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Pequenas centrais hidrelétricas, comunidades indígenas e espoliação : o Projeto Juruena e os Enawene Nawe no Mato Grosso

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Maryanne Rizzo Correa da Costa Galvão

P

equenas centrais hidrelétricas, comunidades indígenas e espoliação:

o Projeto Juruena e os Enawene Nawe no Mato Grosso.

Campinas

2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de tese de Doutorado, composta

pelos professores Doutores a seguir descritos em sessão pública realizada em

31/03/2016 considerou a candidata Maryanne Rizzo Correa da Costa Galvão

aprovada.

Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira da Costa

Prof. (a) Doutora Arlete Moysés Rodrigues

Prof. Doutor Ricardo Antunes

Prof. Doutor Gilton Mendes dos Santos

Prof.(a) Doutora Maria Orlanda Pinassi

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no

processo de vida acadêmica do aluno

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Agradecimentos

Agradeço àqueles que de uma maneira ou de outra contribuíram para a realização desta pesquisa. Primeiramente, ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, aos fun-cionários incríveis que, desde 2011, têm feito nossa vida de estudante melhor: Maria Rita Gandara, Reginaldo Alves do Nascimento e Beatriz Tiemi Suyama. Com o carinho de vocês a burocracia ficou infinitamente melhor.

Ao professor Valeriano Costa pela compreensão de sempre, pela confiança depo-sitada e, principalmente, por ter aceitado ser meu orientador num momento delicado. Ao que-rido professor Ricardo Antunes, pelo estímulo intelectual e os valiosos ensinamentos, pelo incentivo e preocupação e especialmente pela amizade construída. Ao Professor Michel Lowy pela oportunidade e pela supervisão durante meu Doutorado Sanduiche, em Paris, em 2013-2014. Pela bolsa da CAPES (doutorado Sanduiche) que possibilitou meus estudos na França.

Agradeço ao professor José Manuel Marta (atualmente aposentado da economia da UFMT) por me receber em sua casa e estar sempre disposto a ajudar. A Afonso Portocar-rero pela ajuda no inicio da pesquisa. A Frederico Muller pela atenção e sempre prontidão em ajudar. A Diana Lima por ler meus manuscritos.

Agradeço aos colegas da turma de 2011 – tão queridos – e a todos aqueles com quem estabeleci um laço de carinho para além da UNICAMP: Vitor Sandes, Pedro Capra, Patrícia Lemos Rocha, Rodrigo Bulamah, Sara Freitas, Lidiane Maciel. Ao grupo de estudos do professor Ricardo Antunes, pelas amizades, por terem lido meu texto tão incompleto com imensa atenção e dedicação e pelas sugestões e críticas que me inspiraram a terminar a tese. As minhas amigas Sabrina Moura Dias e Marisol Goia por lerem e comentarem um dos ma-nuscritos da tese. E pelo incentivo de sempre!

Aos amigos que, mesmo longe, estão sempre por perto: Luisa Pitanga, Ana Luisa de Abreu, Franklin Hoyer, Isabel Siqueira, Laeticia Jalil, Raquel Giffoni, Suenya Santos, Thi-ago Menezes, Rainer Rubbert, Philippe Cocatre Zilgien, Renata Dock – que, aos trancos e barrancos, sempre com muito amor, me ouviram, me leram, me corrigiram, me receberam, me abraçaram e, principalmente, encheram o saco para acabar a tese!!! Ao Benjamin, pelo cari-nho e pela disciplina militar revolucionária.

À minha mãe, Jacyra, por confiar, me apoiar, e, mesmo assim, fazer promessas para nossa Senhora. Ao meu pai, irmão, e a Rosa. Ao meu primo Ricardo por estar sempre pronto a ajudar.

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Se a destruição da terra, da água e suas paisagens prosseguir, os Yakairiti serão im-placáveis, com o tempo, todos vão morrer: nós, você, você e todos vocês, Inoti. A diferença é que nós sabemos disso, mas vocês não.” (Kawairi - Cantador e grande chefe do clã Aweresese. Aldeia Halataik, 2008).

Contrapondo-se a esta ordem da reciprocidade simbólica em que a morte e a destrui-ção de bens alicerça a troca, está a ordem do valor e da acumuladestrui-ção da economia privada (Mauss, 1967).

Proliferation, too, is a key principle of capitalist expansion, particularly at capitalist frontiers where accumulation is not so much primitive, that is archaic, as savage(...)Frontiers are desregulated because they arise in the intersitial spaces made by collaborations among legitimate and ilegitimatte partners: armies and bandits, gangsters and corporations, builders and despoilers. They confuse the boundaries of law and theft, governance and violence, use and destruction. These confusions change the rules and thus enable extravagant new economies of profit - as well as loss. (Tsing, 2005)

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RESUMO

A partir de um conflito socioambiental ocorrido no noroeste do Mato Grosso, entre uma po-pulação Indígena Aruak, os Enawene-Nawe, e um consórcio de empresas construtoras de pe-quenas centrais hidrelétricas (PCHs) no Rio Juruena (o Projeto Juruena), esta tese levanta a questão da continuidade e da atualidade da forma histórica brutal de expropriação social ca-racterizada por Marx, na gênese do capitalismo, como o processo de acumulação primitiva. Esse processo, presente na atual fase de expansão neoliberal do capital, percebe as populações não totalmente integradas ao mercado como barreiras a serem transpostas. Além disso, ao direcionar o olhar para as empresas consorciadas e para sua relação íntima com o Estado, de-fendo a tese que de que a construção das Pequenas Centrais Hidrelétricas, nessa região, onde habitam inúmeras populações indígenas, especialmente os Enawene-Nawe, constituiria mais uma forma da expansão da economia de mercado, da sua lógica destrutiva, da dominação dos valores de troca, do dinheiro e da mercadoria onde há muito pouco predominavam, majorita-riamente, os valores de uso e as relações comunitárias. Com esse trabalho, pretendo lançar luz sobre esses processos espoliatórios legitimados através de um discurso de crescimento – e sobre as populações marginalizadas e invisibilizadas que tentam resistí-lo.

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ABSTRACT

Starting from a socio-environmental conflict that took place in northwestern Mato Grosso, between an indigenous Arawak population, Enawene Nawe and a consortium of small hy-droelectric power plant (PCHs) construction companies in Juruena River (the Juruena Project), this thesis raises the question of the continuity of the brutal historic form of social expropriation, characterized by Marx, in the genesis of capitalism, as the process known as primitive accumulation. This process, in this current phase of neoliberal expansion of capital, perceives the not fully integrated into the market populations as barriers to be overcome. Moreover, by covering the matter on the close relationship of the consortium partners with the State, I argue that the construction of the small hydroelectric power plants in this region, home to numerous indigenous peoples, especially the Enawene-Nawe, constitutes another form of expansion of the market economy, its destructive logic, the domination of exchange values, of money and goods in a place where, just before, predominated, the use values and community relations. With this work, I intend to cast light on these pillage processes – legitimized through a discourse of economic growth – and also on the marginalized and invisible people who attempt to resist it.

