Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles Massimo Canevacci
Título original
Culture eXtreme: mutazioni giovanili tra i corpi dcllc I11clropoli
Tradução dos subcapftulos "Cllerokee" e "K -ncardcatll c.xpcricncc" Jaime Clasen
Prepamção de originais e revisão de provas Daniel SeidI
Projeto gráfico e gerência de produção Maria Gahriela Delgado
Imagem da capa
Manikins-corpse, performance dos Autoconslrulores, Roma, 1996 Imagens
p. 6 - Ciberolho; p. 11- Mutoid Waste Company, Roma, Villaggio Globale; p. 12 - Kerosene: Auto-retrato; p. 40 - Mutek; p. 56 - Kerosene: Cal-girl;
p. 158 - Mazinga, Roma, 1993: Rave ex Snia Viscosa; p. 187 - Berlim: squatter descansando
CIP-Brasil. Catalogação·na·fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ M369c
Canevacci, Massimo,
1942-Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos das metrópoles I Massimo Canevacci; tradução de Alba Olmi. - Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
20Dp.; i1.; 14 x 21cm
Tradução de: Culture eXtreme: mutazioni giovanili tra i corpi delle metropolL
Inclui bibliografia ISBN 85-7490-371-X
1. Juventude urbana -Itália. 2. Itâlia - Usos e costumes. 3. Itália-Condições sociais - 1994. l. Título.
CDD 305.230945 CDU 316.346.32-053.6
Massimo Canevacci
Culturas eXtremas
Mutações juvenis nos corpos das metrópoles
Tradução
Alba Olmi
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IC da tradução DP&A editora Ltda.
Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Estas proibições aplicam-se
também às características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos autorais é punível como crime
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Impresso no Brasil 2005
Sumário
IntroduçãolLoop - FFWD ~~
capitulo I Das contra culturas às culturas intcnninávcis
Morte da contracultura, 13 Fim das subculturas, 16 Os jovens entre metrópole, mídia e consumo, 20 Os jovens intermináveis, 28
Zona em trânsito
Do K ao X, 41 Do extremo ao eXtremo, 45
capitulo II Excursus sobre as culturas juvenis intermináveis
TAZ - Rewind '4'4,57 Interzonas,60 Mercadorias tatuadas, 62 Fucking Barbies, 65 Fikafutura, 70 Corpos inorgãnieos, 73 Torctta,7S Torazine,81 Rave,90 Fluid Video Crcw, 96 LutherBlissett,100 Anarcociclistas,108 Dceodcr,l12 Link,121 Piratarias de Porta, 124 Squatters,128 Chcrokcc, 130
Brain machinc, 136 Fin*Tcehklan,138 hup://www.kyuzz.orglordanomade, 147 K - near death experienee, 153
7
13
41
57
capitulo III Conceitos líquidos 159
Aporia, 160 Skullpturc, 162 PolEitics, 163 Diáspora, 164 E-spaec, 165 Nonordcr, 168 Anomia, 170 Mcdiascapc, 171 Amnésia, 173 Liquid days, 176 Flamc-wing, 178
lnconcretc, 180 X-seapc, 181 Loop :e-space .. x-scape: '4'4 ~~, 182
Bibliografia 189
IntroduçãolLoop
FFWD ~~
Este ensaio nasce de uma grande insatisfação. As pesquisas jorna-lísticas, as pesquisas quantitativas, as abordagens generalistas, as visões prescritivas não conseguem dar, em minha opinião, o l11ultis-sentido das perspectivas emitidas por aquelas que se definem "culturas juvenis". Elas desenham constelações móveis, desordenadas, de faces
múltiplas. Multicodes. Trata-se de fragmentos e de fraturas cheias de
significados líquidos: um sentido fluido alterado é posto em ação por
um panorama contextual e metodológico no qual não é mais possível
organizar, com tipologias ou tabelas, um suposto "objeto" da pesquisa. Produziu-se uma fratura disjuntiva nas narrativas dessas culturas que aqui se tentará abordar por perspectivas atípicas, talvez pouco rigo-rosas, por vezes euróricas, sempre delicadas-descentralizadas-dialógi-caso E multinarrativas.
a) O contexto panorâmico pelo qual passam as culturas juvenis assume a metrópole comunicativa e imaterial como o novo sujeito plural, diferenciado e móvel. Um humor que corrompeu o conceito tradicional de sociedade. Inútil e deprimido, esse conceito não con-segue mais dar o sentido, a pulsação, o ritmo da contemporaneidade.
Como escreveu
J.
Shirley num romance antecipatório, City comea-walhín' fazendo desaparecer a sociedade assim organizada, dualista, sintética, produtiva, moderna, política. A última não consegue de-senhar a anatomia da história presente e menos ainda a anatomia de sua transrormação revolucionária. Enquanto o caminho da metrópole,
iniciado no século XIX, irrompe no cenário já interpretado pelo social
(com seus atores asseados, os papéis fixos, o status declarado) e ali se inserem suas representações per formativas até deprimir qualquer tradição.
Na metrópole - em seus módulos diferenciados e escorregadios-difunde-se o consumo, a comunicação, a cultura; os estilos, o híbrido, a montagem: patchwork girl e mosaic mano
8
Cultllrils eXtremas
b) O método é desafiado por esses contextos panoramáticos. É
desafiado tanto na busca quanto na realização. O método é uma gaiola
enferrujada que pré-criou e encerrou seus sujeitos, organizando-os em objetos puros dos quais extrair regras, leis, previsões, tipologias,
pres-crições, tratamentos. Contra tudo isso, eu quis descentralizar o
mé-todo, multiplicá-lo em seu próprio agir, construÍ-lo e diferenciá_lo ao longo de narrativas assimétricas: assumir como irredutíveis sujeitos, em cada seu momento, os protagonistas das culturas juvenis eXtremas.
Contrariamente à tradição socioantropológica, são as zonas
limüro-fes, os espaços vazios, os desafios panoramáticos, os atraveSSélmcntos
que me interessam.
Aqui se reivindica uma espol1taneidade metodológica polifônica que
vai de encontro a todo rigor formal monológico, a toda e qualquer moral holística pensativa, a toda e qualquer implacável estatística. Ou
então, para sermos mais exatos, minha metodologia é o gozo da
dife-rença.
Recuso-me explicitamente a elaborar tipologias que serVem para a banalização resumitiva e rígida. Rótulos da planície e do
enquadra-mento: a hard-techno, a bad grrrl etc. A aliança Upológica entre
soció-logos/antropólogos e jornalistas constituiu guetos conceituais contra a mudança dos paradigmas, obrigados somente a "fixar" e "uniformi_
zar" aquilo que é plural, Ouido, cambiante.
Tipologias e taxonomias estão exauridas. Não está inscrito no esta-tuto de ferro das ciências sociais que se devem reproduzir essas gaio-las. E se no estatuto epistemológico de sociologias/antropologias hou-ver a elaboração de modelos (patterns), eu não os seguirei. A viagem
aqui empreendida é de outro lipo. Não satisfará nenhum sistematiza_
dor, nem classificações ou comparações. O objetivo explícito é o de
aplicar uma metodologia das diferel1ças, a fil11 de acentuar os traços de
dcsordenação das produções juvenis intermináveis.
Não existe Uma visão unitária e global das culturas juvenis que
seja passível de resumir a Um número, a um código ou a uma receita.
A síntese é o instrumento conceitual de ordem, nascido da pólis, que
Introduç5.o/Loop 9
aqui é rompido; o que resta - fragmentos líquidos - cruza-se e afasta-se
sem possibilidade alguma de reconstruir o quebra-cabeça perspectiva do social.
* * *
o
texto é articulado em três partes:- A primeira busca redefinir os cenários múltiplos dentro dos quais se colocam os fragmentos juvenis contemporâneos; contra qual-quer tradição continuísta, entretecem-se os fios que eliminam todo re-síduo conceitual de subcultura ou de contracultura, e propõe-se o
ce-nário múltiplo das culturas intermináveis. Ou melhor, eX-terminadas:
condições juvenis e produções culturais e comunicacionais não são
tennil1áveis. Por isso elas são intermináveis, sem fim, infinitas, sem
li-mites.
