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O PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA COMO DECORRÊNCIA DO

3. A RELEITURA DA EMENDATIO LIBELLI

3.2. O PRINCÍPIO DA NÃO SURPRESA COMO DECORRÊNCIA DO

A segunda questão, então, interpela se apenas a parte pergunta e simplesmente o juiz responde. Por óbvio, a resposta só pode ser negativa. A esse raciocínio, pertinente o rebate de Aury Lopes67, para o qual “é reducionismo pensar o princípio da correlação (ou congruência) no binômio acusação-sentença, pois não se pode admitir a decisão acerca de matéria não submetida ao contraditório”.

O contraditório, como visto, determina a construção dialética do processo. E, nessa via, trazendo novamente a discussão para o cerne deste trabalho – qual seja, a mudança na tipificação penal com a manutenção da situação fática, em razão da emendatio libelli –, impõe- se, também, às questões de direito. Necessário o realce, porque, tradicionalmente, é ele aplicado unicamente às questões fáticas, ou seja, apenas diante da colheita do material probatório, certamente devido aos mencionados velhos brocardos iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius. Por essa mesma razão, diga-se de passagem, nas costumeiras abordagens do princípio do contraditório, a visualização fixa-se nas partes, sem alcançar a figura do juiz.

66 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1988. v. 3. p. 155.

67 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 889.

Sucede que, em conformidade com o, há tempos, alertado por Carlos Alberto Álvaro de Oliveira68, proposta a demanda e delimitados os seus contornos essenciais, constitui dever do juiz controlar o rápido, regular e leal desenvolvimento do processo. E, nesse desígnio, sua vontade nunca pode ser totalmente soberana, pois, de um ou outro modo, condiciona-se à vontade das partes, no que representam de estímulo, resistência ou concordância, uma vez que o monólogo consigo mesmo limita a perspectiva do observador, enquanto o diálogo, em compensação, favorece à formação de um juízo mais aberto e ponderado.

Faz-se, assim, palpável a insuficiência do conceito do contraditório, tal qual geralmente previsto na doutrina brasileira, como mera ciência bilateral dos atos do processo e possibilidade de contraditá-los, tornando-se dever de obediência também pelo juiz, cuja posição incumbe zelar pelo contraditório pleno e efetivo. Se o processo passa a ser um procedimento em contraditório – núcleo dos estudos deElio Fazzalari69 –, o protagonismo é, sim, das partes, mas o juiz deve se reservar ao papel de garantidor do contraditório. Ficou para trás a ideia de parte como mero objeto do pronunciamento judicial, exibindo poder de atuar criticamente e construtivamente no andamento do processo70. O magistrado pode até fazer valer seu entendimento jurídico, mas não sem antes ouvir e, sobretudo, considerar o aduzido pelas partes. E essa prévia oitiva das partes, como dito, não é dispensada quando se lida com questões de direito, pois, não raro, elas ultrapassam uma simples subsunção. Podem surgir ao aplicador problemas não solucionáveis com facilidade, tais como, o concurso aparente ou real de normas, os conflitos de lei no tempo e no espaço, a necessidade de compatibilidade entre a norma e a Constituição, a variedade de interpretações a respeito de um mesmo texto de lei etc., pelo que, no exercício provocativo do (dever do) contraditório, o juiz mitiga o empecilho encontrado, angariando elementos que lhe convençam e desprendam de eventuais preconceitos, apercebendo-se que, muitas vezes, eles só são satisfatoriamente informados pelas partes.

O consignado dever, além do mais, não está ligado apenas ao interesse processual e individual das partes, mas encontra uma íntima conexão com o interesse público. No campo decisório, inegavelmente, incide o contraditório, só sendo legítimo admitir decisões pautadas pelo binômio informação-reação, isto é, decisões sujeitas a prévio debate. A lógica, por outro caminho, refere-se a decorrência fidedigna do já discorrido Estado Democrático de Direito, o

68 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Juiz e o princípio do contraditório. R. Fac. Direito UFRGS, Porto Alegre, n. 9, p. 178-184, nov. 1993. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/revfa cdir/article/view/68822/38922>. Acesso em: 19 out. 2019.

