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Plenário Virtual - minuta de voto - 09/10/ :00

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Plenário Virtual - minuta de voto - 09/10/2020 00:00

V O T O

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (Relatora):

1. Discute-se na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental a validade constitucional do parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional e do parágrafo único do art. 29 da Lei n. 6.830 /1980, previstos no concurso de preferência entre pessoas jurídicas de direito público interno na cobrança judicial da dívida tributária e não tributária, cujo rol estabelece preferência dos créditos da União aos Estados e Distrito Federal e esses aos Municípios, em alegada contrariedade ao caput do art. 1º, ao art. 18, ao inc. III do art. 19 e ao inc. I do § 4º do art. 60 da Constituição da República.

2. Nas normas impugnadas se estabelece:

“Código Tributário Nacional (Lei Federal nº 5.172/1966)

Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)

Parágrafo único. O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem:

I - União;

II - Estados, Distrito Federal e Territórios, conjuntamente e pro rata;

III - Municípios, conjuntamente e pro rata . Lei nº 6.830/1980

Art. 29 - A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento.

Parágrafo Único - O concurso de preferência somente se verifica entre pessoas jurídicas de direito público, na seguinte ordem:

I - União e suas autarquias;

II - Estados, Distrito Federal e Territórios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata ;

III - Municípios e suas autarquias, conjuntamente e pro rata ”.

3. Defende o autor que o “ concurso de preferência estabelecido pelos dispositivos legais impugnados nesta ADPF viola não somente a

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literalidade dos artigos 1º, caput , 18, 19, inciso III, 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal, mas também o pacto federativo como um todo” (e-doc. 1, fl. 8).

Do cabimento da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental

4. A utilização da arguição de descumprimento de preceito fundamental, como se dispõe no § 1º do art. 4º da Lei n. 9.882/1999, não será admitida quando houver outro meio eficaz de sanar a lesividade.

O princípio da subsidiariedade rege a instauração do processo objetivo de arguição de descumprimento de preceito fundamental condicionando seu ajuizamento à ausência de outro meio processual apto a sanar eficazmente a situação de lesividade indicada pelo autor.

Neste sentido, por exemplo, o seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal:

“EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (CF, ART. 102, § 1º) AÇÃO ESPECIAL DE ÍNDOLE CONSTITUCIONAL PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE (LEI Nº 9.882/99, ART. 4º, § 1º) EXISTÊNCIA DE OUTRO MEIO APTO A NEUTRALIZAR A SITUAÇÃO DE LESIVIDADE QUE ALEGADAMENTE EMERGE DOS ATOS IMPUGNADOS

INVIABILIDADE DA PRESENTE ARGUIÇÃO DE

DESCUMPRIMENTO PRECEDENTES RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O ajuizamento da ação constitucional de arguição de descumprimento de preceito fundamental rege-se pelo princípio da subsidiariedade (Lei nº 9.882/99, art. 4º, § 1º), a significar que não será ela admitida, sempre que houver qualquer outro meio juridicamente idôneo apto a sanar, com efetividade real, o estado de lesividade emergente do ato impugnado. Precedentes. A mera possibilidade de utilização de outros meios processuais, contudo, não basta, só por si, para justificar a invocação do princípio da subsidiariedade, pois, para que esse postulado possa legitimamente incidir impedindo, desse modo, o acesso imediato à arguição de descumprimento de preceito fundamental revela-se essencial que os instrumentos disponíveis mostrem-se capazes de neutralizar, de maneira eficaz, a situação de lesividade que se busca obstar com o ajuizamento desse writ constitucional. A norma inscrita no art. 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99 que

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consagra o postulado da subsidiariedade estabeleceu, validamente, sem qualquer ofensa ao texto da Constituição, pressuposto negativo de admissibilidade da arguição de descumprimento de preceito fundamental, pois condicionou, legitimamente, o ajuizamento dessa especial ação de índole constitucional à observância de um inafastável requisito de procedibilidade, consistente na ausência de qualquer outro meio processual revestido de aptidão para fazer cessar, prontamente, a situação de lesividade (ou de potencialidade danosa) decorrente do ato impugnado” (ADPF n. 237-AgR, Relator o Ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJe 30.10.2014).

5. A arguição de descumprimento de preceito fundamental viabiliza a análise de constitucionalidade de normas legais pré-constitucionais insuscetíveis de conhecimento em ação direta de inconstitucionalidade (ADPF n. 33, Relator o Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 27.10.2006).

Na espécie vertente, as normas impugnadas, a saber, parágrafo único do art. 187 da Lei n. 5.172/1966 (Código Tributário Nacional) e parágrafo único do art. 29 da Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais), antecedem as normas constitucionais invocadas como paradigma previstas no caput do art. 1º, no art. 18, no inc. III do art. 19 e no inc. I do § 4º do art. 60 da Constituição da República.

A norma inscrita no § 1º do art. 4º da Lei n. 9.882/1999 não representa obstáculo à presente arguição, o que permite a instauração deste processo objetivo de controle concentrado.