Entretanto, nem todas as culturas juvenis são eXtremas. Aliás,
gos-taria de esclarecer logo as diferenças entre uma visão do extremo como
totalmente interna aos lugares do domínio e de sua reprodução
territo-rializada e seus visares do eXtremo que produzem temporárias
dcsterri-torializações.
- A segunda paTle é um excursus multi narrativo entre um defiuir
de interzonas nas quais se experimenta o eXtremo intennilIcível. Há
muitos anos venho freqüentando essas zonas - em primeiro lugar, para meu prazer. Talvez para a parte interminável de minha condição/per-cepção juvenil. Foi-me dada uma extraordinária possibilidade de en-contrar, ouvir, olhar e dialogar com muitos jovens estudantes que constituíram as bases móveis das quais aprender e satisfazer uma minha curiosidade excessiva, talvez demasiado entusiasta, sempre par-cial. O menos possível institucional. Nunca "científica", instrumento para obter financiamentos, fazer carreira, falar "em nome de".
Repentinamente, encontrei-me diante de uma quantidade imensa de narrativas, saberes, fiyers, músicas, emoções, comunicações Oui-das. E decidi que tentaria contar algumas dessas formações comunica-cionais, utilizando estilos diferenciados e de facetas diferentes. As
10 Cultums eXtremas
narrativas englobam e envolvem apenas algumas entidades que acen-deram minha paixão cognitiva, embora de formas diferentes, ou tal-vez com as quais soube ou pude relacionar-me melhor. A narrativa, de rato, dialoga com o sujeito outro, "percebe" -o.
- Na terceira parte eu poderia tcr escolhido realizar conexões, fazer
comparações, genealogias e tipologias entre as culturas eXtremas; pelo
contrário, minha escolha foi diferente: todo o texto se baseia numa acentuação das diferenças. Conseqüentemente, pensei em desenvolver esta última parte de forma a torná'-la estridente em relação às
ante-riores, por meio da emergência de
conceitos líquidos:
tensões queconectam as interzonas eXtremas (as correntes diferenciadas entre si das culturas intermináveis) e alguns exploradores de sentido (artistas diaspóricos, arquitetos dissonantes, pesquisadoras pós-coloniais, etnógrafos anêmicos, filósofos desviados etc.).
Culturas intermináveis, interzonas eXtremas, conceitos líquidos: no
decorrer dessas três diferenças, o texto se articula, se constrói e deflui. Sem uma relação dialógica constante com as muitas subjetividades que são aqui apresentadas, este texto não seria sequer imagináveL A todas essas pessoas multivíduas é dedicado este livro, e de qualquer maneira a elas é dirigido meu agradecimento eXtremo. Gostaria que esta publicação pudesse favorecer um salto temporal em direção a produções experimentais e intermináveis.
Apesar de tudo, sinto o desejo de revelar duas entities que
acompa-nharam desde o início este livro, lido e inclusive criticado duramente e, enfim, tornado possível. Sem elas, ele não teria nutuado.
Ambas-em sua diversidade - contribuíram para inflamar e alterar o texto. As
chamas e as alterações se disseminaram por todo lugar, e justamente
através dessas duas entilies - que tentaram resfriar alguns entusiasmos meus, por vezes demasiado fáceis, e certas instâncias talvez demasiado eufóricas - o texto pôde encontrar uma solução parcial. A elas vai um pensamento final: líquido e interminável, naturalmente. ..
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capítulo I
Das contraculturas
às
culturas intermináveis
Morte da contracultura
Já faz tempo que a "coisa" movimenta energia, transforma o pensamento em ação, vive a um metro de distãncia por interesses e objetivos co-muns. A "coisa" entcnclida como MULTICONNI::CTlON
de pessoas que - misturando suas prôprias ex-periências realizadas nos últimos anos com obje-tivos como música, livre expressão criativa, au-toproduções, performances - deram vida a uma única força determinada cúmplice e consciente de sua complexidade. Precisamos concentrar e não dispersar em 7 hectares nossa força que, em algum estranho jogo de cruzamentos, unindo-se, cria. Esta área nos dá oxigênio e, parece-nos, merece a vida. Nosso passo parou aqui.
FIWTECHKLAN INFlNITEK'DESIRE
A expressão "contracultura" nasce pelo final dos anos 1960 e mor-re no início dos 1980. O pmor-refixo "contra" atestava a dimensão da
oposição que as novas culturas juvenis dirigiam à cultura dominante
ou hegemônica. Ser contra significava que, antes de qualquer possi-bilidade de falar em cultura, aliás, ainda antes de chegar ao termo
"cultura", era preciso ser antagonista, opositor. O prefixo não era
Ca-sual: enfatizava também lexicologicamente um antes que informava
tudo o que vinha depois. Por isso o duplo sentido do vocábulo. Por um lado, era possível produzir cultura somente se se declarasse, preven-tiva e publicamente, contra; era, pois, necessário postar-se contra a cultura dominante, não só contra os valores, os estilos de vida, as vi-sões de mundo ao poder, mas também contra a cultura intelectual dominante (a filosofia, a religião, a arte ... ). Por outro lado, esse contra
14 Culturas eXtremas
inicial não era mais suficiente e empurrava em direção a um para, ou
seja, em direção a projetualidades afirmativas, práticas, cotidianas, de repensar a cultura em termos de total e radical diferença.
Dentro do conceito de contracultura transita-se, portanto, de uma
oposição radical contra alguma coisa dominante, em relação a
pro-postas criativas) para algo totalmente distinto. Contra a cultura do
po-der e para as culturas da revolLa, para a transformação do mundo, para acender um processo revolucionário nem tanto na estrutura socioeco-nõrnica, mas, sobretudo, no cruzamento de novas formas de pensar e velhas ideologias.
As contraculturas se caracterizam por uma abordagem contrária à
ortodoxia marxista, hegemônica não somente na URSS ou nos partidos
"irmãos", mas também em grande parte nos grupos revolucionários que nasciam na época; para os sujeitos contraculturais, não era a es-trutura econõmica que determinava o ser ou a consciência (muito me-nos a do partido), mas era possível, mesmo nas condições do capita-lismo tardio, dar saltos diretamente entre experiências individuais e supra-estruturais, para alcançar e acender possíveis libertações.
Praticamente isso significava depreciar os conOitos sociais (os conDitos de classe sobre salário, qualificações, horário de trabalho etc.), eliminar toda pesquisa ideológica sobre as instituições (Estado, governo, sindicatos), reCUsar a organização científica da política (o partido como máquina para alcançar o poder). E, ao contrário, acen-tuava-se a dimensão individual, geralmente descuidada em favor da coletiva, de classe ou de massa.
Essas culturas juvenis são, pois, contra "a" cultura ao poder - aque-la cultura burguesa, de caque-lasse, ou dominante, herdeira do Iluminismo - que tende a virar ideologia: uma falsa consciência historicamente necessária que busca afirmar sua parcialidade como se fosse universal. A cultura burguesa se transforma em ideologia justamente neste movi-mento "secreto", acionado particularmente pelos intelectuais: transfi-gurar valores, instituições e filosofias de parciais (de classe, de sexo, de geração) em gerais (da humanidade toda). A tarefa dos intelectuais
Das cOnlraculturas às culturas intermináveis 15
é fazer passar como pertencendo à "natureza-das-coisas" ou ao
"gê-nero-humano" interesses brutos que, ao contrário, são parciais: de urna burguesia masculina, adulta e branca. Por essa razão a função da universidade - e depois também a da mídia - caracteriza-se como adestramento ao papel, como pedagogia que reproduz e atualiza essa cultura transformada em ideologia.
Todo esse modelo não funciona mais já faz tempo. Um processo ir-resistível, culminado nos anos 1990, dissolveu qualquer possibilidade de uma cultura dominante. A clássica dicotomia cultura hegemônica/ culturas subalternas (que fez com que antropólogos gramscianos, empenhados em contrastar qualquer inovação conflitiva nascida nos anos 1960, escrevessem uma infinidade de textos) exauriu-se definiti-vamente. Fruto cultural da dialética do século xx, essa dicotomia afunda como um Titanic com o fim de toda cultura - inclusive domi-nante - quando se apresenta como universal, quando se transfigura em ideologia. Ao mesmo tempo, as culturas juvenis mais inovadoras estão
desinteressadas em contrastar os fantasmas que sobreviveram à
ca-tástrofe de todas as hegemonias culturais. Tais culturas não são mais
contra: nem contra urna cultura dominante, que justamente não existe
mais e que, de qualquer modo, diluiu-se numa série policêntrica de poderes em competição entre si; nem a favor de uma cultura contra, porquanto nada é mais desejável ou imaginável do que uma cultura de oposição revolucionária.
