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Academic year: 2021

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(1)Considerações Finais É possível uma visão ‘moabita’ sobre a Bíblia Hebraica?. Dai asas para Moab! Jr 48,9. As numerosas páginas anteriores, que analisaram a inscrição do rei Mesa, bem como a região, a arqueologia e a constituição de um estado monárquico em Moab, indicaram novos aspectos, alguns bastante relevantes, para a pesquisa da história e da literatura do Oriente Próximo, durante a Idade do Ferro. Nessa empreitada, foram fundamentais os artigos de Klaas Smelik, James Maxwell Miller e André Lemaire, além das obras de Nelson Gluek e A. H. Van Zyl; o destaque deve ser dado, no entanto, à coletânea editada por John Andrew Dearman, bem como ao livro de Bruce Routledge.1 Cada qual, ao seu modo, ofereceu contribuições primordiais para o desenrolar desse trabalho. À guisa de conclusão, cabe agora retomar todos esses aspectos, além de sugerir diferentes olhares, a partir de Moab, para o estudo da Bíblia Hebraica.. Essa dissertação iniciou-se com a narração da história da descoberta do principal documento escrito moabita, a inscrição do rei Mesa; uma “aventura” semelhante a 1. SMELIK, Klaas, “The Literary Structure of King Mesha’s Inscription”, em Journal for the Study of the Old Testament, n.46, fevereiro/1990, p.21-30.; MILLER, James Maxwell, “Recent Archaeological Developments Relevant to Ancient Moab”, em HADIDI, Adnan (ed.), Studies in the History and Archaeology of Jordan, v. 1, Amman, Department of Antiquities of Jordan, 1982, p.169-173; MILLER, James Maxwell., “The Israelite Journey through Moab”, em Journal of Biblical Literature, v.108, n.4, Atlanta, Society of Biblical Literature, 1989, p.577-595; LEMAIRE, André, “‘House of David’ Restored in Moabite Stone”, em Biblical Archaeology Review, v.20, n.3, maio/junho 1994, p.33; LEMAIRE, André, “Prophètes et rois dans les inscriptions ouest-sémitiques (IXe-VIe Siècler av. J.-C.)”, em LEMAIRE, André (ed.) Prophètes et rois: Bible et Proche Orient, Paris, Les Éditions du Cerf, 2001, p.85-115; GLUECK, Nelson, The Other Side of The Jordan, New Haven, ASOR, 1945, 208 p.; VAN ZYL, A. H., The Moabites, Leiden, E. J. Brill, 1960, 240 p.; DEARMAN, John Andrew (ed.), Studies in the Mesha Inscription and Moab, Atlanta, Scholars Press, 1989, 322 p.; ROUTLEDGE, Bruce, Moab in the Iron Age: Hegemony, Polity, Archaeology, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2004, 312 p.. 156.

(2) outras admiradas pelo ocidente, onde a arqueologia é encarada como uma caça ao tesouro, e as disputas por um “troféu arqueológico”, particularmente na Terra Santa, tomam proporções políticas internacionais. Repousando por séculos em alguma localidade desconhecida da antiga Dibon, guardada pelo tempo e observada somente por curiosos beduínos, a estela moabita foi encontrada por Friedrich Klein, um pastor anglicano francês, funcionário de uma organização missionária britânica, mas extremamente leal ao reino da Prússia. Rapidamente o consulado prussiano em Jerusalém iniciou uma longa e desastrosa negociação com a tribo beduína que habitava a região onde o monumento foi encontrado, os Bani Hamidi. Ao mesmo tempo, o tradutor do consulado francês na Cidade Santa, Charles Clermont-Ganneau, iniciou uma negociação paralela, só conseguindo um decalque da inscrição, de baixa qualidade técnica. A intervenção das autoridades otomanas na região, a pedido do governo prussiano, levaram ao desastre inesperado: a destruição da inscrição.. Felizmente, os interesses de Clermont-Ganneau pareciam ser menos políticos e nacionalistas do que os dos seus colegas prussianos. Mesmo após a notícia da destruição, o tradutor francês fez todos os esforços possíveis para adquirir os fragmentos da inscrição e reconstruí-la, a partir do decalque que possuía. Nessa empreitada, Clermont-Ganneau contou com o “auxílio” do capitão britânico Charles Warren, que esperava conseguir o monumento para a sua nação. Porém, a estela reconstituída foi enviada ao Museu do Louvre, e Clermont-Ganneau passou à história como o primeiro tradutor do texto, que revelou ao mundo as palavras do rei Mesa de Moab, citado pela Escritura Sagrada (2Rs 3,4). Muitas críticas foram feitas ao trabalho do pesquisador francês, que teria escondido a inscrição e o decalque de outros cientistas, numa espécie de “monopólio científico”. Ao longo de um século, uma série de. 157.

