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A emendatio libelli e o princípio da ampla defesa

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

CURSO DE DIREITO

LETÍCIA OLIVEIRA MESQUITA

A EMENDATIO LIBELLI E O PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA

NATAL/RN 2019

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A EMENDATIO LIBELLI E O PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA

Monografia apresentada ao curso de graduação em Direito, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior.

NATAL/RN 2019

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais Aplicadas - CCSA

Mesquita, Letícia Oliveira.

A emendatio libelli e o princípio da ampla defesa / Letícia Oliveira Mesquita. - 2019.

112f.: il.

Monografia (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de Direito. Natal, RN, 2019.

Orientador: Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior.

1. Emendatio libelli - Monografia. 2. Sistema acusatório - Monografia. 3. Ampla defesa- Monografia. I. Júnior, Walter Nunes da Silva. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

RN/UF/Biblioteca do CCSA CDU 343.1

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Em primeiro lugar, agradeço à minha família, que sempre foi fortaleza, protegendo, ensinando e alegrando, e fez-se base para cada passo. Aos meus pais, sobretudo, dedico os triunfos até agora galgados, faço tudo por eles.

Sou grata também aos amigos, aos de longa data e aos mais recentes, com os quais construí memórias inesquecíveis, em dias calmos ou agitados, felizes ou angustiantes, mas sempre juntos.

Agradeço, igualmente, aos queridos estágios na 17ª Vara Cível da Comarca de Natal, na 15ª Procuradoria de Justiça e na Defensoria Pública da União, onde conheci, quando estagiária, a Def.ª Pub. Lorena Costa Dantas Melo, inspiração como profissional e ser humano. Da mesma forma, gratidão tenho pelo meu orientador, Prof. Dr. Walter Nunes da Silva Júnior, de quem, por tanto considerar, fui aluna, monitora e, finalmente, orientanda. Foram as pessoas que me introduziram na paixão pelo direito criminal.

Graças a Deus, tenho muitos em quem me espelhar nestes cinco anos de grandes aprendizados – enquanto aluna, estagiária, pesquisadora, aplicadora do direito, amiga, filha, neta, sobrinha e, acima de tudo, pessoa – e ainda pretendo lhes orgulhar muito.

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O predomínio de uma concepção acrítica no que diz respeito ao tratamento da emendatio libelli, posta ao artigo 383 do Código de Processo Penal, torna imprescindível e urgente seu estudo a partir das lentes da Constituição de 1988, em especial análise diante da escolha pelo sistema acusatório e do princípio da ampla defesa. Este trabalho vislumbra redimensionar o conceito e a operação do instituto, o que busca a partir de uma análise sempre crítica da doutrina, da jurisprudência e das construções legislativas atinentes à matéria. É contextualizada a problemática, com a imprescindível designação dos seus fundamentos constitucionais, e é evidenciada a necessidade de repensar-se a disciplina da emendatio libelli frente aos princípios informadores extraídos do texto constitucional. Na sequência, é feita uma digressão sobre a evolução legislativa no tema, demonstrando as frustradas reformas, em combinada enumeração das abordagens normativas no direito comparado. Ainda, são efetivamente recategorizadas as modalidades de emendatio libelli tradicionalmente reconhecidas e debatidos os momentos processuais para tal. Nessa edificação, conclui-se, definitivamente, pela atecnia jurisprudencial no enfrentamento do instituto, bem como são pormenorizadas as peculiares hipóteses a demandar novas alternativas procedimentais. Ao fim, são expostas algumas consequências da adoção ou não das alternativas procedimentais propostas.

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The predominance of an uncritical conception regarding the treatment of the emendatio libelli, placed on article 383 of the Criminal Procedure Code, makes indispensable and urgent a study with the lens of the Constitution of 1988, especially considering the choice about the adversary system and the full defense principle. In this way, this work aims to review the concept and the operation about the institute, which seeks from an always critical analysis of doctrine, jurisprudence and legislative constructions related to the subject. The problem is contextualized, it puts the constitutional foundations and the need to rethink the discipline of the emendatio libelli in face of the informing principles extracted from the constitutional text. Following, a digression is made on legislative developments on the subject, demonstrating the frustrated reforms in combined enumeration of normative approaches in comparative law. In addition, it organizes the modalities of emendatio libelli traditionally recognized and the procedural moments for an effectively recategorization. In this building, it is definitively concluded that the jurisprudential technique is insufficient and are listed the peculiar hypotheses that demand new procedural alternatives. Exposed the propositions, finally, are punctuated some consequences of their choice or not.

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1. INTRODUÇÃO...8

2. A EMENDATIO LIBELLI NO SISTEMA ACUSATÓRIO E OS SEUS PRINCÍPIOS INFORMADORES...10

2.1. O PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO NO PROCESSO PENAL...19

2.2. A PROBLEMÁTICA DA EMENDATIO LIBELLI...24

3. A RELEITURA DA EMENDATIO LIBELLI...28

3.1. A TIPIFICAÇÃO DA CONDUTA COMO REQUISITO DA AÇÃO PENAL...29

3.2. O PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA COMO DECORRÊNCIA DO CONTRADITÓRIO...37

3.3. A DEFESA TÉCNICA COMO ELEMENTO DA AMPLA DEFESA...45

4. AS POSSIBILIDADES DE COMPATIBILIZAÇÃO DO ARTIGO 383 DO CÓDIGO PROCESSUAL PENAL À AMPLA DEFESA...54

4.1. A CRÍTICA SOBRE A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA...55

4.2. O REDIMENSIONAMENTO DAS HIPÓTESES DE EMENDATIO LIBELLI...67

4.3. AS ALTERNATIVAS INTERPRETATIVAS E PROCEDIMENTAIS AOS PROBLEMAS ENFRENTADOS...78

4.4. ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DAS ALTERNATIVAS PROCEDIMENTAIS ADOTADAS...97

5. CONCLUSÃO...103

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1. INTRODUÇÃO

A utilidade do estudo da emendatio libelli funda-se na premissa de que não mais pode o processo penal contentar-se com os brocardos jura noviit curia e narra mihi factum dabo tibi ius, os quais ainda imperam na dicção do instituto. O velho reducionismo, presente tanto na doutrina, quanto na jurisprudência e, igualmente, negligenciado pelos legisladores, determina uma interpretação simplista do artigo 383 do Código de Processo Penal, aquele que, no sistema brasileiro, enuncia a emendatio libelli, com a possibilidade de mudança da tipificação, pelo juiz, em relação à atribuída na peça acusatória e frente aos mesmos fatos nela elencados.

O interesse na problemática surge, então, pela imposição de uma releitura do instituto, sob os marcos de um estudo constitucional, tal qual determina um Estado Democrático e Constitucional de Direito, considerando os direitos e garantias do texto de 1988, sobretudo, o princípio da ampla defesa, de especial significação no processo penal. O trabalho, desse modo, a partir de análises doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas, todas críticas e em intuito intervencionista, busca desenvolver uma leitura constitucional da emendatio libelli, tendo como objetivos específicos o redimensionamento e a devida categorização do instituto – considerando, particularmente, a importância da tipificação frente ao princípio da ampla defesa –, bem como a delimitação das possíveis alternativas procedimentais, nesse redimensionamento, cabíveis no ordenamento jurídico brasileiro.

Ressalte-se que a metodologia embrenhada consiste em: pesquisas bibliográficas atinentes à temática em livros, revistas, monografias, dissertações, teses e artigos científicos, inclusive a partir da consulta ao acervo físico de dissertações e à Biblioteca Digital de Monografias da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; pesquisas jurisprudenciais, procedidas a partir dos sites dos respectivos tribunais, especialmente, do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte; e pesquisas a respeito dos dispositivos normativos importantes à matéria, inclusive pela utilização do direito comparado.