6. Conheço da presente arguição de descumprimento de preceito fundamental.

Mérito

7 . A discussão posta nos autos não é nova neste Supremo Tribunal, como ressai da Súmula n. 563, editada com fundamento na Carta de 1967, alterada pela Emenda Constitucional n. 1/69:

“O concurso de preferência a que se refere o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional é compatível com o disposto no art. 9º, inciso I, da Constituição Federal”.

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8. No inc. I do art. 9º da Carta de 1967, alterada pela Emenda Constitucional n. 1/69, vedava-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “ criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de direito público interno contra outra” .

No inc. III do art. 19 da Constituição da República de 1988, há previsão semelhante proibindo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios de “ criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si ”.

9. Após a promulgação da Constituição de 1988, o Plenário deste Supremo Tribunal não analisou a validade constitucional da Súmula n. 563 tendo como parâmetro a ordem constitucional estabelecida pela Constituição de 1988.

Há algumas decisões monocráticas (AI n. 440.765, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ 15.02.2006; AI n. 197.771/RS, Relator o Ministro Cezar Peluso, DJ 12.09.2007; AI n. 808.646/SP, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJ 5.4.2013; AI n. 833.386/SP, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJe 04.08.2014) e dois acórdãos da Segunda Turma proferidos no julgamento de Agravos Regimentais em Agravo de Instrumento, com aplicação direta daquela súmula, em exercício de subsunção do caso concreto ao entendimento enunciado:

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA INDIRETA. CONCURSO DE PREFERÊNCIA. ARTIGO 187 CTN. 1. O Tribunal a quo não se manifestou explicitamente sobre o tema constitucional tido por violado. Incidência das Súmulas ns. 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal. 2. Controvérsia decidida à luz de legislação infraconstitucional. Ofensa indireta à Constituição do Brasil. 3. A vedação estabelecida pelo artigo 19, III, da Constituição (correspondente àquele do artigo 9º, I, da EC n. 1/69) não atinge as preferências estabelecidas por lei em favor da União. Agravo regimental a que se nega provimento” (AI n. 608.769 AgR, Relator o Ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJ 23.2.2007).

“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL.

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PREFERÊNCIA DE PAGAMENTO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO FEDERATIVO. INOCORRÊNCIA. SÚMULA N. 563 DO STF. O Supremo fixou entendimento no sentido que a disposição legal prevista no artigo 187, parágrafo único, do CTN não viola o princípio federativo [artigo 9º, I, da CB/67, artigo 19, III, da Constituição do Brasil]. Tal entendimento foi consolidado na Súmula n. 563 do STF. Agravo regimental a que se nega provimento” (AI n. 745.114 AgR, Relator o Ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJ 7.8.2009).

10. Também o Superior Tribunal de Justiça, pautado na similitude do inc. I do art. 9º da Carta de 1967, alterada pela Emenda Constitucional n. 1 /69, com o disposto no inc. III do art. 19 da Constituição da República de 1988 e, com fundamento na Súmula n. 563 deste Supremo Tribunal, editou a Súmula n. 497, DJ 13.8.2012, pela qual se prescreve que “os créditos das autarquias federais preferem aos créditos da Fazenda estadual desde que coexistam penhoras sobre o mesmo bem” .

11. O tema é sensível e merece ser reapreciado pelo Plenário deste Supremo Tribunal, à luz das normas constitucionais inauguradas pela Constituição da República de 1988 para se julgar sobre a recepção ou não das normas impugnadas pela vigente ordem constitucional.

12. Nesse sentido, há que se explicitarem os precedentes que deram origem à Súmula n. 563 deste Supremo Tribunal e, por conseguinte, contextualizar as normas impugnadas e o federalismo acolhido na Constituição de 1988.

Faz-se mister tal realce porque a repetição dos termos normativo-constitucionais não são bastantes a se ter por certo e incontestável que o fundamento é idêntico, considerando-se o sistema jurídico que embasa uma norma. No caso brasileiro, enquanto a Carta de 1967 e a Emenda de 1969 contemplavam o que se conheceu como federação de opereta ou federalismo formal (não havia contexto federativo mas mera referência formal no texto normativo), a Constituição de 1988 teve no redimensionamento e comprometimento federativo um de seus pontos altos e garantidor da democracia no Brasil.

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Dos precedentes da Súmula n. 563/STF e da validade constitucional do parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional à luz da Carta de 1967, alterada pela Emenda Constitucional n. 1/69

13. O julgamento dos Recursos Extraordinários ns. 79.128, 79.660, 80.398, 81.154 e 80.045, ocorrido nos anos de 1974 a 1976, por este Supremo Tribunal, foram os precedentes da edição da Súmula n. 563.

14. Esses recursos foram interpostos pelo Estado de São Paulo, que defendia haver afronta ao inc. I do art. 9º da Carta de 1967, alterada pela Emenda Constitucional n. 1/69, pela preferência garantida na cobrança judicial do crédito tributário da União ao crédito tributário do Estado. Em todos aqueles recursos, este Supremo Tribunal julgou ausente contrariedade às normas constitucionais então vigentes.

15. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 79.128/SP, DJ 25.10.1974, Relator Ministro Djalci Falcão, a fundamentação do acórdão proferido pela Primeira Turma deste Supremo Tribunal, no que interessa ao presente feito, foi assim exposta:

“(...) a norma do art. 9º, I, da Lei Magna, tem por objetivo eliminar divergências de tratamento entre indivíduos de diversos Estados da Federação. Jamais eliminar a hierarquia entre os poderes públicos federal, estaduais e municipais ”.

