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AS ALTERNATIVAS INTERPRETATIVAS E PROCEDIMENTAIS AOS

4. AS POSSIBILIDADES DE COMPATIBILIZAÇÃO DO ARTIGO 383 DO CÓDIGO

4.3. AS ALTERNATIVAS INTERPRETATIVAS E PROCEDIMENTAIS AOS

Tudo o quanto dogmaticamente desenvolvido aos capítulos antecedentes, logo acima categorizado e até por vezes cogitado em reformas legislativas, bem como aplicado em países vizinhos, no entanto, apesar de valiosos subsídios, não influenciam tanto o quanto deveriam na exegese das normas processuais penais feita pelos operadores do direito brasileiros. O quadro nefasto é de predomínio de normas infraconstitucionais, anteriores e não consentâneas ao espírito garantista, em detrimento dos direitos fundamentais corporificados no texto constitucional.

154 MALAN, op. cit., p. 180.

A prática dos magistrados e tribunais, com raras exceções, é firme no paradigma positivista de aplicação do direito tal qual se encontra no Código de Processo Penal, da mesma forma que faziam antes da promulgação da Constituição de 1988, como se, com esse advento, absolutamente nada tivesse mudado, ignorando o que Walter Nunes da Silva Júnior reiteradamente designa como uma completa releitura de toda a ordem jurídica155.

O Supremo Tribunal Federal, pretenso guardião da Constituição, a exemplo do relatado, tangencia as problemáticas constitucionais na temática. Apenas para citar alguns dos mais recentes exemplos, em julgamento de junho de 2019, reiterou que, em se tratando do instituto da emendatio libelli, não há de se falar em nulidade ou afronta ao princípio da correlação156. Do mesmo modo, em julgamento um pouco anterior, de março de 2018, a Corte restringiu-se a definir a emendatio e a afirmar que, não transbordando os fatos utilizados à imputação deduzida na denúncia, o Supremo possui entendimento pela possibilidade de realização de emendatio libelli157.

Na sede do Superior Tribunal de Justiça, é comum a repetição do conteúdo do brocardo narra mini factum, dabo tibi ius, pondo-se que “nos moldes da orientação desta Casa, o réu se defende dos fatos descritos [...] e não da capitulação jurídica apresentada pelo Ministério Público, sendo possível a adequação típica tanto em primeira instância como em segundo grau”. A alegação de surpresa, da mesma forma, não prospera, como em trecho complementar no qual o relator assevera: “não observo, na espécie, surpresa ou desrespeito ao princípio do contraditório, pois o sentenciante limitou-se, vimos, a atribuir definição jurídica diversa aos fatos delineados na peça acusatória”158. É recorrente a abominação do contraditório:

Não houve qualquer alteração da descrição fática contida na denúncia, mas tão somente da definição jurídica do fato imputado. Desse modo, de rigor a aplicação do instituto da emendatio libelli, prevista no art. 383 do Código de

155 SILVA JR., Walter Nunes da. Curso de direito processual penal: Teoria (constitucional) do processo penal. 2. ed. Natal: OWL, 2015.

156 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Habeas Corpus nº 1.565.333. Relator: Ministro Edson Fachin. Julgamento em: 28. jun. 2019. Publicação em: DJe 31. jul. 2019. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750262470>. Acesso em: 30. out. 2019

157 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Habeas Corpus nº 1.34.872. Relator: Ministro Dias Toffoli. Julgamento em: 27. maio. 2019. Publicação em: 08. out. 2019. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748401055>. Acesso em: 30. out. 2019.

158 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma. Habeas Corpus nº 434.476. Relator: Ministro Antonio Saldanha Palheiro. Julgamento em: 15. maio. 2018. Publicação em: DJe 29. maio. 2018. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201800165685&dt _publicacao=29/05/2018>. Acesso em: 11. nov. 2019.

Processo Penal - CPP, não havendo falar em aditamento da denúncia ou abertura de vista à defesa para integração do contraditório159.