(3) estudiosos, de diferentes nacionalidades, debruçaram-se sobre a estela, trazendo à luz elementos importantíssimos para uma melhor compreensão das línguas semíticas em geral, do texto massorético e da arqueologia, geografia e política do Levante, durante o século 9 A.E.C.. Em seguida, tratou-se das principais características geográficas da porção centrosul da Transjordânia, denominada “Moab” pelo texto massorético. A região, um platô relativamente elevado, a leste do Mar Morto, cortada por uma rede considerável de wydian, é dividida em três partes: as “planícies de Moab”, na região do Wadi Hesban e Wadi Kafrayn; “Moab setentrional”, entre o Wadi Hesban e o Wadi al-Mujib; e “Moab” de fato, entre o Wadi al-Mujib e o Wadi al-Hesa. As rochas da região, bastante antigas, facilitaram o processo de erosão do solo, fortalecido pela retirada da cobertura vegetal original pelos seres humanos, em função da agricultura e do pastoreio de pequenos animais. Os solos mais produtivos de Moab localizam-se em pequenas porções, geralmente as mais elevadas e com maior pluviosidade (acima de 300 mm por ano), o que demonstra um risco acentuado para a atividade agrícola, sobretudo durante a Idade do Ferro que, provavelmente, foi um período mais seco. Por conta disso, os agrupamentos humanos utilizavam-se de cisternas e canais, para armazenar água, bem como do leito de alguns wydian, que poderiam conservar alguma umidade. Tratou-se também das correspondências entre sítios arqueológicos e localidades citadas pelo texto de Mesa e pela Bíblia Hebraica, apesar de existirem controvérsias em alguns deles, além das principais vias da região, como a Estrada do Rei, importante rota comercial que ligava o Mar Vermelho ao norte da Síria.. 158.

(4) Em relação à arqueologia, foram apresentados, primeiramente, alguns aspectos básicos, relativos aos períodos Neolítico e Calcolítico, bem como uma pequena discussão sobre o fato de “Moab” ser uma definição literária, a partir do texto massorético, e não uma cultura material com características específicas. As páginas seguintes abordaram a primeira provável menção literária a Moab, numa inscrição parietal egípcia, que narra conquistas de Ramsés II. A partir dela, trabalhou-se as características arqueológicas da Transjordânia durante a Idade do Bronze Recente, quando a região estava sob a tutela egípcia. Escavações realizadas no norte da Transjordânia, em sítios como Tabaqat Fahl, a antiga Pela, e o “templo do aeroporto de Amã”, indicaram a presença de estruturas “palacianas”, sepulturas, além de “templos”, onde foram encontrados fragmentos de cerâmicas importadas de Chipre e Micenas, além de pedras semi-preciosas. Essas estruturas estão em praticamente todos os grandes assentamentos do Bronze Recente daquela região, ainda que a área média da maioria delas fosse cerca de 2 ha; as maiores delas (Pela e Irbid), com cerca de 10 ha, eram cidades-Estado, que tinha um importante papel no controle das rotas comerciais que passavam pela região. A existência de cidades-Estado na região é atestada não somente pela arqueologia, mas também pela literatura egípcia contemporânea, através da conhecida correspondência de Amarna, que cita, inclusive, o ataque a uma caravana comercial ocorrido próximo a Pela.. Os textos de Amarna também tratam da estrutura social dessas cidades: o hazannu era o governante, ou “rei”; seu governo era sustentado pelo maryanu, provavelmente um nobre guerreiro e, talvez, proprietário de terra; na base da estrutura estava hupšu, o camponês livre, submetido ao trabalho e à taxação sobre sua produção; um quarto elemento seria o‘apiru, aquele que é desalojado de sua terra e,. 159.