16. Também no julgamento do Recurso Extraordinário n. 79.660, DJ 21.2.1975, Relator o Ministro Djalci Falcão, a Primeira Turma deste Supremo Tribunal reiterou o fundamento de que a previsão constitucional do inc. I do art. 9º da Constituição então vigente objetivava vedar a desigualdade de tratamento entre brasileiros de diferentes entes federados, mas não a hierarquia existente entre os entes federados. O acórdão fundamentou-se em parecer do Ministério Público:

“Não se nos afigura revogado o art. 187, parágrafo único, do CTN, como sustenta o recorrente, em face do preceito contido no citado dispositivo constitucional. A vedação às pessoas de direito público interno, de estabelecerem preferências visa impedir que essas entidades deem tratamento discriminatório a brasileiros proveniente

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de um Estado ou Município, com prejuízo para os de outros, ou instituam, em igualdade de pressupostos, benefícios, vantagens, ou encargos que não sejam uniformes para todas as Unidades da Federação, seus municípios ou para a própria União”.

17. Esse posicionamento foi reiterado pela Segunda Turma deste Supremo Tribunal, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 80.398, DJ 6.6.1975. Na fundamentação do voto prevalecente, o Relator, Ministro Cordeiro Guerra, baseou-se no parecer do Ministério Público para não conhecer do recurso:

“Dispõe, realmente, o aludido texto constitucional no seu inciso I, que à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado criar distinções entre os brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de direito público interno com outra.

Mas, entretanto, o sentido desse dispositivo constitucional deve ser bem compreendido. Trata-se de matéria alusiva às vedações políticas na organização da estrutura interna do país; veda-se a discriminação entre brasileiros conforme o nascimento neste ou naquele Estado; discriminação entre municípios, feita pelo próprio Estado; discriminação entre Estados, feita pela União. A finalidade política da norma em análise, como bem lembra PONTES DE MIRANDA, foi a de impedir que ‘os naturais de outros Estados-membros, brasileiros, todos, fossem estrangeiros dentro da pátria’ (Comentários à Constituição de 1967, pág. 181, com. ao art. 9º)”.

18. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 81.154, Relator o Ministro Cordeiro Guerra, DJ 21.11.1975, também da Segunda Turma deste Supremo Tribunal, houve expressa referência à existência de hierarquia entre os entes federados:

“Na verdade a norma do art. 9º, I da C.F., tem por objetivo eliminar divergências de tratamento entre indivíduos de diversos estados da Federação, e preferências entre as pessoas de direito público interno, isto é, a criação de benefícios a um Estado ou Município em detrimento do outro. Não atinge, portanto, a hierarquia entre os poderes públicos federal, estadual e municipal e, consequentemente, o disposto no art. 187, § único e seus incisos do CTN ”.

19. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 80.045, pelo Plenário deste Supremo Tribunal, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, DJ 13.12.1976,

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prevaleceu o entendimento da existência de hierarquia entre os entes federados e ausência de afronta da norma prescrita no parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional à Constituição então vigente.

No voto vencido do Ministro Relator Aliomar Baleeiro, afirmou-se que

“(...) o Supremo Tribunal Federal pleno, deve cortar as dúvidas sobre o alcance do art. 9º, inc. I, da Emenda 1/69. Conheço e dou provimento, em parte, para reconhecer que não há preferência entre qualquer dos litigantes, mas paridade dos respectivos créditos, privilegiados apenas em relação aos créditos de particulares, ressalvados os trabalhistas ”.

Nos votos prevalecentes, a fundamentação pautou-se de maneira análoga ao que tinha sido decidido nos recursos extraordinários antes julgados pelas Turmas deste Supremo Tribunal.

Naquele caso, após pedido de vista, o Ministro Rodrigues Alckmin traçou contexto histórico da norma impugnada, estudando as Constituições brasileiras e concluindo que a hierarquia entre os entes federados era tradição no ordenamento jurídico nacional à qual se incluía o concurso de preferência do crédito tributário da União com relação aos Estados.

Nesse sentido, no voto do Ministro Rodrigues Alckmin se fez constar:

“(...) creio, pois, que o exato sentido da norma é o de impedir que se criem desigualdades entre o Distrito Federal e os Estados, ou desigualdade entre os Municípios, favorecendo a alguns em detrimento de outros, colocados no mesmo plano em face da Constituição. Dar-lhes, porém, prioridade em concurso creditório dados os diferentes níveis em que se situam, no sistema constitucional, a União, os Estados e os Municípios, não põe em risco a igualdade na Federação, que o texto visa a preservar” .