Na continuidade destas considerações introdutórias, o segundo capítulo da exposição promoverá a contextualização necessária à compreensão do conteúdo da emendatio libelli, pontuando, em princípio, algumas circunstâncias históricas e explicando o que se entende por sistema acusatório. Na sequência, serão extraídos e examinados, construtivamente, a partir da constatação da escolha constitucional pelo sistema acusatório, os princípios da inércia da jurisdição, do contraditório e da ampla defesa, os quais, por outra via, resultam na conclusão pela necessidade de manutenção, no processo penal, da correlação entre acusação e sentença.

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Nessa toada, será dimensionado o princípio da correlação no ambiente criminal, renunciando aos institutos da processualística civil e arquitetando que sobreleva, na específica seara criminal, o conceito de imputação. Logo, será articulado que o objeto do processo penal, aquilo lançado pela imputação, deve ser mantido desde a acusação até a sentença, sendo esse o conteúdo do princípio da correlação. Em continuidade, resultará a emendatio libelli justamente como uma exceção a essa regra, de maneira a se pontuar a sua definição e as tradicionais classificações doutrinárias. E, com isso, estarão postas as bases conceituais do tema.

Ao terceiro capítulo, será promovida uma releitura da emendatio libelli. Em primeiro lugar, haverá de se descrever as atuais concepções sobre a matéria, quando se manifestam as interpretações fundadas nas acríticas compreensões dos brocardos jura noviit curia e narra mihi factum dabo tibi ius. Depois, tenciona-se demonstrar a relevância da tipificação – aquela que é alterada pela operação da emendatio libelli – frente ao princípio da correlação. Será evidenciado que os mesmos princípios que pautam a correlação, colocados ao segundo capítulo, similarmente impõem uma ressignificação da importância da tipificação.

Com isso, particularmente se prosseguirá para abordar a inércia da jurisdição, cuidando da imperatividade da capitulação dos fatos já na inicial acusatória, bem como o contraditório em sua decorrência da não surpresa, apreciando essa noção dentro de um modelo democrático, sua aplicação também às matérias jurídicas e a combinada submissão pelo juiz. Colocar-se-á a grande novidade do sistema brasileiro em sedimentar o princípio da não surpresa, princípio que remete a toda uma ressignificação da tradicional visão do contraditório, no que, consequentemente e em sintonia, será vista a ampla defesa, de leitura diferenciada no processo penal, donde emerge a especificação da defesa técnica, a definitivamente determinar o relevo da tipificação dos fatos.

O quarto capítulo ambiciona elencar as possibilidades de compatibilização do artigo 383 do Código de Processo Penal aos princípios informadores mencionados, sob a ótica principal da ampla defesa.

Nessa pretensão, será feita análise das construções legislativas brasileiras e das suas sucessivas e frustradas tentativas de reformas, ao que se comparará a legislação a dispositivos normativos de diversos países, sobretudo dos vizinhos da América Latina. Ficará patente que o texto brasileiro se mostra completamente antagônico, consentâneo, sim, com a concepção inquisitória haurida em 1941, quando da edição do Código de Processo Penal, mas não com o espírito da Constituição de 1988.

Convictos de que o processo legislativo brasileiro é falho e tardio, no entanto, restará, indubitavelmente, uma interpretação constitucional da emendatio libelli. Assim sendo, será

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redimensionado o instituto, explicando-se cada tipo tradicionalmente reconhecido e os categorizando da maneira que se entende mais correta.

Ocorre que, em que pese a apuração da possibilidade de compatibilização constitucional da matéria por meio dos aplicadores do direito – pelo menos por uma edificação dogmática melhor delimitada de quais as situações a, realmente, enquadrar-se como emendatio libelli e suas implicâncias – será visto que não há qualquer esforço nesse sentido. Assim, há de se catalogar algumas amostras jurisprudenciais, revelando a completa atecnia e generalização do tratamento das ocasiões de emendatio libelli.

A despeito disso, serão enumeradas as diversas disposições integrantes do ordenamento jurídico aptas a fundamentar um novo cuidado na temática, oportunidade em que se erguerá a imprescindível alternativa procedimental aos peculiares casos de emendatio libelli que, visivelmente, ferem o princípio da ampla defesa, pautada, sobretudo, no rito traçado pelo princípio da não surpresa.

Por fim, serão pinceladas algumas consequências da adoção ou não dessa alternativa, esclarecendo que umas ensejariam outras profundas discussões, pelo que se lançará a centelha para tal, e, primordialmente, que, em não sendo procedida a alternativa ventilada, cabe ao Estado a designação de que o procedimento em questão não macula a ampla defesa.

É dessa forma que pretende o presente trabalho contribuir ao incremento do debate acerca da emendatio libelli e do seu correspondente artigo 383 do Código de Processo Penal, traçando uma análise a partir da perspectiva constitucional do tema, em exame teórico e jurisprudencial, reconstrução dogmática e proposição de soluções aos problemas diagnosticados.

2. A EMENDATIO LIBELLI NO SISTEMA ACUSATÓRIO E OS SEUS PRINCÍPIOS INFORMADORES

A fim de desvelar o instituto da emendatio libelli sob a imperiosa consideração da ampla defesa, faz-se mister tecer breves comentários a respeito da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como do sistema processual penal por ela adotado. É que todo o estudo que pretenda debruçar-se sobre o direito processual penal deve partir de uma perspectiva constitucional, em especial quando se ambiciona considerar vertentes do princípio (constitucionalmente positivado) da ampla defesa.

Além do mais, no que tange especificamente à correlação entre acusação e sentença, essencial ao entendimento da emendatio libelli, o Código Processual Penal foi extremamente

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simplista, existindo somente dois artigos a esse respeito, conforme se verá. Com efeito, em face da complexidade do tema – que supera a insuficiente criatividade do legislador – ganha ainda mais relevo a colmatação da sua disciplina legal com as disposições e a releitura constitucionais. Assim sendo, com fins de explicar o pressuposto teórico introduzido, impõe-se expor o fato de ser a história do processo penal marcada, como diz Antonio Scarance Fernandes1, por movimentos pendulares, numa variação do confronto entre eficiência e garantismo. Quer-se dizer que, nessa dicotomia, prevaleceram, no desdobrar histórico, ora os ideais de segurança social e de repressão, ora as convicções de proteção ao acusado, com preservação de seus direitos e garantias. Numa concepção moderna, contudo, esses dois vetores, como há de se demonstrar, não podem opor-se, não se visualizando um processo eficiente sem garantismo.

Retrocedendo, de maneira sintética, na trajetória do desenvolvimento da persecução penal2, tinha-se, nos primórdios, a resolução dos conflitos interpessoais pelo uso da força, o que gerava um permanente estado de beligerância privada. Em substituição a essa etapa, os indivíduos delegaram ao Estado o dever de intervir, pelo que se abandonou a ação material e se adotou a ação processual (princípio da jurisdicionalidade). O Estado, com isso, de modo amplo, passou a tutelar os bens jurídicos penais, possuindo o poder sancionatório, que é, por outras vias, um dever de punir aquele que provoca uma lesão jurídica reprovável.

Aqui, é de se indagar o porquê de necessitar o Estado da submissão a um processo se a ele pertence o poder de penar. E a resposta passa pela mencionada leitura constitucional do processo3.