Não existe mais uma contracultura, pois morreu a política como utopia que transforma o mundo empenhando o futuro próximo. Não
há mais contracultura, pois não há mais o contra. O término da
hege-monia, o fim da ideologia e o fim da política enxugaram o conlra. E
li-berlaram as culturas extremas ... aliás, eXtremas: lá onde esse X (como veremos: não tem nenhuma relação com a incógnita de uma geração. Já na citação inicial deste capítulo apresenta-se um "estranho jogo de cruzamentos" ao longo de hectares de território temporário, onde
se misturam as experiências. É aqui que a "coisa" se difunde ao longo
Culturas eXtremas 16
Fim das subculturas
Fads swept thcyouth ofthe Sprawl at lhe speed oflight; entire subcultures could rise overnight, lhrive for a dazen weeks, and then vanish ut~ terly.l
William Gibson (1984, p. 74)
Inclusive o conceito de subcultura foi progressivamente se exau-rindo. Diferentemente da contracultura, que possui uma matriz mais
político-alternativa, é ligado em nó duplo ao clássico conceito antro~
pológico de cultura. E, por isso, atesta o empurrão a englobar e a uni~
ficar _ em seu "complexo conjunto" - modelos, crenças, valores, de acordo com modelos unitários. Apesar das tentativas de distinguir e de explicitar, por parte das diversas e até demasiado opostas escolas etnoantropológicas, todo conceito de cultura acabou em posições ge-neralistas e homogeneizantes. Essa obsessão cientificista derivava do
desejo de dar também à cultura o mesmo critério de objetividade
(e de "seriedade") epistemológica conferido à natureza por biólogos,
zoólogos, físicos etc.2
Além disso, há uma estreita simetria entre um conceito de cultura expresso de" modo globalizado-uniforme e um de seus êxitos mais infelizes: aquele "caráter nacional" que, lamentavelmente, continua sobrevivendo inclusive além do âmbito estritamente antropológico
("os italianos" ... os alemães ... ). O caráter nacional como subcultura.
Parte-se da existência do caráter nacional de "a" cultura italiana - por seu turno subcultura da cultura européia, ocidental, complexa -, da qual nascem outras diversas subculturas (romana, juvenil, feminina, operária, estudantil). Em suma, a subcultura é uma classe menor den-tro de uma maior - um subgrupo não apenas social, mas também
ter-"As modas varrem a juventude do Sprawl com a velocidade da luz; enquanto inteiras subculturas podiam nascer numa noite, prosperar por uma dúzia ele semanas, para depois desaparecer completamente."
2 Uma conhecida frase de Clifford Geertz diz que "a antropologia não é uma
ciência em busea de leis universais, mas uma ciência em busca do significndo" (1988, p. 41).
Das contraculturas às culturas intermináveis 17
ritorial, sexual, étnico, de geração, desviante etc. - que, por sua vez, pode ser outra classe para uma outra ordem ainda menor. Por isso, a idéia de subcultura - em seu particular - herda todos os limites do
conceito de cultura mais geral do qual é parte.
Não há, portanto, um sentido depreciativo na expressão "subcul-tura", concentrado no prefixo "sub": ele não indica algo que está
"abaixo" e, conseqüentemente, é inferior em relação a alguma outra
coisa que fica "acima". N o emprego do termo permanece a instância cientificista de identificar, ou melhor, de recortar uma fatia compor-tamental caracterizada por possuir estilos, ideologias, valores homo-gêneos. Selecionam-se esses traços culturais, vistos como idênticos para cada estrato, e se privilegiam em relação a uma série de outros traços que os tornariam diferentes. A história da antropologia afir-mou-se não apenas ao privilegiar as (supostas) uniformidades, mas
também na destruição sistemática e "objetiva" das diferenças.} São as
diferenças que devem ser aplainadas para que seja possível fazer nuir o carro triunfante e cientificista de "a" cultura.
Para contrastar o perigo das diferenças - vistas como desordem - a antropologia (como a filosofia, a psicologia, a sociologia, a
arquitetu-ra) estruturou-se como apologia e defesa da identidade. Como foi dito,
a elaboração do "caráter nacional" favoreceu cada preconceito e re-forçou cada estereótipo, levando em consideração sociedades modernas em larga escala, com milhões de pessoas: e assim a subcultura -como sua matriz "cultura" - seleciona o homogêneo em detrimento do heterogêneo, o uniforme contra o fragmentário, o singular contra o plural, o estático contra o Ouido, o holístico contra o parcial, as cone-xões contra as disjunções, a identidade contra as diferenças.
3 "Os instrumentos teóricos proporcionados por Kant e Hegel, o juizo e a dinlética,
revelam-se incapazes de sustentar o impacto de uma experiência que não pode mais ser contada nem como subsunção do particular ao universal, nem como superação da contradição 1 ... l. O mais originnl e o mais importante [acontecimento filosófico 1 do século xx reside na noção de diferença, entendida como não-identidade, como uma dessemelhança mais ampla do conceito lógico de diversidade e do conceito dialético de distinção" (Perniob, 1997, p. 154).
18 Culturas eXtremas
o
erro produzido é duplo: não só se estendem às culturasnacio-nais aqueles conceitos e métodos aplicados nas pesquisas etnográficas em contextos restritos (aldeias), mas se acaba inclusive sustentando que nas sociedades chamadas "simples" haveria um caráter uniforme (mas não nacional) e sem indivíduos!
Assim, nas sociedades "complexas" há somente um caráter
na-cional, e nas chamadas "simples" há somente um caráter individual. Está na hora de eliminar as distinções etnocêntricas entre socieda-des simples e complexas, juntamente com os caracteres nacionais e as várias subculturas, todas marcadas pela idéia de uniformidade e pela
reproduçãO de estereótipos. É tempo de defender os fragmentos, as
parcialidades, as diferenças, como uma parte da antropologia já come-çou a fazer.
O problema é que o conceito de caráter nacional não consegue
unificar uma complexidade que não é unificável, ao contrário, é
dife-renciável. Não pode conferir ordem a uma desordem que é móvel.
Fe-lizmente ... O conceito de cultura como algo global e unificado,
com-plexo e identitário, que elabora leis universais, dissolveu-se seja debaixo dos golpes da nova antropologia crítica, seja, ainda antes, pela difusão de fragmentos parciais que não aspiram mais a ser unificados, mas que reivindicam, vivem e praticam parcialidades extremas, irre-dutíveis diferenças.
Contudo, ao longo dos fluxos móveis das culturas juvenis contem-porâneas - plurais, fragmentárias, disjuntivas - as identidades não são mais unitárias, igualitárias, compactas, ligadas a um sistema produtivo de tipo industrial, a um sistema reprodutivo de tipo familiar, a um sis-tema sexual de tipo monossexista, a um sissis-tema racial de tipo purista," a um sistema geracional de tipo biologista.
.. Em Salvador, na Bahia, vi camisetas eom o dizer "100% negro", como para reivindicar uma "pureza" sem gotas de sangue intruso. Num país de COl1lras[es como o Brasil, é realmente uma estranha mensagem para uma estranha pureza. É preciso lembrar que ali o termo "negro" não tem uma acepção ofensiva como nos
EUA, enquanto e o "preto" (escuro", black) a ser considerado tal.
Das contraculturas às culturas intermináveis 19
Assim, em relação às culturas juvenis, uma subcultura não é, por sua natureza, uma contracultura, porque pode ser também uma cul-tura pacificada, organizada, mística etc. Por isso, é importante
distin-guir os dois conceitos que não coincidem ou que, de qualquer modo,
podem não coincidir. Em todo caso, uma cultura é "sub" não porque
considerada inferior. O prefixo "sub" indica mais um conceito que as-pira a uma maior neutralidade científica. Esse segundo prefixo,
por-tanto, "fixa" (prefixa) cada segmento de cultura dentro de uma cultura
mais ampla.