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Sumário

Lista de siglas ... 13

Introdução ... 15

Energia como commodity e meio ambiente ... 17

O ambiente empírico ... 24

Objetivo da pesquisa... 27

Pesquisa de campo - Delimitação temporal e espacial ... 29

Capítulo I – Os Enawene-Nawe ... 33

1.1: O mundo Enawene-Nawe ... 33

1.2: O conflito ... 54

Capítulo II - Os Enawene, o Projeto Juruena e atualidade do conceito de acumulação primitiva 2.1: A permanência da acumulação primitiva ... 63

2.2: Modos de Produção: pessoas e relações sociais versus as mercadorias ... 75

Capítulo III – As pequenas centrais hidrelétricas no Estado: o caso do Projeto Juruena ... 82

3.2: Investimentos nas PCHs: PAC, BNDES e Fundos de Pensão ... 92

3.3: O Grupo Juruena S.A. como um caso exemplar da aliança entre o capital e o Estado ... 99

Capítulo IV – Projeto Juruena e algumas consequências socioambientais da lógica destrutiva do capital: a degradação da vida humana, da não humana e do trabalho103 4.1: Transformações socais e ambientais (a natureza orgânica) ... 105

Considerações finais ... 115

Bibliografia ... 119

Apêndice...136

A degradação do trabalho...136

Anexos ... 132

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2 – Certidões Simplificadas – Junta Comercial de Cuiabá ... 145

3 – Ofício da CMAM/CGPIMA ... 147

4 – Cartas dos Enawene ao MPF-MT... 148

5 – Imagens da ocupação da PCH Telegráfica pelos Enawene em 2008 ... 150

6 – Licença Ambiental da PCH Telegráfica ... 152

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Lista de siglas

AAI – Avaliação Ambiental Integrada

ABCP – Associação Brasileira de Ciência Política AGER – Agência de Regulação dos Serviços Públicos AGU – Advocacia Geral da União

AHE – Aproveitamento hidrelétrico AIA – Avaliação de Impacto Ambiental

ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica

BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social CCMA - Conselho Consultivo de Meio Ambiente da Eletrobrás Cemat – Centrais Elétricas Matogrossenses

CGPIMA – Coordenação Geral de Patrimônio Indígena e Meio Ambiente CIMI – Conselho Indigenista Missionário

CNI – Confederação Nacional das Indústrias

CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente CONSEMA – Conselho Estadual do Meio Ambiente CPT – Comissão Pastoral da Terra

DIS – Diagnóstico Ambiental Simplificado

ELETROBRÁS – Centrais Elétricas Brasileiras S/A

EIA/RIMA – Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental EPE – Empresa de Pesquisa Energética do Ministério de Minas e Energia FEMA – Fundação Estadual do Meio Ambiente

FUNAI – Fundação Nacional do Índio GT – Grupo de Trabalho

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICMS – Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional KW – Kilowatts

LI – Licença de Instalação LO – Licença de Operação LP – Licença Prévia

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MIA – Missão Jesuítica Anchieta MMA – Ministério do Meio Ambiente MP – Ministério Público

MT – Mato Grosso MW – Megawatt

OPAN – Operação Amazônia Nativa

OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

PCH – Pequena Central Hidrelétrica

PNMA – Política Nacional de Meio Ambiente

PROINFA – Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica RAS – Relatório Ambiental Simplificado

SEMA – Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso

SINDUSCON – Sindicato das Indústrias de Construção do Estado de Mato Grosso STF – Supremo Tribunal Federal

TCU – Tribunal de Contas da União TI – Terra Indígena

TR – Termo de Referência

TRF-1 – Tribunal Regional Federal da 1ª Região UFMT – Universidade Federal do Mato Grosso UHE – Usina Hidrelétrica

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Introdução

O estado de Mato Grosso tem como principais atividades econômicas a agricultu-ra, a pecuária e a mineração, oferecendo, além da soja, milho, algodão, carne, madeira etc. como produtos primários integradores do sistema agroexportador hegemônico em toda Amé-rica Latina.

Os grupos dirigentes, assim como grandes proprietários do estado de Mato Gros-so, têm privilegiado um modelo de desenvolvimento baseado, em grande parte, na produção de commodities para exportação1, notadamente a soja, grande responsável pela expansão da fronteira agrícola no país. Algumas das consequências da adoção desse tipo de modelo de desenvolvimento são: concentração fundiária, contaminação por agrotóxicos, desmatamento e os inúmeros conflitos socioambientais2.

Em pesquisa anterior (Galvão, 2008), a soja foi objeto de minha atenção por ser uma das commodities de maior importância no cenário internacional, um produto fundamental do sistema agroexportador brasileiro que contribuía para o crescimento do PIB nacional. Na-quela pesquisa de mestrado trabalhei as representações sociais de natureza vigentes entre al-guns produtores de soja do estado do Mato Grosso (pequenos, médios e grandes produtores). Verifiquei que os desmatamentos no estado na época da pesquisa (2006-2007) estavam rela-cionados com a percepção social que os produtores rurais tinham da natureza, ou seja, do meio onde praticavam a agricultura. Para os produtores estudados, o cerrado (um dos biomas endêmicos do estado) era considerado “feio” e “sujo”, sendo a sua preservação algo desneces-sária. A agricultura era vista, por esse grupo, como um bem que “limpava o mato”, trazendo “cultura” ao “inculto”.

Além da expansão da fronteira agrícola, a partir da reestruturação do setor elétri-co brasileiro no final da década de 90, da introdução de políticas neoliberais no país (ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso) e através de incentivos do governo Federal, como o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC, já nos anos 2000), promoveu-se uma expansão do setor hidrelétrico, estimulando a formação, na região amazônica, de uma fronteira elétrica percebida como promissora pelas empresas. Dessa maneira, inúmeros rios do Mato Grosso (e

1

Em 2014 as exportações de soja superaram as de minério de ferro e, dessa maneira, lideraram as exportações da balança comercial (Zafalon, 2015).

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da região da Amazônia Legal como um todo), passaram a ser vistos como potenciais fontes de geração de energia.

A tradição no Brasil, da construção de grandes hidrelétricas, acarretou inúmeros impactos tanto às populações que habitam o entorno desses empreendimentos, sendo frequen-temente removidas dos locais habitados há gerações, quanto à paisagem e ao meio natural, devido ao grande barramento do que antes era uma queda d'água3.

De acordo com Vainer (2007), ao longo da década de 80, o processo de redemocrati-zação do Brasil foi acompanhado por uma intensificação dos movimentos sociais, assim como por uma maior pressão da sociedade civil contra essas grandes obras devastadoras. Conse-quentemente, ocorreu uma incorporação de questões sociais e ambientais pelo setor elétrico e pelo Estado.

Assim, por exemplo, em 1986 foi criado o Conselho Consultivo de Meio Ambiente da Eletrobrás (CCMA) e, além disso, a Resolução 01/86 do Conselho Nacional de Meio Ambi-ente (CONAMA) regulamentou a obrigatoriedade de realização de Estudos de Impacto Am-biental (EIA) e Relatórios de Impacto AmAm-biental (RIMA) para fins de licenciamento ambien-tal4. Entretanto, esse intenso processo de participação da sociedade civil (que ocorreu median-te muita pressão da mesma) é inmedian-terrompido pela chamada reestruturação do setor elétrico bra-sileiro. Segundo Vainer:

Ao privatizar sem critérios empresas de geração e distribuição de energia elétrica, ao favorecer de maneira atabalhoada a concessão de direitos de exploração de potenciais hidrelétricos a grupos privados, a reestruturação não apenas rompeu com o processo anterior, como colocou em risco muito do que havia sido conquistado em termos sociais e ambientais (Vainer, 2007:121).

Desse modo, a partir da reestruturação do setor elétrico brasileiro, a produção, a transmissão e a distribuição de energia elétrica passam a ser uma indústria e a energia uma

commodity, ou seja, uma mercadoria valorizada internacionalmente cujo preço é determinado

3

Ver o estudo de Sigaud e Pinguelli, 1988.

4

O licenciamento ambiental é um instrumento obrigatório usado no Brasil para a gestão da Política Nacional de Meio Ambiente. É através desse instrumento que a administração pública deveria exercer o controle sobre as atividades humanas que interferem no meio ambiente. De acordo com o IBAMA, o licenciamento ambiental tem por princípio “a conciliação do desenvolvimento econômico com o uso dos recursos naturais, de modo a assegurar a sustentabilidade dos ecossistemas em suas variabilidades físicas bióticas, socioculturais e econômicas”. Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/perguntas-frequentes/licenciamento-ambiental>. Acessado em: 03/03/2016.

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pela procura e oferta no mercado mundial, deixando de lado todo um debate ambiental que vinha se estabelecendo há vinte anos.

Energia como commodity e meio ambiente

Tratando-se de uma commodity, a produção de energia passa a ser o fim almejado pelo capital.Nesse contexto os rios da região Amazônica tornam-se lugares de interesse para projetos de geração de energia. Entretanto, a região Amazônica com um todo, assim como o Mato Grosso, são regiões habitadas por povos e comunidades tradicionais (tais como ribeiri-nhos e indígenas) – geralmente considerados pelas empresas/consórcios como entraves aos projetos. Um desses povos, conforme mostrarei, são os indígenas Enawene-Nawe, habitantes do noroeste do Mato Grosso, grupo que teve seus modos de vida alterados devido a constru-ção de um conjunto de pequenas centrais hidrelétricas (Projeto Juruena) no Rio Juruena, rio de grande importância para esse povo.

