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A modernidade na lírica de Augusto dos Anjos

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO

GRANDE DO SUL – UNIJUÍ

DHE – DEPARTAMENTO DE HUMANIDADES E EDUCAÇÃO

CURSO DE LETRAS

LIA MACHADO DOS SANTOS

A MODERNIDADE NA LÍRICA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Ijuí - RS

2013

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LIA MACHADO DOS SANTOS

A MODERNIDADE NA LÍRICA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Monografia apresentada ao curso de Letras – Língua Portuguesa e suas Respectivas Literaturas da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como requisito parcial à obtenção do título de Licenciada em Letras.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo do Amaral

Ijuí - RS

2013

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O que é que, embora livre por essência, busca sempre libertar-se? (Marcelin Pleynet)

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RESUMO

A partir de uma concepção teórica sobre a lírica moderna, esta monografia visa estudar a lírica de Augusto dos Anjos, analisando cinco poemas de sua obra quanto a sua formalidade e modernidade. O suporte teórico vem da teoria de Hugo Friedrich sobre a estrutura da lírica moderna, em especial a lírica intelectualizada. O poeta brasileiro Augusto dos Anjos recebe uma breve leitura sobre a possível intertextualidade entre o seu poema “O Morcego” e o poema de Edgar Allan Poe, “O Corvo”. O eixo principal da monografia é a análise do conteúdo moderno de suas poesias em uma época que seu aparecimento data entre as últimas produções do Parnasianismo e Simbolismo.

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ABSTRACT

From a lyrical modern theorizing about, this monograph aims to study the lyric Augusto dos Anjos, analyzing five poems of his work as a formality and modernity. The theoretical support comes from Hugo Friedrich theory about the structure of modern lyricism, especially the lyrical intellectualized. The Brazilian poet Augusto dos Anjos gets a short lecture on the possible intertextuality between his poem "The Bat" and Edgar Allan Poe's poem "The Raven." The main axis of the thesis is the analysis of the modern content of their poetry at a time when its onset between the date of the last productions Parnassianism and Symbolism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO………... 06

1 ASPECTOS DA LÍRICA MODERNA... 09 1.1 A POESIA LÍRICA MODERNA... 09

2 A FORMALIDADE E A MODERNIDADE NA LÍRICA DE AUGUSTO DOS ANJOS... 19 2.1 A FORMALIDADE E A LINGUAGEM POÉTICA... 19

2.2 A MODERNIDADE NA LÍRICA DE AUGUSTO DOS ANJOS... 30

3 EDGAR ALLAN POE E AUGUSTO DOS ANJOS: RELAÇÕES

INTERTEXTUAIS... 45

CONSIDERAÇÕES FINAIS... 55

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INTRODUÇÃO

De maneira geral, o que existe na lírica moderna é expresso de forma dissonante: o indeterminado, por meio de palavras determinadas; o complicado, por meio de frases simples; o inconexo, por meio de conexões; o espaço ou a ausência de tempo; o arbitrário, no conteúdo por meio de formas rigorosas, etc. Por vezes, a poesia moderna parece não ser destinada a compreensão, mas, ainda assim, é linguagem e a magia desta linguagem age profundamente, mesmo que a compreensão permaneça desorientada.

Para Friedrich, foi a situação histórica do espírito moderno e sua liberdade aprisionada que fez do excessivo, em sua poesia, o ímpeto, a liberdade, e ainda compara:

A lírica moderna é como um grande conto de fadas, ainda nunca ouvido, solitário; em seu jardim há flores, mas também pedras e cores químicas, frutos, e também drogas perigosas; é fatigante viver em suas noites e em suas temperaturas extremas. Quem é capaz de ouvir percebe nesta lírica um amor duro, que quer permanecer intacto e, assim, fala mais a confusão, ou ainda ao vazio, que a nós. (FRIEDRICH, 1978, p. 211).

A incompreensibilidade e a fascinação que encontro na lírica do poeta brasileiro Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos é a mesma tensão dissonante da lírica moderna e contemporânea.

Mais conhecido na história da literatura brasileira pelo nome de Augusto dos Anjos (1884-1914), o “filho do carbono e do amoníaco”, nascido no Engenho de Paud’arco, na Paraíba, poeta inovador e dono de uma poética própria, rompeu com a tradição literária lançando mão de temáticas transgressoras (a morte, o horror, a putrefação) e o fazendo através de uma elegância linguística que o legitimaram como grande poeta.

Sua classificação na literatura traz até hoje muitas discussões. Alguns o consideram parnasiano; outros, simbolistas, e alguns estudiosos o classificam como um pré-modernista. Para Ferreira Gullar (2011), a leitura cronológica da poesia brasileira das últimas décadas do século passado até a primeira deste século permite constatar, quando se chega ao

EU, um salto de qualidade.

Nesta perspectiva, o presente trabalho tem por objetivo investigar, analisar e identificar a modernidade na lírica de Augusto dos Anjos em sua obra EU e outras poesias, publicada em 1899. Esta análise irá nortear-se, especificamente, pela teoria de Hugo Friedrich

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(1978) em seu estudo Estrutura da lírica moderna com auxílio de outros autores, como Salete de Almeida Cara, Salvatore D’Onofrio e Ferreira Gullar.

O presente trabalho está dividido em três capítulos: no primeiro capítulo trato do conceito da lírica moderna através de autores como Salete de Almeida Cara e Salvatore D’Onofrio. Também serão citadas e analisadas as seis características mais comuns encontradas em alguns poetas modernos e que identificam a lírica moderna como uma unidade estilística, segundo os estudos de Hugo Friedrich, Estrutura da lírica moderna:

problemas atuais e suas fontes.

No segundo capítulo, analiso a lírica de Augusto dos Anjos. No primeiro texto, apresento o poeta ao leitor. Cinco sonetos são citados para que, através deles, possamos analisar a formalidade em sua lírica, a estrutura interna e externa que o identificam como um poeta formal influenciado pelo parnasianismo e simbolismo.

O segundo texto A modernidade na lírica de Augusto dos Anjos, trata-se de uma análise interpretativa da poética de Augusto dos Anjos. Utilizo os mesmos poemas analisados anteriormente para identificar os elementos da lírica moderna – os mesmos elementos utilizados por poetas modernos como Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e Poe - dialogando com a teoria de Hugo Friedrich, principalmente, da lírica intelectualizada.

No terceiro e último capítulo mostro alguns aspectos da intertextualidade presente na poesia “O Morcego”, de Augusto dos Anjos e “O Corvo”, de Edgar Allan Poe (1809-1849), mesmo que não plenamente desenvolvidos, já que isto se abre para outro trabalho que possivelmente será desenvolvido em outro trabalho posterior.

Nas considerações finais, apresento uma análise crítica acerca de todo o trabalho de pesquisa realizado na tentativa de identificar elementos modernos na lírica do poeta brasileiro e, também, possíveis caminhos acerca de um trabalho que não considero como acabado. Seguimos, então, para o primeiro capítulo de nossa pesquisa, que tratará de situar o leitor sobre o que é a lírica moderna, além de prepará-lo para os capítulos seguintes.

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1 ASPECTOS DA LÍRICA MODERNA

1.1 A POESIA LÍRICA MODERNA

A tensão dissonante existente na lírica moderna é objeto de estudos que compreendem a lírica moderna, não mais como uma intimidade comunicativa entre poesia e leitor, mas como uma experiência desconcertante.

Salete de Almeida Cara, professora Doutora do Ensino Superior em São Paulo e crítica literária, em sua obra intitulada A poesia lírica (1985), recupera o percurso histórico do lirismo e faz uma importante reflexão crítica sobre seus momentos fundamentais, inclusive a Modernidade.

Almeida Cara (1985, p.41) destaca que, como no nascimento da lírica, na Grécia Antiga, cidade regida pelos critérios do utilitarismo e pelo avanço da ciência, da indústria e da tecnologia, conduziu o poeta a uma nova visão da sociedade e, consequentemente, a maneira como ele se relaciona com o mundo objetivo. A onipotência de um sujeito heróico não cabe mais a cidade das multidões e é substituída pela subjetividade do sujeito lírico.