(5) provavelmente, trabalhava como mercenário. Era o produto da exploração tributária, realizada pela elite sobre os camponeses, que garantia as trocas por produtos estrangeiros. Além de um ativo comércio internacional, a presença de cerâmica e demais objetos importados demonstram também a existência de rituais religiosos, nos quais oferendas caras eram feitas aos ancestrais das elites locais e às divindades, numa “rede de trocas”; duas tumbas de Pela, inclusive, denunciam a possibilidade de que tenham ocorrido sacrifícios humanos. Essas características, somadas ao fato de quase inexistirem tumbas destinadas aos “pobres”, demonstram como a camada dominante diferenciava-se dos demais, através de ritos específicos e de objetos raros, satisfazendo determinadas necessidades políticas. Diferentemente da região setentrional, o sul da Transjordânia tem sido interpretado como uma região de nômades, sem a existência de cidades-Estado durante o Bronze Recente. Por outro lado, a estela de Balu‘a, analisada por Bruce Routledge, provavelmente indica a presença de governantes como no norte, que faziam representar-se seguindo modelos tipicamente egípcios; da mesma forma, as próprias características do solo e o regime de chuvas dessa região, permitiriam uma atividade agrícola bastante regular, o que sustentaria a existência da algumas cidadesEstado na região meridional.. Durante a Idade do Ferro Antigo, os assentamentos transjordanianos indicaram uma mudança radical em relação ao período anterior. Ocorreu um aumento populacional nas regiões de maiores altitudes, relacionado também à ampliação do número de pequenos assentamentos. Esses sítios estavam localizados em promontórios, e eram rodeados por muros de casamata: as casas eram construídas uma ao lado da outra, seguindo o perímetro do assentamento, tendo suas entradas voltadas para o pátio interno que se formava; as paredes do fundo das casas tornavam-se uma única “muralha”, e. 160.

(6) constituíam a principal defesa da vila; alguns desses sítios podem ter contado com até 60 casas, como é o caso de Lahun. A maior parte das construções num assentamento desse tipo foi executada de uma só vez, o que exigiu um bom número de trabalhadores. Apesar de todas as moradias serem consideradas “casas com pilares”, algumas delas destacavam-se não pela área construída, como um “palácio”, mas pela sua posição no assentamento, junto a pontos de defesa, como o portão, e pelo fato de suas entradas não estarem orientadas para a praça central. Pelos vestígios encontrados, acredita-se que guardavam os estoques de cereais, utilizado para alimentar o rebanho comunitário. Bruce Routledge sugeriu que se tratavam de casas fundantes, habitadas por grupos diferenciados, considerados membros das linhagens ancestrais daquele assentamento.. Apesar disso, esses assentamentos tiveram uma ocupação bastante instável, com exceção das casas fundantes. A contradição entre a instabilidade do sítio e a “rigidez” exigida por uma genealogia podem ser explicadas pela etnografia: na África central e ocidental, os novos assentamentos iniciam-se sempre em regiões de fronteira, como as regiões mais elevadas da Transjordânia, a partir de disputas no interior de uma linhagem ancestral já estabelecida. Os “fundadores” da nova linhagem tornam-se elementos referenciais, que buscam novos colonos e são responsáveis pelos aspectos militares, mesmo quando a baixa produtividade do solo traga variações no número de habitantes. Ora, o mesmo pode ter ocorrido em Moab, durante a Idade do Ferro Antigo. De toda maneira, os vestígios arqueológicos demonstraram que os grupos eram relativamente grandes, e que trabalhavam em conjunto, uma boa parte do tempo; além disso, existiam desigualdades no interior dessa sociedade, onde determinados grupos controlavam uma parte dos recursos. Essa “elite” mantinha fortes vínculos com a casa ancestral, e não tinha, necessariamente, laços estabelecidos com o restante da população do. 161.

(7) assentamento. As linhagens nobres daí surgidas, bem como a autonomia doméstica, são elementos fundamentais para se compreender as características do estado moabita, durante o período arqueológico seguinte.. A partir dos sepultamentos realizados durante o Ferro Recente, as desigualdades sociais acentuaram-se na região centro-sul da Transjordânia. O uso de diferentes tipos de sepulturas e oferendas realizadas com objetos valiosos, feitos em cobre, prata ou alabastro, indicam não só ritos que lembram aqueles do Bronze Recente, bem como a existência de uma elite bastante poderosa, capaz de extrair tributos das camadas subalternas, e trocá-los por tais artefatos. Uma outra característica do Ferro Recente é a ampliação do número de assentamentos humanos na região mais oriental do platô de Kerak, além do aumento considerável de sítios já existentes, como Balu‘a, Dibon e Medeba. Além de aglomerados de casas de camponeses, alguns assentamentos localizados na porção oriental são considerados fortalezas, com funções de defesa; a maioria das ruínas nessa região, porém, são “torres”, durante muito tempo interpretadas também como construções militares. Uma boa parte delas, por conta da localização, poderiam estar relacionadas à agricultura, evidenciando uma expansão significativa dessa atividade, possibilitada pelo fortalecimento do estado moabita, que também aumentava suas receitas, bem como pela presença dos assírios na região, interessados no comércio internacional, como evidenciaram as inscrições tratadas no fim do segundo capítulo.. O estado surgido nessa região era patrimonial e segmentário, fortemente calcado em metáforas típicas do ambiente doméstico, onde “casa” e do “patriarca” como formas legitimadoras de poder; daí a importância de expressões como “Casa de X” e “Filhos de. 162.