Conforme o Censo IBGE 20105, divulgado pelo Instituto Socioambiental, nos es-tados da Amazônia Legal (Mato Grosso, Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins) mais o estado do Maranhão, a população indígena é de 433.363 pessoas. No Ma-to Grosso, estado onde vivem atualmente 42 povos indígenas de famílias diferentes, essa po-pulação cresceu 48% em uma década (de 2000 a 2010), passando a contabilizar 43.226 pesso-as (Araújo, 2015).

Nota - se que os povos indígenas encontram-se no centro do debate acerca dos modelos de economia e de desenvolvimento que se almeja construir, pois suas terras represen-tam a última (barreira) fronteira de expansão do capitalismo neoliberal extrativista, uma vez que dentro de suas reservas encontram-se florestas preservadas e recursos naturais cobiçados.

Em muitos empreendimentos de grande porte, conforme destaca Bermann (2007), as empresas do setor elétrico brasileiro relacionam-se com as populações atingidas através da estratégia do “fato consumado”, ou seja, apresentando a alternativa hidrelétrica como uma fonte de energia limpa, sustentável, barata e em nome do interesse público, do desenvolvi-mento e do progresso do país. Contudo, ressalta o autor, as populações ribeirinhas e os demais povos afetados têm seus modos de vida e suas bases materiais e culturais de sua existência alterados por essa “fonte de progresso”. Na maioria das vezes, essas populações são forçada-mente deslocadas do lugar onde passaram a maior parte de sua vida, recebendo (quando

5

Dados disponíveis em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/populacao-indigena-no-brasil>. Acessado em: 04/01/2016.

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bem) compensações financeiras irrisórias e são reassentadas (quando isso ocorre) em situa-ções em que não existe a garantia da manutenção das condisitua-ções de vida anteriores.

Nas áreas das barragens, além disso, podem ocorrer muitos problemas de saúde pública, como o aumento de doenças endêmicas (como a malária), a diminuição da qualidade da água, o comprometimento da alimentação das comunidades que viviam da pesca, a inun-dação de áreas de terras cultiváveis, prejudicando a agricultura e acarretando a perda de bio-diversidade (Bermann, 2007).

O estabelecimento do licenciamento ambiental foi um dos principais instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente6 para a “instalação de atividades efetiva ou potenci-almente degradadoras dos recursos ambientais”. Segundo Zhouri (2005), ainda que não satis-fatória, a instituição do licenciamento

representou um passo histórico significativo e de extrema necessidade no que diz respeito à possibilidade de prevenção e de reparação dos impactos sociais e ambientais decorrentes do chamado desenvolvimento (Zhouri et al., 2005:90).

Além disso, a Política Nacional do Meio Ambiente criou o CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), órgão consultivo e deliberativo do Sistema Nacional do Meio Ambiente, que tem entre suas atribuições a de estabelecer critérios e normas para o licenciamento ambiental, sendo supervisionado pelo IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Dentre as normas e os procedimentos atribuídos ao CONAMA, que especificamente nos interessam nesta tese, estão as Diretrizes Gerais para Avaliação de Impacto Ambiental7, utilizadas durante o processo de licenciamento ambiental. De acordo com a Resolução CONAMA nº 1/1986, impacto ambiental,

é qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população; II - as atividades sociais e econômicas; III - a biota; IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; V - a qualidade dos recursos ambientais (CONAMA, 1986)8.

6

A Política Nacional do Meio Ambiente foi criada por meio da lei Nº 6.938, de 31 de agosto de 1981.

7

Resolução CONAMA nº 001, de 23 de janeiro de 1986.

8

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Dessa maneira, aquelas atividades humanas modificadoras do meio ambiente – dentre as quais enfatizo as “usinas de geração de eletricidade, qualquer que seja a fonte de energia primária, acima de 10MW” – deverão ser licenciadas mediante a elaboração de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), a ser submetido ao órgão estadual competente (Resolução 1/86).

Uma importante norma do CONAMA é a Resolução nº 279 de 2001, que estabe-leceu procedimento simplificado para o licenciamento ambiental de empreendimentos com impacto ambiental de pequeno porte, especialmente aqueles “necessários ao incremento da oferta de energia elétrica no País, nos termos do Art. 8º, § 3º, da Medida Provisória nº 2.152-2, de 1º de junho de 2001”9. Existe, entretanto, uma imensa dificuldade de se determinar o que seria “impacto ambiental de pequeno porte”, o que é evidenciado no próprio texto da re-solução.

O processo de licenciamento de empreendimentos e atividades possivelmente causadoras de dano socioambiental é de responsabilidade dos órgãos estaduais de meio ambi-ente10.

O órgão responsável pelo licenciamento ambiental no estado do Mato Grosso é a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA). Existe, além desse, o CONSEMA11 – Conselho Estadual do Meio Ambiente –, órgão colegiado “cuja função é assessorar, avaliar e propor ao governo do Estado de Mato Grosso diretrizes para a política estadual de meio ambiente, assim como deliberar normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à qualidade de vida”. Fazem parte deste órgão colegiado12 representantes de organizações não governamentais, organizações empresariais, Ministério Público, etc.

Com relação à legislação ambiental estadual, em 21 de novembro de 1995 foi sancionada pelo então governador de Mato Grosso Dante de Oliveira, a Lei Complementar n° 38, que instituiu e normatizou o Código Estadual do Meio Ambiente, assim como criou as

9

Em 2001, ocorreu uma crise nacional de energia elétrica no Brasil conhecida como “apagão”. A Medida Pro-visória nº 2.152-2, de 1º de junho de 2001, criou a Câmara de Gestão da Crise de Energia Elétrica, e estabeleceu diretrizes para programas de enfrentamento da crise de energia elétrica.

10

Resolução CONAMA nº 002, de 5 de março de 1985.

11

O CONSEMA foi instituído no artigo 3º, da Lei Complementar estadual nº 38 de 1995.

12

No biênio 2012-2014 as organizações não governamentais que compuseram o CONSEMA foram: Comissão Pastoral da Terra; Ecotrópica – Fundação de Apoio a Vida nos Trópicos; Instituto Ação Verde; Instituto Caracol; Instituto Centro de Vida; Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia; Instituto Floresta de Pesquisa e Desenvolvimento Sustentável; Instituto Socioambiental e Organização Razão Social – OROS. Disponível em: http://www.olhardireto.com.br/noticias/exibir.asp?noticia=novos-membros-do-consema-tomam-posse-nesta-quinta-feira&id=269438

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diretrizes para a Política Estadual do Meio Ambiente, incluindo políticas de licenciamento ambiental. O mesmo governador Dante de Oliveira, alguns anos mais tarde, sancionou a Lei Complementar nº 70, de 15 de setembro de 2000, que alterou as disposições do artigo 24 da Lei Complementar nº 38 - dessa maneira, dentre outras modificações, a partir dessa lei, as usinas de geração de eletricidade no estado que dependem de EIA/RIMA para seu licenciamento passam a ser somente aquelas “acima de 30 (trinta) MW”.

As pequenas centrais hidrelétricas que fazem parte do conjunto de pequenas cen-trais hidrelétricas tratadas nesta pesquisa - Projeto Juruena - têm potência de geração de energia igual ou inferior a 30 megawatts, portanto, de acordo com a resolução estadual men-cionada acima, o licenciamento de tais usinas foi realizado pela SEMA, que é o órgão estadu-al, através de um Diagnóstico Ambiental Simplificado (DAS), isto é, sem necessidade do EIA/RIMA, que é um estudo muito mais complexo e abrangente de todos os aspectos impac-tantes desse tipo de obra.

Ressalta-se que a legislação estadual facilita o licenciamento das pequenas cen-trais hidrelétricas ao simplificar os estudos exigidos. Além disso, no caso das PCHs do Proje-to Juruena, é fundamental enfatizar que o licenciamenProje-to dessas usinas foi realizado de maneira separada, ou seja, ao invés de ser considerado o efeito cumulativo e sinérgico de todo o empreendimento, de todas as potências somadas juntas, localizados num trecho de aproximadamente 100 km do Rio Juruena, que seria a maneira correta, cada usina foi licenciada isoladamente.