Na Grécia Antiga, a vida da “pólis”, a vida em comunidade era marcada pela coesão de ideias e crenças, e esta unidade foi expressa, pela primeira vez, na forma da poesia épica. Homero (século VI a.C.) foi seu principal representante, encarnando todos os valores do homem grego e da vida comunitária.

Quanto mais a vida na cidade ficava submetida às leis da pólis, mais crescia a necessidade de uma expressão individual; e assim nasceu a poesia lírica. A necessidade de expressão e de ruptura com a cidade mecanizada fez surgir, por sua vez, a lírica moderna.

É o novo papel do sujeito lírico, que diante da cidade moderna aperfeiçoa sua importância na sociedade tecnológica caracterizada pelo seu “novo olhar” insubstituível e, ao mesmo tempo, impotente no sentido de dar significado definitivo sobre o que fala ou mesmo em dominar o próprio instrumento que usa.

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A poesia, como “expressão do eu”, acreditada pelo poeta romântico, dá lugar a um poeta que se vê projetado no mundo exterior; um poeta moderno que tem a consciência de que qualquer recorte do mundo será apenas linguagem, uma tradução parcial.

Conforme Cara (1985, p.47), o sujeito lírico moderno explicitado e conhecido como “eu” não se refere à pessoa que escreve o poema ou outra pessoa qualquer e não ilude a nenhum conjunto de emoções reais. Para a autora, é neste sentido que Fernando Pessoa escreve o que segue tematizando sobre a nova função da poesia:

Entre o que digo e o que calo Existo? Quem é que me vê? Erro-me...

(Fernando Pessoa)

É também nesse sentido que Mallarmé dizia que a voz que fala na lírica moderna “oculta tanto o poeta quanto o leitor” (MALLARMÉ, 1978, apud FRIEDRICH, p.47). Já não existe a possibilidade de procurar no poeta dados que permitam uma explicação para o texto como era permitido nos românticos e até mesmo em Baudelaire. O poema “Isto”, do poeta português Fernando Pessoa, já seria um exemplo desse sentido:

Isto

Dizem que finjo ou minto Tudo que escrevo. Não. Eu simplesmente sinto Com a imaginação Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo, O que me falha ou finda, É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. Essa coisa que é linda.

Por isso escrevo em meio Do que não está ao pé, Livre do meu enleio,

Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê!

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Passa a ser evidente, na lírica moderna, que o sujeito lírico não pode ser confundido com o poeta em carne e osso. Ele existe através das escolhas sensíveis de linguagem que o poema apresenta: o ritmo, o som, a tonalidade, a sintaxe. Ele é o elemento que une todas estas escolhas de linguagem e transforma o poeta real em sujeito lírico. Ele é a própria poesia.

Mesmo em textos de poetas como Augusto dos Anjos, em que a biografia do autor pode ajudar para a compreensão de sua obra, nem no espaço do “eu” que se fala no poema - a subjetividade - não se detém apenas ao poeta que escreve. Para Salete de Almeida Cara (1985) é nesse cenário que o sujeito lírico moderno “a partir do Simbolismo, toma consciência de que o espaço da poesia não é nem o espaço da realidade (a objetividade será impossível), portanto, nem o espaço do “eu” (a dita subjetividade será encarada também como ilusória)” (p.48).

Salvatore D’Onofrio, escritor e professor italiano, Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, também estudioso da lírica contemporânea e modernista, identifica a lírica como elementos de uma unidade estilística que tem raízes na lírica simbolista. São considerados precursores do lirismo vanguardista poetas como o pré-romântico Novalis, o norte-americano Edgar Allan Poe, o pré-romântico Baudelaire e os quatro maiores poetas do simbolismo francês, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e Valéry.

Em Literatura Ocidental: autores e obras fundamentais (1990), D’Onofrio, utiliza como pressuposto a teoria de Hugo Friedrich, em sua obra Estrutura da Lírica Moderna

problemas atuais e suas fontes (1978), para distinguir as duas polaridades no complexo

poético do século XX. Para Friedrich, esta polaridade se expressa através de duas unidades estilísticas, a lírica intelectualizada e a lírica formalmente livre.

A lírica intelectualizada é caracterizada pelo seu rigor formal, iniciada por Mallarmé e continuada por Valéry, pela qual a poesia deve ser a festa do intelecto. Já a lírica formalmente livre e alógica, iniciada por Rimbaud, é elevada às últimas consequências pelo poeta surrealista Andre Breton, pela qual a poesia deve ser a ruína do intelecto.

O autor ressalta ainda que essa polaridade de forças cerebrais e forças arcaicas não devem ser entendidas no sentido exclusivista, de contraste, mas como indicação apenas de predominância de uma tendência sobre a outra num determinado poeta.

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Antes de fazer um estudo individual de alguns poetas, Salvatore D’Onofrio estabelece em seu estudo características comuns, princípios estéticos e ideológicos semelhantes que permitam, sem prejuízo das individualidades poéticas que caracterizam certos poetas do século, a percepção de linhas similares especificadoras do lirismo modernista e contemporâneo, nas quais o autor permite concordar com a tese de Friedrich sobre a existência de uma estrutura estilística no hodierno lirismo.

O autor cita seis das características comuns em alguns poetas modernos e que identificam a lírica moderna como uma unidade estilística. São elas: o Antipassadismo, a Sugestão, a Despersonalização, a Fragmentação, o Figurativismo e o Grotesco.

O Antipassadismo talvez seja a característica mais comum a todos os artistas da Vanguarda. Foram as duas Guerras Mundiais, de 1915-1918 e de 1939-1944, que, além de ter abalado o Ocidente, levaram os intelectuais a questionar a validade da cultura: “Por que a civilização traz em seu bojo o ódio, a injustiça, a opressão, o genocídio?” (p.450) Essa crise da humanidade provocada pelos horrores do entre – guerras ocasionaram a ruptura da tradição cultural, da poesia romântica e, com isso, o desejo de criar uma nova estética.

A insurreição contra tudo que é passado e a repulsa da herança cristã e romântica, degradaram mitos gregos e bíblicos. Os símbolos coletivos foram substituídos por símbolos individuais de cada artista, sem a pretensão de ser interpretada. Qualquer alusão da tradição cultural era feita ao acaso, sem nenhuma perspectiva histórica, destruindo seus limites espaciais e temporais.

O que Friedrich chama de sugestão tem origem na função poética da linguagem humana que desde sempre procurou romper os automatismos linguísticos para dar novos sentidos às palavras, e chega ao ponto máximo na lírica modernista da não-comunicação. A sugestão deve ser provocada no leitor através das próprias possibilidades internas da linguagem-ritmo, sonoridade, imagens e associações criativas - sem nenhuma pretensão de comunicar, de ser compreendida.

A imagem poética passa a ser dinâmica e tem o objetivo de agredir o leitor com seus versos indizíveis do prazer de não ser compreendido e, até mesmo, desagradar. Já Baudelaire escreveu: “Existe certa glória em não ser compreendido”. (BAUDELAIRE, 1978, apud FRIEDRICH, p.16).

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A poesia para D’Onofrio (1990), deixa de ser aquela que transmite, ao leitor, sentimentos idealizados da natureza cósmica e humana, pois se alimenta do sentido de um mundo de cultura e abandona de vez as angústias do isolamento espiritual do poeta romântico. A “sugestão mágica” vem para este autor como resposta da arte para a sociedade pragmática que se transforma cada vez mais tecnicamente e que cientificamente tem a pretensão de desvendar o mistério do universo. (p.451).

O hermetismo e o caráter alógico da moderna concepção de arte também partem deste pressuposto. O poeta trabalha com símbolos autárquicos, explorando conteúdos sonambúlicos e alucinantes, indiferentes ao código ideológico. (p.451).

Segundo Friedrich, foi a sociedade automatizada que reduziu o ser humano a meros números, sendo o homem uma estatística das multidões; e a crise do conceito de personalidade não demorou a atingir o mundo das artes.