Após a prolação do voto do Ministro Rodrigues Alckmin, o Ministro Relator Aliomar Baleeiro reforçou o sentido de seu voto, anotando:

“A Constituição, inequivocamente, proíbe distinções, a serem criadas pela lei, entre a União, os Estados e os Municípios. Inveteradamente as leis têm admitido que, em matéria fiscal, o crédito da União tem preferência sobre os dos Estados e estes sobre os dos

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Municípios. Nunca se discutiu isso porque geralmente os devedores remissos não têm mais bens. Mas agora surgiu um caso aqui. E a mim me parece que neste dispositivo constitucional, imperativo, é proibida qualquer distinção por parte da União, em relação aos Estados, quer no tratamento fiscal diverso, de que infelizmente nos últimos anos há exemplos, quer vantagens para um determinado porto em detrimento de outros. Parece que a lei não pode dizer que o crédito da união prefere aos Estados aos Municípios. Não. Tem que haver um rateio entre eles. Peço a atenção dos eminentes Ministros, porque é um problema constitucional e é possível que seja a primeira vez que vamos decidi-lo”.

No voto do Ministro Cordeiro Guerra, acompanhando a divergência aberta pelo Ministro Rodrigues Alckmin, expressamente assentou a existência de hierarquia entre os entes federados:

“(...) a hierarquia dos créditos fiscais estabelecida e, lei federal, a meu ver, não é passível de censura do art. 9º, inciso I da Emenda Constitucional, porque esta se limita a evitar a criação de distinção entre brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de direito público. Ora, a hierarquia dos créditos fiscais estabelecida na lei impugnada não cria distinções entre os brasileiros nem entre as pessoas jurídicas do direito público, estabelece a hierarquia de créditos a todas as pessoas de direito público, e a todos os brasileiros se estende essa hierarquia. A Constituição reconhece a preferência das leis federais sobre as estaduais, as estaduais sobre as municipais. A finalidade desta lei não é evitar a hierarquia tradicional do nosso Direito Fiscal, ela não destoa dos princípios constitucionais. O que se pretende tirar do texto é algo que o constituinte não teve em mente. O que se quis evitar foi a preferência que gerasse a desigualdade, a favor de um Estado contra outro e de um Município contra outro. Mas a hierarquia, que sempre existiu no campo do Direito, em geral também se exerce no campo do Direito Fiscal” .

No voto vista do Ministro Leitão de Abreu, evidenciou-se, de forma inequívoca, a supremacia da União sobre os demais entes federados:

“O texto constitucional, no seu todo, revela, ao contrário, que, no tocante às relações federativas, a ordem política vigente não atenuou a supremacia do poder central. Não se coaduna, destarte, com o sistema

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mantido a tal respeito a ilação de que, pelo artigo 9º, item I, da Emenda n. 1, se vedou o que antes não se proibia, ou seja, a instituição da preferência tributária da União, a que este recurso se refere” .

20. Fica inequívoco o entendimento naquela quadra de ser a União hierarquicamente superior aos demais entes federados o que justificaria a preferência no concurso de credores na cobrança dos créditos da dívida pública.

Do federalismo na Constituição da República de 1988 e a isonomia entre os entes federados

21. No art. 1º da Constituição da República de 1988, pelo qual se prescreve que “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos”, adota-se como forma de Estado brasileiro a federação.

Para Karl Lowenstein, o federalismo “ é o enfrentamento entre duas soberanias estatais diferentes, separadas territorialmente e que se equilibram mutuamente. A existência de balizas constitucionais limita o poder do Estado central sobre o Estado-membro, e vice-versa” ( Teoria de la Constitucion. Tradução Alfredo Gallego Anabitarte. 2. ed. Barcelona: Ariel, 1979, p. 353).

23. Como de sabença primária, a forma federativa de Estado origina-se nos Estados Unidos com a Constituição norte-americana de 1787. A formação da federação norte-americana decorreu de um movimento centrípeto pelo qual os Estados soberanos cederam parcela de sua soberania ao poder central.

No Brasil, a formação da federação resultou de movimento centrífugo (de dentro para fora), pelo qual se teve a descentralização do poder central que cedeu aos Estados e Municípios parcela de suas competências.

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“Se a concepção do constituinte inclinar-se pelo fortalecimento do poder federal, teremos o federalismo centrípeto, que Georges Scelle chamou de federalismo por agregação ou associação; se, ao contrário, a concepção fixar-se na preservação do poder estadual emergirá o federalismo centrífugo ou por segregação, consoante a terminologia do internacionalista francês. Pode ainda o constituinte federal modelar sua concepção federal pelo equilíbrio entre as forças contraditórias da unidade e da diversidade, do localismo e do centralismo, concebendo o federalismo de cooperação, o federalismo de equilíbrio entre a União soberana e os Estados-membros autônomos” (Direito Constitucional, 4. ed., p. 306-307).

A autonomia dos entes federados e a isonomia é a tônica central entre eles, respeitando-se a distribuição de competências estabelecidas pela Constituição, alicerce para o manutenção do modelo jurídico-constitucional adotado. Daí porque a repartição de competências é o coração da Federação, na feliz expressão do então Ministro da Justiça do governo provisória, Campos Salles, nos albores federativos.

Geraldo Ataliba, em ensinamentos sobre o tema, ressaltou:

“(....) os princípios da federação e da república são os mais importantes, exercendo assim função capitular da mais transcendental em todo o ordenamento jurídico brasileiro, determinando inclusive como se deve interpretar as demais normas constitucionais, cuja exegese e aplicação jamais poderão ensejar menoscabo ou detrimento para a força, a eficácia e a extensão dos primeiros, o que guia, por consectário lógico, o princípio da autonomia dos entes federados a patamar idêntico, já que este está na base do princípio republicano” ( República e Constituição . 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 36-45).