69 FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Tradução de Elaine Nassif. 1. ed. Campinas: Bookseller, 2006. p. 121-125.

qual pressupõe a participação efetiva dos indivíduos em todos os atos de poder que potencialmente lhes afetem, e que, no processo, corresponde à oportunização do contraditório. A prevalência dos ultrapassados iura novit cúria e narra mini factum, dabo tibi ius, noutra banda, pode vir a transformar o processo em instrumento de opressão e autoritarismo.

O clamado livre convencimento do juiz não é ilimitado. Valora as provas e escolhe a regra jurídica aplicável, mas sempre vinculado à fundamentação, daí falar-se em livre convencimento racional e motivado. Trata-se de exigência, aliás, positivada constitucionalmente ao artigo 93, inciso IX, e constante do artigo 155 do Código de Processo Penal71, impondo a progressiva consignação das justificações de escolhas pelo juiz. No Estado Democrático, só se concebe a intromissão do Estado na vida das pessoas se com fundamentos demonstrados e pautados na ordem jurídica a qual o próprio Estado submete-se72. É o grande desafio retórico do juiz: evidenciar que decide de forma legítima.

Esse estudo da motivação do juiz é o que permite perceber o afastamento da questão processual penal – fática ou jurídica – levada a julgamento, sendo incabível acolher questões que não foram objeto da acusação formal ou que foram ignoradas pela defesa do acusado73.

É por esses motivos que alguns doutrinadores, sem qualquer embargo, são pela aplicação do contraditório aos casos de emendatio libelli. Quer-se dizer que, previamente ao ato decisório que profere a nova tipificação atribuída aos fatos inicialmente imputados, considera-se imperioso provocar as partes a respeito da definição jurídica assemelhada ou confundida com a pretendida.

Exempli gratia, Renato Brasileiro74 afirma que se impõe a manifestação das partes na hipótese de possível alteração da capitulação jurídica atribuída aos fatos. Completa argumentando que “Se é verdade que o princípio do iuria novit curia confere ao juiz a possibilidade de alterar a classificação dos fatos constantes da peça acusatória, também não é menos verdade que o princípio do contraditório lhe impõe a comunicação prévia às partes”, inclusive nas ocasiões de tomadas de decisão de ofício, sempre evitando que sejam elas indevidamente surpreendidas no momento da sentença.

71 Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

72 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, Nulidades do processo e da sentença. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 249. (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman; 16). 73 POZZER, op. cit., p. 136.

74 LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1033.

Walter Nunes75 acresce e reforça não se poder perder de vista que a emendatio libelli acaba por permitir ao juiz a prolação de sentença com argumento novo, pautado na nova tipificação da conduta, que não foi objeto de debate pelas partes. Sustenta, na sequência, não parecer razoável ser o acusado surpreendido com fundamento de parte substancial da sentença, relembrando cuidar-se, outrora, de ponto extremamente controvertido também no processo civil, motivação pela qual emergiu o artigo 10 do Código Processual Civil de 2015. Citado artigo preceitua que “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”.

O exarado princípio da não surpresa, nesse modo de pensar, com ainda mais razão incidiria no processo penal, frente à mais larga dicção do princípio da ampla defesa no âmbito criminal. Para o autor, com quem há de se concordar, a compatibilização do artigo 383 do Código Processual Penal, justamente aquele que cuida da emendatio libelli, ao sistema constitucional estaria garantida pela aplicação do princípio da não surpresa.