A despersonalização vem opor-se diretamente à poesia romântica, totalmente centrada sobre o sentimento individual. Na lírica modernista a experiência é vivida por um “ego” que chega a uma neutralidade acima do pessoal. A fantasia intelectualiza-se pela ficção científica. O herói passa a ser dirigido através da computação, da estatística, da cibernética, da automatização. Tal despersonalização chega à desumanização: “o sofrimento de um homem não é para nós mais interessante que o sofrimento de uma lâmpada atingida pelo curto- circuito”. (MARINETTI, 1909, apud D’ONOFRIO)

A desvalorização da forma orgânica, que em uma inversão hierárquica desloca o homem para o degrau mais baixo fazendo-o parecer menos possível com um homem e a anulação do sentido humano, possibilita novos olhares e outra dimensão ao significado de um objeto artístico. Seu valor lírico se encontra no próprio objeto, enquanto desfigurado da realidade.

Também é um dos intuitos da arte moderna apresentar pedaços, fragmentos da vida e não a sua totalidade. Para Cara (1985, p.49) a linguagem alegórica e fragmentada é o modo que o poeta encontra para dialogar com a tradição.

Já dizia Rimbaud sobre a arte pictória:

Temos de arrancar a pintura seu hábito antigo de copiar, para fazê-la soberana. Em vez de reproduzir os objetos, ela deve forçar excitações mediante as linhas, as cores e os contornos colhidos no mundo exterior, porém, simplificados e dominados: uma verdadeira magia. (RIMBAUD, 1990, apud D’ONOFRIO, p.452).

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Assim também é na poesia. O leitor não deve prematuramente concluir sua interpretação através de intuitos decifráveis, mas, sim, alcançar ele mesmo o enigmático através das linhas, imagens, metáforas, ritmo, “das escolhas de linguagem que o poeta apresenta”. (CARA, 1985, p.48)

Segundo o autor, outro termo semelhante à fragmentação já usado antes por Baudelaire foi a “decomposição” do real, onde a fantasia teria a função de deformar os objetos, juntar pedaços heterogêneos como, por exemplo, o mar nas montanhas, superando o que pode ser facilmente apreendido pelos sentidos.

Curiosamente, enquanto a pintura moderna, ao longo de uma extensa caminhada tenta passar pelo Cubismo e Surrealismo, uma idéia de abolição da figura, delegando a função de representação à arte fotográfica e a poesia, inversamente penetra no campo do desenho artístico para aproximar-se da configuração. A partir daqui, o estrato gráfico e óptico do poema passa a ter mais relevância. Palavras, sílabas e grafemas só adquirem sentido num contexto topográfico.

A poesia, segundo a tendência da Vanguarda, tem outra aparência. Nela não encontramos mais seu significado na frase ou no verso, mas nas sílabas cruzadas, nos anagramas, nas letras maiúsculas em contraste com as minúsculas onde até mesmo o espaço em branco pode ser indicador de sentido, tanto com relação a sua forma, como relação ao espaço que, artisticamente, possam estar dispostos numa página, de forma a serem lidos de ângulos e formas diferentes. É a concepção de poesia apenas como “forma”, criada pelo prazer estático, da arte pela arte, que chega a seu limite extremo.

A estética do feio também tem importante papel na constituição da poesia modernista e contemporânea, já proposta pelo Romantismo. Ela vem contestar a função opositiva do desarmônico oferecendo novos materiais altamente estimulantes à criação artística literária:

Belo e feio, já não são valores opostos, mas digressões de estímulos. Sua diferença objetiva é eliminada como a diferença entre verdadeiro e falso. A estreita aproximação do belo e do feio produz aquela dinâmica de contraste, que é o que importa. (FRIEDRICH, 1978, P. 77)

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Não faz mais sentido procurar manifestações de sentimentos tradicionalmente opostos na lírica moderna, tendo em vista que elas oscilam entre si e têm valor autônomo diante da poesia, constituindo novos padrões estéticos.

A concepção clássica da beleza é questionada, “a atrofia do espírito” e a opressão do real fazem o poeta procurar no absurdo existencial elementos poéticos para que, servindo-se do humor negro, o poeta moderno conjugue o sofrimento com riso, o amor com a morte, o idílico com o repugnante. (D’ONOFRIO, 1990, p.453).

Além dos princípios estéticos e das características mais comuns que evidenciam uma unidade estilística na lírica modernista e contemporânea, Salvatore D’Onofrio, expondo a teoria de Hugo Friedrich (1978), em História da Literatura Ocidental (1990), também elenca uma série de artifícios encontrados na poética vanguardista e que são usados no plano da expressão.

“A metáfora absoluta”: o tropo estabelece, entre dois termos não apenas uma relação de comparação, mas de identidade; “imagens incoerentes”. O poema não apresenta momentos ideológicos sequenciais, podendo-se inverter versos ou estrofes inteiras predominando a arbitrariedade; “a técnica da fusão” o sentido de uma palavra se funde com o significado de uma palavra próxima [...] o uso do “acaso” para captar pedaços de uma conversação desconexa; “as formas oximóricas”: aproximação do mesmo sintagma de objetos semanticamente opostos; a alteração das funções normais das categorias gramaticais e sintáticas: substantivos sem artigos, artigo definido em lugar de indefinido, adjetivação paradoxal, inversões, etc. (D’ONOFRIO,1990, p.453, grifo do autor)

D’Onofrio ainda faz um breve estudo sobre os poetas mais importantes da modernidade, tendo para ele como o precursor Thomas Stearns Eliot (1882-1965), o maior de todos. Poeta controvertido, Eliot foi marcado pelo saudosismo e pela inovação da poética contemporânea, lhe cunhou o termo “eliotizar” para indicar assimilação de culturas diferentes. Sua obra literária, além de dois dramas é composta exclusivamente de poemas. Cara (1985) cita poetas como Edgar Allan Poe, Baudelaire, Stéphane Mallarmé e Válery como importantes poetas para o estudo do lirismo moderno e do sujeito lírico moderno.

No Brasil, a tendência estética vanguardista herdou muitos poetas no movimento da renovação cultural, tais como: Cassiano Ricardo, Raul Bopp, Menotti Del Picchia e Sérgio Milliet. Porém, os dois pesquisadores, tanto D’onofrio, como Cara, salientam a importância de dois grandes poetas líricos: Mário de Andrade e Manuel Bandeira, cuja fama ultrapassou os limites do tempo e do espaço.

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Para D’Onofrio (1990, p.458-460), a maior contribuição de Mário de Andrade (1909-1945) à poesia modernista brasileira foram suas pesquisas sobre folclore e música. Já Manuel Bandeira (1886-1968) foi destacado pelo poema “Vou-me embora pra Pasárgada”, nome extraído da Ciropédia, do historiador grego Xenofonte, para materializar um espaço utópico onde o poeta pudesse realizar os desejos mais ocultos de sua alma:

Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei

Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz

Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente

Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive

E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio

Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar

Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcalóide à vontade Tem prostitutas bonitas Para gente namorar

E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito

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Quando de noite me der Vontade de me matar - Lá sou amigo do rei- Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei

Vou-me embora pra Passárgada.

O poema de Manuel Bandeira, exemplo da temática do desconcerto da vida prosaica, traz uma subversão dos valores éticos impostos pelas normas do viver social. É um poema de libertinagem que traz a poética aos prostíbulos e prazeres carnais, uma postura ideológica marcadamente contestatória.

Houve também uma segunda geração de poetas brasileiros modernistas, datada de 1945 à 1960. São eles: Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schimdt, Vinícius de Moraes, Cecília Meireles, João Cabral de Mello Neto, Ferreira Gullar e Mário Faustino. Alguns destes produzem até hoje, mas o “poeta maior”, conforme o autor, comparado até mesmo a Machado de Assis foi Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e sua produção do gênero literário passa por diferentes linhas poéticas. Primeiramente, a poesia saudosista da família e da terra natal; a poesia intimista, em que sua fina inteligência leva-o a uma percepção da realidade mais subjetiva, afastando-se da opinião geral; a poesia política de participação social, que se encontra especialmente na coletânea Rosa do povo; a poesia metafísica, de reflexão, que inclina o autor a um existencialismo niilista e, em sua última fase, dos poemas escritos entre 1959 e 1962; o poema-objeto, onde o estilo sintético reduz a linguagem poética a um puro nominalismo com a intenção de representar, através da poesia, a coisificação do ser humano. Tomo a exemplo a primeira estrofe do poema “Isso é

aquilo”.(p.454). Isso é aquilo O FÁCIL, o fóssil o míssil, o físsil a arte, o enfarte o ocre, o canopo a urna, o farniente a Lex, o judex o maiô, o avô o só, o sambaqui

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No poema à moda do futurista Marinetti, os substantivos estão privados de qualquer adjetivação, justapostos, sem nenhum nexo sintático ou semântico e a relação é estabelecida apenas por elementos fônicos.