A punição aos faltosos, regulada pelo direito penal, e sua forma de aplicação, regulada pelo processo penal, por vezes, sob o argumento de maior proteção da sociedade, acentuaram o rigor do direito penal e diminuíram a força protetiva do processo penal.

O processo penal, por lidar com o bem fundamental do ser humano consistente na liberdade, acaba por refletir o modo com que os Estados trataram, ao longo dos anos, os direitos fundamentais. Os modelos de persecução penal verificados historicamente são traduções das orientações políticas e ideológicas dos Estados. É que o processo penal objetiva, concomitantemente, a tutela da liberdade do indivíduo, jus libertatis (perspectiva subjetiva dos direitos fundamentais) e, por outro lado, a garantia da sociedade contra a prática de ilícitos,

1 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 23.

2 POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. 1. ed. São Paulo: IBCCrim, 2001. p. 27-29.

3 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70.

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sedimentada no dever-poder de punir, jus puniendi (perspectiva objetiva dos direitos fundamentais), pelo que a ambivalência do processo vai prevalecer num ou noutro sentido conforme os ditos vetores políticos do Estado.

Nessa evolução do relacionamento do indivíduo com o Estado, surgiu a necessidade de normas que garantissem com maior força os direitos fundamentais dos seres humanos contra o poder estatal intervencionista, ao que os Estados colocaram, em suas Constituições, normas de garantia desses direitos.

No Brasil, a mudança da cultura política e jurídica do Estado de Direito, em que a força normativa dos preceitos constitucionais limitava-se à complementariedade da legislação ordinária – essa, sim, até então considerada como fonte primária do intérprete – só veio a ocorrer com o advento da redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988, a qual instituiu um Estado Democrático de Direito.

Esse regime de governo, a seu turno, qual seja, a democracia, ao contrário do que possa dar a entender, não significa a tirania da maioria, mas a imposição do contínuo respeito aos direitos fundamentais de todos os indivíduos4, oportunizando sua participação na construção de todo ato de poder que potencialmente lhes afete, incluídas suas individualidades e contextos.

É nessa toada que Walter Nunes da Silva Júnior5, corriqueiramente, afirma poder a teoria do processo penal ser confundida com a própria teoria dos direitos fundamentais. A adoção desse modelo (democrático) de estado tem como consequência lógica a constitucionalização de todo o sistema jurídico, o que lhe aproxima da ideia do processo penal como garantia, como contenção ao poder estatal. Quando não era reconhecida a força normativa dos direitos fundamentais, não se impunha ao Estado a contínua justificação de seus atos. Noutro pórtico, o autêntico processo, como agente legitimador da imposição de uma pena, portanto, habita apenas o Estado Democrático, um estado que constantemente é limitado – sobretudo pelos direitos fundamentais – e deve justificar-se, aí se respondendo a indagação do porquê necessitar o Estado do processo se é dele o poder de punir.

Em continuidade a este raciocínio, o processo, num Estado Democrático, revela-se um “conjunto de relações jurídicas entre pelo menos três sujeitos – processos est actum trium personarum – sem subordinação entre eles, mas vinculações recíprocas em termos de direitos

4 KELSEN, Hans. A democracia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 66-78.

5 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 196.

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e deveres”6. Ou seja, só se pode conceber um processo, nesse sistema constitucional, quando dialético, de partes contrapostas, com autor, réu e juiz imparcial, tal qual o processo acusatório. A construção desse modelo dito acusatório – passando ao seu exame –, conforme leciona igualmente Geraldo Prado7, consumou-se, pouco a pouco, mediante o reflexo antagônico ao sistema inquisitivo. A forma inquisitiva era aquela que determinava ao juiz estritamente o cumprimento de uma função de segurança pública, prestigiando a ideia de punição, que não pressupunha um autor da ação penal independente, nem limitações à acusação. Aury Lopes Jr.8, a esse respeito, assevera que se trata de um sistema encontrado, na sua pureza, apenas historicamente. De fato, até o século XII, predominava o sistema acusatório, mas, paulatinamente, foi ele sendo substituído pelo inquisitório, que persistiu até o século XVIII e, em alguns países, até o século XIX, diante da emergência dos ideais da Revolução Francesa e do Iluminismo, com o proeminente nome de Cesare Beccaria.

Realmente, é inimaginável um sistema, na atualidade, na pureza inquisitória, contudo, não se pode conceber o estudo dos sistemas processuais como interesse meramente histórico. Nossa legislação processual penal ainda abriga inúmeros dispositivos de feição inquisitiva, inclusive no que tange ao objeto deste trabalho, perfazendo-se a afirmação do sistema acusatório numa constante antítese ao modelo inquisitório, com importância, sim, atual9.

Frente a essa premissa, sabe-se que o sistema inquisitivo identificava-se, sobretudo, com o Estado Absoluto, bem como com o Tribunal da Inquisição ou Santo Ofício, sendo marcado pela reunião das funções de acusar e julgar nas mãos do juiz-inquisidor10, que atuava de ofício, em segredo e, por isso, de forma escrita, enxergando o acusado como mero objeto de prova – que ele próprio (o juiz) poderia explorar e tarifar, afora comandar toda a instrução probatória – e jamais como sujeito de direitos. A prisão, por sua vez, era a regra durante o

6 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 69. Disponível em: <https://www.academia.edu/8507492/Sistema_ Acusatorio_A_Conformidade_Constitucional_3a_ed>. Acesso em: 19 out. 2019.

7 Ibid., p. 172-174.

8 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 41.

9 MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris,

2003. p. 61.

10 Por esse motivo, como nota distintiva do sistema acusatório, Diogo Rudge Malan explica que, por si só, a expressão “processo inquisitivo encerra uma contradição, pois prescinde de alguns pressupostos indispensáveis à caracterização de um autêntico processo, a começar pela existência de uma relação processual triangular, formada por partes titulares de direitos e obrigações recíprocas e um julgador imparcial. Constitui, então, muito mais uma forma autodefensiva de administração da justiça do que um genuíno processo judicial” (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 81-82).

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desenrolar do processo, baseando-se em mera suspeita ou na íntima convicção dos magistrados sobre a participação do réu no delito.

Esse modelo político autoritário, norteado pelo princípio de que a salvação do povo era a suprema lei (salus publica suprema lex est) pressupunha, nas lições de José Cafferata Nores11, não só a noção de honestidade, mas também a de aparência de honestidade, pois a qualquer aparência de culpabilidade já se legitimava um castigo.

Por esses traços, esse sistema não se conforma à experiência democrática, é incompatível com o os direitos e garantias fundamentais e, em última instância, inconciliável com a Constituição de 1988. Afora permitir até que o acusado fosse torturado para a obtenção da confissão (rainha das provas ou regina probatorum), em nítida violação aos mais basilares direitos do homem, suas características culminam numa contaminação do juiz pela tese da acusação. Instaurando o processo por iniciativa própria e comandando a colheita de provas, o magistrado acaba “ligado psicologicamente à pretensão, colocando-se em posição propensa a julgar favoravelmente a ela”12, o que lhe quebra a imparcialidade e fere elementares princípios processuais modernos.