(8) Y”. A lealdade para com o rei era um elemento fundamental, conforme a linha 28 da inscrição de Mesa deixou evidente, ao utilizar-se do termo mšm‘t. Porém, a lealdade não era tudo: era necessário enumerar as diversas identidades, os diversos “segmentos” ou “casas”, e não tratá-las como uma unidade monolítica; daí ser também um estado segmentário. Esse modelo de estado utilizava-se de recursos culturais para estabelecer a sua hegemonia, tornando-se construtor de “palácios”, portões, muralhas e cisternas, “patrocinador” de escultores e escribas, além de responsável pela execução de inscrições elaboradas, que seguiam modelos literários precisos e eram utilizadas para justificar o poder real e glorificar a proteção oferecida pela divindade “nacional”. São exemplos desses recursos culturais, apresentados por essa dissertação: o provável “palácio” de Dibon, escavado por William Morton; os portões de Khirbet al-Mudayna eth-Themed e Khirbet al-Mudaybi‘, que eram símbolos da honra masculina, segundo o texto massorético, e foram cooptados como símbolos da monarquia; a utilização de capitéis proto-eólicos e de ortostatos; a execução de esculturas reais, como a estela de Rujm al-‘Abd, que já foi identificada com o deus Quemos.. A peça fundamental desse trabalho, porém, foi a tradução e análise da inscrição do rei Mesa, provavelmente escrita durante o último quartel do século 9 A.E.C, cujo texto atual é fruto da reconstrução realizada por Charles Clermont-Ganneau. Escrita em moabita, a inscrição foi executada por um escriba profissional, numa estela de basalto, utilizando caracteres paleo-hebraicos. O trabalho de tradução procurou apresentar, da melhor maneira possível, um comentário filológico sobre o texto, relacionando a palavras e expressões, sempre que possível, ao texto da Bíblia Hebraica; da mesma forma, em alguns momentos, foram feitas menções ao aramaico, e mesmo ao fenício. Na seqüência, comparando-se o texto de Mesa com outros textos levantinos, também. 163.

(9) escritos em línguas semíticas, demonstrou-se que o documento moabita é uma inscrição memorial, que apresenta as seguintes características: o nome de quem a erigiu, sua função e filiação (Mesa, filho de Quemosiat, rei de Moab); a ocasião da ereção, a divindade relacionada e o objeto a ela dedicado (quando da construção da bamat para Quemos, em função dos benefícios trazidos por esse deus); um resumo dos feitos reais, que no caso de Mesa, é bastante longo (guerras, vitórias, execuções em massa, várias construções, etc.); apenas não constam as bênçãos e maldições, que poderiam muito bem constar na parte perdida, após a destruição da inscrição. Por conta da quantidade de informações, a estela foi erigida, provavelmente, o fim do reinado de Mesa, o que significa que ela pode não apresentar os fatos em ordem cronológica.. A análise da forma do texto revelou que a inscrição apresenta um claro caráter religioso, sobretudo quando trata das vitórias militares. Os nove parágrafos do texto tratam de dois temas principais: as guerras contra Israel e as construções feitas pelo rei Mesa. O título da inscrição indica o poder constituído, o rei Mesa, bem como a defesa da legitimidade dinástica, mencionando o rei anterior, seu pai. O primeiro parágrafo apresenta a dedicação da bamat ao deus Quemos, provavelmente uma espécie de “capela real”. Para arrematar a dedicação, o parágrafo utiliza-se de dois versos, provavelmente oriundos de hinos religiosos entoados à divindade, e muito semelhantes a salmos encontrados no texto massorético. Já o segundo parágrafo é uma espécie de introdução aos parágrafos 3-6, que tratam das batalhas contra Israel: ele fala da dominação omrida, durante o reinado do pai, que ocorreu por conta da ira de Quemos com Moab; utilizando-se de expressões temporais, o escritor do texto demonstra como no presente, através da intervenção de Quemos, e da ação de Mesa, Israel não só perdeu suas possessões em Moab, mas “pereceu para sempre”. Nos parágrafos seguintes, há um. 164.