A renovação na poesia moderna registrada, tanto nos estudos de Salvatore D’Onofrio, quanto em Salete de Almeida Cara, ecoam, sem sombra de dúvidas, numa concepção de poesia como transgressão da lógica. Quanto ao sujeito lírico é mais claramente do que as anteriores, “continente de todas as dispersões possíveis do “eu” e da “alma”, em direção ao mundo do desejo e da utopia”. (CARA, 1985, p. 49, grifo do autor) Seguramente é nesse sentido que a poesia pode ser vista como espaço de liberdade e até mesmo de loucura.

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2 A FORMALIDADE E A MODERNIDADE NA LÍRICA DE AUGUSTO

DOS ANJOS

2.1 A FORMALIDADE E A LINGUAGEM POÉTICA

Como introdução ao estudo de Augusto dos Anjos é oportuno analisar, antes de qualquer coisa, a formalidade desta lírica. Cinco poemas de sua obra literária serão analisados quanto à estrutura interna, externa e linguagem poética.

O poema a seguir foi publicado originalmente na coluna de O Comércio foi retirada do livro Poesia e Vida, de Augusto dos Anjos (1978), de Raimundo Magalhães Junior.

Poema I:

Vozes de um túmulo

1. Morri! E a Terra - a mãe comum - o brilho 2. Destes meus olhos apagou!... Assim 3. Tântalo, aos reais convivas, num festim, 4. Serviu as carnes do seu próprio filho!

5. Por que para este cemitério vim?! 6. Por quê?! Antes da vida o alegre trilho 7. Palmilhasse, do que este que palmilho 8. E que me assombra, porque não tem fim!

9. Na arquitetura do meu sonho ardente 10.Construí de orgulho um pedestal ingente!... 11. Hoje, porém, que se desmoronou

12 .A pirâmide real do meu orgulho, 13 .Hoje que apenas sou matéria e entulho 14 .Tenho consciência de que nada sou!

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Em sua obra Magalhães apresenta algumas influências de Cruz e Sousa na poesia de Augusto:

Nos tercetos de um soneto de Cruz e Sousa, intitulado “Piedade”, Augusto dos Anjos encontrou no plural uma das rimas que usou, no singular, em seu soneto: “Sim! Que não ter um coração profundo/ e os olhos fechar a dor do mundo/ficar inútil nos amargos trilhos [...]. Ao se valer dessa rima, Augusto dos Anjos adjetivou o “trilho” com uma palavra oposta à que Cruz e Sousa escolhera: “alegre”, em vez de “amargos”. Tal oposição parece evidenciar o desejo de afastar-se do modelo [...]Mas verificando, mais tarde, haver contradição entre a palavra escolhida e o espírito do soneto, trocou o adjetivo para “augusto”, como se lê no EU. (JÚNIOR; MAGALHÃES,1978, p. 113)

Trata-se de um soneto, portanto, composto por quatorze versos, dois quartetos e dois tercetos. Os versos, quanto à rima, são consoantes e perfeitas quanto aos fonemas, no final dos versos 1, 4, 6, 7 [brilho\filho\ trilho\palmilho]; nos versos 2, 3, 5 e 8 o fonema “im”[assim\festim\vim\fim]; nos dois tercetos, as rimas também são consoantes perfeitas, no final dos versos 9 e 10, as rimas [ardente\ ingente], versos 12 e 13 [orgulho\entulho], e nos versos 11 e 14 [desmoronou\sou].

Nos dois quartetos o esquema de rimas é entrelaçado ABBA. Nos dois tercetos, segue o esquema CCD e EED.

Na estrutura interna do poema, nos dois quartetos, há aliteração dos fonemas “m”e “s” e nos tercetos dos fonemas “t” e “r”. Em todo o poema existe a assonância da letra “e’ produzindo um efeito de rima nos versos finais com os fonemas vocálicos “o” “e”.

O título “Vozes de um túmulo” traz a personificação de um objeto inanimado dando voz a um túmulo; ele não reproduz uma fantasia artística, e, sim, forma a própria realidade, ex: um sujeito, já no primeiro verso, que está morto, “Morri! E a Terra a mãe

comum". Não se sabe quem é este sujeito que fala depois de morto porque existe uma

separação entre o sujeito poético e o eu empírico.

A terra, grafada em letra maiúscula, no primeiro verso, surge como mãe comum, uma unidade superior ao ser humano. O pronome “destes” também grafado com inicial maiúscula, no segundo verso, dá ênfase aos olhos que tiveram o brilho apagado pela própria mãe, seguidos de reticências, sugerindo, aí, um período de lamento e de luto. Um luto não somente às carnes que foram servidas como banquete, mas da própria condição humana de ser devorada pela natureza, a mãe comum.

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Este sujeito é desumanizado, aparecendo no poema como estrangeiro, colocando distintas partes do corpo em desproporção com a imaginação tradicional. Elas são descritas com expressões anatômicas que as deixam materializadas.

O início do primeiro verso, causa, inicialmente, uma sensação de melancolia e escuridão; uma ação a morte, “Morri!”, após uma pausa, no final do verso, ele traz o “brilho”, talvez uma esperança, uma iluminação que logo no segundo verso ligeiramente é apagada! Então, no terceiro verso, ele usa palavras que lembram a luz, o brilho: “tântalo, aos reais convivas, num festim”. O tântalo, um metal pesado de transição extremamente resistente e brilhoso, reais convivas num festim, remetendo a uma refeição lauta e festiva. O brilho da festa que logo se apaga com a indignação de ser servido pela própria mãe porque refere-se Augusto, à Terra como mãe comum, a mãe que seria capaz de servir seu próprio filho num banquete? Versos repletos de contrariedade.

O eu lírico demonstra toda sua ira a mãe que lhe gerou e que no fim lhe serviu as próprias carnes. “É o processo interminável da natureza a gerar e destruir o que gerou. Essa madrasta que avara esconde o sentido da existência e tudo reduz a “uma teleologia sem princípios”. (GULLAR, 2011, p.18, grifo do autor).

A repetição do “Por que”, no sexto verso, isolado, traz consigo, além do inconformismo da morte, um lamento sobre sua eternidade. A repetição e a recorrência de iniciais maiúsculas trazem, ao poema, uma explosão de fúria e musicalidade.

Nos dois tercetos pode-se notar que o sujeito do lado de fora do espaço, relembrando seus sonhos,construiu uma pirâmide, uma imagem ilusória de superioridade do ser humano. A metáfora dessa construção que tem como ápice um pedestal de grande proporção a simbologia do conhecimento, se defronta com a metáfora da destruição, da consciência do real de ser matéria e ser nada que desmorona e vira apenas entulho.

A grande angústia da morte e da vida é indagada, bem como o caminho que perpassa esse corpo. As imagens são construídas com luminosidade e positivismo, e, logo, desconstruídas rapidamente e negativamente: “Hoje que, apenas sou matéria e entulho, tenho consciência de que nada sou”. O tudo é nada.

O poema que analiso a seguir, Eterna Mágoa é um dos poucos poemas datados de toda a produção poética de Augusto dos Anjos.

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Poema II

Eterna Mágoa

1. O homem por quem caiu a praga

2. Da tristeza do Mundo, o homem que é triste 3. Para todos os séculos existe

4. E nunca mais o seu pesar se apaga!

5. Não crê em nada, pois nada há que traga 6. Consolo à Mágoa, a que só ele assiste 7. Quer resistir, e quanto mais resiste

8. Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

9. Sabe que sofre, mas o que não sabe

10. É que essa mágoa infinda assim, não cabe 11. Na sua vida, é que essa mágoa infinda

12. Transpõe a vida do seu corpo inerme

13. E quando esse homem se transforma em verme 14. É essa mágoa que o acompanha ainda!

Pau d’Arco-1904.