Em que pese alguns resquícios inquisitivos no ordenamento jurídico13, até porque editado o Código de Processo Penal de 1941 na regência da Constituição de 1937 –

11 Cafferata Nores apud MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 64.

12 FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 57.

13 Walter Nunes elenca, como resquícios, a prerrogativa funcional de o representante do Ministério Público sentar-se à direita do juiz ou presidente do órgão judicial colegiado (artigo 18, inciso I, alínea “a”, da Lei Complementar Federal nº 75, de 20 de maio de 1993); a atribuição dada ao juiz, no artigo 5º, inciso II, do Código de Processo Penal, para representar à autoridade policial a instauração de inquérito; e a iniciativa de persecução penal por parte do juiz prevista no artigo 28 do Código de Processo Penal, quando o magistrado considera improcedentes as razões invocadas pelo Ministério Público para requerer o arquivamento do inquérito (SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 392-396). Sobre essa questão de ter o Código Processual Penal adotado um sistema misto, Aury Lopes Jr. afirma que se trata de classificação absolutamente insuficiente, de reducionismo ilusório, até porque não existem mais sistemas puros, mas apenas mistos. Ocorre que, para o autor, com o que há de se concordar, a questão é identificar o princípio informador de cada sistema, para então classificá-lo como misto ou inquisitório (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 41). Afinal, nas palavras de Afrânio da Silva Jardim, a tendência e a busca deve ser, agora, por purificar ao máximo o sistema acusatório (esse de escolha soberana constitucional), entregando a cada sujeito processual funções exclusivas, na ambição de se construir um modelo mais democrático (JARDIM, Afrânio Silva. Reflexão teórica sobre o processo penal. Justitia, São Paulo, n. 46, p. 94, out.-dez.1984. Trimestral). Admitir a existência de um sistema misto, por outro lado, consoante Diogo Rudge Malan, poderia mitigar essa busca pela sedimentação do sistema acusatório, com a construtiva eliminação das impurezas inquisitivas, uma vez que a expressão pode refletir uma indisfarçável conotação eufêmica a fim de esconder uma certa dose de saudosismo do sistema inquisitivo (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 91-92).

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“Constituição Polaca”, inspirada na polonesa, de influências fascistas, assinalada pelo golpe de Getúlio Vargas e pela demasiada ampliação dos poderes do Executivo federal – há de se concluir que o constituinte de 1988 optou por assentar o sistema acusatório, a ser, por óbvio, espraiado a toda a legislação infraconstitucional.

Embora assim não tenha disposto expressamente, tal escolha resta evidente tendo em vista, particularmente, as redações dos artigos 129, inciso I (que atribui privativamente ao Ministério Público a propositura das ações penais de iniciativa pública, separando, portanto, as funções de acusar e julgar)14; 5º, incisos LIII, LIV, LV e LVII (que consagram os princípios do juiz natural, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, e da presunção de não culpabilidade); e 5º, inciso LX, associado ao 93, inciso IX (que consagra publicidade dos atos processuais), todos da Constituição – dentre outras diversas normas que se agregam ao texto constitucional, por força do § 2º do artigo 5º, como as previstas em tratados internacionais. De maneira sintética, aponta Aury Lopes15 que a forma acusatória, à luz do sistema constitucional, caracteriza-se por denotar: (a) uma clara distinção entre as atividades de acusar e julgar; (b) a iniciativa probatória como dever das partes (decorrência lógica da distinção entre as atividades); (c) a manutenção do juiz como um terceiro imparcial, alheio ao labor de investigação; (d) o tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo); (e) um procedimento, em regra, oral (ou predominantemente); (f) a plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte); (g) o contraditório e a possibilidade de resistência (defesa); (h) a ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre convencimento motivado do órgão jurisdicional; (i) a instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social), da coisa julgada; e (j) a possibilidade de impugnar as decisões, inclusive, com o duplo grau de jurisdição.

A importância da discussão está no entendimento de que somente num sistema em que a função de acusar cabe exclusivamente ao Ministério Público ou ao querelante; a de julgar, apenas ao juiz; e a de defender-se, naturalmente, ao réu e a sua defesa técnica, marcado pela publicidade e pela oralidade, faz sentido falar-se do princípio da correlação entre acusação e

14 O constituinte organizou o Ministério Público com autonomia administrativa e orçamentária, conferindo aos seus membros as mesmas prerrogativas e vantagens da magistratura, tudo a fim de que pudesse atribuir ao juiz um posicionamento mais isento e equidistante. Assim, não obstante afetas ao Estado, as funções de acusar e julgar exercem-se por órgãos distintos e independentes, “verdadeira essência do sistema acusatório, decorrente da regra nullum indicium sine accusatione, uma das maiores garantias do julgamento imparcial, pois o julgador ne procedat ex officio” (POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 31).

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sentença, intrínseco ao debate em torno da emendatio libelli. Se aglutinadas todas essas funções numa só pessoa, evidentemente, não teria ela quaisquer limites a seguir, incluído aí o limite do dever de correlação, pois ela mesma faria de tudo.

Sedimentadas, então, a constitucionalização do ordenamento jurídico e a fixação do sistema processual penal acusatório, delas emanam vários outros princípios – como o elenco acima deixa antever –, especialmente o da inércia da jurisdição, o da ampla defesa e o do contraditório, que desembocam num processo penal mais democrático, a privilegiar os direitos fundamentais do acusado, sendo esse – e apenas esse, repita-se – o ambiente propício para o desenvolvimento dessas normas.

O princípio da inércia da jurisdição (ne procedat iudex ex officio) só ganha claros contornos, no processo penal, quando se supera o modelo inquisitivo e se atribui ao Ministério Público, órgão distinto do Judiciário, a função de acusar. Ao juiz, então, restou vedado o exercício do direito de ação, que, desse modo, reservou-se, de regra, ao Ministério Público. Desse preceito, por sinal, deriva não só a ideia de que o juiz não pode iniciar um processo, mas também a de que ele não pode prover sem que haja pedido (nullum iudicium sine accusatione) nem diversamente do que foi pedido (ne eat judex ultra petita partium), que não é outra coisa senão a correlação entre acusação e sentença.

A ampla defesa, nessa linha, alcança enorme relevo. Se é verdade que a jurisdição é inerte, e compõe-se, do outro lado da moeda, pelo direito à ação como exclusividade do Ministério Público – in casu, a ação penal pública –, esse último encontra como contraponto a defesa. Gustavo Henrique Badaró16 é de extrema felicidade ao elucidar o tema, expondo que “No plano dialético, a acusação apresenta-se como a tese e a defesa como antítese, sendo o julgamento a síntese. A defesa é uma das premissas do silogismo que representa o mecanismo básico de correlação entre acusação e sentença”. Em outros termos, não há de se falar de correlação sem também falar da defesa, daí a construção mais extensa do brocardo nullum iudicium sine accusatione, sine probatione e sine defensione.

A Constituição de 1988 cuidou da defesa, no processo penal, ao artigo 5º, inciso LV, dispondo que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Repare-se, por ora em poucas linhas, que não só foi assegurada a ampla defesa, mas os meios e recursos a ela inerentes, o que se concretiza, por exemplo, por meio da dicção do

16 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 44.

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inciso LXIII do mesmo artigo constitucional, pelo qual “o preso [leia-se: o acusado] será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, bem como do inciso LXXIV, determinando que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, daí emergindo a importância da Defensoria Pública.

Uma particularidade da redação posta é a de que, no âmbito do processo penal, o constituinte assegurou essa ampla defesa apenas ao acusado, enquanto, no processo civil, o fez a ambos os litigantes. Trata-se de mais uma evidência da peculiaridade relativa à visão dos direitos fundamentais, na seara criminal, como limitações ao dever-poder de punir do Estado. No processo civil, deve haver tratamento igualitário das partes, porém, no processo penal, há claro prestígio à defesa, em razão da supremacia do direito à liberdade – conforme será retomado ao terceiro capítulo –, o que implica, em outras vias, no princípio da presunção da não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição).

