os narradores de Vergílio Ferreira bastas vezes afirmam, na evocação, que é já uma forma de recuperar o passado numa trans~ figuração que o abre para a legenda, como igualmente o autor gosta de sublinhar) e fixá-los no discurso é depurá-los do que Alberto consi-dera acessório e registá-los naquilo que os faz durar. Nalguns casos, tais como os respeitantes a Cristina, sempre evocada pela música que toca ao piano e que o extasia, à cidade de Évora e à aldeia, esta inex-tricavelmente ligada à montanha, o que fica é um magnífico registo lírico de uma realidade que ele não pode deixar de dizer emotiva e artisticamente. Da aldeia ficará o ambiente familiar, sobretudo aquele vivido nas grandes datas simbólicas como o Natal e a Páscoa, e a visão imponente e mítica da montanha, que se torna um arquétipo em prati-camente toda a obra de Vergílio Ferreira. Vejamos como Alberto vê o Natal num dos seus regressos à aldeia, vivendo aí não o Natal do presente, tão-pouco o Natal do passado, mas já um passado miti-ficado com sabor a origens:

- Já não vais então à missa - disse-me Tomás. - Há quanto tempo... mas ainda ouço os coros. - Como ainda?

Ouvia-os. Saíam da igreja, vibravam pelo adro todo coberto de neve, uniam-se à solene plenitude da montanha. Em volta do adro corre um cerco de casas negras [ ... ] Na encosta da serra, entre as árvores carregadas de neve, flutua ainda a neblina matinal como a massa confusa e original da criação. E era aí, na aparição da manhã, que os cânticos do Natal se me abriam lumi-nosos, lavados na pureza de um início absoluto, inventados em inocência e em confiança perene (p. 131).

De Évora fica-lhe a magia da cidade histórica que lhe fala inces-santemente do passado e lhe funda as raízes do presente 7 :

Mas o que eu sobretudo gostava de olhar era a cidade. E eu a revejo agora do meio da minha noite, plãcida e branca, cercada de infinitude.

Ins-7 Note-se o quanto Vergílio preza essa herança de um tempo antigo, a

passar sucessivamente para as gerações vindouras, pelo que se insurge (fá-lo até

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tala-se na colina, cisma para a lonjura, onde me abismo também, veste de branco a acumulação dos séculos como de um luar de morte. O espaço esvazia-se até ao limiar da memória, onde alastra o meu cansaço, o afago quente de um choro, o aceno de sinais que se correspondem como ecos de um labirinto. Num oblíquo aviso afloro o que estremece sob os gestos enfim apaziguados. Évora. Évora (pp. 175-176).

Este passado, que assim vai surgindo em escrita, une-se, como o verbo rever e sinónimos bem evidenciam, muito fortemente ao presente, por força dessa evocação emocionada que o transfigura e o mitifica, situando-o num tempo durável, onde o antes e o depois se fundem, em ordem à instauração de um tempo que busca transformar-se em eternidade. Este objectivo só pode, segundo Vergílio Perreita, e também na perspectiva dos seus narradores, ser conseguido peja palavra artística, a única que, não conhecendo limitações - porque tudo lhe é permitido _., tem o poder de realizar esse milagre. É por isso que a reflexão sobre a palavra de intercâmbio social e sobre essa outra, muito mais nobre, que é a palavla dos artistas, constitui um dos temas fulcrais do romance vergiliano. Se Aparição já lhe dá alguma ênfase, nos romances que se lhe seguem essa reflexão vai sendo reiterada, aprofundada e, por conseguinte, subindo paulatinamente de tom até atingir em Para Sempre uma intensidade e um fulgor absolutamente extraordinários. Assim, a obra de Vergílio Perreira impõe-se-nos não apenas pela intensidade simultaneamente lírica e trágica das suas histórias mas também pela excelência do seu verbo artístico.

