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ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DAS ALTERNATIVAS PROCEDIMENTAIS

4. AS POSSIBILIDADES DE COMPATIBILIZAÇÃO DO ARTIGO 383 DO CÓDIGO

4.4. ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DAS ALTERNATIVAS PROCEDIMENTAIS

Por derradeiro, no que tange às consequências da adoção ou não dos procedimentos em questão, algumas coisas hão de ser ditas.

Quis-se introduzir, ao tópico anterior, que é ônus do julgador a demonstração de que não está acarretando prejuízo à defesa, tal qual na explicada emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, em que as possibilidades de defesa pelos crimes mais abrangentes, especiais ou fim abarcam necessariamente as de defesa pelos crimes menos complexos, menos especiais e ou meio.

É certo que, como diz Badaró203, a relevância jurídica ou não de um estabelecido aspecto do fato é determinada pela defesa. Sem dúvidas, são as teses trazidas pela defesa que delimitam ou não a relevância da alteração do objeto do processo. Sem embargo, esquece o autor que, é frente a uma acusação com enfoque sobre determinados fatos, os tipificando de dada maneira, que a defesa comportar-se-á. A defesa trabalha com menor ou maior intensidade nos limites da definição jurídica atribuída pelo acusador aos fatos e não é a ela possível antever, na emendatio libelli, o tipo para o qual será desclassificada a conduta e as teses dali provenientes.

Ou seja, os princípios informadores da regra da correlação militam em favor da defesa. Consoante aqui descrito, não é lícito ao juiz, inardivertidamente, operar, de pronto, a emendatio libelli só em sentença, justamente tendo em vista que, antes de fixar a defesa a importância de certo dado típico, a relevância jurídica dos fatos atribuída pela acusação determina a medida da defesa, pelo que deve, sempre, ser ela comunicada das mudanças, sob prejuízo de impedir a arguição desta ou daquela tese.

Por esse motivo, a presunção de prejuízo no caso de violação à correlação, pela não utilização dos artifícios abalizados, está em favor da defesa. Se ao juiz é impossível precisar, com a máxima certeza, a relevância daquela alteração típica para a defesa, pois é ela quem sabe as teses as quais vai aduzir, cabe a ele a demonstração de que a operação da emendatio libelli, dispensando a intimação das partes ora esposada, inequivocamente, naquele caso concreto, não tem a aptidão de lesar o acusado.

203 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 120.

Assim, em semelhante posicionamento ao de Gabriel Lucas Moura de Souza204, é ônus do Estado a demonstração da incolumidade das garantias subjacentes à regra da correlação, in casu, da própria tipicidade constitucional do ato, uma vez que, mais do que um modelo legal, ocasiona-se o descumprimento de um modelo processual imposto pela Constituição.

A violação à regra da correlação, nessa toada, implica em nulidade absoluta205, pois, no mínimo, são desrespeitados, sempre, os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da Constituição). Quanto às normas constitucionais processuais, não há espaço para meras irregularidade sem sanção ou nulidade relativa. A atipicidade constitucional importa, inexoravelmente, em violações a preceitos maiores, relativos à observância de direitos fundamentias e das normas de ordem pública206.

O Código de Processo Penal, como não se poderia imaginar diversamente, não elencou dentre as possibilidades de nulidade a ofensa à correlação. No entanto, no cenário do inconstitucional artigo 385 do Código de Processo Penal, em que há acréscimo de circunstância agravante na condenação, por exemplo, tem-se sentença ultra petita, apta a enquadrar-se no artigo 564, inciso III, alínea “a”, do Código de Processo Penal, o qual preceitua a nulidade nos casos de falta, dentres outras coisas, da denúncia. Interpretando extensivamente o dispositivo, poder-se-ia entender que, nas decisões ultra petita, existiria ação penal ex officio, com a observação de que pode a nulidade ser apenas parcial, quanto ao capítulo que ultrapassou o objeto.