Destaque-se que, justamente tendo em vista os valores em jogo, quando a persecução penal se transmudou de um mero exercício administrativo e autoexecutável para a consideração de um órgão competente exclusivamente para postular frente ao Judiciário, o fez a partir de um processo, e não abre mão, sob qualquer pretexto, dessa regra. Antes mero ritual, hoje, esse é entendido como o único ambiente propício ao desenvolvimento pleno da ampla defesa17, como resistência à pretensão acusatória do Estado-poder, o qual não pode insistir na utilização de qualquer outro meio que não seja esse.

Aí está mais uma diferenciação em relação ao tratamento cível, em que as partes livremente podem transigir no âmbito extraprocessual. Assim, o princípio da ampla defesa liga-se intimamente ao do devido processo legal, que, em verdade, é permeado por todos os demais princípios, orientando só ser válida a persecução penal quando plasmada em um processo que observe todos os direitos e garantias18. A sua ligação com a ampla defesa, no entanto,

17 Que, na sequência, demonstrar-se-á igualmente irrenunciável.

18 Diogo Rudge Malan assevera que o devido processo legal, muitas vezes, é visto como um simples amálgama de outras garantias. Malgrado essas outras garantias sejam importantes, destaca que, se apenas a elas se reduzisse o devido processo legal, não se justificaria a sua enunciação expressa no artigo 5º da Constituição, possuindo, além de dignidade constitucional, condição elevada a cláusula pétrea. Assim, conclui que o princípio em questão abrange, quer as garantias postas no texto constitucional, quer em dispositivos de origem transnacional, como o Pacto de São José da Costa Rica, quer em demais diplomas, ou seja, apresenta relevante função residual, abrangendo garantias para além daquelas previstas em lei. Desse modo, ninguém pode ser privado de sua liberdade sem um processo que atrele as preceituações constitucionais e as normas penais, sejam de natureza substancial ou instrumental (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 33-35). Ainda, segundo Benedito Roberto Garcia Pozzer “De nada servem as leis processuais estipularem as etapas a serem seguidas até atingir o término do processo, se o acusado – desamparado,

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se pela singularidade de entender-se que essa só pode ser efetivamente exercida, em meio à persecução penal – na qual apresenta-se com titularidade da ampla defesa apenas o acusado –, mediante o processo (nulla poena, nullum crimen, nulla culpa sine iudicio ou princípio da necessidade). Eis a particularidade do devido processo penal, espécie do gênero devido processo legal.

No processo penal, pontue-se, brevemente, além de o Estado não poder punir direta e imediatamente, o que provocaria inúmeras restrições à liberdade do acusado (gravames ao status libertatis), há ainda a exigência de uma fase preliminar de investigações acerca dos acontecimentos e da autoria, em razão de o processo, por si só, punir, pelo constrangimento de se ter uma ação penal em seu desfavor (gravames ao status dignitatis). Não se concebe uma ação penal desprovida de qualquer lastro fático, a causar constrangimento gratuito ao acusado. Essa fase preliminar, preparatória e informativa é o que habitualmente se chama de inquérito, a recolher elementos para formar a justa causa da ação penal, a qual será submetida à cognição sumária do juiz para confirmar o recebimento da ação penal. É apenas mais uma evidência da força da ampla defesa no ambiente criminal.

Feita a ressalva, tem-se que, nesse meio processual, o comentado antagonismo entre o direito de ação e a ampla defesa dinamiza-se, notadamente, pelo contraditório (audiatur et altera pars), que se dirige, sobretudo, ao juiz, importando num verdadeiro dever de lhe dar efetividade e plenitude, o proporcionando a ambas as partes. Quer-se dizer que, a todo tempo, deve ser viabilizada a ampla comunicabilidade no processo – pelo que muitos chamam do binômio informação-reação –, para que as partes possam participar ativamente, influenciando e provando suas alegações.

Ao contrário do que ocorre com a ampla defesa, a titularidade do contraditório também cabe à acusação, pois tem ela, do mesmo modo, legítimo interesse em ser informada dos atos processuais praticados pela parte adversária e pelo juiz. O direito de defesa, nessa perspectiva, é análogo ao direito de ação, e, embora evidentemente ação e defesa não se esgotem nesse binômio informação-reação – devendo ter-se extremo cuidado, em especial, no tratamento da defesa como mera face oposta da ação – é inegável que o certo paralelismo entre ambos desdobra-se em todo o processo, assegurando às partes a possibilidade de produzir provas,

sem garantias mínimas e transformado em objeto – ficar à mercê do Estado. Cada ato processual que se cumpra e cada fase superada devem ser regidos pelas garantias previstas. Somente existe devido processo penal quando, além da sujeição às formalidades estipuladas em lei, cada ato processual for realizado com o acatamento aos direitos fundamentais, única maneira de haver o processo penal como limite material à função punitiva do Estado” (POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 24).

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aduzir suas razões, recorrer de decisões, e agir, de maneira geral, para a tutela de seus interesses19.

Dessa forma, a par do exposto quanto à inércia da jurisdição (e ao direito à ação), à ampla defesa (e ao devido processo legal) e ao contraditório, residentes do sistema acusatório, pode-se, enfim, perquirir o princípio da correlação20 entre acusação e sentença no processo penal.

2.1. O PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO NO PROCESSO PENAL

Conforme se esclareceu, a regra da correlação advém da inércia da jurisdição, só podendo ser provido aquilo que foi pedido, e, no seu desdobrar-se, engloba, inexoravelmente, a defesa, pois, somente nesse dialogar do direito de ação com a defesa, moldados pelo contraditório, chega-se à fase decisória. Então, são esses os diversos princípios informadores da correlação entre acusação e sentença. Como desvenda Benedito Roberto Garcia Pozzer21, “corolário do devido processo penal, a correlação entre acusação e sentença aglutina inúmeras garantias constitucionais e processuais, colocadas ao dispor do acusado, em limitação à atuação do Estado no exercício do jus puniendi”.

No momento, sucede-se, aos poucos, à superação do ranço do estado policial, para o ganho de força aos direitos individuais, os quais, se antes precisavam de reconhecimento, hoje buscam a materialização, no que não difere o progresso em torno do conteúdo em exame, em que ainda é premente a materialização dos sobreditos princípios informadores.

No entanto, na abordagem tencionada, é importante saber sobre exatamente o que recai essa correlação, o que deve manter identidade desde a propositura da ação penal até a sentença,

19 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. 2. ed. São Paulo: Forense. p. 5.

20 Ou princípio da congruência, ou da inalterabilidade da demanda, ou da correspondência do objeto da ação com o objeto da sentença, termos, sobremaneira, utilizados no processo civil. A propósito, no âmbito processual civil – é importante que se esclareça, a fim de deixar nítida a espécie aqui tratada – Fredie Didier Jr. costuma dividir a congruência em interna e externa, sendo essa última subdividida em subjetiva e objetiva. Para ele: “A congruência externa da decisão diz respeito à necessidade de que ela seja correlacionada, em regra, com os sujeitos envolvidos no processo (congruência subjetiva) e com os elementos objetivos da demanda que lhe deu ensejo e da resposta ao demandado (congruência objetiva). A congruência interna diz respeito aos requisitos para a sua inteligência como ato processual. Neste sentido, a decisão precisa revestir-se dos atributos da clareza, certeza e liquidez” (DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA; Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. v. 2. p. 247). A congruência então explorada, nesse comparativo, seria a externa objetiva.

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isto é, definir o objeto do processo penal. Nessa sede, ainda há grande embate doutrinário, donde há de se explorar a questão desviando dos entraves inócuos.