Em sede doutrinária, anotei que a “federação é a cidadania comprometida com a história do povo centrada em dado espaço geográfico”, consistindo em “garantia contra as investidas centralizadoras” e mecanismo de “garantia de democracia no Brasil, exigindo, portanto, uma vigília permanente” ( República e federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 257).

Sendo a federação brasileira forma complexa de descentralização política e geográfica do poder do Estado, pauta-se pelo princípio da autonomia dos entes que o formam, sendo suas competências, limitações e

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distinções aquelas descritas na Constituição e que não podem esvaziar a autonomia dos entes federadas.

24. Contra a ideia de hierarquia entre entes federados, o art. 18 da Constituição da República de 1988 expressa a autonomia que iguala os entes em sua feição política:

“A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.

Quer dizer, no plano internacional, o Estado Nacional, representado pela União, é soberana. No plano interno, a União é autônoma e iguala-se aos demais entes federados, sem hierarquia, com competências próprias. Naquele dispositivo se tem a expressão obrigatória da autonomia dos entes federados, indicando-se ausência de hierarquia entre os entes e delimitando-se que suas competências administrativas e legislativas decorram unicamente das previsões constitucionais.

Sobre o princípio da igualdade das pessoas políticas, Carlos Ari Sundfeld assentou:

“(....) o Estado brasileiro não é unitário, já que suas atribuições são descentralizadas entre os entes – União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, sendo esses absolutamente iguais entre si, pois são criaturas da Constituição, que outorgou a cada qual uma esfera irredutível e impenetrável de competências, exercidas com total independência ” ( Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 185 – grifos nossos).

Também Roque Antonio Carrazza anota que “as legislações federal, estadual e municipal possuem campos de atuação exclusivos e rigidamente demarcados pela Constituição de 1988 e a ela se subordinam de forma isonômica. Assim, as leis da União, dos Estados e do Município têm o mesmo nível hierárquico, pois todas extraem seu fundamento de validade diretamente da Constituição Federal. Só se pode falar em hierarquia quando uma norma extrai de outra seu fundamento de validade ” ( Curso de direito constitucional tributário. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 169 e 197 – grifos nossos).

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25. Pela ausência de hierarquia entre os entes federados, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 663.696, Relator o Ministro Luiz Fux, ponderou-se que

“ eventual invasão de competência legislativa exclusiva dos Municípios resulta em flagrante inconstitucionalidade, ainda quando tenha sido praticada pelo ente mais abrangente, ja que não há qualquer hierarquia entre os entes da federação . Se assim o e, não há que se falar em maior ou menor relevância entre as diferentes competência atribuídas por cada um deles” (Tribunal Pleno, processo julgado em repercussão geral, DJ 22.8.2019).

No mesmo sentido, no julgamento da ACO n. 1098 AgR-TA, Relator o Ministro Joaquim Barbosa, DJ 8.10.2009, asseverou-se, expressamente, que “ não há hierarquia ou subordinação do Estado de Minas Gerais à União, circunstância que, ao menos neste exame, justificaria a distinção feita quanto aos entes submetidos ao preenchimento da DCTF ”.

26. A repartição de competências e atribuições entre os entes federados, no figurino constitucionalmente adotado no Brasil, consagra o federalismo cooperativo, inaugurado na Constituição da República de 1934 e que foi sendo ampliado, especialmente na Constituição de 1988, realçado em inúmeras decisões deste Supremo Tribunal:

“Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA. LEI ESTADUAL DO AMAZONAS N. 4.665 DE 2018. NOTIFICAÇÃO SOBRE O DESCREDENCIAMENTO DE ESTABELECIMENTOS E PROFISSIONAIS DE SAÚDE. DIREITO DO CONSUMIDOR. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Repartir competências compreende compatibilizar interesses para o reforço do federalismo cooperativo em uma dimensão de fato cooperativa e difusa, rechaçando-se a centralização em um ou outro ente a fim de que o funcionamento consonante das competências legislativas e executivas otimizem os fundamentos (art. 1º, da CRFB) e objetivos (art. 3º, da CRFB) da República. 2. A deferência ao poder legislativo assume feição especial quando o controle de constitucionalidade é feito em face de norma produzida pelos demais entes da federação. Ela exige que o intérprete não tolha a alçada que detêm os entes menores para dispor sobre determinada matéria. Neste sentido, o cânone da interpretação conforme, a que alude o e. Ministro Gilmar Mendes, deve ser integrado pelo que, na jurisprudência norte-americana, foi chamado de uma presunção a favor da competência

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3. Assim, seria possível superar o conteúdo meramente formal do princípio e reconhecer um aspecto material: apenas quando a lei federal ou estadual claramente indicar, de forma necessária, adequada e razoável, que os efeitos de sua aplicação excluem o poder de complementação que possuem os entes menores ( clear statement rule ), seria possível afastar a presunção de que, no âmbito nacional, certa matéria deve ser disciplinada pelo ente maior. 4. Conquanto seja a União competente privativamente para legislar sobre direito civil e seguros (CRFB, art. 22, I, VII), é preciso reconhecer, por outro lado, que aos Estados e ao Distrito Federal é dada a competência para legislar sobre relações de consumo em geral. 5. No caso, a União, ao concretizar a competência constitucional, editou a Lei n. 9.656/1998, a qual prevê atualmente, no seu art. 17, a necessária comunicação ao consumidor do descredenciamento de prestadores de serviço. Assim, não há incompatibilidade entre as duas prescrições legais, porque a norma estadual especifica meio e forma de cumprimento de obrigação já imposta pela lei federal. 6. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado improcedente” (ADI n. 6.097, Relator o Ministro Gilmar Mendes, Redator para o acórdão o Ministro Edson Fachin, Tribunal Pleno, DJ 6.8.2020).