204 SOUZA, Gabriel Lucas Moura de. As nulidades do processo penal a partir da sua instrumentalidade constitucional: (re)análise dos princípios informadores. p. 29-32. TCC (Graduação). Curso de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.

205 Nesse sentido Badaró (BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 131) e Aury Lopes Jr. (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 908-910). Ainda sobre isso, sabe-se que, tradicionalmente, a doutrina divide as nulidades em relativas e absolutas. Nas absolutas, a gravidade do ato viciado seria flagrante e manifesto o prejuízo da sua permanência. Nas relativas, o legislador deixaria às partes prejudicadas a faculdade de requerer a invalidade, desde que demonstrasse o prejuízo. Contudo, também se sabe que a jurisprudência que recrudesce no Supremo Tribunal Federal é pela necessidade de demonstração de prejuízo, seja em hipótese de nulidade absoluta ou relativa, por parte de quem suscita o vício (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Recurso em Habeas Corpus nº 126.885. Relatora: Ministra Cármem Lúcia. Julgamento em: 15. dez. 2005. Publicação em: DJe 01. fev. 2016. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID= 10139701>. Acesso em: 14. nov. 2019), jurisprudência decorrente do inquisitivo artigo 563 do Código de Processo Penal, na repulsa por formalidades do legislador de 1941 (“Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”). Contudo, aqui, concorda-se com a ideia de que, violada uma garantia, há nulidade absoluta e, se é que se discute prejuízo, ele deve ser provado pelo Estado, uma vez que a violação gera presunção em favor do acusado.

206 FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria geral do processo. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 22.

Os demais casos, de mera aplicação da emendatio libelli só em sentença e sem obediência ao procedimento prescrito, inclusive quando age o juiz de maneira inquisitiva, configurariam decisão extra petita, pois englobariam tipo diverso do apontado na peça exordial, sem que, em nenhum momento, tenha sido dado as partes discutí-lo.

De outro modo, corretos os procedimentos, se notada a situação peculiar de possibilidade de prejuízo à defesa e acertadamente intimadas as partes, sendo despicienda a produção de provas; ou mesmo, se operada a emendatio libelli com a devida justificativa de prescindibildade de intimações, como no caso de emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância, não se visualizam grandes problemas. Mas, se for necessária a produção de provas e assim não comandar o Ministério Público, ainda que proceda o juiz conforme o procedimento esposado, absolvendo o acusado, surge outra consequência a ser examinada, o problema da coisa julgada.

Haveria coisa julgada formal ou material? Seria justa a absolvição diante de um tipo penal quando aqueles mesmos fatos, se devidamente comprovados, culminariam em condenação por outro tipo penal? À evidêcia, a questão é complexa e exige um novo e amplo estudo sobre a coisa julgada no processo penal, o que não mais cabe nesta sede. Contudo, algumas pontuações podem ser feitas.

Primeiramente, há de se referir que a coisa julgada, por si só, no que toca à definição do que seria “fato principal” – que já tenha sido objeto de sentença (artigo 110, § 2º, do Código de Processo Penal) –, é controversa.

Sobre isso, impende destacar os estudos de Keity Saboya, para quem o conteúdo é melhor dimensionado quando assemelhado à noção do objeto do processo, não excluindo os aportes do direito material na delimitação do conceito de idem facta, num similar raciocínio ao aqui anteriormente empregado. Em que pese reconhecer a importância de elementos nucleares em sua expressão material mais simples, tal qual a teoria naturalista, não deixa a autora de observar que dado acontecimento histórico só é relevante enquanto, ainda que hipoteticamente, violador dos valores protegidos pelas normas jurídico-penais, assentindo à notoriedade da perspectiva normativa do objeto do processo207.

Nessa linha, verifica a identidade necessária à aplicação do ne bis in idem quando o acontecimento exterior – que corresponde a uma conduta típica – é idêntico ao acontecimento histórico imputado anteriormente ou seus elementos são substancialmente coincidentes. Assim,

207 SABOYA, Keity M. F. S. Ne bis in idem: história, teoria e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 180-181.