É certo que, quando do início desses debates por parte da doutrina, tinha-se, como ponto de partida, o processo civil, que, com algumas adaptações, foi transportado para o campo processual penal. Por muito tempo, então, questionou-se se o objeto do processo civil seriam as afirmações de direito material e de fato que fundamentam o pedido ou seria o próprio pedido, quando, majoritariamente, concluem que, em verdade, pedido e causa de pedir compõem a pretensão do autor. Fugindo às polêmicas, um ponto incontroverso parece ser o de que o objeto do processo se relaciona à pretensão, ou seja, àquilo que o autor pretende.

Verdade é que, em algumas ocasiões, a discussão esvazia-se, sendo, em dado momento, comum satisfazer-se com a conclusão quanto à pretensão processual como objeto do processo, excluídas as demais incertezas22. E é justamente esse estágio do raciocínio que interessa transpor ao processo penal.

Nesse ponto, cientes de que o objeto do processo penal se identifica com o objeto da pretensão, cumpre salientar o que Badaró23 vigorosamente adverte: essa pretensão, entretanto, não se trata da pretensão punitiva. No linguajar civilista, é comum dizer que, com o preenchimento de um suporte fático, surge para alguém uma “peculiar situação de vantagem”24, designada de direito subjetivo. Sabe-se que esse direito subjetivo25, porém, é um componente estático, que independe do processo, mas pode (no caso do direito processual penal, deve) ser levado, posteriormente, à sede do processo. Cuida-se esse direito inicial da pretensão material26. A pretensão material equivale, no âmbito criminal, à pretensão punitiva – ou intenção punitiva, visto que não há como visualizar o conceito de pretensão como uma exigência de subordinação de interesse alheio ao próprio no processo penal –, surgindo sempre que alguém

22 Cita Badaró que foi a decisão outrora atingida por Cândido Rangel Dinamarco em estudos sobre o mérito do processo civil (BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 68).

23 Ibid., p. 68-79. 24 Ibid., p. 69-70.

25 É lógico que essa expressão não pode ser utilizada acriticamente no processo penal, mas, no caso, serviu à construção do raciocínio a que se pretendia demonstrar.

26 Pozzer, comentando lições de Rogério Lauria Tucci, sublinha que o conceito de pretensão, como geralmente formulado pela doutrina processual, no sentido de exigência de subordinação do interesse alheio ao próprio, dificilmente encontra guarida no processo penal, em que há, somente, interesse em punir e, uma vez concretizada a relação jurídica penal, o exercício do poder-dever de punir e a correlata manifestação da intenção punitiva perante o órgão jurisdicional (POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCrim, 2001, p. 73).

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pratica determinado delito, podendo (e devendo) o Estado-poder exigir o sacrifício da liberdade daquela pessoa para que prevaleça a punição estatal.

O jus puniendi, de início, abstrato, aparece concreto no jus persequendi, mas, no exercício desse dever-poder, o Estado, face às conquistas dos estados democráticos no embate contra as tiranias do poder, concebe, como posto, um órgão acusador. Então, a pretensão processual, no que lhe concerne, já é aquela veiculada em juízo, por meio do direito da ação, exercido por um órgão acusador, tendo como destinatário o Estado-Judiciário, que deve atuar a vontade concreta do direito, objetivando levar “à justa composição da lide”27. E, por, no âmbito criminal, ser sempre necessária a conversão da pretensão material em processual, diz-se que a pretensão material é sempre insatisfeita, ou opta-se por chamá-la de intenção punitiva.

Aury Lopes Jr28, embora com outros termos, explica bem a problemática. Aduz o autor que o erro da visão tradicional está em, considerando que o objeto do processo é a pretensão punitiva, por outras vias, admitir que o Ministério Público atua, no processo penal, da mesma forma que o credor no processo civil. O dever-poder de punir pertence ao Estado, o qual, contudo, não pode autoexecutá-lo, diante das escolhas constitucionais já tratadas, o que lhe determina o acionamento do Estado-Juiz imparcial, por meio da específica instituição do Ministério Público. Completa que “a premissa equivocada está em desconsiderar que o Ministério Público não exerce pretensão punitiva, porque não detém o poder de punir [...]. No processo penal, quem detém o poder de punir é o juiz [...]” – juiz esse que exerce o poder punitivo estatal.

Explica, utilizando-se de ensinamentos de Binding, que o Estado é titular de um triplo direito29: direito punitivo, direito de ação penal (exercido pelo Ministério Público) e direito ao pronunciamento da sentença penal (exercido pelo Estado-Juiz)30. Assim, se o Ministério Público exerce uma pretensão, no processo, que não é a punitiva, há de se nomeá-la diversamente, sendo, para o autor, a pretensão acusatória ou, pode-se dizer também, a pretensão processual penal. Adiciona, nessa toada, que, não há de se falar, diferentemente do processo civil, em direito subjetivo, mas sim em direito potestativo, ou seja, em poder que tem o acusador de, com o nascimento do delito, dirigir-se ao tribunal. E, de outro lado, existe o poder de punir

27 Expressão usada em DINAMARCO, Cândido Rangel. Instrumentalidade do processo. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 189.

28 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 50-51.

29 Ao quarto capítulo, ocasião que se entendeu mais propícia, será visto que, mais que um direito, trata-se o exposto de um dever do Estado.

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do tribunal, pois o Estado exerce seu direito de penar no processo não como parte, mas como juiz31.

A independência entre essas distintas pretensões evidencia-se, a título de exemplo, no trato da prescrição. A pretensão punitiva (material) prescreve pelo decurso de um lapso temporal sem que seja iniciado o processo (em que se veicula a pretensão processual penal).

Dessa forma, o objeto do processo penal é a pretensão processual penal, discrepante da pretensão punitiva.

Acerca do conteúdo dessa pretensão processual penal, mais uma vez, diferentemente do processo civil, é consenso que o pedido não se mostra com demasiada importância. É que ele é, de certa forma, genérico, pleiteando a condenação de alguém dentro dos limites legais, com fins de privação da liberdade desse alguém. Não se nega que há pedido, porém, ainda que a denúncia o descreva de forma particularizada, é sempre um pedido de responsabilização penal, de condenação, apenas cabendo ao juiz graduar as exatas medidas da pena e impor as demais sanções que dali possam advir. Com isso, destituído de relevância para identificar ou individualizar a ação penal é o pedido.

Sob outra perspectiva, surge com grande empatia, no âmbito criminal, a noção de imputação, que é dita como sendo o meio pelo qual se formula a pretensão. Imputar, nessa via, seria atribuir a alguém um fato penalmente relevante, no que segue o pedido pela condenação de referido indivíduo. Significa, então, que a imputação é o veículo da pretensão, e, nesse sentido, aquilo que foi imputado, o objeto da imputação, é englobado também pelo objeto do processo penal.

A imputação, por seu lado, inclui a descrição dos fatos, a qualificação jurídico-penal desses fatos32 e a atribuição deles como tipos penais a alguém33. Em síntese, é, como já dito, o fato penalmente relevante atribuído a alguém – em cautelosa identificação com o que se chama, na processualística civil, de causa pretendi34. Em face desse conceito, diz-se que é o afirmado

31 Ibid., p. 101.

32 Nesse sentido, pontue-se, desde já, uma certa discordância com relação àqueles que, de modo mais restrito, entendem a imputação como sendo apenas a atribuição de fatos. É clarividente que tais fatos devem ser relevantes do ponto de vista penal, o que há de ser visto em seus pormenores adiante. 33 BADARÓ, op. cit., p. 79 e 83.