2. Personagens

Poderíamos começar, no respeitante às personagens, por partir daquele esquema já bem conhecido (e útil, há que reconhecê-lo) que as define quanto à composição, ao relevo e aos processos de

caracte-ficcionalmente, através da história dos seus romances, como se pode ver, por exemplo, em Rápida, a Sombra, quando o protagonista critica uma cultura de jornal, que seria a da geração da filha) contra toda a cultura que pretenda fazer tábua rasa da His-tória. A própria Arte (com maiúscula), sendo de todos os tempos, lhe está inevi-tavelmente vinculada, porquanto cada homem, em cada época, mais não faz, segundo o autor, do que adaptá-la à sua medida para nela poder viver o seu tempo. Cf. Ver-gilio Ferreira. Arte Tempo, Lisboa, Rolim, 1988, p. 43: «E eis pois que de todo o seu percurso, as obras de arte se nos podem revelar como uma só obra diversi-ficada nos seus momentos, nas suas várias maneiras de ser, e que se dirige a um s6 homem, pluralizado nos biliões que em vagas foram existindo pelos séculos dos séculos».

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TEORIAS DA NARRATIVA E ANÁLISE DO TEXTO 163

rização, mas preferimos abordá-las de outro ângulo, ou seja, cingin-do-nos à respectiva perspectivação pela personagem central, que as vê sempre a partir de si própria, o que acaba por determinar tudo o resto. Isto é, atentaremos na maneira como o acto narrativo a que Alberto Soares empenhadamente se dedica - e que assume caracterís-ticas de um verdadeiro work in progress - selecciona os dados rela-tivos às personagens actuantes numa história que é memorialmente reconstituída e no modo como lhes vai traçando o perfil.

Só interessa pôr em destaque a centralidade daquela personagem para salientar a notável interacção entre o estatuto narrátivo do romance em questão e a temática versada, por um lado, e os diferentes modos de interferência das várias personagens secundárias na história da personagem central, por outro. E neste aspecto impõe-se já uma primeira reflexão: não seria pertinente uma leitura que irmanasse sob a mesma etiqueta todos os não-protagonistas da acção. Com efeito, se observadas do ponto de vista da personagem central, elas encon-tram-se num mesmo grupo, que se designará de os outros, por oposição ao eu. Porém, Alberto, num convívio mais estreito, não deixa de distinguir cada uma delas e de as apreciar diferentemente - sempre, obviamente, na medida em que as respectivas histótias intersectam a sua própria história, como é próprio deste tipo de narrativa, e como nos lembra Jean Rousset a propósito da narração autobiográfica, com a qual a autodiegese, apesar de ficcional, revela notórias afinidades: «Tenons poul' acquis que l'autobiographie, à l'état pur, se définit par l'énoncé "je conte mon histoire": un personnage central en fonction de narrateur,et de narrateur de soi-même, qui n'exclut pas les autres de son histoire, mais ne les y admet que s'ils entrent dans le champ de son regard, de ses passions, de ses activités. Ces personnages satel-lites existent pour lui et autour de lui» 8.

Se é certo que o facto de todas essas personagens-satélite, como as classifica com pertinência Jean Rousset, girarem na órbita da perso-nagem central 9 já chamará, por si só, a atenção para o mundo do

8 Jean Rousset, Narcisse Romancier. Essai sur la premiere personne dans

le roman, Paris, José Corti, 1973, p. 20.

9 O mesmo acontece com os objectos do mundo e, aliás, com o próprio uni-verso, que, segundo Alberto, só têm existência efectiva enquanto há um eu que os percebe: «A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é dentro de mim que a sei - não do olhar dos outros. Os astros, a Terra, esta sala, são uma realidade, existem, mas é através de mim que se instalam em vida: a minha morte é o nada de tudo» (Aparição, p. 9. Sublinhado do autor).