O soneto “Eterna Mágoa” retirado do livro EU e outras poesias, é composto por rimas perfeitas nos finais dos versos 1, 4, 5 e 8, com os fonemas [praga\apaga\ traga\chaga]; nos versos 2, 3, 6 e 7 [triste\existe\assiste\resiste]; nos versos 9 e 10 [sabe\ cabe]; versos 11 e 14 [infinda\ainda] e nos versos 12 e 13 com os fonemas [inerme\verme].

Nos dois quartetos, o esquema de rimas é entrelaçado ABBA. Nos dois tercetos, segue o esquema CCD e EED.

No primeiro quarteto há aliteração de “t” e “p”; no segundo quarteto há aliteração nasal que acontece também nos dois tercetos. No primeiro terceto encontra-se também assonância de “a” e “e”, também a repetição de pronomes que acompanham os versos é evidente: “É que essa mágoa infinda assim, não cabe/ Na sua vida, é que essa mágoa infinda/ Transpõe a vida do seu corpo inerme/ e quando esse homem se transforma em verme/É essa mágoa que o acompanha ainda”.

Há duas coisas a serem analisadas quanto à estrutura interna do poema. A percepção do eco, por meio à repetição de palavras e a ligação do título “eterna mágoa”, com

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o corpo do poema. É clara a construção do poema pela reiteração de palavras em todos os versos, muitas vezes, de palavras iguais [homem\homem, nada\nada, sabe\sabe, vida\vida], outras de palavras derivadas [triste\tristeza, resistir\resiste, transpõe\transforma] e, até mesmo, de orações inteiras [é que esta mágoa infinda\ é que esta mágoa infinda]. Esse ritmo assim como toda a sonoridade do poema, é contido e sereno, apesar do conteúdo bastante penoso.

Também é evidente a relação do título “eterna mágoa”, que traz a acepção de ser permanente com o próprio sentido da palavra mágoa, que se repete no poema em todas as estrofes, remoendo o sentimento de uma mágoa. Deixa então de ser efêmera, passando a ser permanente. Uma mágoa eterna, que nos aprisiona em versos, construindo labirintos ainda mais dolorosos porque recuam e ecoam com a ajuda dos pronomes, constantemente, expressando à visão de mundo do poema que é a da circularidade.

Deve-se perceber, ainda, que o tempo representado pelos “séculos”, no terceiro verso e de todos os verbos que indicam uma ação, fazem existir uma quase ausência de progressão do tempo, dado o efeito da circularidade oferecido ao próprio leitor, numa sensação de aprisionamento e agonia, fazendo, de fato, a contundência que já o título do poema sugere.

O primeiro quarteto nos apresenta o homem, que por sobre uma praga sente toda a tristeza do Mundo, grafado no poema com letra maiúscula. Aumenta ainda mais a dimensão desta tristeza que de tão grande perdura todos os séculos “e nunca mais o seu pesar se

apaga”, aprofundando mais a permanência deste pesar, que não se compara ao fogo, que se

apaga por ser efêmero, nem apaga da lembrança por ser destituída com a morte.

No segundo quarteto este homem é mencionado trazendo a tentativa da resistência logo abatida pela força da descrença, tamanha a descrença comparada à rapidez com que os vermes comem esta ferida da dor e a fazem crescer.

Nos dois tercetos a mágoa vem de forma profunda remoer o sentido da eternidade por não caber dentro de uma vida e muito menos dentro de um corpo. Ela o acompanha, até mesmo nos vermes que seu corpo irá se alimentar. De tal forma, percebemos a ligação dos versos e o sentimento do pesar em todas as estrofes. Um homem descrente do tamanho de sua dor; ele crê apenas na condição humana de ser verme que não transcende em sua condição existencial.

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Esses versos sugerem que o eu lírico cultua esta dor com certa volúpia, sendo inerente ao ser humano, aos prazeres efêmeros. Essa dor não passa e quanto mais tenta fugir, mais se aproxima e aumenta esta chaga.

O poema a seguir é um dos sonetos mais conhecidos da obra de Augusto dos Anjos, tornou-se famoso pela sua atmosfera grotesca e sobrenatural.

Poema III

O Morcego

1. Meia-noite. Ao meu quarto me recolho. 2. Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede: 3. Na bruta ardência orgânica da sede, 4. Morde-me a goela ígneo escaldante molho.

5. “Vou mandar levantar outra parede...” 6. -Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho 7. E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho, 8. Circularmente sobre a minha rede!

9. Pego de um pau. Esforços faço. Chego 10. A tocá-lo. Minh’alma se concentra 11. Que ventre produziu tão feio parto?!

12. A Consciência Humana é este morcego! 13. Por mais que a gente faça, à noite, ele entra 14. Imperceptivelmente em nosso quarto!

O soneto “O Morcego”, também retirado do livro EU e Outras Poesias é composto por rimas perfeitas nos finais dos versos 1, 4, 6 e 7 com os fonemas [repolho\molho\ ferrolho\olho]; nos versos 2, 3, 5 e 8 [vede\sede\parede\rede]; nos versos 9 e 12 [chego\morcego]; versos 10 e 13 [concentra\entra] e nos versos 11 e 14 com os fonemas [parto\quarto].

Com cinco rimas, inverte as abraçadas no segundo quarteto (ABBA BAAB); nos tercetos, segue o esquema CDE.

No primeiro quarteto há aliteração de “m” e “r’; no segundo quarteto de “r” que se repete nos dois tercetos, e assonância de “e” e “o”. Também há consonâncias internas de “s” e “c” nos versos 2 e 10, e consonâncias de “c” e “f” nos versos 6 e 9.

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O poema acontece dentro de um ambiente, o quarto, e sequencia os fatos de forma linear. As exclamações e assonâncias expressam constante aflição e desespero, ao mesmo tempo em que o eu lírico não se movimenta do espaço físico “quarto” gerando certa aproximação com a sonoridade do poema, que apesar de obscuro e tenso, se mantém estático.

A grande metáfora do poema compara o morcego, um ser de aparência amedrontadora, que habita lugares úmidos e escuros, com a consciência humana. O morcego é capaz de transmitir ao homem a raiva através de sua mordida, ao mesmo tempo em que a consciência pode transmitir ao homem sentimentos negativos.

Tal fato acontece já no primeiro quarteto, quando o sujeito encontra-se em repouso no seu quarto, à meia-noite, quando é surpreendido por um morcego que lhe morde a garganta, ou, a consciência que lhe atinge o pensamento. No segundo verso, com uma exclamação indicando o susto, ele clama “Deus!” como se algo sobrenatural pudesse o salvar daquela situação “e, agora vede:”, como se esse Deus onipotente pudesse impedir o ataque desse vampiro.

Num momento de consciência, pensa: “vou mandar levantar outra parede...”. As reticências indicam um tempo que passa e este homem mordido, perde sangue e enfraquece, completando: “ergo-me a tremer”, fecha o ferrolho da porta para proteger-se, mas, ao olhar no teto, o bicho continuava ali, circulando na rede de descanso.

No primeiro terceto, já enfraquecido, esse homem pega um pau na tentativa de matá-lo; é tamanho o esforço que chega a tocá-lo, então, surge a dúvida, a origem deste monstro parido de um ventre.

Este ventre é desvendado e aterroriza o homem a descobrir a feiúra da própria consciência. O ceticismo presente ao generalizar esta consciência comparando a obscuridade deste monstro raivoso com toda “a Consciência Humana” revela novamente a impossibilidade de fugir do próprio pensamento, onde, ao fugir do morcego, constrói-se outra parede. É seu destino traçado na inevitável necessidade de repouso de um ser finito. Esta ideia de aprisionamento e circularidade se confirma com a repetição do substantivo “quarto”, local onde toda a trama do eu lírico se passa e repete-se duas vezes, no primeiro e no último verso.

O morcego, apesar de não ser citado em todas as estrofes no discurso direto como nos versos dois “E este morcego!” e doze “A Consciência humana é este morcego!” ele é acusado como sujeito nos versos sete “E vejo-o ainda.” e dez “Chego a tocá-lo.” É a

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consciência negra e feroz presente em todo o poema, causando o desespero do homem que encontra, na morte, a transcendência desta dor que o acompanha, inevitavelmente, por toda a vida.