(10) aumento gradativo da ação de Quemos: no terceiro ele retorna à terra de Medeba, e dá a vitória a Mesa; no quarto e no quinto ele é honrado com “celebrações”, profanando-se objetos de culto israelitas, bem como submetendo ao herem as populações de Atarot e Nebo; além disso, o quinto parágrafo parece trazer um novo resquício de hino e a menção mais antiga que se conhece sobre o deus israelita, Javé. Já no sexto parágrafo, é o próprio Quemos quem expulsa o rei de Israel de Jasa, cabendo a Mesa um papel secundário.. Os parágrafos sete e oito apresentam as construções realizadas por Mesa, sobretudo na região ao norte do Wadi al-Mujib; entre elas, está o “palácio” do rei, portões, muralhas, reservatórios e cisternas, além da estrada, que como foi visto, eram recursos culturais formadores da hegemonia. Diferentemente dos parágrafos anteriores, onde o escriba real utilizou-se amplamente do waw consecutivo, sobretudo com verbos no imperfeito, nesses parágrafos que tratam de “obras públicas”, ele adotou uma construção diferenciada, através do pronome pessoal ’nk e de verbos no perfeito; essas opções parecem dar mais ação às passagens que tratam da guerra, enquanto evidenciam o rei como um grande “administrador público”. O novo parágrafo, o mais corrompido de todos, parece indicar uma nova campanha militar, contra Horonen, mas é impossível sugerir muito mais além dessa informação, ainda que André Lemaire tenha proposto que a guerra tenha sido contra a “Casa de Davi”. Ora, tal organização em parágrafos, utilizando-se de elementos literários precisos, referenda ainda mais a idéia de que os fatos não estão em ordem cronológica, mas foram arranjados a partir de uma lógica clara, exaltando Quemos e Mesa nos momentos mais adequados. Além do mais, a “divisão geográfica” presente no texto, proposta por Bruce Routledege, referenda o. 165.

(11) argumento de que o estado moabita, além de patriarcal, era também segmentário, sendo necessário enumerar as diversas “casas” que faziam parte de “Moab”.. Todos as evidências arqueológicas e literárias, encontrados em Moab a partir do século 9 A.E.C., demonstram que o crescimento desse reino, inclusive econômico, ocorreu a partir das vitórias de Mesa sobre os omridas. No século seguinte, ao submeterse ao “jugo da Assíria”, os sucessores do filho de Quemosiat fortaleceram-se ainda mais na região, alcançando importância internacional, inclusive. O Israel da Casa de Omri era o problema de Moab, e quando ele “pereceu para sempre”, a região pôde desenvolver-se e construir a sua própria identidade “nacional”. Se Moab tornou-se um “problema” para diversos autores da Bíblia Hebraica, foi porque antes Israel era a pedra que incomodava as sandálias daqueles que habitavam o “outro lado do Jordão”, sobretudo a sua elite. Mas não é só isso: a cultura material e a literatura moabitas não permitem apenas o conhecimento da história transjordaniana, mas podem auxiliar os cientistas que trabalham com as Escrituras hebraicas, sobretudo os exegetas. Muitas das características encontradas nos vestígios arqueológicos do pequeno reino e, principalmente, a análise minuciosa do seu principal documento escrito, demonstram que as formas políticas, sociais e literárias do Primeiro Testamento não eram uma exclusividade israelita e/ou judaíta. Ao contrário, ainda que existam especificidades locais, está claro que essas características eram intercambiáveis, sendo possível estabelecer estudos comparativos, que tragam resultados bastante frutíferos.. Diferentemente do modelo de Estado-nação ocidental, que é uma entidade unificada que possui o monopólio da violência e um aparato administrativo centralizado, o estado moabita de Mesa estava calcado numa metáfora mobilizadora (a. 166.