Nota-se, além disso, que as cinco PCHs do Projeto Juruena integram um curto tre-cho de um mesmo rio, de uma mesma bacia hidrográfica. Do ponto de vista territorial nunca poderiam ser analisadas isoladamente, o que só é possível porque a resolução do CONAMA de 1997 não considera o território. Os parâmetros criados para uma "legislação ambiental" que protegeria a natureza e a sociedade, na verdade, poderiam ser considerados parâmetros para o capital.

Em 2006, o Ministério Público Federal do Mato Grosso contestou judicialmente o licenciamento ambiental do Complexo Juruena e “as avaliações acerca dos impactos destes nas Terras Indígenas sob sua influência”. Segundo o procurador na época, Dr. Mauro Lúcio Avelar, já no início do processo, a dispensa de estudos ambientais contraria a resolução CONAMA 1/86. Além disso, conforme ressaltado no relatório do Ministério Publico Federal, a SEMA,

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(...) violou a Constituição Federal e as normas ambientais que disciplinam o licenciamento quando da aprovação dos processos de avaliação ambiental das obras do Complexo Juruena ao deixar de exigir o estudo de impacto ambiental por parte dos empreendedores; ao conceder as licenças ambientais sem a necessária análise do componente antropológico pela área técnica da FUNAI; ao investir-se de competência que não possui para licenciar obras e atividades capazes de causar impacto ambiental, econômico, social e cultural sobre povos e terras indígenas; e ao descumprir o preceito constitucional que exige autorização do Congresso Nacional para aproveitamentos de recursos hídricos em terras indígenas (FUNAI, 2011).

O conflito socioambiental ocorrido entre a população indígena Enawene-Nawe e o consórcio construtor das pequenas centrais hidrelétricas do Projeto Juruena, além disso, en-volveu diferentes instituições ao longo de todo processo de licenciamento e na no momento de funcionamento das usinas. Esses conflitos ocorreram entre algumas das instituições e ór-gãos públicos, como a SEMA (Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Estado de Mato Grosso), ou seja, o órgão licenciador propriamente dito; a FUNAI; o Ministério Publico Fede-ral, devido, entre outras coisas, às interpretações destes acerca da legislação ambiental e do que seriam as atribuições de cada um deles no licenciamento13.

Ainda em 2002, quando os empreendedores solicitaram o Termo de Referência para o licenciamento das usinas do projeto Juruena (9 PCHs e 2 UHEs) à Secretaria Estadual de Meio Ambiente do Mato Grosso, esta por sua vez, solicitou à FUNAI que se manifestasse a respeito. De acordo com um documento disponibilizado pelos empreendedores, a FUNAI se manifestou positivamente quanto à localização das usinas – fora das terras indígenas. Além disso, o órgão estadual licenciador – a SEMA – exigiu o pronunciamento do IBAMA esclare-cendo e confirmando a não existência de populações indígenas na influência direta das P-CHs14, o que assegurou a condução do processo de licenciamento pelo órgão estadual15.

O artigo 4º da Resolução CONAMA 237 de 199716 afirma que ao IBAMA com-pete “o licenciamento de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental

13

Acerca das animosidades e dos conflitos institucionais entre as diferentes instituições governamentais no caso específico do licenciamento das PCHs do Rio Juruena, ver: NEVES, 2007.

14

Ver o Oficio da CMAM/CGPIMA/FUNAI nos Anexos.

15

Se as PCHs estivessem localizadas dentro das terras indígenas, o licenciamento teria que ser conduzido pelo órgão federa responsável, ou seja, o IBAMA. Contudo, o oficio da FUNAI confirmou a não presença das PCH PCHs do Projeto Juruena em T.I. (o que direcionou o licenciamento para o órgão estadual, a SEMA), ainda que essa região e o rio sejam de uso tradicional e histórico das comunidades indígenas.

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de âmbito regional ou nacional” quando (entre outros critérios) tais atividades localizarem-se dentro de terras indígenas ou unidades de conservação de domínio da União.

Com relação as usinas do Projeto Juruena, tratadas desta pesquisa, estas localizam se fora das terras indígenas da região – foram, portanto, consideradas de impacto “indireto” sobre essas terras. O Rio Juruena, contudo, situa-se no território de uso histórico dessas co-munidades, e a presença de pequenas centrais hidrelétricas ao longo de sua extensão acaba por prejudicar diretamente a reprodução material e a existência desses povos.

Assim, a presença de numerosas terras indígenas na região do Complexo Juruena (11 terras indígenas) não foi um empecilho para que as licenças ambientais fossem concedi-das – o que nos permite pensar que, ao cumprir minimamente o que a legislação ambiental referente ao licenciamento ambiental solicita, o “empreendedor”, na maioria das vezes, tem sua licença concedida pelo órgão ambiental responsável sem maiores “entraves”.

É interessante refletir um pouco acerca da Resolução CONAMA 237, de 1997, concebida no auge do neoliberalismo, mencionada anteriormente, que concebe o licenciamen-to ambiental. Entre outras coisas, essa resolução considera que empreendimenlicenciamen-tos de grande impacto regional ou nacional, devem ser licenciados através de Estudos de Impacto Ambien-tal e Relatório de Impacto AmbienAmbien-tal (EIA/RIMA), pelo IBAMA. É muito interessante anali-sar que a própria definição de grande impacto regional ou nacional - por exemplo, quando o impacto atinge mais de um estado - pode ser questionável, uma vez considerada a extensão territorial dos estados brasileiros.

O território em sua totalidade é desconsiderado - a "natureza" não possui frontei-ras administrativas - entretanto, essa referida legislação (criada no auge do neoliberalismo da década de 90), estabelece fronteiras para analisar os limites administrativos estaduais - são esses limites administrativos estaduais onde o capital aliado do estado interfere diretamente para obter o licenciamento ambiental.

A figura abaixo (Neves, 2007: 91) ajuda a visualizar e a esclarecer algumas atri-buições de alguns órgãos governamentais em relação às PCHs do Projeto Juruena.

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Agente Público

Documentos e-xigidos

Contexto Político Área de impac-to considera-da Processo Aprovado ANEEL Inventário Hidre-létrico Simplifi-cado e Plano Bá-sico Suprimento de energia

Bacia do alto Juruena (da ponte da rodovia MT 235 a foz do rio Juína) 2002 SEMA/MT Diagnóstico Am-biental (simplifi-cado) e AAI

Questão ambiental Bacia do alto Juruena (das nascentes a foz

do rio Juína) 2002 e 2007 FUNAI Estudo do Compo-nente Indígena e Complemento do Componente Indíge-na Proteção de minori-a/comunidades indíge-nas Bacia do alto e mé-dio Juruena 2003 e 2007

Figura1 - Atribuições dos órgãos Estaduais no Projeto Juruena Fonte: Neves, 2007.

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Figura 2 - Terras indígenas e unidades de conservação na região da implantação dos empreendimentos no Alto Rio Juruena.

Fonte: Parecer Técnico FUNAI, 2008.

O ambiente empírico

O presente caso de estudo trata das cinco Pequenas Centrais Hidrelétricas17 do Projeto Juruena. As PCHs, são empreendimentos hidrelétricos com potência superior a 1.000 kW e igual ou inferior a 30.000 kW18 e que recentemente compõem as políticas de ampliação de fontes de energia possíveis de utilização no país. Para que essa ampliação fosse efetivada e mais empresários se interessassem pelo setor, algumas alterações institucionais foram

17

De acordo com a ANEEL, são consideradas PCHs aqueles empreendimentos hidrelétricos com potência superior a 1.000 kW e igual ou inferior a 30.000 Kw e com uma área total de reservatório igual ou inferior a 3,0 km².

18

Foi aprovado na Câmara dos Deputados (aguarda retorno do Senado) o projeto de lei 4594/12 que, entre outras providências, autoriza o aproveitamento de potenciais hidrelétricos de até 3 mil kW sem necessidade de concessão, permissão ou autorização. Além disso, o projeto visa ampliar o limite do aproveitamento de potencial hidráulico que ainda pode ser considerado PCH, de 30 mil kW para 50 mil kW. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias /noticias/ECONOMIA/459293-CAMARA-APROVA-INCENTIVO-PARA-PEQUENAS-CENTRAIS-HIDRELETRICAS.html>. Acessado em: 11/01/2015.