O poema é carregado de estímulos que nos levam o mais próximo da essência da experiência vivida pelo eu lírico e ele o faz com tal precisão que não se ocupa em diluir a emoção verdadeira em um sentimentalismo.

O quarto poema, Apóstrofe à carne, foi publicado após a morte do autor e incluído no livro Eu e outras poesias.

Poema IV

Apóstrofe à carne

1. Quando eu pego nas carnes do meu rosto, 2. Pressinto o fim da orgânica batalha: 3. Olhos que o húmus necrófago estraçalha, 4. Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto...

5. E o Homem - negro e heteróclito composto, 6. Onde a alva flama psíquica trabalha, 7. Desagrega-se e deixa na mortalha

8. O tacto, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto!

9. Carne, feixe de mônadas bastardas, 10. Conquanto em flâmeofogo efêmero ardas, 11. A dardejar relampejantes brilhos,

12. Dói-me ver, muito embora a alma te acenda, 13. Em tua podridão a herança horrenda, 14. Que eu tenho de deixar para os meus filhos!

O soneto “Apóstrofe à carne”, publicado postumamente à obra EU, é composto por rimas perfeitas nos finais dos versos 1, 4, 5 e 8 com os fonemas [rosto\posto\composto\gosto]; nos versos 2, 3, 6 e 7 [batalha\estraçalha\trabalha\mortalha]; nos versos 9 e 10 [bastarda\ardas]; versos 12 e 13 [acenda\horrenda] e nos versos 11 e 14, com os fonemas [brilhos\filhos].

Com cinco rimas, o poema decassílabo é constituído por rimas interpoladas (ABBA ABBA, CCD EED). Em todo o poema há assonância de “o”, com as paroxítonas bem demarcadas no ritmo. Nos versos 4, 7, 11, 12 e 14 há aliteração de “d”; no início de alguns

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versos, nos dois quartetos e no primeiro terceto, há aliteração da fricativa /f/ e a presença de fonemas nasais /m/n/ em todo o poema. Todas elas jogando na sonoridade efeitos musicais.

Na primeira estrofe a sequência de imagens trata o corpo como objeto de decomposição. Um terror que se concretiza quando o eu lírico age: “...pego nas carnes de meu

rosto” prenunciando o destino da matéria. A enunciação verbal no presente “eu pego”, no

primeiro verso, sugere um eu lírico já em estado de decomposição, confundindo-se com a própria carne, como aparece no uso dos verbos “estraçalha” no presente do indicativo e

“decompondo-se” gerúndio.

Na segunda estrofe a primeira pessoa do singular “eu pego” passa a ser terceira pessoa “o Homem”. A dimensão individual passa a ser unidade coletiva. A antítese pela qual é formado o homem é concretizada no poema pelo termo “heteróclito”. A construção mais improvável através da sua parte obscura com sua parte alva e a desconstrução feita pela “mortalha”, usada no verso sete como uma metáfora para o corpo que deixa todos os sentidos (o tato, a vista, o ouvido, o olfato e o gosto). Percebe-se, no final do segundo quarteto, a sequência assindética que traz para esta estrofe o homem não mais anatômico como na primeira estrofe (carnes, rosto, olhos, diafragma), mas abstrata a capacidade sensorial desses órgãos.

Nos tercetos a apóstrofe à carne é realizada, como diz o título. Faz chamamento no nono verso, com lampejos de sensualidade no décimo verso com a aliteração das fricativas /f/ e a simbologia dos fonemas “flâmeo fogo efêmero”. A antítese do poema, entre carne/podridão, se completa na última estrofe em que esta carne exaltada e voluptuosa aparece apodrecida e nos é dada como herança um fado para o homem que tanto deseja o prazer e a conservação da carne e não da alma. Tem ela deteriorada pelos vermes.

Em uma experiência única, o homem é mostrado na poesia em forma de podridão. O corpo, a carne de forma escandalosa torna-se apenas olhos que o húmus estraçalha,

diafragmas decompondo-se, feixe de mônadas bastardas, podridão, herança horrenda; a

descoberta dolorosa desta batalha que já tem os vermes como vencedores. De forma complexa, o poeta discorre sobre o mistério de nossa existência, descuidando de mistificar o sofrimento, exibindo o eu lírico não como um sujeito, mas partes deste sujeito em pedaços de carne fadados à decomposição, e, mesmo assim, não ser vulgar.

O poema a seguir foi incluído no livro Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do

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Poema V

Versos íntimos

1. Vês! Ninguém assistiu ao formidável 2. Enterro de tua última quimera. 3. Somente a Ingratidão - esta pantera – 4. Foi tua companheira inseparável!

5. Acostuma-te à lama que te espera! 6. O Homem, que, nesta terra miserável, 7. Mora, entre feras, sente inevitável 8. Necessidade de também ser fera.

9. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! 10. O beijo, amigo, é a véspera do escarro, 11. A mão que afaga é a mesma que apedreja.

12. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, 13. Apedreja essa mão vil que te afaga, 14. Escarra nessa boca que te beija!

Pau d’Arco- 1901.

O poema de cinco rimas, mantém o deca camoniano, mas inverte as abraçadas no segundo quarteto (ABBA BAAB); nos tercetos segue o esquema CCD e EED.

As rimas perfeitas nos finais dos versos 1,4,6 e 7 com os fonemas [formidável\inseparável\miserável\inevitável]; nos versos 2,3,5 e 8 com os fonemas [quimera\pantera\espera\fera]; nos versos 9 e 10 [cigarro\escarro]; versos 12 e 13 [chaga\afaga] e nos versos 11 e 14 com os fonemas [apedreja\beija]. A assonância em todo o poema de fonemas nasais /m/n/ no início de alguns versos de /s/ e aliteração dos fonemas /a/ e /e/ dando sonoridade ao poema bem como as letras maiúsculas em substantivos comuns “Ingratidão, Homem” palavras chaves no poema.

O poema começa iniciando uma conversa “vês?!” em uma abordagem na segunda pessoa. Esta ação discursiva não deixa claro de quem é o enterro citado no segundo verso. Este alguém pode ser ele mesmo, o eu lírico, de modo a constituir uma locução. Este locutor revoltado, ao ver o cemitério vazio, reflete a natureza da ingratidão comparada no terceiro verso com uma pantera.

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Com os verbos conjugados no modo imperativo, o pessimismo torna-se fatal. Julga que o homem se transforma por causa do meio. “O Homem, que nesta terra miserável

mora entre feras, sente inevitável necessidade de também ser fera.” E ainda completa: “Acostuma-te à lama que te espera!” para que o homem se acostume a essa fatalidade e não

crie perspectivas quanto a sua condição, pois nada se espera do outro que não seja a ingratidão, a escravidão e a mentira. Sob este pensamento negativo nota-se uma importante relação poética entre as palavras “pantera”, no verso três e “fera”, no verso oito. Com as palavras “Ingratidão” e “Homem”, nos versos três e seis, grafadas em letra maiúscula, metáforas exprimem a ideia de ferocidade social, causadas pelo próprio sistema que transforma o homem em um perigo para ele mesmo e a seu semelhante.

Em tom de ironia e sadismo, propõe-se, na terceira estrofe, um brinde a realidade, um brinde, como de costume, feito com uma bebida. Aqui é feita com um cigarro. Nos versos seguintes, o apedrejamento e o escarro podem ser interpretados como a ingratidão de alguém que recebe um carinho e devolve com agressão. No último terceto entende-se que a pessoa que recebeu esta agressão deve ser ingrata, também, e devolver com o mesmo tapa. Uma filosofia cínica e vingativa, oposta ao perdão das ofensas. Trata-se de um poema de profundo desgosto e incredulidade à natureza humana: “A poesia de Augusto dos Anjos é fruto da descoberta dolorosa do mundo real, do encontro com uma realidade que a literatura, a filosofia e a religião já não podiam ocultar.” (GULLAR, FERREIRA, 2011, p.30).