Não existe mais uma categoria geral que possa englobar nela uma particular, ao longo de segmentos homogêneos (o caráter nacional). Por
isso morreram as subculturas. Não exisle mais (se é que alguma vez
existiu) um "acima", mas um "através de" - ou melhor, muitos "atra-vés": atravessar os segmentos, as parcialidades, os fragmentos do eu e do outro. Transitar entre os "cus" e os outros. Particularmente para as pluralidades dos universos juvenis que não são passíveis de serem
encerrados nas gaiolas das subculturas. São pluriversos.
O sucesso anglo-saxônico do termo "subcultura" deve-se sempre a
uma leitura (sob alguns aspectos até providencial) de Gramsci, por
isso pôde desenvolver-se um tipo de marxismo sensível à mais ou
me-nos relativa autonomia da cultura - em relação à já citada ortodoxia
que proclamava a centralidade da estrutura acima (e contra), toda
su-perestrutura à qual vinha associado um sentido depreciativo de
se-cundário, derivado. Ainda assim, esse termo "subcultura" hoje é de
pouca significação, pois não existe mais uma cultura geral unitária
(por exemplo, a cultura britãnica) em relação à qual uma determinada
subcultura se define como parte dela, como um "abaixo".
Se já desde o princípio era difícil definir os punks uma expressão subcultural (Hebdige, 1983), agora a morte do caráter nacional- que ordenava uma escala hierárquica piramidal com uma ponta hegemô-nica até uma base subalterna, sobre cujos desníveis se organizavam essas "culturas-abaixo" - arrasta consigo também a morte das subcul-turas. Um hacker ou um raver se movimenta através e contra qualquer
20
Culturas eXtremas
distinçào geopolítica nacional, e qualquer definição subcultural se apresenta inadequada e antiquada, até um tanto ridícula.
É a própria idéia de caráter nacional que se dissolveu
definitiva-mente no ar.
A citação inicial de Gibson é interessante por sua ambigüidade
genial: a literatura ciberpunk - que inventa conglomerados de espaços e de tempos (o sprawl) - mantém como um achado o conceito de sub-culturas, mas logo a seguir insere nele os novos fluxos comunicacio-nais que as fazem respingar pelo espaço de não mais do que uma dúzia
de semanas e depois desaparecer. É hora de as ciências sociais também
transitarem da subcultura ao sprawl.
Os jovens entre metrópole, mídia e consumo
Bateria e baixo calaram, em espera dramática. Os grandes olhos de ouro de Catz se abriram ainda mais. O suor lhe havia grudado na cabeça os cabelos platinados. Seu rOSlo perdeu qualquer incerteza e anuiu ao homem de óculos, e depois cantou: "A cidade se levanta e caminha! reclama o que ê dela! Por vezes o mundo toma a forma dos deuses/por vezes os deuses tomam a forma de homens/por vezes os deuses caminham sobre a terra como mortais .. .I E esta noite a Cidade se levantou, caminhou, e nós somos todos obso-letos ... ".
johnShirley(l981,p.ll) Se, como se viu, aparecem conceitualmente sempre mais contraí-das as noções de contracultura e de subcultura, a categoria de jovem, ao contrário, estende-se sem tempo CCanevacci, 1995). As tradicionais distinções em faixas etárias se abrem, a idéia de jovem se dilata. Em termos sociológicos, a faixa etária chamada "jovem" é recente. Nasce, grosso modo, nos anos 1950, com um Significado totalmente distinto do anterior: um significado descontínuo ligado a contextos descontí-nuos. O jovem teenager afirma-se com prepotência na comunicação
r
Das contraculturas às culturas inLermináveis 21
metropolitana e midiática do Ocidente, particularmente por meio de sua visibilidade musical e fílmica.
Todas as premissas são antecipadas já em outubro de 1927, quando
nasce o cinema sonoro com The jazz sínger [O cantor de jazz] , dirigido
por Alan Crosland, "um filme mudo com algumas inserções faladas ou cantadas" (Sadoul, 1964, p. 309). Mesmo uma breve análise do filme pode fornecer elementos preciosos para o discurso que aqui se desenvolveu. Para aqueles que não se lembram, AI jolson - famo-síssimo cantor, na época não mais jovem - interpreta o papel de um fi-lho que decide ser cantor contra a vontade patriarcal do pai, que vê
como imoral e degenerado o mundo do jazz em relação à música dita
"clássica". A mãe - fraca e doente, maternal e amorosa - não consegue opor-se ao marido e é obrigada a suportar a expulsão de casa do filho.
Depois de alguns eventos, AI se torna um cantor [amoso~.porém, para
não ser reconhecido, pinta o rosto de Ce como) preto, camuflando-se de blaclL Pela dor, a mãe adoece cada vez mais, e o pai se fecha em sua
cega condenação ao poder nascente da mídia. É assim que AI grava um
de seus grandes sucessos mundiais da música popular: "Ma mie" . "How I love you, how I love you my little mamie." No espetáculo final, toda a elite da cidade corre para ouvi-lo a fim de decretar seu triunfo
no teatro, enquanto o rádio prolonga sua mensagem nos EUA Ce o
cine-ma em qualquer parte). A mãe morre de desgosto, o filho chora, can-tando como estrela da nova mídia, o pai se desespera por ser
dema-siado retrô; todo mundo se comove pela morte da mãe, condena a
excessiva rigidez do pai e se alegra ainda mais por ter podido escutar e, ao mesmo tempo, ver, pela primeira vez, um cantor de jazz, fruto sincrônico do enxerto da vitrola com o cinema.
Dessa forma se especifica o conceito de democracia visual Ce da-quela que será chamada indústria cultural): o espectador é instado a identificar-se com o filho inovador e contra o pai autoritário e
passa-dista: isto é, a favor do cinema sonoro e da nova mídia, contra a
22 Culturas eXtremas
o
personagem do cantor AI Jo150n não resulta fundamentalso-mente para o cinema sonoro, mas também porque esse novo meio apresenta a ascensão e a legitimação do jazz (ou melhor, de um jazz
branco e choroso, camuflado de blach)5 como cultura de massa
expres-sa pela geração dos filhos contra a geração dos pais. Mesmo que do ponto de vista visual AI seja tudo senão jovem (ao menos segundo aquilo que logo depois será o modelo "tecn"), ele prevê o nexo fun-damental entre autonomia das culturas juvenis nas metrópoles,
ascen-são irresistível da mídia, dilatação do consumo (= imoral) contra a
produção (= moral), o conflito com os pais autoritários e perdedores.
É esse nexo, tornado ainda mais conflituoso em termos de geração
do contexto do pós-guerra, que produzirá a ascensão das culturas ju-venis corno subculturas, corno contraculturas e corno mídia-culturas: as culturas expressas e veiculadas pelos meios de comunicação social que então estavam nascendo, que terão corno principais sujeitos de consumo justamente os jovens.
Um elemento posterior de inovação caracterizará "os jovens" co-mo traço decisivo da contemporaneidade: a escola de massa. Os jovens antes não existiam como faixa etária, enquanto se transitava direta-mente da adolescência (entendida muito elasticadireta-mente) para o
traba-lho. Aliás, como é amplamente sabido, tanto o trabalho agrícola
(ain-da pior) quanto o trabalho industrial absorveram em segui(ain-da, já desde a mais tenra adolescência, os filhos das classes popuhres; e então "jo-vem", em sentido estrito, podia ser o aristocrata iS('''ltO do trabalho ou, mais adiante, o filho do burguês educado para o tr8.halho.
Então: a escola de massa separa um segmento interclassista da po-pulação da família e da produção; a mídia (discos, rádio, cinema) pro-duz um novo tipo de sensibilidade e de sexualidade, modo e estilo de vida, valores e conflitos; a metrópole se difunde como cenário panora-mático repleto de signos e sonhos (mediascape) O cruzamento
desor-S O intérprete não podia ser negro pela equivalência jazz '" blnck; porém, ao mesmo
tempo não podia não ser branco, a fim de decretar o sucesso mundial.