Por entender que o réu se defende apenas de fatos, a Corte fala em mera correção, aduzindo que, quando a denúncia descreve todas as elementares do tipo, o juiz pode corrigir eventual equívoco160 – quando, aqui, foram salientadas as verdadeiras condições de “mera correção”. Como não se podia imaginar diferente, referenda o Superior Tribunal de Justiça a inclusão de majorantes, de ofício, pelo magistrado161, em divergência à situação aqui já tratada de não recepção do artigo 385 do Código de Processo Penal.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, da mesma forma, não discute a constitucionalidade da questão. Em julgamento de preliminar de nulidade levantada em função de denúncia pelo tipo penal embrenhado no artigo 171, § 3º, do Código Penal (estelionato), que resultou na condenação pela prática da conduta estampada no artigo 313-A (inserção de dados falsos em sistema de informações), crime bem mais específico, em inversão à hipótese de emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância aqui aludida, reverberou que:

O fato, aliás, é corriqueiro, não ocorrendo nenhuma nulidade por não ter o acusado sido ouvido, cuidando-se a possibilidade de enquadramento no art. 383, do Código de Processo Penal. O importante e fundamental é que o fato é um só, este sim, o fator importante, que não sofreu alteração alguma, de modo a não causar nenhum prejuízo à defesa desse acusado. Ademais, o enquadramento, adotado na r. sentença, se constitui em matéria a ser enfrentada no final, acaso os apelos não sejam providos.162

Em decisum da 2º Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, todavia, é possível ver uma centelha de esperança à temática. Nele, como amostra, a capitulação dada,

159 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. Habeas Corpus nº 482.106. Relator: Ministro Joel Ilan Paciornik. Julgamento em: 21. maio. 2019. Publicação em: DJe 03. jun. 2019. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201803226640&dt_publicacao=03/ 06/2019>. Acesso em: 30. out. 2019

160 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. AgRg no AREsp nº 1.464.770. Relator: Ministro Ribeiro Dantas. Julgamento em: 14. maio. 2019. Publicação em: DJe 20. maio. 2019. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201900715882&dt_ publicacao=20/05/2019>. Acesso em: 30. out. 2019.

161 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quinta Turma. AgRg no AREsp nº 1.330.731. Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Julgamento em: 04. jun. 2019. Publicação em: DJe 14. jun. 2019. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201801784207&dt_ publicacao=14/06/2019>. Acesso em: 30. out. 2019.

162 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Segunda Turma. Apelação Criminal nº 15.031. Relator: Desembargador Federal Vladimir Carvalho. Julgamento em: 08. jan. 2019. Publicação em: DJe 25. jan. 2019. Disponível em: <https://www4.trf5.jus.br/InteiroTeor/publicacoes.jsp?numproc =00004723520154058201>. Acesso em: 30. out. 2019.

em princípio, aos fatos, correspondia ao delito de organização criminosa (artigo 2º, §§ 2º e 3º, da Lei nº 12.850, de 2013), e, ao cabo da instrução, concluiu-se que os fatos mais amoldavam- se ao tipo de associação criminosa (artigo 288 do Código Penal).

Na espécie, o juízo ressaltou a aplicabilidade do artigo 10 do Código de Processo Civil, mas cumpriu seu ônus – o que será melhor visto ao último tópico – de demonstrar que, naquele caso concreto, a alteração da capitulação, de ofício, não implicaria em grande surpresa, visto que “a diferença entre o delito de organização criminosa e o crime de associação criminosa (art. 288, do Código Penal) é basicamente gradual, sendo aquele primeiro crime mais complexo do que este último”163, de maneira tal que a defesa em relação à ocorrência de organização criminosa necessariamente englobaria as possibilidades de defesa relativas ao crime de associação criminosa, numa semelhança à emendatio libelli por supressão de elementar e/ou circunstância aqui categorizada.

Por fim, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, em argumento de autoridade, reportando-se à posição do Superior Tribunal de Justiça, reproduz seus dizeres. Observando-se julgado de setembro de 2019, sancionou o tribunal situação em que o Ministério Público havia requerido a condenação do acusado pelo crime de roubo tentado (artigo 157, associado ao artigo 12, inciso II, do Código Penal) e o magistrado proferiu condenação pela modalidade consumada.

O que mais assusta é o não enfrentamento das alegações do recorrente, o qual descreveu a violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa, bem como acusatório, tendo ocorrido “prejuízo imensurável”, por "não haver tido a oportunidade de se defender da nova rotulação dada ao caso pelo magistrado e pela condenação em proporções muito mais graves do que aquelas requeridas em todas as manifestações do órgão acusador"164.

São, no geral, interpretações – repita-se – consentâneas a um código que enxergava a defesa como mero interesse pessoal e unilateral dos criminosos. Restrições como essas aos preceitos constitucionais são características de estados autoritários, e não de um Estado Democrático e Constitucional de Direito. Além de fazerem autêntica tábula rasa da

163 BRASIL. Justiça Federal no Rio Grande do Norte. 2ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Processo nº 0806608-92.2018.4.05.8400. Julgamento em: 05. out. 2018. Disponível em: <https://pje.jfrn.jus.br/pjeconsulta/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemL oginHTML.seam?idProcessoDocumento=f6339a2d9d6921d7d13e872806b928f9>. Acesso em: 30. out. 2019.