De fato, merece grande atenção o estudo do princípio da não surpresa. É que ele consagra tudo o quanto até agora elaborado e trata-se de novidade reconhecida pelo sistema brasileiro. Como pontuado, o artigo 10 do Código de Processo Civil formulou a vedação à decisão surpresa – ou decisão de terceira via (terza via). Diz-se que o novo princípio redefiniu o modelo do processo civil brasileiro, que passou a ser cooperativo76. Ademais, o artigo 9º da mesma codificação, em seu caput, descreve que “Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida”. A aplicabilidade da disciplina no âmbito criminal, por sua vez, dá-se em razão do artigo 3º do Código de Processo Penal, pelo qual “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.

Foi dito que o princípio da não surpresa concretiza tudo o ora discutido, especialmente, porque ele sedimenta a dimensão substancial do contraditório, isto é, sua face relativa ao poder de influência. No Estado Democrático de Direito, concebe-se o contraditório como garantia de participação (audiência, comunicação, ciência) e poder de influência. A visão tradicional consubstancia-se na participação (dimensão formal), mas esse é o conteúdo mínimo do contraditório, uma vez que, como dito, hoje, não basta assegurar a oitiva da parte, mas que ela

75 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais [versão Kindle]. 3. ed. Natal: OWL, 2019.

76 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 18. ed. Salvador: Juspodivm, 2016. p. 85. v. 1.

realmente tenha condições de influenciar na decisão77, não basta conhecer, mas influir nos rumos78, daí, inclusive, sua acepção como dever do juiz e sua aplicação a questões de direito.

Na atual ideia do contraditório, tendo em vista a determinação da não surpresa, por conseguinte, “as partes têm o direito de confiar que o resultado do processo será alcançado mediante material previamente conhecido e debatido”79, possuindo elas o direito de pronunciar- se sobre qualquer ponto de apoio à decisão da causa, inclusive questões apreciáveis de ofício. Com isso, o princípio da não surpresa condiciona a máxima iura novit cúria ao prévio diálogo. O juiz continua com o poder de aplicar o direito, mas a validade dessa aplicação do direito ao caso concreto é condicionada ao diálogo – aplicação essa que inclui, no processo penal, a tipificação dos fatos80.

Assim, no quadro histórico, o contraditório realizava-se apenas pela observância do binômio informação-reação, faculdade estendida à produção de provas, feição própria da cultura do Estado Legislativo – em que as partes eram confinadas ao terreno das alegações de fato e da respectiva prova, e em que o órgão jurisdicional nada tinha a ver com a realização do contraditório, sendo os litigantes seus únicos destinatários. A positivação do princípio da não surpresa, então, rompe, definitivamente, com essa lógica e marca o estabelecimento do contraditório como poder de influência, cabendo ao julgador não só velar pela sua oportunização às partes, mas, fundamentalmente, a ele também se submeter81.

Aclarada, portanto, ficou a segunda indagação formulada. O processo não envolve só uma pergunta da parte autora seguida de uma resposta do juiz. E, reformulando a resposta com o acréscimo das conclusões atingidas com o primeiro questionamento, o processo não se resume a uma pergunta englobando fatos acompanhada por uma resposta do direito pelo juiz. Em síntese, a parte acusadora apresenta fatos com relevância jurídica (penal), que são correspondentemente contraditados na medida em que ofertados e, inclusive, na sua significação jurídica – e consequente tipificação penal. Apenas aí, em descrição simplificada, pode sobrevir a síntese refletida na sentença.

Além do mais, o direito de contraditar pressupõe a determinação precisa da imputação, pois ninguém pode defender-se de generalidades e, de modo parelho, não pode o juiz ir além

77 Ibid., p. 81-86.

78 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 171.

79 Ibid., p. 172. 80 Ibid., p. 173. 81 Ibid., p. 171.

do perímetro traçado pela acusação (res in judicium deducta)82, o que equivaleria a uma verdadeira iniciativa de persecução penal. Aí está, portanto, a imposição de que os fatos e sua relevância penal sejam especificados, ou seja, tipificados desde a denúncia.