“Ementa: CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. LEI 4.132/2008 DO DISTRITO FEDERAL. SUPOSTA VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 22, I; E 24, §§ 1º e 3º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI IMPUGNADA DISPÕE SOBRE A OBRIGATORIEDADE DA APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTO DE IDENTIDADE COM FOTO NO ATO DAS OPERAÇÕES COM CARTÃO DE CRÉDITO E DÉBITO EM CONTA. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL, POR USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO EM MATÉRIA DE DIREITO CIVIL (CF, ART. 22, INCISO I). 1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. Princípio da predominância do interesse. 2. A Constituição Federal de 1988, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos – União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios – e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios (CF, arts. 24 e 30, inciso I). 3. A Lei 4.132/2008 do Distrito Federal dispõe sobre a obrigatoriedade da apresentação de documento de identidade com foto no ato das operações com cartão de crédito e débito em conta. Tem por objeto normas de direito civil, tema inserido no rol de competências legislativas privativas da União (art. 22, I, da CF). 4.

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Apesar de a lei impugnada tangenciar matéria ligada à proteção do consumidor, inserida na competência legislativa concorrente dos entes federativos União e Distrito Federal (art. 24, V, da CF), o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL entende que lei estadual que trata de relações de consumo não pode legislar sobre direito civil, notadamente sobre relações contratuais. Precedentes desta CORTE: RE 877.596 AgR, Rel. Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, DJe de 29/6/2015 e ADI 4.701 /PE, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 22/8/2014. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade formal da Lei 4.132/2008 do Distrito Federal” (ADI n. 4.228, Relator o Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJ 13.8.2018).

“Ementa: CONSTITUCIONAL. FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. LEI 12.562/2004, DO ESTADO DE PERNAMBUCO. SUPOSTA VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 5º, II e XIII; 22, VII; E 170, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. LEI IMPUGNADA DISPÕE SOBRE PLANOS DE SAÚDE, ESTABELECENDO CRITÉRIOS PARA A EDIÇÃO DE LISTA

REFERENCIAL DE HONORÁRIOS MÉDICOS.

INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL, POR USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO EM MATÉRIA DE DIREITO CIVIL E DE POLÍTICA DE SEGUROS (CF, ART 22, INCISOS I E VII). 1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. Princípio da predominância do interesse. 2. A Constituição Federal de 1988, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do princípio da predominância do interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos – União, Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios – e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios (CF, arts. 24 e 30, inciso I). 3. A Lei 12.562/2004 do Estado de Pernambuco trata da operacionalização dos contratos de seguros atinentes à área da saúde, interferindo nas relações contratuais estabelecidas entre médicos e empresas. Consequentemente, tem por objeto normas de direito civil e de seguros, temas inseridos no rol de competências legislativas privativas da União (artigo 22, incisos I e VII, da CF). Os planos de saúde são equiparados à lógica dos contratos de seguro. Precedente desta CORTE: ADI 4.701/PE, Rel. Ministro ROBERTO BARROSO, DJe de 22/8/2014. 4. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade formal da Lei 12.562/2004 do Estado de Pernambuco” (ADI n. 3.207, Relator o Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJ 25.4.2018).

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27. No esforço de consolidação federativa, além da ênfase no liame próprio da cooperação, a busca da dinâmica com equilíbrio também é encarecido no sistema da Constituição da República de 1988, pelo que acolhe-se o princípio da simetria, que resulta na principiologia harmonizada das estruturas e das regras que formam o sistema nacional e os sistemas estaduais, de modo a não desconstituir os modelos adotados no plano nacional e nos entes federados, em suas linhas mestras.

Nesse quadro o equilíbrio federativo ocorre com a unidade que se realiza na diversidade congregada e harmônica.

É ainda o ensinamento de Raul Machado Horta:

“A precedência da Constituição Federal sobre a do Estado-Membro é exigência lógica da organização federal, e essa precedência, que confere validez ao sistema federal, imprime a força de matriz originária ao constituinte federal e faz do constituinte estadual um segmento derivado daquele. A precedência logico-juridica do constituinte federal na organização originário da Federação torna a Constituição Federal a sede de normas centrais que vão conferir homogeneidade aos ordenamentos parciais constitutivos do Estado Federal, seja no plano constitucional, no domínio das Constituições Estaduais, seja na área subordinada da legislação ordinária” (HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 69).