Das contraculturas às culturas intermináveis 23
denado e intrigante desses três fatores constitui o terreno autônomo, inovador, conflituoso no qual se constrói a categoria sociológica do "jovem". Os jovens como faixa etária autônoma da modernidade
nas-cem entre os fios que os ligam à escola de massa, à mídia, à metrópole.
Escola, mídia e metrópole constituem os três eixos que suportam a constituição moderna do jovem como categoria social.
Dos anos 1950 em diante, esse cruzamento configura o fenômeno da cultura juvenil que oscila desde logo entre subcultura e
contracul-tura, entre integração e conflito. O jovem é um teenager que entra na
escola e pode chegar à universidade, ou então se "matricula" no mundo
dos adultos, entrando no mundo do trabalho. O trabalho é uma espécie de rito de passagem que separa dolorosamente o jovem do adulto. Um rito sem mito. Não há mais uma história narrada para sublinhar de for-ma evocativa a mudança definitiva. O trabalho como trabalho assala-riado se apresenta desde logo como um corte nítido do qual não se
po-de voltar. É uma passagem uni direcional e irreversível. Ele assume a
forma besuntada e deprimente do emprego fixo (no Estado, nas prefei-turas, no público etc., uma espécie de prisão perpétua com a permis-são de fugir uma vez ao dia), ou do trabalho explorado na fábrica,
alie-nado, mas vivo, do qual é preciso tentar livrar-se de todas as maneiras.
Contudo, antes de tornar-se adulto, entrando no mundo sério e
irre-versível do trabalho, o jovem é tal porque consome. E, pela primeira
vez, o consumo juvenil adquire um papel central que se amplia con-centricamente para toda a sociedade. O jovem consome - o adulto produz. A expressão, sociológica por excelência, que nasce desse con-texto é, não por acaso, "a sociedade do consumo". Na idéia da socie-dade do consumo, há uma espécie de horror político-conceitual, uma aporia do bem e uma inflação do mal, um escãndalo da ética tanto revolucionária quanto conservadora. A sociedade só pode ser a do tra-balho. Do conflito entre classes. Da arte científica da política e do par-tido como sua expressão mais elevada para a tomada do poder.
Na emergência desordenada e descomposta da sociedade do con-sumo, todos os olhares convergem para uma condenação sem apelo:
24 Culturas eXtremas
hedonismo, narcisismo, relaxamento, superficialidade. A prodUÇãO salva a alma; o consumo é sua danação. A produção é o anjo que aban-dona os escombros da existência e que os resgata. O consumo é o anjo decaído que afunda na danação do prazer, do vistoso, do supérfluo. Na produção, o sujeito é de classe; no consumo, o indivíduo é de massa.
Na primeira, ele é alienado e revolucionário; na segunda, é
homolo-gado e apaziguado.
A condenação do consumo unifica pontos de vista divergentes e
opostos: para o marxismo, o consumo é o momento final do processo
de acumulação capitalista e é determinado pela produção. Por essa
ra-zão, o conflito de classe nasce e se resolve dentro da prodUÇàO: das
fá-bricas ao Estado. Sobre essas premissas incrustam-se preconceitos de ordem ética a respeito do consumo como supérfluo; no marxismo do-minante emergem somente modelos austeros e disciplinados de espar-tanos ou de espártacos. O mesmo é afirmado pela ética protestante, que vê no sucesso econômico um lance mundano nunca adquirido pa-ra sempre pela salvação eterna. O consumo é dissipação e, sobretudo, danação. Sem falarmos do fascismo e de suas éticas guerreiras de legio-nário romano, e de seu ódio visceral por tudo aquilo que provém das plutocracias anglo-americanas.
Pois bem, pela primeira vez na história da humanidade, de forma tão nítida e radical, os jovens provenientes de qualquer classe (burgue-sa, operária e popular) são emancipados da produção agrícola ou industrial e podem atirar-se ao consumo. Do ponto de vista do sujeito político (e adulto) produtor de riqueza (ou de consciência de classe), o jovem não apenas não trabalha, mas também consome! Daqui os ressentimentos ...
E então a crítica à sociedade do consumo envolve e arrasta toda ideologia, eleva o desdém, faz as pessoas sentir-se boas e sofredoras.
Sobretudo condena. A sociedade do consumo é um espetáculo
indig-no: aliás, é "a sociedade do espetáculo" ...
Lamentavelmente, a mídia estava muito à frente de seus críticos. Já as exposições universais - como Benjamin percebeu primeiro -
eleva-Das contraculturas às culturas intermináveis 25
vam as mercadorias a comunicação, duplicavam os conflitos: além do valor em sentido econômico, elas, após terem sido entro nadas como fantasmagoria universal, produziam valores como estilos, visões,
es-quemas de comportamento. Já desde a primeira metade do século XIX,
para o capital o conflito não era somente o da produção, mas também o do consumo; e os novos espaços do consumo se transfiguram em es-petáculo a fim de capturar as consciências ou, ao menos, os comporta-mentos. E mais: se nos conflitos sobre a prodUÇão o capital algumas vezes podia perder, nos conflitos com o consumo ganhava sempre e recuperava tudo aquilo que havia perdido (e também muito mais) nas lutas estruturais.
A capital do século xx é Paris - ou seja, uma metrópole vista como
mercadoria luminosa e poderosa -, não suas fábricas. Suas alamedas político-militares, as caricaturas animistas de Grandville ou as pros-titutas, "que são mercadoria e são sonho". E é Paris, para Walter Ben-jamin, que deve ser libertada (ou redimida) de seus fetiches, não o
Crédit Immobilier, a Citroen ou a Gaumonl.
A mercadoria multiplicada como espetáculo, como visão - a
merca-doria visual -, possui um poder dissolvente semelhante ou superior
àquele das mercadorias "materiais" e tradicionais de tipo industrial. Na primeira metade dos anos 1950, aparecem alguns filmes que justamente exemplificam esse conflito mais avançado. Na Itália, uma
tradução traidora e censora transforma o título do filme Rebels Wit/lOut
a cause, de Nicholas Ray (1954), emJuvenlude transviada. Ray retoma
o tema que AIJolson deixara em 1927: a hipocrisia e a corrupção inte-rior da geração dos pais, contra a qual se atira a geração dos filhos, mesmo sem uma causa clara, mas numa tensão limpa e regeneradora. Há uma seqüência decisiva do conflito entre pais e filhos. Mãe, pai
e Jim estão na escada interna da casa. Jim - que quer ir à polícia por
causa da morte de seu colega de escola - diz: "Papai, não foi você quem disse que é preciso dizer sempre a verdade? Não falou assim?
(o pai se cala). Não pode engolir isso agora, não pode!". A mãe: "Não
diga isso, diga que você não pode fazer o voluntário". Jim: "Isto é, dizer
OFRGS
- O"! '
0_ '""-' ••l'
26 Culturas eXtremas
uma pequena mentira". O pai (apontando o indicador contra o filho
de forma agressiva): "Vai aprender!". Jim (ele também levanta o indi-cador, mas com delicadeza firme): "Não, eu não quero aprender a
vi-ver dessa forma".
o
título complexo de Nicholas Ray transforma-se na Itália numaapriorística condenação da juventude que queimou a si mesma como uma ponta de cigarro, uma ardência breve e intensa, para logo ser
jo-gada fora, como um dejeto. Juventude rejeitada. Jim, que no entanto vive
numa classe média e branca (WASP - white anglo-saxan pagan), não
quer aprender. No ano seguinte, o diretor Richard Brooks realiza The
blackboard jungle [Sementes da violência], filme no qual a rebelião
juve-nil explode nas escolas-guetos, onde, também ali, não se quer apren-der o mesmo modelo do saber. Não se quer repetir a mesma música. "O professor, interpretado por Glenn Ford, procura encontrar um espaço comunicativo, levando aos rapazes seus discos de jazz, símbolo do intelectual branco progressista. Os rapazes rasgam em pedaços a coletânea e colocam no prato da vitrola 'Rock around the clock'"
(Colombo, 1995, p. 73). À visão metropolitana clássica, que vê a
flo-resta na metrópole ou no quadro-negro da sala de aula, numa escola-gueto socialmente degradada, corresponde a tradução de uma "semen-te" quase bíblica que gera violência e caos. De fato, apesar do atraso traidor dos aparatos tradutórios do cinema nacional (públicos e parti-culares), o conflito passa do jazz ao rock.