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eu narrante, não é menos certo que esta personagem/narrador, que

dá a conhecer a história que apaixonadamente viveu e que apaixona-damente escreve, tem outros motivos que reforçam a não distanciação entre ela e o seu relato. Referimo-nos às próprias circunstâncias em que se processa o acto de escrita, ao lugar donde fala esse narrador/ escritor, circunstâncias que não podem deixar de marcar sobremaneira a construção do seu discurso. É, portanto, de ter em conta, para melhor se entender a sua narração, que ela constitui um gesto nocturno, solitário e despojado, pelo que o Dr. Alberto está em óptimas condições de convocar o passado único e exclusivamente a partir das suas moti-vações interiores, sem nada de fora dele a distraí-lo. Isto justifica plenamente um tal empenho de escrita e explica igualmente que per-sonagens e eventos assim recordados não sejam apenas aquilo que realmente foram no passado, mas também, e fundamentalmente, aquilo que a escrita emotiva e egocentralizada de Alberto Soares os faz ser no presente, tempo que no autor em questão é essencialmente um presente evocativo. E é muitas vezes essa existência emotiva que do passado se conserva na memória do narrador/personagem a responsável pela alteração da ordem cronológica aquando da narração dos eventos, porquanto alguns regressam com tal carácter de urgência que Alberto tem forçosamente de os convocar e de lhes dar lugar no discurso, mesmo quando não fosse o lugar próprio da história para os incluir. Sendo assim o narrador, no acto de narrar por escrito, a chamar as personagens que com ele contracenaram na história passada, fácil se toma perceber que o perfil que das mesmas é traçado não só o é por um trabalho de elaboração artística que prescinde dos modelos como também o é primacialmente pela junção dos fragmentos dispersos que aquele terá de memorialmente reconstituir. Tal reconstituição é, como não poderia deixar de ser, fortemente comandada pela maior ou menor proximidade afectiva entre Alberto e os outros bem como pelos ecos que a sua problemática existencial neles encontra, sendo que, neste domínio, algumas dessas personagens revelam características que muito importa distinguir, porquanto grande parte da tensão diegética passa indubitavelmente por aí.

Convém distinguir ainda dois grupos de personagens, os quais se integram, por sua vez, em dois lapsos temporais distintos, embora ambos passados: as que se prendem com o meio familiar, situadas num tempo anterior ao da colocação de Alberto Soares em Évora, ou com as suas esporádicas visitas à aldeia já depois disso (e o facto de se encarar um antes e um depois nesta sequência é extremamente significativo, porque o Alberto que regressa às origens é, de certo modo,

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TEORIAS DA NARRATIVA E ANÁLISE DO TEXTO 165

já um outro que extravasa dos cânones do comportamento familiar) e as que se reportam à sua permanência naquela cidade, por onde passa todo o fulcro da diegese.

Atentando nas personagens deste segundo plano temporal, dis-tinguiremos a família do Dr. MouIa, com especial destaque para as suas três filhas, Cristina, Ana e Sofia, o Carolino (Bexiguinha de alcunha) e, com um peso menor, Chico, Alfredo Cerqueira e o reitor do Liceu. Na impossibilidade de se proceder aqui a uma definição em pormenor de cada uma delas, restringir-nos-emos às que, pelo seu papel na vida do protagonista (nomeadamente pelas reflexões de teor existencial que lhe suscitam), não podem, de modo nenhum, ser ignoradas. Entre elas conta-se, obviamente, Sofia, personagem que se aproxima de Alberto em moldes que a distinguem, para todo o sempre, das restantes. Surpreendente e enigmática, de um comportamento cuja agressi-vidade e violência de estar na vida desconcertam pela sua aparente gratuitidade, há nela, contudo, algo de subterrâneo que parece agra-dar, apesar de tudo, ao Dr. Alberto. Não é tanto pelo que este diz abertamente de Sofia (aliás, pressente-se que nessa relação há sempre algo, talvez o essencial, que fica por dizer), mas pelo que se lhe adivinha. E o que se lhe adivinha é uma velada simpatia não tanto pelo que Sofia faz ou é à superfície, mas pelas potencialidades que teria para ser outra coisa se canalizasse as suas energias para outro lado. Talvez por essa razão Alberto nunca se pronuncia abertamente a favor, mas tam-bém jamais se lhe opõe frontalmente, até porque nessa vontade de ser em presença absoluta que Sofia exibe, presença absoluta mesmo na destruição - como o comprova o acto de destruir todos os brinquedos só porque a irmã lhe partiu o braço de uma boneca 10 - , ela em parte coincide, embora de maneira oblíqua e tortuosa, com Alberto.