Posto isso, conveniente reproduzir trecho de singular precisão de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Filho83, reportando-se que:

Defesa e contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o contraditório. A defesa, assim, garante o contraditório, mas também por este se manifesta e é garantida. Eis a íntima relação e interação da defesa e do contraditório

Nesse viés, já se encaminha, em sintonia, à terceira interrogação realizada. Isso porque, no processo penal, o princípio do contraditório compreende uma espécie de “relevância compensatória” – usando termo e argumentação despendidos por Felipe Martins Pinto e Paula Brener84 – para a democratização do processo e para a legitimação das decisões judiciais.

Explica-se: de acordo com o reiteradamente colocado, o modelo democrático impõe a participação do indivíduo no processo em questão sempre que um ato de poder seja capaz de lhe afetar os interesses. Participação que, no ambiente judicial, sedimenta-se pelo contraditório, sendo que, no que tange especificamente ao âmbito criminal, sobre o acusado pende o risco de um provimento final que lhe restringirá a liberdade, direito fundamental presumido na mais elementar das Constituições, pressuposto para o exercício dos demais direitos. Aí está uma peculiaridade que não pode ser deixada de lado.

Ademais, o processo penal desenvolve-se entre desiguais. É fácil entender sabendo que, no processo civil, antagonicamente, contradizem-se indivíduos, a priori, iguais, de forma parelha, titulares de direitos, sejam patrimoniais ou extrapatrimoniais, equivalentes. De maneira oposta, o processo penal, como brevemente introduzido ao segundo capítulo, confronta o indivíduo frente ao Estado-poder. O Ministério Público, apesar de, no modelo democrático, abandonar a função de instituição meramente acusadora para se tornar representante da

82 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 3. ed. Campinas: Millennium, 2009. p. 50.

83 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FIHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal. 6.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 69.

84 PINTO, Felipe Martins; BRENER, Paula. A eficácia do contraditório no processo penal: atuação e legitimação para além da legalidade. e-Revista CNJ, Brasília, v. 3, n. 1, p. 37-50, jan.-jun. 2019. Semestral. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/ojs/index.php/revista-cnj/article/view/30>. Acesso em: 19 out. 2019.

sociedade, não deixa de dispor do aparato estatal em seu favor, podendo requerer o cerceamento da liberdade do acusado para coleta de provas (prisão temporária); a quebra de sigilo de dados ou bancária; a interceptação telefônica etc.

Dessa maneira, ainda acompanhando o raciocínio delineado pelos autores suprarreferidos, o processo penal transcorre-se entre desiguais e tem como provimento final possível a mais gravosa sanção do ordenamento, a pena privativa de liberdade. Trata-se de debilidade estrutural, que sempre existirá e sem nenhuma relação com as condições econômicas ou sociopolíticas do acusado, decorrendo apenas do lugar para o qual ele é chamado a ocupar, o de “réu”85.

Na outra banda da moeda, os direitos e garantias do indivíduo, assegurados constitucionalmente, impedem a contraposição simétrica dos interesses neste modelo de processo. A preferência da sociedade em manter a liberdade de sujeitos culpados para certificar que não se prenda um inocente afasta a possibilidade de contraste paritário entre as políticas do Estado e os direitos do acusado no processo. Nesse mesmo sentido, Francesco Carrara86 ministrava que à sociedade é mais prudente absolver um culpado do que condenar um inocente, visto que a condenação de um inocente representa um mal concreto e real, afora, claro, a combinada impunidade do culpado, ao passo que a absolvição do culpado apenas tem a potencialidade de causar outra lesão social.

É séria a lição. À sociedade só é garantido o direito de punir o “verdadeiro réu”. A valer, existindo dúvida razoável, há de se absolver o acusado, sob pena de perturbar profundamente o convívio social ao punir-se um inocente, porquanto todos os indivíduos ver- se-iam como potenciais alvos de erro judiciário, deixando o processo de ser via de proteção aos que atuam nos conformes da ordem jurídica.