Só que não haverá mais invocações às mães.
É ao redor das anarquias elétricas e das descomposturas corporais
emitidas pelo rock que estão nascendo as culturas juvenis. Emergem em primeiro lugar com clareza e Com dureza nos Estados Unidos, por-que ali nasce a indústria cultural. E porpor-que ali existem as metrópoles.
O processo histórico-político que vai dos anos 1950 ao final dos anos 1970 é conhecido, e não se deseja reconstruí-lo aqui. Somente é necessário enfatizar que durante aquele período afirma-se de modo sutil, descentralizado, informal e implícito um tipo de galáxia juvenil
Das contraculmras às culturas intermináveis 27
transnacional, que segue com paixão e competência o que acontece de novo nos vários laboratórios juvenis. Normalmente os códigos adultos de cientistas sociais ou de sindicalistas vêem nisso somente imitação,
homologação, subordinação: com efeito está emergindo algo mais complexo e desordenado. Difunde-se um processo de traduções
legí-timas, de adaptações locais - um local knowledge, parafraseando uma
abordagem da nova antropologia - de tímidas hibridizações, de trocas assimétricas, de viagens incertas, de ansiedades obscuras e vitais.
Política, cinema e música se entrecruzam de forma tão inextricá-vel quanto, com demasiada freqüência, removida ou considerada
se-cundária (superestrutura I) em relação à desforra da tradição
socio-econômica. Poder-se-ia ler o conflito dos anos 1960 não só como o conflito externo que todos conhecemos, mas também com um confli-to interno, entre os muiconfli-tos sujeiconfli-tos que participam do movimenconfli-to, en-tre o poder "clássico" da política - sua organização "científica", sua ressurreição em partidos e partidos menores, sua centralidade na classe e no salário, sua anestesia no cenlralismo democrático _ e as novas for-mas metropolitanas do sentir. De fato, em 1968 venceu a política e continuou vencendo até o ano de 1977, quando se rasga definiti-vamente, entre quem vê em Aldo Moro um símbolo e um ataque ao coração do Estado e quem muda de rumo da militância e brinca com os sinais; entre quem está no partido e em suas variadas reformulações e quem dá voltas nas metrópoles e em suas mutações/inovações. Entre quem se fixa na sociedade e quem se movimenta na comunicação.
Depois de 1977 não será mais possível a política, ao menos a po-lítica conjugada aos movimentos. Poderá continuar somente "A Po-lítica", a dos partidos e a das instituições. As culturas juvenis, que se libertaram dessa política, podem finalmente abrir alas nos fluxos de-sordenados e polifônicos/dissonantes da comunicação metropolitana e dos panoramas midiáticos. Os anos 1980, em vez de continuarem sendo percebidos como os anos obscuros do yuppismo, afinnam tam-bém um processo criativamente desagregador, que é visto como nor-malizador, somente porque continuam a ser empregadas as categorias
28 Culturas eXtremas
tradicionais da sociologia política, já totalmente inadequadas para
saber ler, e ainda mais para colaborar na transformação da chamada "sociedade". De uma sociedade cada vez mais reduzida.
Desta vez, a citação inicial se refere a um livro de ficção que troca
a percepção da metrópole. John Shirley, em Il roch della curd viventc6
(1981), continua dando volLas ao redor do nexo música
rock-metró-pole, só que desta vez a relação não é somente próxima: é interna. A
metrópole se torna carne e se abre ao longo das notas ácidas do rock emitidas por Cats, a loura platinada de olhos dourados: "Esta noite a cidade se levantou, caminhou", canta Cats, mas não em serltido
meta-fórico. A cidade se fez carne, corpo, sangue. Ela se mexe. "E todos nós
somos obsoletos" ... conclui assim. Obsoletos: não funciona mais
nenhuma categoria compacta que tenha a sociedade como ponto de
partida, como fonte epistêmica, como projeto unificado. A metrópole
- atroz, chocante, ensurdecedora como o rock - em seu levantar-se e
encaminhar-se dissolve o nós social.
Os jovens intermináveis
Eu tenho mil rostos e mil nomes. Não sou ninguém sou todos. Sou eu sou tu. Sou aqueles lá para frente para trás dentro fora. Estou em toda parte não estou em lugar nenhum. Estou presente estou ausente.
William Burroughs (1985)
Nesse contexto - caracterizado por culturas fragmentadas, híbri-das e transculturais, consumo panoramático, comunicações mass-mi-diáticas - afirma-se uma dilatação do conceito de jovem, virando do avesso as categorias que fixavam faixas etárias definidas e claras passa-gens geracionais. Trata-se de uma passagem intricada e decisiva que se
buscará delinear aqui, a seguir, partindo da seguinte proposição: os
jo-vens são intermináveis. Isso não deve ser entendido - obviamente - no
6 Tradução italiana do original City come a-walkin'. (N.T.)
Das contraculturas às culturas intermináveis 29
sentido de que são eliminados,7 pelo contrário: no sentido de que os
jo-vens não acabaram. Que podem não se acabar. Cada jovem, ou melhor, cada ser humano, cada indivíduo pode perceber sua própria condição de jovem como não-terminada e inclusive como não-terminável. Por isso, assiste-se a um conjunto de atitudes que caracterizam de modo
absolutamente único nossa era: as dilatações juvenis. O dilatar-se da
autopercepção enquanto jovem sem limites de idade definidos e objetivos dissolve as barreiras tradicionais, tanto sociológicas quanto biológicas. Morrem as faixas etárias, morre o trabalho, morre o corpo natural, desmorona a demografia, multiplicam-se as identidades móveis e nômades. E nasce a antropologia da juventude.
- Fim das faixas etárias. Esta categoria, que no passado definia uma
geração em relação às outras, foi pré-aposentada. Ela tentava homoge-neizar ritual ou estatisticamente aquele processo fluido da passagem da geração de adolescente para adulto, de conferir uma identidade o mais possível reconhecível e compreensível (no sentido literal de
compreender como circunscrever, controlar) à troca de geração, de
exercitar aquele controle social sobre o ciclo da natureza ou, para dizê-lo melhor, sobre uma natureza reduzida a ciclo, a eterno retorno:
daqui é que surge aquela obsessão filosófica e demográfica do
con-trole, aquela filosofia demográfica que executa o ato de prender sobre
e contra o novo que avança.
Reduzir a idade a um ciclo. O jovem a taxa demográfica. A
nature-za a novo epílogo. Esta filosofia adulta do domínio explodiu.
Elemento caracterizador da contemporaneidade é a extrema incer-teza, a imprecisão, a instabilidade em definir a percepção de si e do outro sobre o ser "jovem". A passagem da juventude ao mundo dos adultos tornou-se algo indeciso, uma espécie de zona cinzenta e lenta que se pode atravessar ou dilatar pelo sujeito. Os motivos para essa
di-latação juvenil são múltiplos. Como o eu: o multiple selJ.
7 O termo usado pelo autor é "sterminati", que em italiano pode ser lido como "exterminados" ou, a exemplo desse caso, "intermináveis". (N. T)
30 Culturas eXtremas
- Fim do trabalho. Um dos elementos que de forma mais
determi-nante estão modificando, na raiz, os comportamentos aparentemente consolidados e dados como "naturais" diz respeito justamente ao trabalho. Diz]eremy Rifkin: "A idéia de uma sociedade que não se
fundamente no trabalho é tão alheia a qualquer noção sobre as
mo-dalidades de organização de grandes massas de indivíduos, num aglo-merado social, que nos obriga a enfrentar a incômoda perspectiva de ter de repensar integralmente as próprias bases do contrato social"
(1995, p. 37). No entanto, é justamente isso que está acontecendo: uma
"transição do trabalho humano para o seu substituto mecânico-eletrô-nico" (ib., p. 27). Essa idéia poderia anunciar o cenário de "um mundo sem trabalho que marcará o início de um novo período histórico, no qual os seres humanos serão liberados, a longo prazo, da fadiga física e da repetição compulsiva de gestos automáticos" (ib., p. 37).