Algo de idêntico se passa com Carolino. Quando Alberto, nessa espécie de diálogo interior que frequentemente leva a cabo, falando afinal para si próprio, distingue Chico de Bexiguinha, torna-se claro que a sua simpatia recai favoravelmente sobre este último, que o pro-fessor acha mais apto a receber-lhe a mensagem: «Não, quadrado homem de ferro e de cimento. Não me entendes, não te entendo. Palo para ti, Bexiguinha» - p. 62). A sequência da história há-de,

10 Cf. Aparição, p. 53: «Em certo serão de Inverno, Sofia, Ana quebrou-te, creio que por descuido, um braço a uma boneca. Tu foste para o quarto, grave, sem uma lágrima. . E de um a um quebraste todos os teus brinquedos, impedindo violentamente que te levassem os cacos: melhor que a náusea das compensações medianas, preferias o absoluto da destruição» (Sublinhado nosso).

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todavia, mostrar que Carolino, que também revela uma especial ape-tência para sondar os caminhos do homem e para lhe captar a evidência, ainda não tinha maturidade para o fazer. E daí esse desencontro fatal entre eles, porque o jovem lhe distorceu completamente a mensa-gem, traduzindo em negativo o que aquele pretendia transmitir-lhe em positivo, ou seja, convertendo em destruição o que devia ser pro-messa de vida. Na senda de Alberto Soares, Carolino ensaiava os primeiros passos na descoberta de si próprio (<<Fazer assim: pôr-me bem no centro de mim e ver-me, sentir-me bem de dentro para fora, descobrir a pessoa que estã em mim» - p. 68. Sublinhado do autor) e na busca da palavra através da qual o homem estabelece a sua relação com o mundo, com os outros e consigo próprio,

- Também fiz outra experiência, senhor doutor. - Que experiência?

-Bem... Não sei como explicar. É assim: mastigar as palavras. - Mastigar as palavras?

- Bem... É assim, a gente diz, por exemplo, pedra, madeira, .estrelas ou qualquer coisa assim. E repete: pedra, pedra. Muitas vezes. E depois,

pedra já não quer dizer nada (pp. 67-68. Sublinhado do autor).

o.que lhe merece as seguintes interrogações, por parte de Alberto: «Como, Carolino? Sabes então jã a fragilidade das palavras, acaso o .milagre de um encontro através delas connosco e com os outros? E saberãs o que hã em ti, o que te vive, e as palavras ignoram?» (p. 68). O problema é que a personalidade de Carolino, um tanto à semelhança de Sofia, jã vai deixando preocupantes indícios quanto à imprevisi-bilidade da sua futura trajectória.. Quando Alberto Soares descobre nele «algo de estranho, uma inquieta separação de si», que ignora «se-para um encontro lúcido consigo, se para uma união de loucura»,

tal .constatação jã alerta para o facto de algo de extraordinário - não se sabe se para a graça se para a:.desgraça - poder vir a acontecer 'com esta personagem, indício que o desenvolvimento posterior da diegese vem confirmar. Com efeito, utilizando erradamente, para se afiImar em grandeza, o poder que, como ser humano, lhe viera parar às .mãos (atitude que recebeu a recriminação de Alberto ll, como não podia deixar de ser), Carolino demarca-se definitivamente dele, pelo que,

11 Cf. p. 254: «Entendo a tua loucura, bom moço, a tua perplexidade.diante

do poder que te.nasceu.nas mãos. Mas como não aprendeste que é mais.forte criar uma flor (um parafuso: .. ) do que destruir um império?»