34 Nessa etapa, sem adentrar na controvérsia que aqui não interessa, também cabe explicar que não se nega a identificação do fato naturalístico juridicamente qualificado como delito com o que se chama de causa pretendi. A despeito disso, a expressão em referência traz à tona as divergências da processualística civil em torno do objeto (se é ele o pedido ou a causa de pedir ou ambos), do que compõe a causa de pedir (teorias da individuação – o estado jurídico afirmado pelo autor compõe a pretensão – e da substanciação – as alegações de fato identificam a pretensão) etc., inaplicáveis e, logo, desimportantes ao processo penal.

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na imputação o objeto do processo penal. Isso porque é essa afirmação de fato punível que sofre uma constante valoração ao longo de toda a persecução penal.

Utilizando-se dos ensinamentos de José Frederico Marques35, no inquérito policial, há a suspeita de um fato enquadrável em um tipo penal atribuível a alguém, ou seja, um grau de mera possibilidade; na denúncia, o fato descrito já se transforma em provável, com razoáveis indícios de autoria e materialidade; após, realizada a instrução, fase destinada justamente à colheita de provas para a verificação da veracidade dos fatos imputados, esses emergem com grau máximo de certeza.

É o que o autor chama de princípio da formulação progressiva, porquanto ser um juízo sucessivo, construído de modo ascendente ao correr do processo, avançando da dúvida para a confirmação. Nesse caminhar, todavia, o que muda é o grau de certeza aferido sobre o conteúdo da imputação, ao passo que ela, de regra, mantém-se íntegra. Trocando em miúdos e já antecipando o significado da correlação, “o objeto da sentença tem de ser o mesmo objeto da imputação, lá baseado em um juízo de certeza, aqui em uma probabilidade”36, ficando claro que o desenvolver-se do processo orienta-se à confirmação ou não do fato imputado.

Pozzer37, em visão particular do tema e com a qual há certa simpatia, iniciando as tratativas a respeito, expõe que, genericamente, a acusação pode ser definida como o apontamento do provável autor do fato penal relevante, passível de reprimenda. Da definição atingida, descreve a percepção de três elementos que compõem a acusação: fato de relevância penal, indicação de autoria e responsabilização penal, sendo que os dois primeiros elementos (fato penal relevante e indicação de autoria) constituem a imputação, ou seja, a atribuição do fato considerado delituoso a alguém, e o terceiro (responsabilização) precisa ser adicionado ao conceito de acusação.

Portanto, realça o autor que não concorda com a afirmação de que acusação e imputação são sinônimas, incluindo, como componente da pretensão acusatória, além da imputação, o que chama de responsabilização, a ser posta no pedido.

Põe que o acusador não se limita a imputar ao réu a ação ou omissão criminosa, pois assim estaria equiparado, grosso modo, à testemunha, com a única diferença de dar o acusador um conceito jurídico-legal. Descabido seria invocar alguém como possível autor de conduta reprovável e não lhe desejar uma consequência socialmente proveitosa. É apenas da

35 MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. 3. ed. Campinas: Millennium, 2009. v. 2. p. 236.

36 BADARÓ, op. cit., p. 85. 37 POZZER, op. cit., p. 63-65.

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responsabilidade jurídico-penal e de sua indicação que nasce o direito de castigar, concretizado na pena ou medida de segurança. Concorda, ao fim, com o uso da expressão “correlação entre acusação e sentença”, pois exige a simetria não só da imputação, subjetiva e objetiva, fática e legal, mas também da responsabilização, ambas componentes da acusação, com a sentença – construção que será melhor explorada ao terceiro capítulo.

Dito isso e para finalizar, a sentença, na linguagem clássica, não pode ser extra petita, como num eventual caso em que ao acusado imputa-se a conduta prevista no crime de estelionato e a responsabilização sobrevém por apropriação indébita; também não pode ser ultra petita, quando, em mais um exemplo, há denúncia pela prática de lesão corporal leve e condenação por lesão corporal grave; nem citra petita, deixando o juiz de se pronunciar sobre um fato imputado ao acusado – roubo e resistência (artigos 157 e 329 do Código Penal), como amostra, tendo a sentença apenas o roubo como objeto. No último caso, além da ofensa aos princípios informadores aqui já qualificados, há também violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição).

A regra, nessa esteira, é que o fato processual penal imputado permaneça imutável até a sentença, que poderá impor a correspondente responsabilização. Todavia, como toda regra, essa igualmente não deixa de apresentar exceções, que encontram guarida nos institutos da emendatio libelli e da mutatio libelli, previstos, respectivamente, nos artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal.

2.2. A PROBLEMÁTICA DA EMENDATIO LIBELLI

O instituto da emendatio libelli, foco deste trabalho, está descrito, no nosso ordenamento jurídico, através da redação não muito feliz do artigo 383 do Código Processual Penal38. Primeiramente, há de se examinar esse dispositivo, com as correspondentes interpretações doutrinárias a seu respeito, para, em seguida, logo na instância do terceiro capítulo, com a devida evolução no quarto capítulo, analisar a compatibilidade do instituto e de suas interpretações a tudo o quanto já em parte exposto.

38 Não raro, no trato da emendatio libelli, os livros de doutrina referem-se ao artigo 418 do Código Processual Penal, pois é ele, no âmbito do procedimento relativo aos processos de competência do Tribunal do Júri, que pontua a viabilidade de emendatio libelli, quando, na decisão de pronúncia, “O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da constante da acusação, embora o acusado fique sujeito a pena mais grave”.

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A regra do supramencionado artigo é a de que “O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha que aplicar pena mais grave”.

Denota que, não obstante frente ao mesmo substrato fático da imputação deduzida na exordial acusatória (denúncia ou queixa-crime), pode o juiz condenar o acusado em delito de tipificação diversa da apontada, de início, pela acusação, até mesmo nas situações em que lhe seja agravada a pena. Assim, tendo em vista que, como observado, a imputação é o fato penalmente relevante – portanto, qualificado juridicamente – atribuível a alguém, deve-se, realmente, reputar que o preceito em apreço, ao permitir a alteração da tipificação dos fatos, implica em certa relativização da regra da correlação entre acusação e sentença, uma vez que autoriza a mutação de elemento constituinte da pretensão acusatória.

Trata o texto legal de raciocínio decorrente dos velhos brocardos iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius. Em suma, traduzem eles que o acusado, no processo penal, defende-se de fatos e não do direito (princípio da consubstanciação), uma vez que não tem o conhecimento técnico para tal. Isso posto, dando os fatos ao juiz, “supremo sabedor técnico”, daria esse último o direito, que pode ser, inclusive, diferente daquele indicado, geralmente, pelo Ministério Público. É o que também se chama de princípio da livre dicção do direito.

Na abordagem da problemática, Renato Brasileiro de Lima39 acredita na possibilidade de aplicação de 03 (três) formas de emendatio libelli pelo juiz, são elas: emendatio libelli por defeito de capitulação; emendatio libelli por interpretação diferente; e emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância. Veja-se como a doutrina descreve cada uma.

Norberto Cláudio Pâncaro Avena40 retrata que a emendatio libelli por defeito de capitulação concerne à situação na qual o juiz profere sentença condenatória ou decisão de pronúncia em conformidade exata com o fato descrito na denúncia ou na queixa, contudo reconhece que tal fato se amolda a dispositivo penal distinto daquele que constou na inicial. Exemplifica que, denunciado o acusado por roubo, mas, por equívoco, capitulada essa infração, na denúncia, como o artigo 147 do Código Penal (crime de ameaça), na sentença, o juiz poderia condenar o réu pelo crime descrito (roubo), esclarecendo, porém, que se trata de conduta que tem enquadramento no artigo 157 do Código, cuja pena, evidentemente, é maior do que a relativa ao artigo equivocadamente atribuído na denúncia.