(25)

das a fim de trazer incentivos, tais como a dispensa de licitação para obtenção de licença am-biental, a desoneração de taxas e impostos e a possibilidade de livre comercialização da ener-gia, além de facilidades nas condições de financiamento pelas agencias de desenvolvimento (como o BNDES, por exemplo).

Abaixo, pode-se observar a imagem de uma das PCHs19 que integram o Projeto Juruena:

Figura 3 - PCH Telegráfica Fonte: site www.juruenasa.com.br

Apesar de terem se difundido como uma fonte de energia “limpa” e “sustentável”, como uma alternativa às fontes de energia causadores de danos, tais como as grandes hidrelé-tricas e as termoeléhidrelé-tricas, as PCHs têm causado diversas consequências socioambientais nas regiões onde são instaladas, dando origem, por exemplo, a inúmeros conflitos envolvendo populações indígenas por elas afetadas, os consórcios construtores e o Estado.

19

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Dentre esses inúmeros casos de conflitos socioambientais, um que nos chamou a atenção20, e que trataremos adiante, foi o que envolveu, ao longo dos anos 2000, o povo indí-gena Enawene-Nawe, habitantes do noroeste do estado do Mato Grosso, no vale do rio Jurue-na, na Amazônia Meridional. Esse povo, durante muitos anos resistiu às PCHs e a um acordo de compensação com as empresas, teve seus modos de vida profundamente alterados e a pró-pria continuidade de suas práticas rituais e simbólicas ameaçadas.

A construção de um complexo de usinas no Rio Juruena – o Complexo Juruena –, desde 2002, acarretou alterações no modo de vida dessa população, na medida em que, para os índios21, por exemplo, diminuiu-se drasticamente a quantidade de peixes no rio. Esse povo não mais conseguiu obter peixes no rio tanto para sua alimentação quanto para a realização de seus rituais sagrados. A situação os levou a uma ação direta em 2008, quando ocuparam o canteiro de obras de uma das usinas – a PCH Telegráfica (imagem acima) –, destruíram al-guns equipamentos e atearam fogo em outros (Vargas, 2008).

A reação dos Enawene-Nawe à construção das PCHs poderia ser vista à luz do que Martínez Alier chama de “ecologismo dos pobres”, ou seja, como “conflitos ambientais em nível local, regional, nacional e global causados pelo crescimento econômico e pela desi-gualdade social” (2007:39). Nota-se que os conflitos ambientais que se inserem no ecologis-mo dos pobres são aqueles envolvendo o uso da água (coecologis-mo no caso dos Enawene), acesso às florestas, e muitas outras questões distributivas de recursos naturais abordadas pela ecologia política. Uma característica muito interessante do ecologismo dos pobres é que em muitos casos os próprios atores sociais (população indígena, camponeses, extrativistas, etc.) envolvi-dos nos conflitos não utilizam um discurso ambientalista, ou seja, aquele discurso utilizado pela preservação ambiental. Para o autor, nos países do sul do mundo, ou seja, chamados de países “em desenvolvimento”, o motivo fundamental de oposição às hidrelétricas é a sobrevi-vência material, “compatível com o sagrado, com o estético e com o respeito devotado a todas as formas de vida” (2007:178). É a própria sobrevivência seja ela material, cultural, simbóli-ca, espiritual, ou seja, a própria sobrevivência do mundo em sua concretude, desses povos, que está em jogo.

20

No final do mestrado, através de pesquisas em jornais do estado de Mato Grosso, nos informamos acerca dos Enawene e dos conflitos em questão.

21

A recente falta de peixes é atribuída às usinas pelos índios e por pesquisadores, mas é contestada pelas empresas (Forestti, 2012).

(27)

Além dos relatos acerca da escassez dos peixes, da degradação ambiental e dos danos causados às populações indígenas22 que vivem diretamente dos recursos e das riquezas ambientais provenientes dos rios, o Ministério Público Federal do Mato Grosso recebeu uma denúncia da existência de trabalho análogo ao de escravo em duas das usinas do Projeto Juru-ena.

Objetivo da pesquisa

Nesta pesquisa, parti do conflito socioambiental ocorrido pela construção do Pro-jeto Juruena. Pretendi compreender, através das praticas e representações dos envolvidos dire-ta e indiredire-tamente nesse conjunto de pequenas centrais hidrelétricas, o Projeto Juruena, a di-nâmica que anima a sua consolidação. Partindo do Projeto Juruena, investiguei a instauração das pequenas usinas, como um caso exemplar de um tipo de articulação complexa entre diver-sos atores, públicos e privados, que, longe de direcionarem o foco dos seus investimentos para a construção de um modelo “limpo” de energia, implicam-se num esquema integrado de de-gradação da vida (de comunidades indígenas, da natureza orgânica circundante, da fauna e flora, etc.) e do trabalho (demonstrada através das denúncias de trabalho análogo ao escravo em canteiros de obras de duas PCHs).

Para isso, além de cartografar a rede dos agenciamentos que pautam a composição do emaranhado de atores que é o Complexo Juruena – avançando hipóteses sobre as “relações perigosas” entabuladas por agentes públicos, privados e híbridos –, entrevistei os "empreen-dedores", acionistas e/ou representantes do consórcio Juruena S.A. a fim de compreender as representações colocadas em circulação e os modos como estes significam os processos nos quais se veem envolvidos. Além disso, realizei entrevistas com representantes do Estado, se-jam da Secretaria Estadual de Meio Ambiente – SEMA (responsáveis pelo licenciamento das PCHs), do CONSEMA (Conselho Estadual de Meio Ambiente), da FUNAI, do Ministério Público Federal, instituição fundamental na defesa dos direitos dos indígenas.

Assim, o objetivo maior desta pesquisa consistiu em investigar as PCHs desen-volvidas através do Projeto Juruena – vistas tanto por parte do poder público como por seg-mentos da iniciativa privada como modelo exemplar de geração de energia – como um caso particular de um modo de produção que articula a degradação da vida com a do trabalho.

22

De acordo com a Ação de Improbidade Administrativa movida pelo Ministério Publico Federal em 2008, processo número 2009.01.00.076019-5/MT, encontram-se 11 terras indígenas (Enawene-Nawe, Menku, Nambikwara Pirineus de Souza, Tirecatinga, Juininha, Paresi, Uirapuru Utiariti, Erikbaktsa e Japuíra) – ao longo da bacia do Rio Juruena, onde estão situadas 88 aldeias.

(28)

Se há, pois, um discurso que promove as PCHs como modelo energético adaptado às demandas ambientais e sociais, e que é adotado (e incentivado) inclusive pelo Estado, atra-vés dessa pesquisa pude notar que o funcionamento e a dinâmica do projeto o desmentem em, pelo menos, duas frentes. Quais sejam: 1) a destruição do modo de existência de toda uma população, ou ao menos a sua profunda alteração em prol de uma adaptação aos modos de existências pautados prioritariamente pela mercadoria e monetarização das trocas; 2) a instau-ração e implementação de um modelo de produção de energia que demanda o fluxo do rio e a força de trabalho de tal maneira que acaba, de um lado, reduzindo toda a vida do/no rio ao potencial energético capaz de ser apropriado/privatizado, e, de outro, implica e envolve pa-drões extremos de degradação do trabalho, beirando condições análogas às de escravidão.

Dessa maneira, com o objetivo de abordar essas importantes questões, estruturei a tese em quatro capítulos, além da conclusão. No capítulo I, tratei da população indígena Ena-wene-Nawe, uma das populações diretamente afetadas pelo complexo de PCHs construídas ao longo do rio Juruena. Primeiramente, através de extensa bibliografia pesquisada acerca da vida Enawene, procurei apreender seus valores socioculturais, sua relação com o cosmos, enfim, apreender parte da sua complexa cosmologia. Posteriormente, no subitem 1.2, contei como ocorreu o processo conflituoso entre a população indígena Enawene e os empresários construtores. O fio condutor presente em todo capítulo é a eminente transformação do seu modo de vida.