“Também se inclui no significado de ‘mesmos fatos’ a existência, ao menos parcial, de identidade dos atos concretos de realização dos tipos concorrentes”208, sendo a similitude do fundamento jurídico subjacente aos “mesmos fatos” entendida como a proteção do mesmo bem jurídico ou do mesmo interesse jurídico concretamente considerado209.

Dessa forma, não aceita a autora que, em face de único fato, haja uma imputação de homicídio doloso e, após a absolvição com sentença transitada em julgado, seja ajuizada uma ação penal por homicídio culposo. São consideradas igualmente irrelevantes na construção do conceito de “mesmos fatos” as circunstâncias de uma infração exigir a ocorrência de dano e outra de perigo, de diferenças no grau de gravidade das infrações, da realização do tipo delitivo na qualidade de autor, coautor ou partícipe, do resultado do delito e do valor do objeto material da infração210, embora destacando posições contrárias dos tribunais superiores brasileiros211.

Nesse raciocínio, parece patente que uma mera mudança da tipificação não autorizaria, frente aos mesmos fatos, o ajuizamento de um segundo processo. Mas e se a extinção do primeiro processo tiver decorrido exclusivamente da impossibilidade de operação da emendatio libelli? Seria o caso de ter sido privilegiado o sistema acusatório, de modo a não poder o juiz comandar uma necessária instrução probatória para a condenação face a outro tipo, ou de qualquer outra situação em que tenham sido justificadas as possibilidades de prejuízo à defesa.

Para Walter Nunes212, seria:

[...] suficiente para evitar a formação da coisa julgada, a consideração na sentença de que a absolvição quanto a um dos crimes foi pela impossibilidade de aplicação da emendatio libelli de ofício, pelo que não fica vedada a possibilidade de nova imputação com suporte nos mesmos fatos, desde que corrigida a classificação do tipo penal.

Já Aury Lopes Jr.213 aparenta entender que, quanto à coisa julgada, a situação é diversa da correlação, pois “Lá, importava o conceito de fato processual, englobando o fato penal e o natural. Aqui, a situação é distinta, pois ainda que se possa falar em fato processual, o que realmente importa é o fato natural”. Explica que, para os limites da coisa julgada, o que importa

208 Ibid., p. 182. 209 Ibid., p. 187. 210 Ibid., p. 183-184.

211 SABOYA, Keity M. F. S. Ne bis in idem: limites jurídico-constitucionais à persecução penal. p. 175. Dissertação (Mestrado). Curso de Mestrado em Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.

212 SILVA JÚNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas, principais modificações do júri e as medidas cautelares pessoais [versão Kindle]. 3. ed. Natal: OWL, 2019.

é a complexidade fática decidida, independentemente da definição jurídica que receba. Diante disso, defende que não pode o acusador deduzir nova ação com diferente tipificação, pois “Evidencia-se, uma vez mais, a responsabilidade que deve ter o acusador ao formular a imputação e fazer ou omitir o aditamento necessário”.

A esse respeito, todavia, afigura-se que o instituto realmente deve ser também repensado. Se é comum falar-se que o efeito negativo da coisa julgada, a impedir uma nova acusação por aqueles mesmos fatos, está intimamente ligado ao objeto do processo penal, representando uma extensão da imutabilidade do objeto do processo, tal qual a correlação o faz214, é lógica a defluência de que as conclusões não podem ser simplistas. Assim como foram repensadas a correlação e a emendatio libelli, de modo a atribuir maior relevância à tipificação dos fatos, há de ser reestudado o institito da coisa julgada215.

Aliás, o entendimento de que a imutabilidade do objeto do processo penal – assegurada, no trâmite processual, pela correlação entre acusação e sentença, e prolongada, quando definitivamente decidida a pretensão, pela coisa julgada – evita o bis in idem decorre do pressuposto de que, a qualquer tempo, pode ser mudada a tipificação dos fatos, o que, neste trabalho, desconstruiu-se.