164 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. Câmara Criminal. Apelação Criminal nº 2019.000514-9. Relator: Desembargador Saraiva Sobrinho. Julgamento em: 17. set. 2019. Publicação em: 20. set.2019. Disponível em: <http://esaj.tjrn.jus.br/cposg/pcpoResultadoConsProcesso2Grau. jsp#>. Acesso em: 11. nov. 2019.

Constituição, percebe-se que não há uma construção dogmática sobre o tema, com a divisão das possibilidades de emendatio em específicas categorias, sendo as exposições generalizantes e desordenadas.

Em contida reflexão, a inércia jurisprudencial faz transparecer o que Winfried Hassemer165 nomeia de “programas informais”. Para ele, todos que atuam profissionalmente em questões jurídicas são gerenciados por esses programas, e as infrações às regras informais, igualmente, manifestam-se em penalidades. Ou seja, por trás das concretizações da jurisprudência e da teoria do direito processual penal, assim como dos programas formais, estão programas informais, os quais não são escritos, não são formulados, nem transmissíveis como forma de ensino, mas determinam, de maneira intensa e rica em consequências, a realidade dos procedimentos.

O destinatário de uma cultura político-ideológica de eficientismo é, sobretudo, o direito criminal, nele incluso o processo penal. A exigência da legalidade e da tipicidade, bem como o temor pela analogia, no direito penal, são exatamente decorrências do medo de que os subjetivismos imprevisíveis e indomináveis dos juízes afetem o acusado. Mas, trazendo o embate ao contexto brasileiro e à própria temática objeto do trabalho, a jurisprudência ainda é habitada, como observa-se na indolência no trato da emendatio libelli, por subterfúgios para fazer valer a opinião dominante. É que ela própria – a jurisprudência –, mais do que à lei, está sujeita a si mesma, à decisão das mais altas instâncias, às tradições dos tribunais, vínculos esses informais, porém não menos efetivos e que, por regra geral, evitam modificações espontâneas166.

Como bem aduz Roberto Damatta167, apesar de o texto constitucional ser universalizante, a realidade é permeada por valores sociais hierarquizantes, de modo que as influências sociais implicam no desmoronamento do modo de aplicação de lei, “sistematicamente deformado pela moralidade pessoal, de modo que sua aplicação não se faz num vazio, mas num verdadeiro cadinho de valores e ideologias”. Aliada a esses fatores, ainda há a imensa pressão midiática e demonizadora, em casos mais rumorosos, pela punição, clima propício às práticas inquisitórias e à expansão do conhecido processo penal do inimigo,

165 HASSEMER, Winfried. Crítica al Derecho Penal de Hoy. Tradução de Patrícia S. Ziffer. 2. ed. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003. p. 73-74.

166 Ibid., p. 43.

167 DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Guanabara, 1990. p. 247 e 248.

defendido por Günter Jakobs, sendo comum o sentimento de fracasso diante, por exemplo, de uma imperiosa necessidade de absolver168.

Esgotada a digressão, fato é que a vocação ideológica da Constituição é completamente diversa da impregnada no Código Processual Penal de 1941, perpetuada pela letargia legislativa e pela indiferença jurisprudencial, devendo o avanço da abordagem direcionar-se à compatibilização dos procedimentos aos valores constitucionais. A circunstância do desinteresse legislativo pode tornar-se menos grave por meio da interpretação lógico-sistemática da Carta de 1988, o que não é um novo e perspicaz artifício, mas um simples dever do aplicador do direito.

A elementar saída para pensar-se na readequação do procedimento, em especial nos difíceis casos de emendatio libelli por interpretação diferente, é verificar como, no direito positivo, é o tratamento do tema, a partir do que podem sobrevir alternativas interpretativas.

Como já posto, entretanto, o Código de Processo Penal não possui disposição em que faz transparecer a regra da correlação – conforme alguns países vizinhos o fizeram, alicerçando a impossibilidade de a sentença, de qualquer modo, ampliar a acusação –, decorrendo a máxima, no Brasil, primordialmente, do modelo escolhido pela Constituição de 1988. Com esse alicerce, é possível citar alguns dispositivos a, inequivocamente, atestar a imperatividade do respeito à correlação entre acusação e sentença no sistema brasileiro.