Tendo em mente as alterações no modo de vida desse povo indígena que contri-buem para a corrosão de saberes e práticas tradicionais dos mesmos, trago no capítulo II uma abrangente discussão teórica, acerca do conceito de acumulação primitiva, utilizado por Marx para designar o início do capitalismo, e, atualmente, resgatado por autores marxistas contem-porâneos que defendem sua continuidade histórica. Esses autores contemcontem-porâneos utilizam a acumulação primitiva para refletir sobre os novos cercamentos ou novas formas expropriató-rias do capital, como a acumulação por espoliação, conceito atualizado por Harvey - que ocor-re com os Enawene Nawe - e, num plano mais geral, vem ocorocor-rendo com diversos povos nas partes periféricas do mundo, especialmente na America Latina. Nesse mesmo capítulo, tam-bém trago uma interessante reflexão acerca dos valores de uso, dominantes em sociedades não capitalistas e o valor de troca. No capítulo III, trato dos empresários, das empresas e dos de-mais envolvidos tanto na elaboração quanto na construção do Projeto Juruena - é nesse ponto que cruzei com uma categoria híbrida de atores sociais, empresários que também fazem par-te/são o estado. Finalmente, no capitulo IV, abordo como o processo de acumulação primitiva atual, ou acumulação por espoliação, levam a processos de degradação tanto da vida - humana

(29)

e não humana, ou aquilo que Escobar (1999) chama de "natureza orgânica". Neste capítulo, retorno aos Enawene para evidenciar como as mudanças no seu entorno natural, nos valores e saberes do grupo - advindas da proximidade cada vez maior de uma economia de mercado centrada no dinheiro e nas mercadorias - contribuem para a transformação nos modos de vida e valores desse grupo. Finalmente, como apêndice da tese, trago um pouco sobre a degrada-ção do trabalho, atividade central e vital da existência humana, salientando o caso de denúncia de trabalho análogo ao escravo no canteiro de obras de duas das PCHs do Projeto Juruena. Se num primeiro olhar, poderia se pensar que esse ponto destoa da questão central da pesquisa, argumento que o que pretendi ressaltar foi o total desmantelamento dos aspectos essenciais da vida, incluindo nesses o trabalho.

Pesquisa de campo - Delimitação temporal e espacial

Um primeiro campo exploratório foi realizado, através de um financiamento do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP, em setembro de 2011. Nesse primeiro campo, por ocasião do financiamento, tive oportunidade de ir até a cidade de Juína, localizada a aproximadamente 600 km de Cuiabá e uma das mais próximas da Terra Indígena Enawene-Nawe (TI localizada a cerca de 8 horas de barco).

Em Juína, através de um contato prévio estabelecido com um dos coordenadores locais da FUNAI, dirigi-me a este órgão, onde, coincidentemente, encontravam-se alguns indígenas Enawene Nawe. Pude, então, conversar sobre o tema da pesquisa e sobre sua possí-vel viabilidade com dois servidores da FUNAI e, com os aproximadamente cinco homens Enawene que haviam chegado na cidade para resolverem questões burocráticas na sede FU-NAI-Juína.

Através desse primeiro campo exploratório, percebi que minha pesquisa se dirigi-ria a outra direção. Quando estive ali, os funcionários da FUNAI chamaram os indígenas para uma conversa informal conjunta, na qual os primeiros falaram resumidamente do meu interes-se de pesquisa. Os Enawene anotaram meu número de telefone celular e disinteres-seram que entrari-am em contato. Nas semanas seguintes, quando eu já me encontrava em Cuiabá e, posterior-mente, em Campinas, os indígenas me telefonaram insistentemente buscando conseguir um pagamento em forma de gasolina em troca do meu acesso à aldeia, o que possibilitaria a reali-zação da pesquisa.

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Diante da minha dificuldade em lidar com essa situação23 – ou seja, da dificulda-de ética, que se impunha a mim, dificulda-de realizar um trabalho dificulda-de campo mediante pagamento em dinheiro ou gasolina –, tomei a decisão de não fazer campo entre os indígenas e decidi com-preender o universo Enawene através de fontes secundárias de pesquisa: através dos excelen-tes trabalhos etnográficos de pesquisadores que, alguns por anos, se debruçaram sobre a vida Enawene, moraram na Terra Indígena, fizeram pesquisa de campo ou se envolveram na vida deles por meio de outros projetos a eles relacionados.

Foi através da pesquisa bibliográfica dessas fontes que descobri o trabalho de Gil-ton Mendes dos Santos24(2001, 2006, 2008), de Juliana Almeida (2010), de Chloe Nahum-Claudel (2012) – os quais tive a oportunidade e o prazer de conhecer pessoalmente –, e de outros pesquisadores, que estarão presente ao longo do texto.

Para esta pesquisa é de vital importância a inclusão dessas etnografias e outros trabalhos antropológicos acerca da população Enawene-Nawe, um dos muitos grupos indíge-nas afetados pelas PCHs, que teve um tipo de práxis singular durante o conflito ocorrido com as empresas, pois, foi o único grupo que durante muito tempo não aceitou um acordo com-pensatório, e evidenciava sua oposição através de ações diretas e outras práticas (corte de es-tradas, pedágios, etc.).

Após o meu primeiro campo exploratório, entretanto, passei a considerar como foco central o “outro lado” do conflito – especialmente o lado dos empresários –, o do capital. Dessa maneira, ao retornar de Juína a Cuiabá, passei a buscar contatos que pudessem facilitar a minha aproximação ou serem interlocutores com os empresários envolvidos no Projeto Ju-ruena.

Dessa maneira, foi através de F25, responsável e coordenador da área ambiental da empresa Juruena S.A., que consegui minha entrada na empresa, que pude realizar as entrevis-tas com os empresários do consórcio, e, além disso, pude obter o material e o suporte necessá-rios para que a pesquisa pudesse ser realizada. F é professor aposentado da UFMT, tem expe-riência na vida acadêmica, o que facilitou, na minha opinião, sua contribuição para esta pes-quisa.

Além disso, acredito que outro fator, algo curioso, tenha contribuído decisivamen-te para a boa relação que consegui na empresa, e com os empresários: minha família madecisivamen-terna

23

Talvez se eu fosse antropóloga ou etnóloga eu não teria tido tal dificuldade

24

Durante meu doutorado sanduíche na França tive a honra de conhecer pessoalmente o professor Gilton dos Santos e, posteriormente, me tornar amiga dele. Por uma dessas coincidências da vida, Gilton é amigo de longa data dos meus primos-irmãos Correas da Costa.

25

Para a versão final da tese decidi, em acordo com meu orientador, substituir todos os nomes verdadeiros por letras para preservar minhas fontes.

(31)

é bastante tradicional de Cuiabá, são os "Correa da Costa" (uma antiga família oligarca há muito decadente). Há algumas décadas, num passado recente, as famílias de F e os Correa da Costa eram vizinhos na paróquia da Boa Morte, em Cuiabá. Atribuo a essa relação (passada) de vizinhança, a um reconhecimento de identidade “cuiabana” e de “conhecimento” do outro - próximo (o que é "daqui" versus o que é "de fora") ao estabelecimento de uma relação de con-fiança entre F. e eu.

Ainda em 2011, realizei a primeira entrevista com o F, seguida de outras duas: em 2012 e 2013. Em 2015, combinamos uma visita a uma das PCHs, mas infelizmente ela não ocorreu26.

Ainda sobre o campo em Cuiabá. Primeiramente, em 2012, fui à AGER (Agência de Regulação do Estado do Mato Grosso) buscar informações sobre as PCHs em funciona-mento e aquelas em construção, naquele ano, na Bacia do rio Juruena e, de modo geral, no estado de Mato Grosso. Infelizmente, trataram-me com total desconfiança e não forneceram nenhuma informação relevante. Voltei a Cuiabá, em outro momento de 2012, e nessa ocasi-ão, participei do Encontro dos Povos Indígenas do Mato Grosso, na UFMT, cujo tema era luta e resistência – organizado por várias entidades, tais como o CIMI (Conselho Indigenista Mis-sionário), a CPT(Comissão Pastoral da Terra), a OPAN (Operação Amazônia Nativa) e a or-ganização Terra de Direitos. Ainda que nesse encontro não houvesse nenhum indígena Ena-wene, a experiência foi enriquecedora, pois vários indígenas do estado compartilharam suas histórias de luta e resistência. Além disso, foi nesse encontro que conheci a Procuradora da República no Mato Grosso, Dra. Márcia Brandão Zollinger, com quem, posteriormente, tive a oportunidade de conversar, além de outros advogados e ativistas dos direitos indígenas.