Diogo Rudge Malan87 é firme ao salientar que o processo penal é campo de imanente tensão entre o dever-poder de punir do Estado e o direito individual à liberdade, havendo solo fértil para situações de conflito entre direitos de primeira e segunda geração, mas destaca que “é indiscutível que, em sede de persecução penal, os direitos de primeira geração devem ter primazia sobre todos os demais, pois o processo penal é, em si mesmo, um importantíssimo instrumento de inibição da ingerência estatal excessiva na vida dos cidadãos”.

85 LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 70.

86 Francesco Carrara apud SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015. p. 380.

Diante dessas premissas, não se distribui – e não podia ser de outro modo – igualmente a propriedade do contraditório no processo penal. Ao acusado, titular do direito fundamental da liberdade, devem ser propiciadas condições reais de participação no processo, limitando o Estado, e vinculando o Ministério Público e o juiz.

Essa “geometria única” do processo penal designa que o Ministério Público atua legitimamente no processo quando subordinado à estrita legalidade. Tendo assumido o papel de defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (segundo a redação do caput do artigo 127 da Constituição), o parquet só age validamente quando manifestando o contraditório nos termos da lei. Por isso, quando existentes os pressupostos necessários, deve promover a ação penal, no entanto, quando ausentes, deve requerer a absolvição88.

Em feição correlata, o contraditório, para o acusado, deve ir além da mera legalidade, porque, só desse jeito, ameniza-se a disparidade natural do processo penal. Deve ele assegurar o exercício da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, tanto é assim que, consoante outrora dito, só existe previsão do princípio da ampla defesa, em sede constitucional, para a titularidade do acusado. No ambiente criminal, esse contraditório substancial, que equipara os desiguais pelo exercício da ampla defesa, é exclusivamente aquele considerado pleno e efetivo, o que – é óbvio – não significa atribuir ao acusado a licitude de proceder com comportamentos ilegais.

Não por outra razão, as próprias normas processuais, no plano da legalidade, buscam reduzir, por alguns aspectos, a assimetria comentada, com artifícios como a colocação à defesa da última palavra do processo. Todavia, essas estruturas formais e legais nem sempre são suficientes, daí o papel do juiz, numa hermenêutica conforme a Constituição, em perpetuar a compensação intrínseca e imprescindível ao processo penal.

Exemplo prático trazido por Felipe Martins Pinto e Paula Brener89 é o caso hipotético de instauração de investigação por crime de corrupção ativa (artigo 333 do Código Penal), cometido por uma organização criminosa (artigo 2º da Lei nº 12.850, de 2013), em que houve regular interceptação telefônica por 15 (quinze) dias, prorrogados por mais 15 (quinze), como dispõe o artigo 5º da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, tendo as investigações policiais findado apenas após 2 (dois) anos, e existindo vários corréus.

88 PINTO; BRENER, op. cit., p. 42.

Pergunta-se, in casu, se seria razoável permitir à defesa, na estrita forma do artigo 396- A do Código Processual Penal, apenas o prazo de 10 (dez) dias para compreender todos os elementos de informação obtidos ao longo de anos de investigações e 30 (trinta) dias de interceptações, afora selecionar as questões atinentes somente ao seu cliente. Ainda, após tudo isso, sabe-se que ao indivíduo caberia apresentar todas as provas e meios admitidos em direito para a construção da negativa da acusação, mas, na situação, pode o único meio de prova que o acusado possua ser o testemunhal, quando o artigo 401 do Código de Processo Penal limita a 8 (oito) o número de testemunhas a serem arroladas, “impedindo”, eventualmente, que o denunciado traga ao processo depoimentos que lhe seriam essenciais à defesa.

Feitas essas reflexões, justifica-se a afirmação de que a ampla defesa vai além da mera legalidade. Assim, chega-se ao ponto de exame da terceira indagação aqui deduzida, qual seja,