Nos poemas analisados, assim como em toda a obra de Augusto dos Anjos, podemos observar algumas características estilísticas que se repetem: versos carregados de contrariedades, imagens que se iniciam de forma positiva com altivez e que logo são desconstruídas pelo negativismo e pela morte da matéria; a rigorosidade de suas rimas; verso conciso; construção sintética objetiva e ritmo tenso; a tendência ao prosaico e a termos filosofantes; palavras símbolos marcadas pela letra maiúscula, recurso da aliteração, valores fonéticos, melódicos e perfeição da forma.

Todas as características indicam preocupação comum à expressão poética do Parnasianismo e do Simbolismo, principalmente a frequência da forma soneto como indicativa dessas influências. Inclusive Ferreira Gullar (2011,p.59) cita Orris Soares, em sua obra Elogio de Augusto dos Anjos, e informa que o poeta “não raro começava os sonetos pelo último terceto”do mesmo modo que procediam aos parnasianos e simbolistas, tem sua elaboração restringida para preencher a forma. “No entanto, ninguém obrigou Augusto dos

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Anjos a escrever, em tantos casos sonetos em lugar de poemas livres [...] o que indica o quanto estava condicionado por ela, à qual recorria quando desejava se exprimir”. (FERREIRA GULAR, 2011,p.60).

Porém, na simples leitura de seus versos, podemos observar que o determinante em seus poemas é o conteúdo e que raramente nos defrontamos com um poema que se possa considerar perfeito no ponto de vista do acabamento formal e mesmo a perfeição não aparece como preocupação do trabalho final, mas, sim, como reflexo de um estado sensível de formulação poética plena.

É de fácil percepção a diferença radical existente entre a visão de mundo de um ambiente decadente de doença entre o luto em que viveu Augusto dos Anjos, da visão de mundo dos parnasianos e simbolistas. Ele “elabora uma linguagem poética que assimila e supera aquelas influências”. (GULLAR, 2011, p.21).

2.2 A MODERNIDADE NA LÍRICA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Podemos identificar, na obra de Augusto dos Anjos, como elementos característicos de sua lírica, alguns sintomas da lírica moderna e contemporânea, principalmente da lírica intelectualizada, apresentada por Hugo Friedrich (1966) em

Problemas atuais e suas fontes, Estrutura da lírica moderna.

Friedrich distingue o complexo poético do século XX na polaridade expressa como lírica formalmente livre e lírica intelectualizada que foram iniciadas por Rimbaud e Mallarmé. A primeira, trata-se de uma lírica de forma livre e alógica e, a segunda, de uma lírica da intelectualidade e da severidade das formas.

Formuladas de forma pragmática, em 1929, diferentemente da lírica hodierna, eram contrastantes e não permitiam qualquer aproximação. A primeira, formulada por Valéry, deveria ser a “festa do intelecto” (p.143). A outra, nascida como protesto pelo autor surrealista A. Breton, se afirmava como “a derrocada do intelecto” (p.143).

Atualmente essa é a polaridade geral de toda a poesia moderna; a tensão existente em quase todo lírico entre forças cerebrais e forças arcaicas que, juntas,formam uma unidade estrutural acima das frações a que elas mesmas pertencem.

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Toda a obra poética de Augusto dos Anjos publicada se insere entre os anos de 1900 e 1914. Encontro, ao longo desta produção, elementos que o prendem ao estilo literário de sua época como, por exemplo, a formalidade em sua poesia e, ao mesmo tempo, elementos inovadores que o põem adiante de seu tempo.

Ao lançar o seu livro de poesias intitulado EU, a comunicação esperada entre leitor e autor não aconteceu como de costume em outras obras literárias da época. Em 1912, enquanto alguns críticos literários falavam de Augusto como artista incomparável, Nazareth Meneses publicava no dia 14 de junho, na Gazeta de Notícias, uma das muitas críticas que circulavam na época: “Nota-se em todas as páginas deste volume a preocupação constante da tecnologia. Os versos do Sr. Augusto dos Anjos perdem, por isso, grande parte do encanto que a forma lhes empresta” (NAZARETH, 1978, apud MAGALHÃES, p.256), e concluía: “Ora, isso, possivelmente, é um amontoado de palavras difíceis e nada mais” (MAGALHÃES, 1978, p.256).

Em 13 de junho, Euricles de Matos, em A Tribuna, já adivinhara uma das muitas interpretações a que estava exposta o EU:

Estou a ver já certo dos nossos faiseurs da crítica, condenando o poeta, simplesmente porque este em vez de babar-se ordinariamente por todo seu livro num pieguismo irritante de amor escreveu sabiamente, entre outros, o ‘Deus Verme’ e ‘Mater originalis. (MAGALHÃES, 1978, p. 256).

Lendo as críticas da época, é possível ter a dimensão de como a leitura do Eu não foi de fácil compreensão para os leitores e até mesmo para alguns críticos literários que viam a beleza dos versos somente na forma e não no conteúdo, ou nos temas. Aliás, na lírica moderna, a única ponte entre leitor e texto acontece no efeito sugestivo da poesia, ou seja, “uma união com o leitor não mais se realiza. A sugestão não oferece a um possível leitor nada mais que uma possibilidade de experimentar junto uma vibração qualquer”. (FRIEDRICH; 1978, p.122).

Mallarmé levou essa questão a uma forma mais aguçada. Ele escreve para não ser compreendido. Devemos aqui entender, em sua lírica, o conceito usual de compreensão como infinita possibilidade de sugestão, excitando o leitor a continuar o ato que está inconcluido na poesia.

Não excluo o fato de que o leitor reconheça, nos versos do EU, os temas fundamentais que são, à primeira vista, decifráveis e que possa segui-los até que se percam no

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que não pode ser interpretável; mas, o que fica claro, é que esta cognição não acontece mais de maneira forçada ou mesmo previsível.

Muitas críticas taxaram a poesia de Augusto como hermética, não na forma italiana da poésie purê, mas na qualidade do que é difícil de entender e interpretar e que se tornou, na lírica moderna, um traço essencial de sua lírica, também aceita pela crítica.

De fato, se ignorar o cotidiano em sua indagação poética e sem uma leitura atenta veremos na obra do EU uma complicada retórica:

Um verbalismo de um adolescente doentio que leu demais Schopenhauer, Spencer e Haeckel e perde-se precisamente o que define a poesia de Augusto como a mais patética indagação já feita na poesia brasileira acerca da existência do mundo e do sentido da vida humana. (GULLAR, 2011, p.47).

Este aspecto negativo que a crítica impõe à terminologia científica e filosófica deve ser vista mais detidamente, já que é fator constitutivo em sua poesia e instrumento de suas inquietações e perplexidades que se explicam no contexto de sua linguagem poética como a realidade terrível que a Ciência põe diante dos olhos do poeta:

“Pressinto o fim da orgânica batalha:” “Olhos que o húmus necrófago estraçalha” “Diafragmas, decompondo-se, ao sol posto...” “Carne, feixe de mônadas bastardas,

Conquanto em flâmeo fogo efêmero ardas” “Na bruta ardência orgânica da sede”.

Também a terminologia filosófica deixa de ser um elemento meramente negativo da poesia para tornar-se expressão profunda de sua problemática, como se pode observar nos poemas analisados:

A pirâmide real do meu orgulho Hoje que apenas sou matéria e entulho Tenho consciência de que nada sou. (Vozes de um túmulo)

Transpõe a vida do seu corpo inerme,

E quando esse homem se transforma em verme É essa mágoa que o acompanha ainda!

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(Eterna Mágoa)

A Consciência humana é este morcego! Por mais que a gente faça, à noite, ele entra Imperceptivelmente em nosso quarto! (O morcego)

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro A mão que afaga é a mesma que apedreja. (Versos íntimos)

Essas estrofes não fazem parte apenas de uma alegoria grotesca e negativa. Nessas estrofes estão as mais profundas questões da existência humana. Não importa aqui concordar ou não com a visão filosófica do autor, e sim, “verificar que nele esses problemas não são meros pretextos literários para cometer sonetos e poemas - são problemas vitais - e que a necessidade de resolvê-los conduziu-o a viver uma experiência poética de densidade rara em nossa literatura”. (GULLAR, 2011, p. 47).