A mutaçào antropológica da libertaçào do trabalho (repetitivo, alienado, fixo) pode permitir a difusão descentralizada e diferenciada de um trabalho outro (criativo, individual, temporário). Entre as mui-tas coisas que essa mutação laboral implica, existem conexôes muito estreitas com uma condição juvenil inédita. Em sua posterior frag-mentação interna (por causa de uma fraca conexão com setores fortes da produção, como no passado o setor agrícola, industrial e terciário), os jovens presentes-futuros, encontrando-se num mundo sem traba-lhadores, dilatam sua condição de não-mais-adolescentes e ainda-não-adultos. Esse rito de passagem se dilata sem tempo. E sem passagens. Ou seja, não existe mais aquele tempo histórico como momento certo no qual se passa de status: esse tempo se pluraliza e se dilata sem li-mites que não sejam as autopercepçôes. Quero dizer que desmoronou a delimitação clara e fixa, determinada pelas regras sociais objetivas
ou lingüísticas (teen ... ager) do ser jovem.
Não se é mais jovem de modo objetivo ou coletivo, mas sim
tran-sitivo. Transita-se ao longo de uma condição variável e indeterminável, atravessa-se essa condição de acordo com modalidades determinadas
Das contraculturas às culturas intermináveis 31
pelas individualidades momentâneas do sujeito-jovem. Das
contra-tações entre seus vários, heterogêneos, múltiplos eus (selves).
- Fim do corpo. Inclusive para o corpo acontece algo semelhante ao
trabalho. A irrupção das novas tecnologias compenetra-se não somen-te nos processos produtivos, mas também nas articulações corporais.
As tecnologias incorporadas: os componentes naturais do corpo -
afir-mação de per si já ambígua, pois cada traço do corpo, assim como o corpo em sua totalidade, foi sempre atravessado por poderosos
signi-ficados simbólicos (e por isso nunca Se pode falar apenas de corpo
biológico) - foram progressivamente subtraídos à dimensão
natu-ralista do século XIX, para abrir-se e desarticular-se numa miríade de
micro tecnologias, microprocessadores, chips que podem ser substi-tuídos como próteses temporárias.
As antropologias de tipo filosófico, de tipo Gehlen - que ainda defi-niam as tecnologias como extensões de atividades corporais, conti-nuando a afirmar uma visão "humanista" e irracional do mundo-,
manifestavam quase um terror nos processos de relativa
autonomiza-ção das tecnologias tradicionais. Com as novas tecnologias tudo isso termina decaindo. Esse falso humanismo de cunho conservador, con-ceitualmente imobilista, procura não ver como as tecnologias incor-poradas não signifiquem extensões das capacidades tradicionais dos
órgãos humanos, mas algo mais e diferente. É um processo disjuntivo
que se afirmou, e não um mero evolucionismo demovido do terreno biológico ao tecnológico. Trata-se de mutações constitutivas de corpos pós-orgânicos.
O salto do golem ao ciborgue é de qualidade, é justamente
disjun-tivo e não meramente continuadisjun-tivo. No golem havia um concentrado mágico-irracional de poder autonomizado do monstro, da criatura não-criada ou recriada; havia o terror cristão-judaico de ver o homem substituir-se a Deus na criação da vida (e da imagem: fonte de ambição
e perversão teológica): da argila à vida. Ainda no genial- embora de
32 Culturas eXtremas
marcado pelo mal, por uma aliança entre o mal do capitalista e o do maligno. Esse terror do duplo, para o simulacro, para o serial, chega
até Baudrillard e Philip Dick, que não conseguem encontrar o corte ní· tido entre golem e cibOl'gue. Por isso se lenta permanecer fixos no golem como metáfora do não-criado que desafia Deus ou a natureza ou a
filo-sofia. O duplo como golem - concentrado de um mal c de um pecado,
de uma hybris como infração suprema - deveria ser debochado. No ciborgue há um salto decisivo, um corte nítido em relação a esses traços arcaicos da memória que arrastavam o artificial nos sub-terrâneos dos ínferos, entre pactos diabólicos, juventudes cternas, ri-quezas desmedidas. Com a invasão dos pós-corpos, sorrimos relendo
o terror do homem sem sombra:H agora se utilizam membros
protéti-cos, circuitos implantados, cirurgia cosmética, alterações genéticas, ícones neuronais, antenas cerebrais, videotclefones táteis.
"Roy Bakay, professor da Universidade de Emory, em Atlanla,
inse-riu no cérebro [de um paciente que sofreu um ictus cerebral, que não podia respirar, falar, movimentar-se, porém ainda de posse de suas fa-culdades mentais} um chip, coligando-o por um lado com o sistema
nervoso e pelo outro com um radiotransmissor" (La Repubblica, 16 out.
1998). Dessa forma, controlando os impulsos elétricos, o paciente é
capaz de clicar num ícone colocado no monitor de um computador ao
qual corresponde um comando ou uma frase. É somente o último
exemplo das mutações tecnológico-científicas que conduzirão a um crescente cruzamento entre orgânico e inorgânico. Ou melhor, toda a temática do pós-orgânico, que vai dos laboratórios cirúrgicos à vi-deoane, difunde uma série de comportamentos mutantes que tornarão sempre mais flexíveis os limites naturais do corpo humano. O desafio que algumas correntes da arte contemporânea estão trazendo para dentro das cirurgias, çm vez de paralisar-se em condenações
apriorís-!! Von Chamisso escreve este romance extraordinário, no qual se narra a história de
Peler Schlemil que, ao vender a alma ao diabo, fica sem sombra. E quem é sem sombra é o diabo, um morto-vivo.
Das contraculluras às culturas intermináveis
33
ticas e irracionais, é decisivo para novos modos de explorar as
muta-çõesY Com uma biologia enxertada de tecnologias, com os neurochips,
ser jovem se faz devir. O ser se torna mutante. E essas mutações não
sâo mais marcadas pelo desafio luciferino a Deus, mas, ao contrário, assiste-se a uma fratura radical entre os terrores do golem e os prazeres do ciborgue.
- Desmoronamento demográfico. Sobre as motivações do
desmo-ronamento demográfico no Ocideme, em particular na llália, discutiu-se muito inclusive de um ponto de vista antropológico (Harris, 1983). No entanto, essas análises parecem todas caracterizadas com base na observação das características dos "jovens" - "as jovens gerações" _ a parlir de uma visão tradicionalista, ainda ligada às faixas etárias. Con-seqüentemente, oscila-se entre complexos de Peter Pan e inexauríveis apegos maternos. Mas as mutações que estão ocorrendo não estão sob
o signo psicanalítico do complexo - isto é, de um suposto mal-estar ou
anormalidade -, e sim dentro do contexto interminável de um juvenil "normal". O casamento perde valor, o estudo se estica na pós-gradua-ção, não se encontram casas. Uma pesquisa Istat-Eurostat num pri-meiro momento define o jovem entre os 15 e os 24 anos (14%); logo
após, é jovem também quem está entre os 15 e os 29 anos de idade
(21 %). Contudo, o fenômeno l11utante foge às estatísticas. Ficar com
os pais não significa viver com eles. Possuir experiências etnográficas de tipo individual clareia as diferenças profundas. Basta olhar o quarto
de um jovem, sua decoraçâo interna descontínua, tão opositiva à dos
pais. Decorar o quarto significa, para um jovem "interminável", trans-formar a tapeçaria - aqueles horríveis papéis de parede com os quais as mães tecem o habitat filial - em patchworks coloridos. O espaço doméstico, chato e plano, pluraliza-se num espaço mutável, cheio de appliques e collages: uma espécie de carteira de identidade que recusa
~ Cf. Frnnccsca Alfano Migliclli (ViniS, 1996-99), Teresa Macri (1996), Mario Perniola (1994).
34 Culturas eXtremas
qualquer congelamento identitário e que, ao contrário, expõe as mui-tas caras-signos temporárias por meio das quais deseja constituir-se.
É uma constituição individual. Uma constituição musical e
visual-mente interminável.
Existem outras analogias singulares - chamamentos, tensões
dialógicas - entre o modo juvenil de vestir-se e o de "vestir" o próprio quarto. Entre a decoração pública (uma roupa) e a particular (um
pôster) estabelecem-se conexões e citaçôes. É uma forma pela qual o
sujeito-jovem estabelece não apenas módulos de aceitação, mas
tam-bém de prodUÇãO do seu eu. O que aparentemente pode parecer um
amontoado de códigos de massa sem significado, na verdade, torna-se um conjunto pleno de sentido para seu idealizador e portador, e para as relações com amigos/que. Assim, o eu se prolonga e se amplia ao longo desses códigos que são fixos na parede e móveis no corpo.