28. Este o modelo e os princípios informadores do modelo federativo adotado no Brasil e sob o influxo do qual se há de debater a compatibilidade constitucional das normas questionadas. O estabelecimento de hierarquia na cobrança judicial dos créditos da dívida pública da União aos Estados e esses aos Municípios desafina o pacto federativo e as normas constitucionais que resguardam o federalismo brasileiro por subentender que a União teria prevalência e importância maior que os demais entes federados.

29. Anoto que pode haver critério diferenciador para definição da ordem de pagamento de créditos, o que é legítimo. Adota-se até mesmo relativamente aos particulares, havendo pagamento diferenciado

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constitucionalmente fixado, por exemplo, em casos de precatórios com preferência e com a denominada superpreferência.

Entretanto, dois pontos precisam ser enfatizados para que se reconheça a validade do critério distintivo: o primeiro, a igualdade modelada constitucionalmente entre as pessoas somente pode ter contornos definidores no sistema constitucional, não em norma infraconstitucional. Quer dizer: estabelecendo a Constituição da República a federação como forma de Estado, estatuindo a autonomia dos entes federados como núcleo da forma estatal (art. 18), somente pelo desenho constitucional se poderia estatuir preferências entre os entes para efeito de pagamento dos créditos tributários. Segundo, o que legitima critério de diferenciação – prevalecente o princípio da igualdade dos entes federados e da autonomia de cada qual – é a finalidade constitucional adequada demonstrada.

No caso, nem a diferenciação põe-se em norma constitucional nem se comprova finalidade constitucional legítima buscada com a distinção estabelecida nas normas questionadas.

Concurso de preferência entre os entes federados: normas legais e doutrina sobre o tema

30. Pôs-se no art. 1.571 do Código Civil de 1916 a primeira referência jurídica ao concurso de preferência entre os entes federados: “ A Fazenda Federal prefere à Estadual, e esta, à Municipal”.

Entendia Clóvis Beviláqua que “esta ordem é determinada pelo sistema adotado entre nós, que estabelece a preeminência da União sobre os estados, e destes sobre os respectivos municípios ” (Código Civil . Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1919. v. 5).

No mesmo sentido, João Manoel de Carvalho Santos concluiu que “ é consequência lógica da que existe na ordem política, em que a União predomina sobre os estados e estes sobre os municípios. O todo ( a União em relação aos estados e os estados em relação aos municípios) prefere a cada uma das partes ” . ( Código Civil brasileiro interpretado. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1938).

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31. Também no parágrafo único do Decreto-Lei n. 960/1938, previa-se que a União teria preferência na cobrança judicial da dívida pública:

“ A dívida da União prefere qualquer outra, em todo o território nacional, e a dos Estados prefere a dos Municípios. Somente entre a União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderá versar o concurso de preferência”.

32. Posteriormente, inseriu-se no ordenamento jurídico brasileiro o parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional, questionada nesta arguição.

33. Deve ser enfatizado que até a Emenda Constitucional n. 1/69 à Carta de 1967, não havia, nas Constituições brasileiras, norma expressa impeditiva da discriminação entre os entes federados, o que gerou os questionamentos jurídicos antes demonstrados e de cujos julgados decorreram a Súmula n. 563 deste Supremo Tribunal.

34. Anote-se que, no art. 8º da Constituição brasileira de 1891, inspirada no art. 1º, seção 9, da Constituição dos Estados Unidos, vedava-se discriminações apenas entre os Estados: “vedado ao Governo Federal crear, de qualquer modo, distincções e preferencias em favor dos portos de uns contra os de outros Estados”.

No inc. I do art. 17 da Constituição de 1934, proibia-se “à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios crear distinções entre brasileiros natos ou preferencias em favor de uns contra outros Estados” .

Na al. a do art. 32 da Carta de 1937, vedava-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “criar distinções entre brasileiros natos ou discriminações e desigualdades entre os Estados e Municípios” e , em seu art. 34, proibia-se à União decretar impostos que importassem discriminação em favor dos portos de uns contra os de outros Estados.

No inc. I do art. 31 da Constituição de 1946 e no inc. I do art. 9º da Carta de 1967 se vedava à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uns contra outros Estados ou Municípios”.

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35. A cultura jurídica brasileira, acolhida nos sistemas constitucionais antes vigentes no País, foi influenciada pela origem centrífuga do federalismo adotado como forma de Estado no Brasil, o que viabilizou, numa quadra histórica que teve curso largo período, o concurso de preferência e prevalência de uns sobre outros entes federados.

Na atual ordem constitucional vigente, rompeu-se com esse entendimento pela adoção do federalismo de cooperação e de equilíbrio pela Constituição da República de 1988, pelo que não se pode ter como válida a distinção, por lei, de distinção e hierarquia entre os entes federados, fora de previsão constitucional e sem especificação de finalidade federativa válida.

36. Anote-se que Pontes de Miranda, em análise do parágrafo único do art. 187 do Código Tributário Nacional e tendo como parâmetro a Emenda Constitucional n. 1/1969, manifestava contrariedade do concurso de preferência entre os entes federados e sua compatibilidade com a forma federativa de Estado:

“(...) as preferências que o art. 9º, I, veda, e, pois, faz nulas, são todas as que, direta ou indiretamente, criarem vantagens aos filhos de um Estado-membro em relação aos filhos de outro Estado-membro, bem como entre um Estado-membro e outro ou outros, ou, ainda, entre os Municípios de um Estado-membro e os de outro ou do mesmo Estado-membro” ( Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1 de 1969 . 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973. t. I. p. 185).