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TEORIAS DA NARRATIVA E ANÁLISE DO TEXTO 167

a 'partir daí, ficou vedado todo e qualquer processo de comunicação entre eles.

Vejamos agora o que se passa com Ana, coma qual a relação é ainda mais oblíqua, num perturbante jogo de encontros e desencontros até à separação final. Isto porque, à semelhança do que com as outras personagens acontecia, há nela uma verdade' que não pode. ~er partilhada. Ana, demasiado fechada sobre si mesma, é, ao mesmo tempo, atracção e enigma para Alberto Soares: ora se aproxima dele nas suas preocupações existenciais, ora dele se demarca irremediavel-mente 12. O que este não parece perdoar-lhe é o facto de ela ter sere-namenteestabilizado, resolvendo na mediania do ambiente familiar os problemas que a preocupam. E assim, uma vez mais, ele sente-se à parte no espaço que lhe é dado percorrer. Já bem cedo toma cons-ciência disso e exprime-o: «Sinto que, pouco a pouco, a minha pessoa perde interesse para esta gente - para Ana. A minha presença não é "exemplar" senão de vez em quando. Depois é uma presença neutra, desvendada, nivelada» (p. 102). Mas depois assinala o momento da irremissível ruptura, reconhecendo que desde essa altura a filha mais velha do Dr. Moura (como, aliás, as outras duas, embora cada qual por razões diversas) se retira definitivamente da sua história: <<Ana retirava-se definitivamente da minha angústia, que continuava, se alimentava de tudo o que falasse a sua voz, que seguia na indefinida procura do eco que lhe respondesse, da noite final sem insónia ou pesadelo» (p. 236).

O problema essencial que, quanto às personagens, se levanta é o de que, salvo raros momentos privilegiados 13, tudo se salda num inevitável desencontro, exactamente porque, como acima afirmámos,

12 Recorde-se que também ela, no dizer de Alfredo, seu marido, depois de ter tomado conhecimento do episódio do espelho, passado na infância de Alberto e por ele dado a conhecer (em que o mesmo faz pela primeira vez a experiência de se defr~ntar com a sua própria imag~m, o que, no presente caso, simboliza a reve-lação de si a si próprio), passou a olhar-se longamente nesse instrumento reflector

de imagens, em que cada qual como que se desdobra: «E de manhã pôs-se-me lá diante do espelho a olhar-se, a olhar-se» (p. 70).

13 Este, que tem lugar já no presente da escrita, é um dos ql'e podem ser apontados como' exemplo: «Súbito, neste silêncio mineral, a porta da sala range e o vulto de minha mulher, o seu corpo franzino esfuma-se na sombra; Senta-se ao meu lado, estende os pés ao luar sem dizer nada: ao fim de muitos anos apren-demos a verdade, na aparição da graça, num limiar de presença, antes que sobre a Terra fosse' pronunciada a primeira palavra. Tomo as suas mãos nas minhas e no deslumbramento da noite abre-se, angustiada, a flor da comunhão ... » (p. 9).

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a profunda verdade de cada um, uma verdade vivida, ou verdade de sangue, como às vezes lhe chama Vergílio Perreira, não pode ser par-tilhada num intercâmbio de superfície, esse que acontece na banalidade do quotidiano. Nem mesmo aqui o princípio da fraternidade uni-versal se salva, porquanto, segundo o protagonista, «uma vida não chega para nos reconhecermos irmãos» (p. 251). A ser assim, o diálogo travado com as outras personagens toma quase sempre o ar de um autêntico diálogo de surdos. Eis as conclusões expressas: «Só a minha "tolerância", decerto a minha disponibilidade de procura, de incerteza, de pura aparição, me permitiam ainda uma permuta de palavras: duas verdades vividas ignoram-se decerto uma à outra ou insultam-se, talvez» (p. 213).