Em dezembro de 2012, buscando mais interlocutores e parceiros para a pesquisa entrevistei em Cuiabá o Dr. José Manuel Marta (2001), professor aposentado da UFMT, que trabalhou e estudou questões relativas ao desenvolvimento econômico do estado e energia, e a professora Dra. Maria Fátima Roberto Machado, antropóloga da UFMT. Além disso, conver-sei com diversos servidores da SEMA, dente os quais, Jerônimo Couto Campos, um dos co-ordenadores de empreendimentos energéticos da Secretaria Estadual de Meio Ambiente.

Duas entrevistas muito relevantes para a pesquisa – talvez as mais vitais – ocorreram em 2012 e 2013, na sede da empresa Juruena S.A., em Cuiabá. A primeira foi rea-lizada com CN um dos sócios da empresa LINEAR, e a outra com CA, sócio da MCA,

26

Enquanto eu estava no doutorado sanduiche na França, em 2014, a empresa Juruena S.A. foi envolvida na Operação Lava jato da Polícia Federal (Matos, 2014). Não sei se isso tem ligação com a não resposta recebida, entretanto, foi o único fato novo que poderia explicá-la.

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bas empresas sócias do Projeto Juruena, conforme se verá), ambas entrevistas foram possibili-tadas através da mediação de F. Considero essas entrevistas as mais importantes porque esses empresários são, dentre outros, os sócios proprietários do consórcio Juruena SA, e suas deci-sões e opiniões direcionam determinadas ações que, direta ou indiretamente, afetam as popu-lações indígenas. Além disso, como ver-se-á, um deles, além de empresário, é um ator que transita tanto na esfera privada, sendo inclusive muito atuante em sua federação de classe, como também atua como representante do estado.

Cabe esclarecer que as entrevistas realizadas foram semiestruturadas. Eu mantinha um roteiro esquematizado e pré-estabelecido, que pudesse ser facilmente mudado de acordo com o rumo determinado pelo entrevistado. O ideal era deixar o entrevistado falar à vontade.

Além dessas fontes, realizei pesquisas documentais em revistas, jornais, em mí-dias eletrônicas do estado de Mato Grosso, e mímí-dias de circulação nacional, em sites do Mi-nistério Público Federal do Mato Grosso, no MiMi-nistério Público do Trabalho, em processos na Justiça Federal, e em processos em juízo no Fórum do Mato Grosso.

Por diversas vezes, tentei estabelecer um diálogo com a OPAN27 (Operação Ama-zônia Nativa) – organização que após o fim da Missão Jesuítica Anchieta, se tornou muito próxima aos Enawene Nawe -, em Cuiabá , especialmente com o senhor Ivar Busatto, o coor-denador-geral da organização. Entretanto, não consegui. A ultima tentativa de contatá-lo foi intermediada por F.

27

Quando Juliana Almeida trabalhava como indigenista na OPAN, em 2011, consegui ir até a sede da organização em Cuiabá e entrevistá-la. Ela foi sempre muito receptiva a mim e a minha pesquisa.

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Capítulo I – Os Enawene-Nawe

1.1:O mundo Enawene-Nawe

Os primeiros registros sobre o povo Salumã – como eram denominados os Ena-wene-Nawe – eram praticamente inexistentes antes do estabelecimento oficial dos primeiros contatos. De acordo com Correa (2015), a primeira menção àquele povo apareceu em 1817, no documento Corografia Brazilica do Reino do Brazil, de Manuel Aires de Casa (Correa 2015:31). Na ocasião, sabia-se apenas da existência de um grupo étnico isolado chamado Sa-lumã, do Alto Juruena, ainda desconhecido, de modo que não havia registros sobre eles.

Em 1909, durante a expedição que levava linhas telegráficas pelo interior do Mato Grosso, o Marechal Cândido Rondon soube pelo povo Waimaré da existência de “parentes” no Alto Juruena, cuja presença se fazia notar pelos vestígios de pesca e utensílios por eles utilizados (Bussatto et al., apud Correa, 2015: 32).

Os primeiros contatos do povo Enawene com a sociedade brasileira ocorreram no ano de 1974, através da missão jesuíta Anchieta (MIA), com ajuda de indígenas Pareci e Rik-baktsa (Almeida, 2010). O primeiro contato ocorreu de maneira amigável; as aproximações seguintes com a sociedade brasileira ainda se passaram de maneira esporádica, quando algum indígena “descia o rio” e se deparava com frentes de expansão28. Um dos missionários que fez parte da equipe de contato, Frei Vicente Cañas, alguns anos depois, decidiu ir viver ente os Enawene, onde permaneceu até 1987 quando foi cruelmente assassinado por fazendeiros da região por ocasião das disputas de terra e pressões pela demarcação do território indígena29.

Os Enawene-Nawe são um povo de língua Aruak, habitantes do noroeste do Mato Grosso, do vale do rio Juruena, uma área de transição entre o cerrado e a Floresta tropical. Esse território faz parte da (sub) bacia do Rio Juruena, cujas águas ao norte dão origem ao Rio Tapajós, afluente rio Amazonas, um dos mais importantes rios da Bacia Amazônica (Mendes dos Santos, 2006). Segundo Mendes dos Santos, tipicamente tropical, é esse ambiente "que lhes fornece as condições materiais de existência e de desenvolvimento do pensamento" (Mendes dos Santos, 2006).

28

Os primeiros contatos entre a população Enawene e a missão jesuíta são bem descritos no livro Enawene-Nawe: primeiros contatos, escrito por um dos jesuítas participantes da expedição, Padre Thomaz de Aquino Lisboa.

29

Em 2015, o Tribunal Regional Federal (TRF-1) do MT anulou o primeiro julgamento, realizado duas décadas depois do assassinato, pois o júri inocentou o delegado da polícia civil de Juína acusado como agenciador dos indivíduos que emboscaram o missionário. Disponível em <http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&conteudo_id=8277&action=read> Acessado em 02/02/2016.

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A Terra Indígena Enawene-Nawe localiza-se próxima aos municípios de Juína, Sapezal, Comodoro, Campo Novo dos Parecis e Brasnorte30. É um local de ocupação recente, que tornou-se uma região de expansão de fronteira agrícola a partir dos anos 70, e que, na última década também tem se tornado um lugar frutífero para empreendimentos energéticos – uma fronteira elétrica.

Essa região do Mato Grosso é habitada por inúmeros outros povos indígenas – os Enawene têm como vizinhos os povos Cinta Larga, Nambikwara, Miky e Rikbaktsa. Todos estes, de maneira geral, têm sofrido com as pressões no entorno de suas terras, principalmente com as políticas brasileiras de crescimento, de caráter desenvolvimentista, da última década. A área de influência do Complexo Juruena, na bacia do Alto Juruena, por exemplo, abrange 11 terras indígenas pertencentes a cinco povos.

Atualmente, os Enawene-Nawe vivem em uma única aldeia31 - Halataikiwa - com aproximadamente 540 indivíduos. O vale do Juruena, assim como o rio Preto, o rio Papagaio, o rio Mirim e suas adjacências, são reconhecidos por esse povo como os territórios de ocupa-ção tradicional imemorial.

A Terra Indígena Enawene-Nawe32, homologada e registrada em 1996, possui uma área de extensão de 742.088 hectares – sendo uma área de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica. A região da TI Enawene possui uma vasta rede hidrográfica, sendo

composta pelos rios – Joaquim Rios (Tinuliwna e Muxikiawina – tributários do rio Camararé), rio Arimena e rio Preto (Olowina e Adowina – tributários do Juruena) e rio Nambikwara (Huyakawina – tributário do Doze de Outubro), com lagoas marginais e áreas alagáveis no período chuvoso. São duas as estações: seca e chuvosa, que determinam as ações diárias e a produção do roçado, coleta de mel e extração do sal vegetal (Jakubaszko, 2006, apud Correa, 2015).

30

Brasnorte é uma cidade fundada nos anos 80 através das políticas de ocupação da Amazônia.

31

Desde 1974, ano oficial do contato, os Enawene já erigiram cinco aldeias (Hakotokwa, Maerekwa, Matokodakwa I, Matokodakwa II e Halataikiwa). Fonte: Dossie IPHAN, 2006.