No mesmo sentido, mas tendo como parâmetro a Constituição de 1988, Paulo de Barros de Carvalho ressalta a inconstitucionalidade das normas impugnadas:

“(...) sua inconstitucionalidade ressalta ao primeiro súbito de vista. É flagrante, insofismável e vitanda, sob qualquer ângulo pelo qual pretendamos encará-la”. Fere, de maneira frontal e grosseira, o magno princípio da isonomia das pessoas políticas de direito constitucional interno, rompendo o equilíbrio que o texto superior consagra e prestigia. Discrimina a União, em detrimento dos Estados, e estes, juntamente com o Distrito Federal, em prejuízo dos Municípios, quando sabemos que estão juridicamente parificados,

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coexistindo num clima de isonomia . E, como se isso não bastasse, dá preferência aos Territórios, que não têm personalidade política, com relação aos Municípios. Lamentavelmente, a ordem preferencial que o art. 187, parágrafo único, cristaliza na redação de seu texto vem sendo passivelmente acolhida e cordatamente aplicada, sem que o meio jurídico nacional se dê conta da manifesta inconstitucionalidade que encerra no seu significado em face do sistema do direito positivo brasileiro. Exclamam algumas vozes, como as de Geraldo Ataliba, Michel Temer, Roque Carrazza e poucos mais, sem que delas façam eco os pronunciamentos do Poder Judiciário” ( Curso de direito tributário. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 654 – grifos nossos).

De igual forma, Regina Helena Costa, em sede doutrinária, anota:

“Enseja crítica o parágrafo único desse artigo, que estabelece um concurso de preferência entre as pessoas jurídicas de direito público. Em primeiro lugar, porque veicula flagrante ofensa aos princípios federativo e da autonomia municipal, na medida em que estabelece hierarquia entre as pessoas políticas, incompatível com essa forma de Estado, sem contar a indicação dos Territórios – que nem sequer são pessoas políticas – à frente dos Municípios. Também a Lei Maior, em seu art. 19, III, proclama ser “vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. Para nós, portanto, tal preceito do Código Tributário Nacional foi tacitamente revogado, diante de sua incompatibilidade com a Constituição. E, se assim é, não há mais ordem de preferência entre as pessoas políticas, desfrutando seus respectivos créditos das mesmas condições” ( Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional . 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012).

Ainda, Eduardo Sabbag aponta:

“Há que se mencionar que tal dispositivo não se apresenta em consonância com o Princípio Federativo, constante no art. 60, § 4º, IV, da CF, haja vista não se admitir violação ao ‘federalismo de equilíbrio’ vigente em nosso Estado entre as pessoas jurídicas de Direito Público interno (art. 14, I, II e III, Código Civil, Lei n. 10.406/2012). Ademais, é cristalina a violação ao Princípio da Isonomia, por estabelecer uma preferência da União em detrimento das outras pessoas políticas, bem como dos Estados em detrimento dos Municípios. É evidente que não

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se pode tolerar quebra da isonomia federativa, tendo em vista tratar-se os entes tributantes de entes parificados, e não hierarquizados ” ( Manual de direito tributário . 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012).

Na mesma linha, Eduardo Marcial Ferreira Jardim, afirma que

“(...) o citado dispositivo se afigura induvidosamente inconciliável com o princípio da Federação que consagra a isonomia entre pessoas políticas, sobre agredir a vedação de estipulação de preferências entre as pessoas políticas de direito público interno (art. 19, III, do Texto Supremo)” ( Manual de direito financeiro e tributário . São Paulo: Saraiva, 1993).

37. Acresça-se a tramitação no Congresso Nacional, aprovado pela Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça, do Projeto de Lei n. 495 /2017, de iniciativa do Senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), pelo qual se altera o Código Tributário Nacional para dar preferência, no recebimento de créditos tributários cobrados judicialmente, ao ente federado (União, Estado ou Município) que mais esforços empreender na cobrança do crédito. (Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias /materias/2019/07/10/projetoacaba-com-preferencia-da-uniao-para-receber-creditos-tributarios>. Acesso em: 21.9.2020).

38. Pelo exposto, não verificando no texto constitucional de 1988 fundamento válido para acolher no ordenamento jurídico brasileiro norma infraconstitucional que crie distinções entre os entes federados na cobrança judicial dos créditos tributários e não tributários, julgo procedente o pedido apresentado na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental.

39. Proponho, ademais, no ponto, o cancelamento da Súmula n. 563 deste Supremo Tribunal, editada com base na Emenda Constitucional n. 1 /169 à Carta de 1967, pela qual contrariado o inc. III do art. 19 da Constituição da República de 1988.

40. Pelo exposto, conheço da presente arguição e julgo procedente o pedido para declarar a não recepção pela Constituição da República de 1988

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das normas previstas no parágrafo único do art. 187 da Lei n. 5.172/1966 (Código Tributário Nacional) e do parágrafo único do art. 29 da Lei n. 6.830 /1980 (Lei de Execuções Fiscais).

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