O encontro total, ou seja, a comunhão, coincidente com um toque de graça, ou com a aparição, por natureza fulgurante e fugaz, ultra-passa uma mensagem tecida de palavras, quando não prescinde mesmo destas. Instantes de comunhão são, por exemplo, aqueles em que se extasia com a música tocada por Cristina ao piano. Sendo momentos de vivência emocional intensa e de plena adesão interior à mensagem do outlo, é neles que quase sempre um diálogo sem palavras tem lugar, acontecendo que nessas ocasiões as personagens comunicam essencial-mente mediante uma linguagem do silêncio, que é assim uma linguagem por excesso, receptáculo de tudo o que pode ser dito e do mais que nas palavras não cabe. E é com Cristina, a filha mais nova do Dr. Moura, que Alberto mantém esse diálogo, impossível de travar com qualquer outro membro da família Moura. Definida por dois traços que a caracterizam de uma vez por todas - a inocência infantil e a execução artística, através da música que no piano toca - , Cristina dialoga com Alberto (ou este com ela) numa zona onde a corporalidade não conta, mas em que ela é tão-só uma presença rarefeita, sendo nessa transcendência que se abre, para usar uma expressão ~bem ver-giliana, «a flor da comunhão»:

Ajeitou a saia à roda do banco e de mãos imóveis no teclado, apesar do posso silêncio, esperou ainda pela nossa atenção ou pela sua.

E então eu vi, eu vi abrir-se à nossa face o dom da revelação. Que eram,

pois, todas as nossas conversas, a nossa alegria de taças e cigarros, diante daquela evidência? Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se rea-lizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava ali, entre as mãos indefesas de uma criança (pp. 35-36. Sublinhado do autor).

Estão assim expostas as linhas fundamentais de definição dos principais intervenientes na diegese de Aparição, podendo, a partir

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TEORIAS DA NARRATIVA E ANÁLISE DO TEXTO 169 do delineado, analisar-se todas as outras. Do acima registado pre-tendemos sublinhar o quanto a problemática versada nesse romance explica tanto a centralidade da personagem Alberto Soares (e bem assim a supremacia existencial e intelectual que esta exerce sobre todas as personagens secundárias, até pelo empolamento de questões que lhe são muito caras) bem como o modo de relacionamento com o mundo e com os outros. E vivendo intensamente uma experiência nova, a da aparição de si a si - a qual se liga ainda ao puro espanto

de interrogar, a que atrás fizemos referência - , não admira que o

narrador/personagem superIativize essa experiência arrebatadora de redescoberta de um mundo que a seus olhos jamais haveria de ser o que antes foi.

Não diremos que Aparição é o melhor romance de Vergílio Fer-reira, o que não é pata estranhar, atendendo à respectiva data de publi-cação (1959) e atendendo ainda a que o autor trabalha exaustiva-mente, exactamente a partir desse livro, a problemática aí inaugurada. No prefácio à 2.a edição de Vagão "I", cuja primeira edição data de 1946,

e que assinala a sua convergência no movimento neo-realista (ao qual mais tarde havia de tecer acesas críticas), escrevia Vergílio Ferreira que «com a idade se muda por fora e por dentro», mas que «numa fotografia de infância se reconhecem os nossos traços de adulto ou da velhice» 14. Pretendia com isso significar que, apesar de já dis-tanciado da estética literária que o norteou na escrita de tal livro, ele já afirmava algo de si próprio como promessa a cumprir no futuro. Se era assim para Vagão "J" - e não seria difícil de provar que o escritor tinha efectivamente razão - , sê-Io-á muito mais para Aparição, publi-cado treze anos depois, exactamente pela temática que inaugura (embora os livros anteriores a viessem preparando), bem como pelo trabalho discursivo, que, se não atinge ainda a perfeição de Alegria Breve, de um Para Sempre, «essa fulguração de apogeu no percurso de um escri-tor», como brilhantemente o classifica Vítor de Aguiar e Silva 15, ou de Em nome da Terra, o seu último romance, indicia já que Vergílio Ferreira para lá se encaminha a passos largos. Aliás, ele próprio, num posfácio à edição especial de Aparição, ilustrada por Júlio Resende (porto, Inova, 1968), com aquela sagacidade ensaística que lhe é peculiar, esclarece o seu percurso, dizendo-se talvez pertencente «ao número

14 Vagão "J", 2.a ed., Lisboa, Arcádia, 1974, pp. 19-20.

15 ln. Prefácio a Romance lírico. O percurso de Vergílio Ferreira, de Rosa Maria Goulart, Lisboa, Bertrand, 1990, p. 10.