32

Um pedido de ampliação da TI Enawene-Nawe foi realizado pelo MPF do Mato Grosso, por meio de uma ação civil pública, em 2013, para incluir o Rio Preto, lugar sagrado para os indígenas. Em 2014, o Tribunal Regional Federal suspendeu o processo de ampliação que já havia sido iniciado pela FUNAI, pois contrariava os interesses do agronegócio na região (Tavares, 2014).

(35)

Figura 4: Tradicional canoa de pesca Enawene-Nawe

Fonte: OPAN/Operação Amazônia Nativa, apud Dossiê IPHAN Yaokwa, 2006.

Até o fim dos anos 90, ainda eram poucas as ocasiões em que os indígenas se des-locavam para os centros urbanos da região, o que geralmente acontecia quando buscavam atendimento especializado de saúde ou a realização atividades associadas ao processo de re-gularização do território, algumas vezes acompanhados por membros da OPAN33 (Operação Amazônia Nativa). A situação se altera, segundo afirma Almeida, quando “os Enawene-Nawe adquirem sete motores de popa, fruto da negociação com proprietários rurais do município de Sapezal para a abertura de uma estrada ilegal no interior da terra indígena”, cerca de um ano após sua homologação.

A tentativa (mal sucedida) de construção dessa estrada ilegal dentro da TI Enawe-ne no final dos anos 90 ajuda a compreender como diversos interesses econômicos Enawe-nessa regi-ão contribuíram para o fim do “isolamento” indígena e, além disso, revela como os mesmos grupos empresariais estão envolvidos, ao mesmo tempo, em negócios econômicos e no esta-do.

Em 1998, um grupo de fazendeiros da cidade de Sapezal34 – dentre os quais An-dré Maggi, pai do ex-governador do Mato Grosso, Blairo Maggi35, e na época prefeito da ci-dade – idealizou a construção de uma estrada dentro do território Enawene para facilitar e

33

Organização mato-grossense dedicada aos povos indígenas principalmente na defesa do território, saúde, autonomia, educação, gestão ambiental, etc.

34

Cidade fundada nos anos 80 pelo idealizador e criador do Grupo Amaggi (um dos maiores do agronegócio brasileiro), André Maggi.

35

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baratear o escoamento da produção de soja, encurtando seu trajeto, através da Chapada dos Parecis. Além disso, outro fator de negociação com os indígenas seria o arrendamento das suas terras para ao plantio de soja, algo que já ocorre com alguns indígenas Pareci (Dal Poz, 2006 apud Almeida, 2010).

Os interessados na estrada chegaram a construir aproximadamente 50 quilômetros desta antes que ela fosse embargada. De acordo com um artigo do Instituto Socioambiental, “os empreendedores” cediam aos indígenas “roupas, motores de popa e farta quantidade de gasolina” (Gonçalves, 1998). Tais “presentes” podem ser interpretados como uma tentativa de convencê-los acerca da estrada. A OPAN e a FUNAI, naquele mesmo ano, denunciaram a estrada ilegal ao MPF (Ministério Público Federal), que, finalmente, embargou a obra ilegal36. De acordo com Souza (2011), antropólogo que também trabalhou como indigenis-ta na OPAN e, posteriormente, escreveu sua disserindigenis-tação de mestrado sobre os Enawene, a denúncia da estrada estabeleceu uma crise entre os indígenas e aqueles interlocutores que a denunciaram. De um lado, estava a OPAN, interpretando a estrada como uma invasão ilegal e a cooptação dos indígenas pelos fazendeiros; de outro, estavam os próprios indígenas, que percebiam a OPAN como aquela que os impedia “de aceder aos bens que mais cobiçavam”, bens trazidos pelos fazendeiros.

Apesar do embargo da obra ilegal, os Enawene conseguiram montar uma frota de barcos e motores. De acordo com Souza,

desde então, o tempo e o espaço Enawene-Nawe se transformaram, pois, entre outras novas situações, se tornara possível alcançar, com rapidez, locais de seu território que antes não o eram. Ademais, as transformações ocorriam de acordo com a lógica indígena adaptada às novas circunstâncias (Souza, 2011:13).

Dessa maneira, num curto período de tempo, de aproximadamente dez anos, os Enawene-Nawe passaram de uma situação de quase isolados do mercado para outra de de-pendência de produtos externos, tais como a gasolina, e, inseridos e imbricados (ainda que indiretamente) nas estratégias de crescimento econômico do PAC – através da construção das pequenas centrais hidrelétricas nas proximidades de sua terra indígena. Isso se não se conside-rar o fato de que seu local de habitação se encontra cercado por intensas áreas de expansão da

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Em 2013, a Advocacia Geral da União (AGU) assegurou, na Justiça, uma indenização de mais de R$ 300 mil por danos ambientais e morais gerados pela construção ilegal de rodovia no interior da terra indígena Enawene-Nawe. Um dos acusados ainda tentou argumentar que a estrada era uma demanda da população local e dos indígenas. A AGU, entretanto, afirmou que a terra é da União e reservada à Terra Indígena (Ribeiro, 2013).

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fronteira, sendo, portanto, envolto por plantações de soja, exploração de diamantes e de ma-deira.

Quando deram conta que o seu território e que o rio tradicionalmente usado para suas pescarias e rituais estavam nas proximidades de um conjunto de pequenas centrais hidre-létricas (e hidrehidre-létricas), os Enawene-Nawe estabeleceram estratégias de resistência, não acei-taram um acordo de compensação com as empresas, e, em 2008 ocuparam um dos canteiros de obras de uma das PCHs, a mais próxima de sua aldeia, e o destruíram.

Alguns anos mais tarde, entretanto, os indígenas acabaram por concordar com tal acordo de compensação estabelecido pelo consorcio das PCHs.Tal fato poderia estar relacio-nado, continuando com Almeida, com a dependência cada vez maior dos indígenas por gaso-lina para a realização dos seus rituais sagrados. Assim, para os indígenas, “não ter acesso a gasolina significa limitar os cerimoniais e, consequentemente, atiçar a ira dos Yakaliti e Eno-lio, o que implica, a cabo, no fim de sua sociedade” (Almeida, 2010:5).

Na mesma direção de Almeida, a antropóloga inglesa Nahum-Claudel (2012), que fez um campo entre os indígenas entre 2008-2009 para sua tese de doutorado37, afirma que desde 2007 os Enawene recebem “do estado” bens materiais tais como gasolina, máquinas e outros – inclusive peixes –, meios de produção vitais para sua economia ritual de pesca. A antropóloga destaca que os pagamentos vindos do estado aumentam na medida em que au-mentam também os interesses do estado neles (através do aumento dos interesses econômicos na região). Apesar disso, os Enawene nunca cessaram a demanda por um pagamento perma-nente pelos danos causados ao povo e uma participação acionária nos projetos de PCH.

A autora vai além e argumenta que o que pode parecer um movimento de resistência indígena contra a exploração dos recursos naturais – ou seja, algumas ações reali-zadas pelos Enawene tais como o bloqueio de estradas, a demanda por pedágios, a ocupação de canteiros de obras e, finalmente, a ocupação e destruição do canteiro de obras da PCH Telegráfica –, na verdade, poderia ser compreendido como um “potlatch contra o estado”. Ela argumenta em favor dessa ideia utilizando o conceito etnográfico maussiano de “potlatch”, acerca das lógicas dádiva-dívida, e no título, segue Clastres (1978), em A sociedade contra o Estado38. Entretanto, na problemática em questão, a dos Enawene, o conceito transfigurado,

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De acordo com Chloe Nahum-Claudel, quando ela chegou a Juína para seu trabalho de campo, em janeiro de 2008, encontrou cerca de 20 homens Enawene que ali se encontravam para buscar ajuda para o ritual através de três fontes: a FUNAI, o fundo municipal de meio ambiente e as empresas construtoras das PCHs. A antropóloga afirma que naquele ano, por meio dessas múltiplas alianças estabelecidas eles conseguiram 6.000 litros de gasolina.

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O que Clastres (2003) chama de “sociedades contra o Estado” são as sociedades “primitivas”, onde evita-se um poder central individualizado, que daria origem ao Estado, assim, o chefe tribal nada mais é do que o

Referências

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