A sugestão em sua poesia parte, geralmente, em face da realidade, embora não mantém uma linearidade. Não se elaboram abstratamente. Os elementos objetivos e subjetivos se misturam no desenvolvimento do processo poético e na transformação dos conceitos, como os poemas, que, em sua maioria, começam calmos, para depois de uma situação concreta, desenvolver suas tensões e indagações. O poema “Eterna mágoa” inicia assim:

O homem por sobre quem caiu a praga Da tristeza do mundo, o homem que é triste.

“O morcego” assim:

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.

Às vezes é a ação concreta que serve como ponto de partida como em “Vozes de um túmulo”:

Morri! E a Terra- a mãe comum- o brilho. E também em “Apóstrofe a carne”: Quando eu pego nas carnes do meu rosto.

Como Manuel Bandeira já tinha observado, a maioria dos poemas iniciam calmos e depois “endoidam”. O que acontece depois é um desenvolvimento dialético marcado por sucessivos retornos ao ponto de partida, à realidade objetiva. (Gullar, 2011, p.61) E a cada

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retorno ao ponto de partida o conceito já não é mais o mesmo ou é intensificado como o efeito labirinto produzido em Eterna mágoa.

A relação que a lírica mantém com a realidade objetiva, no século XX, apresenta múltiplos aspectos, porém, o resultado é sempre o mesmo; a desvalorização do mundo real, e isso se dá através de fenômenos isolados, que são colocados em lugar de um todo, quando há referência de uma idealidade qualquer. Assim aparecem designações de total indeterminação ou símbolos de puro mistério. Para Friedrich (1978, p.196):

A objetividade se busca, de preferência, no banal e no inferior, pois seu peso atua aqui de forma ainda mais oprimente, tornando o homem ainda mais isolado [...] O tom estático suave, o ecoar da transcendência indeterminada, o lusco-fusco do significado e tudo agora no condensamento de imagens da fealdade que é algo completamente diverso de um oposto ao belo: nestas características se reconhece o lírico moderno.

Esta objetividade se apresenta em Augusto dos Anjos quando, rompendo com as conveniências verbais e sociais da poesia, ele trás como poético toda a putrefação dos cemitérios e as vulgaridades possíveis, complementando com o uso de um vocabulário científico que juntos “formam uma conjunção de fatores que o obrigam a romper com a linguagem (com a visão) poética em voga”. (GULLAR, 2011)

Nos poemas analisados, encontramos expressões que formam o conhecido poetar obscuro de Augusto dos Anjos e que pode ser observado em quase toda extensão de sua obra:

Morte/ cemitério/ assombração/ entulho/ praga/ tristeza/ pesar/ chaga/ verme/ inerme/ morcego/ feio/ parto/ húmus/ necrófago/ diafragma/ podridão/ mágoa/ horrenda/ quimera/ lama/ miserável/ escarro/ cuspe.

Essa quantidade de palavras aqui representada e de uso decorrente em sua obra, até então, permitidas só nos gêneros literários inferiores conforme definições simplistas e errôneas seriam facilmente indicadas como sinônimos de algo feio ou obscuro; porém, para que possamos compreender essa lírica, não podemos tratar mais estes conceitos como o oposto do belo, mas de um valor e uma experiência em si, em cada palavra.

A morte, em sua obra, além de ser vista como um fato concreto passa a ter caráter comercial e habitual; e o habitual passa a ter o caráter fúnebre da morte. Tomemos, a exemplo, o segundo terceto do poema Apóstrofe à carne:

Dói-me ver, muito embora a alma te acenda, Em tua podridão a herança horrenda,

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Que eu tenho de deixar para os meus filhos!

Além da morte ser apresentada como condição intransponível do homem, observo, nos versos acima, os carinhos maternos ou paternos que deixam definitivamente o caráter abstrato e de sentimentalismo e se objetivam em um fato real, que é a herança da morte.

Assim como em Baudelaire, a beleza em sua poesia não suporta mais o seu conceito antigo e dá lugar à beleza de um encanto agressivo. Em Augusto dos Anjos, diria, ainda repugnante:

Mais veemente do que até então, a anormalidade anuncia-se como premissa do poetar moderno, e também como uma de suas razões de ser: irritação contra o banal e o tradicional que, aos olhos de Baudelaire, está contido também na beleza do estilo antigo. A nova “beleza” que pode coincidir com o feio, adquire sua inquietude mediante a absorção do banal em simultânea deformação em bizarro, e mediante a “união do espantoso com o doido” [...]. (FRIEDRICH, 1978, p. 44, GRIFOS DO AUTOR).

Na poesia de Augusto dos Anjos os sentimentos humanos e tudo que pode ser considerado abstrato são exprimidos através dos atos e coisas banais em que eles se objetivam, assim como a putrefação pode ser caracterizada como a expressão de amor, em

Apóstrofe a carne, e nos versos a seguir:

Amo meu Pai na atômica desordem Entre bocas necrófagas que o mordem E a terra infecta que lhe cobre os rins!

Para Ferreira Gullar (2011), Augusto faz de todos os objetos repugnantes - a putrefação da carne, a morte, os vermes - e tudo que há de horroroso nos versos, a expressão de um sentimento sublime. Ele não nega estes sentimentos em nome da delicadeza poética como muitos poetas o faziam na época, e completa: “É assim, me parece, que se deve entender a temática macabra de Augusto dos Anjos: como uma descida ao inferno a uma dimensão terrível da existência humana que o poeta, sem poder ignorar, tenta redimir pela poesia.” (p.50).

Em uma época onde o ambiente literário brasileiro imperava a futilidade dos temas, o EU imperava os cheiros, ou diria ainda, pelo fedor, fedor de podre, de úlceras, de

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escarros, de lama, de putrefação, de vômito. E foi ele mesmo que fez a seguinte afirmação: “Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques” (ANJOS, 2011, apud GULLAR, p.22).

É certo que não desciam a essa futilidade poetas como Olavo Bilac, Alberto de Oliveira ou Vicente de Carvalho, mas, como observou Francisco de Assis Barbosa, o EU aparece num período em que “predominava” a literatura chamada “sorriso da sociedade”. (GULLAR, 2011, p. 23, grifos do autor)

É o feio em sua poesia que provoca o sentimento natural da beleza e que, como na lírica moderna, provoca um choque entre texto e leitor. Em todos os poemas analisados, o feio, ainda que moderado em tempo, espaço e afeto, se comparado a alguns poetas modernos, existe em toda sua sensibilidade. As cenas e ações desenvolvem-se em uma sucessão de fatos, principalmente, em O morcego. Há referências de tempo em Eterna mágoa e o eu lírico responde com ações precisas: morri, me assombra, afunda, pego... Neste complexo a morte contorna seu caráter de cotidianeidade, pois, apesar da aparência obscura refere-se sempre a uma figura conhecida e provoca excitações humanas.

E é esta a função da lírica moderna: impor a tarefa paradoxal de expressar e esconder um significado. A linguagem, como comunicação, deu espaço ao princípio estético dominante no hodierno poético, onde a obscuridade se mantém em um espaço que mais afasta e/ou sugere do que aproxima.

Sem dúvida, a lírica moderna é produto de uma nova época e de uma nova situação social do homem. E o traço mais marcante desta unidade estilística no plano ideológico é a desmistificação ou despersonalização da realidade e consequentemente do homem, como produto de um desenvolvimento capitalista e científico da sociedade.

Na obra Eu, com exceção dos poemas dedicados ao filho nascido morto e ao pai, Augusto dos Anjos não data suas produções, não sendo possível buscar compreender sua lírica através de dados bibliográficos. Neste sentido, a palavra lírica já não nasce da unidade de poesia e pessoa empírica e de maneira alguma pode ser entendida como expressão bibliográfica, pois já não se move dentro do círculo do que é familiar.

E é Baudelaire quem inicia a despersonalização da lírica moderna. O sentimentalismo pessoal dá lugar à capacidade de sentir da fantasia uma elaboração guiada pelo intelecto, de forma a abranger tarefas mais difíceis e que de forma mais intensa é capaz de chegar à neutralização.

Referências

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