(12) libertação do jugo de Israel, abençoada por Quemos), mas também no reconhecimento e na lealdade das unidades territoriais menores, bem como no uso da violência contra resistências locais, como o herem aplicado sobre os habitantes de Atarot e de Nebo.2 Se é verdade que termos utilizados pela Bíblia Hebraica, como rei (1Sm 8,11.18-19), reino (1Rs 9,5;11,13), reinado (1Sm 13,1;2Rs 25,1) não são muito úteis para elucidar as relações políticas no Oriente Próximo, durante a Idade do Ferro,3 a noção de um estado patrimonial e segmentário poderia ser utilizada para a explicação dos estados de Israel e de Judá. Se as “tribos” de Israel correspondessem aos “segmentos” encontrados na inscrição moabita, seus “reis” seriam focos patriarcais e unificadores, sempre nomeados como “filho de alguém”.4 A reunião frustrada de “todo o Israel” junto a Roboão, para fazê-lo rei (1Rs 12), considerada o início do “cisma” que dividiu a “monarquia unida”, ou então a “dissolução da união pessoal entre Judá e Israel”, pode ser uma evidência literária do fracasso de um estado segmentário, no qual a lealdade para com o elemento unificador deixou de existir. 5. Além do mais, o “reino de Moab” não parece um simples rival dos demais grupos sociais da região, que desestabiliza as formas políticas, as lealdades e a sociabilidade no interior das comunidades locais, mas sim como uma extensão dessa sociabilidade, dessas lealdades e, porque não, da política, através da utilização dos 2. Bruce Routledge, Moab in..., p.151-152. Bruce Routledge, Moab in..., p.218. 4 Da mesma forma, o título da inscrição afirma que Mesa é o “filho de Quemosiat”. Curiosamente, a língua portuguesa apresenta o termo fidalgo, cuja origem é “filho d’algo”, “filho de alguém (importante)”, ainda que, segundo Sérgio Buarque de Holanda, a nobreza portuguesa jamais conseguiu ser uma “aristocracia fechada”; HOLANDA, Sérgio Buarque de, Raízes do Brasil, São Paulo, Cia. das Letras, 1998, p.35. Outro metáfora doméstica é comum: se o soberano moabita construiu a “casa do rei”, o texto massorético apresenta o palácio como byt hmlk (1Rs 9,1.10; 14,26-27). 5 Essa observação é feita a despeito das discussões sobre as limitações do poder, e mesmo da existência, dos reis Davi e Salomão; para tanto, cf. FINKELSTEIN, Israel; SILBERMANN, Neil, A Bíblia não tinha razão, trad. Tuca Magalhães, São Paulo, A Girafa, 2003, p.183-199. Sobre os termos em destaque, cf. BRIGHT, John, História de Israel, trad. Luiz Solano Rossi e Eliane Solano Rossi, 7ª ed, São Paulo, Paulus, 2003, p.282-285, assim como DONNER, Herbert, História de Israel e dos povos vizinhos: da época da divisão do reino até Alexandre Magno (v.2), 3ª ed., trad. Cláudio Molz e Hans Trein, São Leopoldo, Sinodal, 2004, p.273-287. 3. 167.

(13) recursos culturais que organizam uma comunidade (como a relação entre a “casa” e a “aldeia”) e dos produtos intelectuais (inscrições, grandes construções) elaborados pelo governo monárquico.6 Sem ignorar os oráculos proféticos, que denunciam não só reis, mas também a própria instituição monárquica (Mq 3,1-4.9-12), observar Israel e Judá a partir da “lente” moabita pode indicar outras possibilidades de interpretação ao pesquisador bíblico, diferentes daquelas que apontam a monarquia como algo totalmente estranho às comunidades rurais que deram origem a Israel; ao contrário, os reinos de Israel e Judá podem ter surgido como conseqüência do desenvolvimento político dessas comunidades, que, sem dúvida, foram fortemente exploradas por essas monarquias.. Outra característica encontrada em Moab é o fato de o estado lançar mão da utilização de uma inscrição monumental, que funcionava como elemento legitimador da sua existência. Obviamente não se trata de uma constatação nova, pois as inscrições monumentais são conhecidas em todo o mundo antigo. Mas tais inscrições existiram em Israel e Judá? Independentemente da resposta,7 seria bastante instigante, estabelecer análises do texto da Bíblia Hebraica, sobretudo aqueles que tratam das atividades reais, a partir de uma inscrição monumental real, como é o caso da erigida por Mesa. Esse. 6. Bruce Routledge, Moab in..., p.215. Nunca foi encontrado um texto tão longo como o texto de Mesa, seja em Israel, seja em Judá. O exemplo mais conhecido de uma “inscrição monumental” judaíta são as seis linhas da inscrição de Siloé, descoberta acidentalmente em 1880, no túnel de Ezequias, escrita em estilo poético, e que celebrava o encontro dos trabalhadores que executaram a obra, mas que não faz nenhuma referência a formas de governo; ALBRIGHT, William, “The Siloam Inscription”, em PRITCHARD, James (ed.), The Ancient Near East: na Antology of Texts and Pictures, v.1, Princeton, Princeton University Press, 1973, p.212; MAZAR, Amihai, Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000-586 a.C., trad. Ricardo Gouveia, São Paulo, Edições Paulinas, 2003, p.459.. 7. 168.