Aqui, porém, a melhor solução, aparentemente, seria no âmbito de lege ferenda. É que não há dispositivo específico que permita a extinção do processo, sem resolução do mérito, por impossibilidade de operação da emendatio libelli. Diversamente, a situação de absolvição por ausência de provas suficientes à condenação (artigo 386, inciso VII, do Código de Processo Penal) é sentença absolutória e definitiva de mérito, que sequer ensejaria revisão criminal, com coisa soberanamente julgada, pois somente são revisadas as sentenças condenatórias (artigo 621 do Código de Processo Penal).

Deveria ser estipulada uma decisão interlocutória mista terminativa – de natureza meramente processual e com coisa julgada apenas formal – como as decisões de rejeição da denúncia e de impronúncia? Seria o caso propriamente de uma rejeição da denúncia, interpretando-a extensivamente? Incidiria uma hipótese sui generis de coisa julgada, a exemplo da sentença absolutória que não reconhece a inexistência material do fato e não faz coisa julgada no ambiente cível (artigo 66 do Código de Processo Penal)? Por outro lado, não se causaria uma sucessão de processos com o mesmo objeto parcial sem resolução do mérito, eternizando a

214 Assim referem-se Badaró (BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 137) e Aury Lopes Jr. (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 918).

215 O que – repita-se – não mais cabe neste trabalho, nem é o seu propósito, sendo válida apenas a ressalva.

situação dos acusados? Não seria dever do acusador promover a correta tipificação e, depois, tendo a chance de manifestar-se, requerer tudo o quanto pertinente? São questões a se refletir.

Pontue-se, por fim, que, em que pese as constantes menções ao juiz singular, o mesmo procedimento deve aplicar-se aos tribunais. A valer, nessa instância, o Código de Processo Civil, igualmente, designa que “Se o relator constatar a ocorrência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada que devam ser considerados no julgamento do recurso, intimará as partes para que se manifestem no prazo de 5 (cinco) dias” (artigo 933). Consagra, então, igualmente o princípio da não surpresa. Além do mais, incidem todas as outras disposições aqui elencadas, sendo fundamental a intimação das partes.

De resto, deve ser interpretada com temperamento a regra do artigo 616 do Código de Processo Penal, ao permitir que os tribunais procedam a novo interrogatório do acusado, reinquirição de testemunhas ou determinação de outras diligências, pois não podem essas medidas, do mesmo modo, configurar conotação inquisitória e, no especial caso dos tribunais, consubstanciar supressão de instâncias ou mesmo reformatio in pejus, observação final do artigo 617, aquele que determina a aplicação, dentre outros, do artigo 383 aos tribunais, mas coloca que não pode ser agravada a pena quando somente o réu tiver apelado.

E é exatamente sobre a reformatio in pejus que deve ser feita a última ponderação. Na verdade, trata-se de mais uma polêmica que ensejaria assunto para outras maiores digressões. Mas, para que não se esqueça da ressalva, alguns216 indicam que, para não desobedecer à regra, poderia até admitir-se o caso de o acusado ser condenado por um crime de nova capitulação jurídica, mas se mantendo a pena anteriormente fixada, ainda que menor que a pena mínima cominada no preceito sancionador do novo tipo penal.

Outros217 são pela impossibilidade de piora da situação do acusado sob qualquer ponto de vista, seja ele quantitativo ou qualitativo, tendo em vista que não é a pena o único efeito de uma sentença condenatória. Os crimes contra a Administração Pública, por exemplo, têm a progressão de regime condicionada à reparação do dano (artigo 33, § 4º, do Código Penal), donde uma desclassificação para esse tipo geraria piora da situação do recorrente. Nesses casos, argumenta-se pela manutenção da condenação do juízo a quo. De fato, parece ser a solução menos aberrante, até porque o Tribunal submete-se ao tantum devolutum quantum appelatum,

216 BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 155.

217 LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal comentado. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 1035.

e, certamente, não teria o acusado apelado nesse sentido – de alteração, para pior, qualitativa ou quantitativa, da tipificação da sua conduta.