Como foi visto, a distinção dicotômica orgânicolinorgânico se exaure nesses espaços intermináveis. Tanto a pele quanto as paredes são parte integrante e interna/externa do corpo. Ambas são pós-or-gânicas. Por isso todas as coisas vestidas sobre a pele ou penduradas nas paredes - mas também se poderia dizer exatamente o contrário: coisas grudadas na pele e vestidas nas paredes - contribuem para fazer parte de um novo sentido de identidade: uma identidade móvel, flui-da, que incorporou os muitos fragmentos que - no espaço temporário de suas relações possíveis com o seu eu ou com o outro - se "veste" ou
se "traveste" de acordo com as circunstâncias. Lá onde o olhar adulto
só vê uniformidade, para os olhares intermináveis do jovem dilatam-se diferenças vitais, pequenas minúcias apaixonantes, identidades micro lógicas.
De acordo com uma impostaçâo, tão conhecida quanto datada, elaborada por Cristopher Lasch - de caráter psicossociológico gene-ralista -, a chamada personalidade narcisista emergente em nossa so-ciedade expressaria uma estrutura de caráter "que perdeu interesse pelo futuro", auspícios do crescimento zero da população, recusa da paternidade-maternidade. E então "o pensamento de nossa
substitui-Das contraçulturas às culturas intermináveis
35
ção definitiva e de nossa morte torna-se absolutamente insustentável e
produz tentativas de abolir a velhice e de prolongar a vida
indefini-damente". E conclui assim: "Quando os homens se descobrem incapa-zes de experimentar algum interesse por aquilo que acontecerá no mundo após sua morte, desejam permanecer eternamente jovens e,
pela mesma razão, não desejam mais reproduzir-se" 0981, p. 234).
Reproduzir-se significa autodestruir-se. Porém, essa análise é
decisiva-mente voltada a um passado protestante-fundamentalista em cada sua
passagem. A decadência do fascinio pelo futuro em favor do fluir no
presente, aliás, nos presentes, reclama - ao invés da protelação cons-tante em direção a um imaginário utópico - uma libertação aqui e
agora. Isto é, aquela lenta "morte da utopia", já iniciada a partir do
fi-nal dos anos 1960, está definitivamente trespassada nas heterotopias. Ao mesmo tempo, os processos de remoção da morte - do mo-mento mori - libertaram-se de Uma presença opressiva da morte (pen-semos nos funerais públicos que atravessavam as ruas de minha juven-tude): de uma excedência da morte que oprimiu e comprimiu toda e qualquer desordem vital, proclamou a sabedoria do luto, expressou a vitória da política cadavérica. Com freqÜência se confunde remoção com atenuação, ou libertação daquele excesso de morte emanado pe-los símbope-los do domínio que paralisavam qualquer diversão ou
per-versão. Ou seja, passar da remoção à coabitação não significa
enfra-quecer a filosofia, mas exatamente o oposto: desagregar aqueles caracteres mortuários presentes em tanto pensar a filosofia e a política da modernidade. Ter um bom relacionamento com a possível vizi-nhança da morte - contra as remoções, mas ainda mais contra as apologias obscurantistas - não deve ressignificar a presença obsessiva da morte, mas, ao contrário, sua presença possível e descentralizada.
Em lugar de um narcisismo generalizado e simplificador, que blo-quearia a relação eu-outro (em termos mais do que pulsionais, genera-listicamente psicoculturais), está se produzindo algo absolutamente inédito que não quer ser enjaulado nos aparatos conceituais do
jo-36 Culturas eXtremas
vem, em vez de remover a morte, recusando os filhos e o envelheci-mento, dissolve os enfaixados de idade nos quais estava envolvido no
passado e ultrapassa fronteiras. Esse ultrapassar as fronteiras das
coa-ções do passado até tornar-se adulto - termo que geralmente significa normativizar-se, parar, repetir o mesmo até a aposentadoria, fixar-se ao trabalho imóvel, bloquear as polifonias da afetividade - permite alongar a fase mais móvel e criativa do sentir-se jovem: tornar-se um
jovem interminável. Esse módulo, que se choca com os inúmeros códi-gos incorporados pelos diversos segmentos juvenis, chega até aquelas
que eram as faixas posteriores - misturando-as. É o biológico dica
to-mizado do cultural que entra em colapso.
"Sou um rapaz de 30 anos, estudante da Faculdade de Engenharia
Aeroespacial", escreve Marco, de Roma, à coluna "Questione di cuore"
I
Coisas do coração], que Natalia Aspesi assina no Venerdt de LaRepubblica (30 out. 1998), extraordinário indicador de como as
pes-soas diferentes se autopercebem como jovens atemporais. Somente poucas décadas atrás, aos 30 anos nos considerávamos homens ma-duros. Ou solteironas de idade avançada.
"Sou um rapaz de 40 anos", escreve Giancarlo, de Turim, em
feve-reiro de 1993, sempre para Aspesi, com o título "Se ele é perfeito e
ne-nhuma o quer", "aparento menos da idade que tenho, trabalho como técnico, tenho um diploma em Psicologia, falo línguas, viajei pelo mundo, pratico diversos esportes, sei dançar, agrado. No entanto.
O crescendo não tem mais limites. As distinções modernas entre as faixas etárias não funcionam mais. Os jovens são atemporais no sen-tido de que ninguém pode sentir-se como excluído desse horizonte ge-racional. Evidentemente há profundas e diversificadas pressões cultu-rais e comunicacionais que empurram, ou melhor, auxiliam pessoas normais a sentir-se ainda (para sempre?) dentro de uma condição que não é mais determinada - para utilizar exatamente uma palavra
anglo-saxõnica - pela teenage.
Fim do trabalho fordista, estilos móveis de vida, tratamentos e modificações do corpo, cirurgias estéticas, práxis estáticas, quedas
Das contracu!lUras às culturas intermináveis 37
demográficas, desmoronamento das hegemonias, aumento da idade universitária (bolsas, aperfeiçoamentos, mestrados, doutorados), valores descentralizados, identidades múltiplas exigem indivíduos diferentes entre si a remodelar-se em continuidade, de acordo com aqueles padrões in progress com os quais as pessoas se definem jovens a cada vez. Mas é ainda adequado este termo - "indivíduo" _ para de-signar o sentido heterogêneo e heterotópico do sujeito?
- Entity. Quando se fala da força invasiva da comunicação, como fluxo que dissolve o conceito tradicional de sociedade e faz emergir outro ainda nebuloso e sprawl, um conceito-dimensão aglomerado, não se pode deixar de enfrentar o modo pelo qual a internet e as tecno-logias visuais estão constituindo novos visores e novas visões per-ceptivas e auto perper-ceptivas. Inclusive a inovação terminológica é o
indicador de mudanças profundas. No entanto, nas cartas ao Venerdl,
ainda se utiliza uma linguagem que, embora seja estranho que um jo-vem de 30 ou de 40 anos se defina "rapaz", continua o filão das distin-ções clássicas do pensamento ocidental, enquanto a profunda alteração mutóide se define quando se pula (se dica) nas novas formas comuni-cacionais tecnovisuais.
E então no sprawI do ciberespaço é inútil ou indiferente definir-se
ainda "jovem", "hornem", "estudante", "heterossexual", "noivo", "traí-do" etc. (a "correspondência do coração"!). Ou seja, não significa mais nada, no sentido de que não comunica nada certo ou que possa ser compartilhado em parâmetros acenados. Inclusive aquele termo "indivíduo" - depois daquele mais filosoficamente nobre, "sujeito" _
foi arquivado. É obsoleto.
"Todos nós somos obsoletos.
Agora, "entity" -literalmente "entidade" - é o pós-conceito com o qual se torna quase impossível classificar, ao menos segundo os parâ-metros duais ou sintéticos da modernidade, mas que, entretanto, ou melhor, justamente em virtude dessa impossibilidade ou inutilidade