39 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 1. ed. Niterói: Impetus, 2012. p. 701-702. v. 2.

40 AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal: esquematizado. 3. ed. São Paulo: Método, 2011. p. 1033.

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Renato Brasileiro41, em sua vez, retrata a situação sob ângulo distinto, destrinchando exemplo em que o Ministério Público oferece denúncia contra alguém pela prática de crime contra a ordem tributária, do qual tenha resultado prejuízo superior a R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), entretanto, por ocasião da classificação constante da denúncia, pede expressamente apenas para que o acusado seja condenado pela prática do crime previsto no artigo 1º, incisos I e II, da Lei nº 8.137, de 1990.

No caso hipotético, o órgão ministerial acabou por não incluir a majorante do artigo 12, inciso I, do referido diploma legal, que prevê um aumento de pena de 1/3 (um terço) até 1/2 (metade) quando o crime ocasiona grave dano à coletividade. Nessa narrativa, comenta o autor que:

[...] como o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados na denúncia e não da classificação jurídica nela estabelecida, por mais que a causa de aumento de pena sob comento não tenha sido expressamente mencionada por ocasião da classificação constante da peça acusatória, como ela foi descrita na denúncia – não se pode negar a eloquência da quantia sonegada de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), indubitavelmente capaz de provocar grave dano à coletividade –, é perfeitamente possível a aplicação da referida pelo magistrado sentenciante, sem que se possa objetar eventual violação ao princípio da congruência.

Com relação à emendatio libelli por interpretação diferente, diz-se ser aquela na qual, similarmente, não se altera a imputação fática constante da peça acusatória, porém, em sede de sentença, o juiz interpreta tal substrato fático de maneira a conferir tipificação diversa da atribuída pelo Ministério Público ou pelo querelante.

Aconteceria quando, discriminando a acusação um crime de roubo consumado (artigo 157 associado ao artigo 14, inciso I, do Código Penal), mas, entendendo o juiz por não se ter concretizado a inversão da posse do bem, condena o acusado nas penas do roubo tentado (inciso II do citado artigo 14). Ou, quando o Ministério Público denuncia um indivíduo por homicídio qualificado por meio cruel (artigo 121, § 2º, inciso III, do Código Penal), ao passo que o magistrado interpreta configurar o mesmo meio descrito, em verdade, a qualificadora de uso de recurso que impossibilitou a defesa do ofendido (inciso IV do mencionado § 2º).

Por fim, no caso de emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, no entendimento majoritário, tem-se uma nova capitulação do fato em função da não comprovação, durante a fase de instrução processual, de todas as circunstâncias ou elementares

41 LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal [versão ePUB]. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2016.

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enunciadas à peça acusatória. A valer, deve-se aceitar que, in casu, há uma supressão fática, que acaba por resultar na mudança da tipificação. O exemplo usualmente exposto pela doutrina é o referente à denúncia por roubo, sendo que, frente às provas angariadas na instrução, não se demonstra a ocorrência de violência ou grave ameaça (elementares do delito de roubo), do que segue uma condenação por furto (artigo 155 do Código Penal).

Nesse último cenário, como dito, há alteração fática, enquanto o Código de Processo Penal reclama pelo procedimento da emendatio libelli apenas “sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa”. Seria, dessa sorte, caracterizada a mutatio libelli? Diz-se que não, pois essa só aconteceria por meio de acréscimo – e não supressão – de elementar ou circunstância não contida na acusação42, o que, ao quarto capítulo, será revisitado e dimensionado.

Há de se comparar, por fim, nestas primeiras considerações, ambos os institutos, pontuando-se, definitivamente, o que cada um engloba.

Pois bem, a mutatio libelli está no artigo 384 do Código Processual Penal, dispondo seu caput:

Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em consequência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 5 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente.

Ora, no curso da instrução processual penal, podem surgir novas provas quanto a elementares ou circunstâncias de crimes, as quais podem não estar contidas na denúncia, mas importem na alteração do substrato fático da imputação. Nesse desenrolar, o Código prevê a necessidade de aditamento da inicial, com posterior oitiva da defesa e renovação da instrução (§ 2º do artigo 384). Entende-se, na mutatio libelli, que outro procedimento, que não esse aditamento, implicaria num claro prejuízo ao acusado, mais uma vez pelo raciocínio de que ele se defende de fatos, e, sendo alterados os fatos para a inclusão de elementos não descritos na exordial, não teria a oportunidade de rebatê-los.

Exemplo banal é a mera inversão da situação de chamada emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, ou seja, quando há denúncia pelo crime de furto, mas, no correr da instrução, o ofendido e as testemunhas declaram-se no sentido da ocorrência

42 Exempli gratia, Renato Brasileiro (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 1. ed. Niterói: Impetus, 2012. p. 702. v. 2).

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de violência ou grave ameaça, elementares do delito de roubo, havendo acréscimo dessas elementares em relação à imputação inicial.

Por último, impõe fazer a ressalva de que os fatos surgidos em questão não podem ser propriamente fatos novos, mas devem guardar alguma relação com a imputação inicial, acrescentando-lhe algo que a modifique. O surgimento de fato novo, totalmente distinto do inicialmente imputado, deve orientar uma nova e diversa denúncia.

3. A RELEITURA DA EMENDATIO LIBELLI

Pontuadas as questões preliminares a respeito da temática em abordagem, isto é, os princípios informadores da correlação entre acusação e sentença e o entendimento majoritário a respeito da emendatio libelli, é hora de adentrar no seu exame em maior grau de criticidade. Será realizada interpelação relativa aos basilares princípios aduzidos, os quais, em tese, entabularam a formação da regra da correlação, verificando-se, no trato da emendatio libelli, posta, em princípio, como exceção à regra, se devem ou não ser observados.

Para isso, interessante trazer à baila uma citação de Fernando da Costa Tourinho Filho, referente aos velhos brocardos iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius, que determinam a maioria das interpretações a respeito da emendatio libelli. A análise, a partir de então, dar-se-á, ultrapassado o momento da dedicação expositiva, de maneira efetivamente crítica. Veja-se o afirmado por Tourinho Filho43, que aparenta ser o entendimento dominante sobre o tema:

[...] se o Juiz conhece o direito, evidente que a errada classificação do crime feita na denúncia ou queixa não constitui obstáculo à prolação de sentença condenatória, ainda que a pena a ser imposta seja mais grave. Afinal de contas o réu não se defende da capitulação do fato, mas do próprio fato. Na denúncia ou queixa o acusador expõe o fato. Se estiver errada sua capitulação, nem por isso deve o Juiz anular o processo, tal como acontecia anteriormente, mesmo porque o que se exige é a correlação entre o fato contestado e a sentença. A parte pergunta, o Juiz responde. A parte narra o fato, o Juiz diz qual a lei a ser aplicada. Narra mihi factum, dabo tibi jus (narra-me o fato e te darei o direito). [...] Citado, o réu vai defender-se da imputação que lhe é feita, e não da sua capitulação (grifos nossos).

Tal como posto pelo autor, parece óbvia a questão, no entanto, algumas perguntashão de ser feitas. Será que “Na denúncia ou queixa o acusador expõe o fato” e só? Será que

43 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 869-870.

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