(14) exercício já foi proposto por Boyd Barrick, para quem os relatos da reforma de Josias (2Rs 23) poderiam seguir o conteúdo e o estilo de uma estela real.8. O mesmo pode ser dito em relação às “construções públicas” feitas por ordem real. Ora, independentemente do fato de Salomão ter sido ou não um grande construtor, a representação literária que dele se faz no texto massorético é exatamente essa: um rei que constrói um grandioso templo para o seu deus, bem como um enorme palácio para si (1Rs 6-7). Não bastasse isso, a própria descrição do palácio de Salomão lembra, em uma passagem ao menos, aquilo que Mesa afirma ter feito no palácio de Dibon: o rei de Moab trata da construção da “muralha dos bosques” ( enquanto Salomão fez uma “casa do bosque do Líbano” (. ), na linha 21, ), em 1Rs 7,2.. Porque a insistência no termo “bosque”? Segundo o texto massorético, a explicação dáse pelo uso de cedros importados. Mesa não trata do material utilizado, mas supõe-se que sejam pedras; não poderia o termo “bosque” indicar a utilização de capitéis protoeólicos, com o intuito de tornar a muralha menos “monótona”, além de reafirmar o patrocínio real à escultura? Se assim for, o texto de 1Rs 7,2 poderia indicar a utilização desse tipo de capitel, já que foram encontrados artefatos similares em Hazor, Meguido, Samaria, Ramá Raquel, Jerusalém e Tel Dan. Da mesma forma, a menção às “pedras talhadas”, colocados sobre os alicerces do palácio (1Rs 7,10-11), poderia sugerir o uso de ortostatos, como aquele encontrado em el-Kerak. Da mesma forma, Is 32,14 trata de uma zona fortificada de Jerusalém, o “Ofel e a Torre de Vigia” ( a “muralha do ofel” (. ), que lembra. ), nas linhas 21-22 do texto de Mesa, provavelmente a. cidadela de Dibon.. 8. Segundo a resenha elaborada por CURTIS, Adrian, “BARRICK, Boyd, The King and the Cemeteries: Toward a New Understanding of Josiah’s Reform, VTSup, 88, Leiden, E. J. Brill, 2002, 287 p.”, em Journal for the Study of the Old Testament, 27.5, 2003, p.84.. 169.

(15) A existência de uma divindade “nacional” libertadora também é uma característica a ser considerada. Segundo o rei Mesa, cujo próprio nome tem origem na raiz semítica yš‘/wš‘, que significa “salvar”, “livrar”, “resgatar”, o deus Quemos zangou-se com Moab e abandonou a terra que lhe pertencia (linhas 5-6). Mesa não especifica as razões que irritaram a divindade, mas as conseqüências desse fato trouxeram a dominação omrida. Está claro que, por maior que fosse o poderio militar de Israel, a invasão dos inimigos do outro lado do Jordão só foi possível porque “consentida” por Quemos. No entanto, é o mesmo Quemos que, como deus que “se arrepende da sua ira”, liberta Moab do jugo israelita, numa ação crescente. Como afirmou Klaas Smelik, o foco principal das campanhas militares contra Israel é Quemos, a quem as vitórias moabitas são creditadas.9 Já Israel, segundo a inscrição de Mesa, parece não poder contar com o seu deus. Ao rei de Israel nenhuma divindade ordena que faça guerra, nem marcha à frente dos seus homens, diferentemente de Moab e seu rei, fiéis a Quemos, que recebem seus oráculos e, sobretudo, a certeza da vitória no campo de batalha.10 Essa concepção religiosa atestada pela estela de Mesa demonstra que a crença numa divindade libertadora do seu povo, inclusive no campo de batalha, não era uma exclusividade da Bíblia Hebraica.. A inscrição de Mesa, ao narrar as ordens de Quemos, bem como a prática do herem, não pode ser usada para justificar a existência da “guerra santa” enquanto instituição.11 Por tratar-se de uma inscrição real, executada por ordem de um soberano e 9. Klaas Smelik, “The Literary...”, p.25. Klaas Smelik, “The Literary...”, p.22. 11 O herem, concebido como um rito religioso, é encarado como peça importante na “guerra santa” israelita, a partir da obra do alemão Gerhard von Rad, que afirma a existência dessa “instituição” em variados livros da Bíblia Hebraica. Tratar-se-ia de um ato de culto, mesmo uma “confissão de fé”, prestado a Javé pelos israelitas, no qual estavam prescritos alguns ritos a serem cumpridos, dentre os quais o herem era o ponto culminante; VON RAD, Gerhard, Holy War in Ancient Israel, trad. Marva Dawn, Grand Rapids, W. B. Eedermans, 1991, p.41-42.44-46.48-50. A teoria de Von Rad, no entanto, não é consensual entre os estudiosos do Primeiro Testamento: para Manfred Weippert, a “guerra santa” 10. 170.