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dos que, tomados de um problema, vão dando os resultados do seu confronto com ele», pelo que, assegura ainda, não lhe «terá cabido o inventário de um mundo descoberto, mas o roteiro de um mundo a descobrir; não o relato do que se encontrou, mas o da viagem para se encontrar» 16. Não seria preciso mais para se definir com precisão esse já longo percurso literário, um percurso de ascenção, para todo o sempre orientado na busca de algo que lhe está sempre mais além e que se não satisfaz na auto contemplação da perfeição atingida. Por isso Vergílio Perreira nunca desiste: seja nos romances, seja no ensaio ou mesmo no diário, vai continuando a, como quem cumpre um destino, registar os vários passos dessa descoberta. Nem desistem os narradores/personagens/escritores dos seus romances, que são como que delegados do autor empírico para, obsessivamente como ele, irem espalhando aos ventos a sua mensagem.

Não gostaríamos de concluir sem deixar aqui algumas pistas que lamentamos não ter podido desenvolver: seria possível, e desejável, con-fróntar agora com outros este texto narrativo que aqui nos ocupou. Che-gámos a pensar inicialmente - mas ficar-nos-ia a má consciência de não poder aprofundar nenhuma delas - em proceder a uma análise com-parativa de Aparição e de O Malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, para mostrar como podem duas narrativas autodiegéticas divergir profunda-mente nos respectivos processos enunciativos. Aproximando-se pelo facto de tanto numa como noutra a personagem central desempenhar as funções de narrador da sua própria história, distanciam-se enorme-mente pelo abismo que se cava entre um Dr. Alberto Soares culto, licenciado e professor do ensino secundário, e um Malhadinhas rude e. inculto, de um sabeI apenas empiricamente acumulado. Distan-ciam-se ainda quanto ao acto narrativo: enquanto o início da nanação de O Malhadinhas nos sugere tratar-se de uma narração oral (portanto com os presumíveis narratários em presença) 17, o que é, aliás, com-provado por uma espécie de introdução de que o autor faz preceder a narração da história propriamente dita 18, em Aparição há, como

16 Cf. pp. 261-262 da edição que estamos a utilizar.

17 Cf. Aquilino Ribeiro, O Malhadinhas, Lisboa, Bertrand, 1974 [La ed.: 1958], p. 13: «Quando comecei a pôr o vulto no mundo, meus fidalgos, era a porca da vida outra droga».

18 Cf. idem, ibidem, p. 11: «Nas tardes de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde tivessem já erguido as belfu-Tinhas, alegre do verdeal, desbocava-se a desfiar a sua crónica perante escrivães da vila e manatas, e eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte de um Por-tugal que morreu».

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TEORIAS DA NARRATIVA E ANÁLISE DO TEXTO

171

foi dito, uma narração por escrito, ao longo da qual o narrador/autor

ficcional vai reflectindo sobre o seu próprio texto à medida que

supos-tamente o vai construindo.

Para concluir, recapitulando algo do jã acima afilmado, subli-nhamos que toda a metodologia, toda a teorização que nós possamos

desenvolver com os nossos alunos, só devem servir para os levar à

compreensão do texto como realização artística, a uma interpretação

que o distinga dos demais, à detecção da estética literãria que norteia

o seu autor e da mundividência que o texto eventualmente explicite ou implicite e a uma melhor compreensão dos modos e géneros literãrios.

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