(16) comandante de um exército profissional, o texto de Mesa referenda tal conceito como uma elaboração teológica anti-monárquica.12 Se assim é, ainda resta a questão do herem, citado pela inscrição: ele deixa de ser um rito religioso, tão somente? Gwilym Yones afirma que, provavelmente, a aniquilação de toda uma população, quando ocorria, dava-se muito mais por conveniência política do que por fervor religioso.13 É exatamente dessa forma que Routledge explica o herem, duplamente mencionado pela estela de Mesa: a violência “sagrada”, antes que um ato de culto a Quemos, relaciona-se muito mais à segmentação do Estado moabita. Se o tributarismo, além da exploração econômica, evidenciava também trocas sociais, o herem indica que a troca, econômica ou social, era algo impossível. No caso, Mesa afirma a impossibilidade de incorporar os “homens de Gad” como uma subunidade moabita, e tão pouco submetê-los a tributos, pois eles fazem parte de “Israel”, o problema de Moab. Logo, dedicava-se à divindade tudo o que não pudesse entrar na lógica tributária.14. Ainda que a quantidade de documentos legados por Israel e Judá, bem como os sítios arqueológicos da Palestina, escavados há mais de um século, não possam ser comparados com as breves linhas da inscrição de Mesa e com os assentamentos moabitas, esse trabalho sustenta que é possível utilizar-se dos resultados das pesquisas não seria uma peculiaridade do antigo Israel, mas sim algo comum a todo Oriente Próximo, como indicam muitas inscrições assírias, hititas, além da própria inscrição do rei Mesa, que declara ser Quemos o verdadeiro responsável pelas vitórias; já Rudolf Smend e Fritz Stolz sugeriram que fosse mais apropriado chamar as campanhas israelitas de “guerras de Javé”, que não eram uma instituição homogênea, mas práticas experimentadas de maneiras diferenciadas pelas tribos; OLLENBURGER, Ben, “Introduction: Gerhard von Rad’s Theory of Holy War”, em Gerhard von Rad, Holy War..., p.24-25.; YONES, Gwilym, “O conceito de guerra santa”, em CLEMENT, Ronald (org.), O mundo do antigo Israel: perspectivas sociológicas, antropológicas e políticas, trad. João Rezende Costa, São Paulo, Paulus, 1995, p.296-297. 12 Mais recentemente, outros pesquisadores afirmaram que a “guerra santa” seria, na verdade, uma tradição teológica, elaborada pelo profetismo e pela história deuteronomista, talvez surgida em contraposição à guerra profissional, comandada pela monarquia; LIND, Millard, Yahweh is a warrior: The Theology of Warfare in Ancient Israel, Scottdale/Kitchener, Herald Press, 1980, p.142-144.167-168; Bem Ollenburger, “Introduction: Gerhard von Rad’s...”, p.26-27.32-33; Gwilym Yones, “O conceito...”, p.306-308. 13 Gwilym Yones, “O conceito...”, p.302. 14 Bruce Routledge, Moab in..., p.150.. 171.

(17) sobre o centro-sul da Transjordânia para propor novas interpretações sobre o Primeiro Testamento e, porque não, “revisitar a questão da historicidade bíblica”.15 A história do Levante, por conta das ciências bíblicas, normalmente tem sido “israelitocêntrica”, ou “judaitocêntrica”, para não dizer “judaicocêntrica”, se é possível utilizar-se desses neologismos: os “vizinhos”, quando mencionados, o são em função da história apresentada pelo texto massorético. Mas Moab teve suas próprias derrotas, suas próprias vitórias, seus próprios portões e palácios, suas próprias chacinas, quem sabe até seus próprios profetas, que denunciavam a monarquia! Assim sendo, seria importante que os biblistas ensaiassem um novo lugar hermenêutico, analisando a Escritura a partir dos olhos dos “vizinhos”. Dada a importância da inscrição de Mesa, bem como de Moab, podem os estudiosos bíblicos tornarem-se mais “moabitocêntricos”?. 15. Bruce Routledge, Moab in..., p.219.. 172.

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