Retomando dispositivos já abordados, o artigo 129, inciso I, da Constituição, é o primeiro a ser indicado. Desponta, dessa redação, ser função institucional do Ministério Público a promoção privativa da ação penal pública – preceito também sedimentado ao artigo 24 do Código de Processo Penal. Assim, é consagrado o princípio da ação, de modo que só cabe às partes, in casu, ao Ministério Público a provocação da atividade jurisdicional do Estado, determinação que, conjugada às que impõem a imparcialidade ao julgador169, ratificam o princípio da inércia da jurisdição.

A inércia é fundante da jurisdição e o direito de ação170 cabe a uma parte criada exclusivamente para esse fim. Em outras linhas, cabe a um sujeito acusar e ao sujeito imparcial julgar exatamente nos limites impostos pelo acusador. São as basilares imposições do sistema

168 LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 348-349.

169 Retome-se: artigo 5º, inciso XXXVII, com a vedação de juízo ou tribunal de exceção; inciso LIII, com a garantia do juiz natural; inciso LX, associado ao artigo 93, inciso IX, com a obrigatoriedade de pública motivação dos atos judiciais; e artigo 95, com as várias garantias e prerrogativas do juiz para lhe assegurar independência e inexistência de influências externas, todos da Constituição.

170 É necessário advertir que, no ambiente criminal, o direito de ação trata-se mais de um dever, introduzindo o que será mais bem elaborado na sequência.

acusatório e que deságuam na correlação entre acusação e sentença. Mas elas não se esgotam nisso.

Os direitos ao contraditório e à ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, da Constituição), com toda a especialidade da ampla defesa no processo penal, assim como presunção de não culpabilidade (artigo 5º, inciso LVII, da Constituição), do mesmo modo, notabilizam um sistema de privilégio à defesa. Sabe-se que razão outra não há para a regra da correlação que não o privilégio à defesa, exatamente para que o acusado não seja condenado por questões sobre as quais não pôde se defender, por não existirem na peça acusatória.

Derivação especial desses preceitos é o que, modernamente, alguns chamam de direito fundamental processual de ser informado da acusação. Seria um meio inerente à ampla defesa e um expresso reconhecimento do artigo 8º, inciso 2, alínea “b”, do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário e pelo qual toda pessoa tem direito a mínima garantia de “comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada”. Além do aspecto subjetivo, por ser direcionado aos sujeitos do processo, haveria o aspecto objetivo, uma vez que a imputação deve ser explícita e específica – já tendo sido, inclusive, rechaçadas, aqui, as imputações implícitas e alternativas –, e, por último, o aspecto temporal, visto que a informação deve ser prestada em momento apto a permitir um efetivo remanejamento da defesa171.

Demais disso, sabe-se que o artigo 3º do Código de Processo Penal prescreve que “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”. Dessa forma, aplicáveis algumas disposições do Código de Processo Civil, suplementando a insuficiente disposição da codificação criminal.

Nessa linha, o artigo 141 do Código de Processo Civil reproduz regra semelhante à da correlação, pondo que “O juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte”. E mais, o artigo 10 da mesma codificação processual compõe o exarado princípio da não surpresa, pelo qual “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Não bastando isso, o Código de Processo Civil ainda proíbe ao julgador proferir decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida (artigo 9º).

Dentro desse contexto, o próprio legislador de 1941 reconheceu a importância da tipificação, da defesa, e de seus aspectos jurídicos (artigos 41 e 381 do Código de Processo

171 MALAN, op. cit., p. 55-57.

Penal), afora todas as evidências aqui trazidas nesse sentido – da importância da tipificação à defesa.

Dessarte, todos esses expedientes agregam-se ao texto constitucional, por força § 2º do artigo 5º, até mesmo as previsões dos tratados internacionais, por remissão expressa desse § 2º, fazendo crer que, cabalmente, sim, o ordenamento jurídico brasileiro exige a correlação entre acusação e sentença. Aliás, inclui-se ela na dimensão material do devido processo legal (ou devido processo penal), pela qual a garantia não engloba apenas a sujeição do processo a aspectos formais, mas à justiça, à liberdade, à dignidade humana, à segurança jurídica, enfim, aos direitos fundamentais.

Posto isso, tendo os capítulos segundo e terceiro dedicado-se exclusivamente à construção da importância da tipificação no contexto da correlação, e, agora, ficado evidente que o sistema brasileiro alberga essa regra, há suficiente bagagem para a revisão do tratamento das particulares situações enquadradas como emendatio libelli, nas quais há clarividente prejuízo à defesa e em que não foi realizada a emendatio em momento prévio à sentença. Nesses cenários, se não usados os artifícios abalizados na sequência, haverá sentença incongruente – oposta ao espírito das disposições compiladas.

Cientes de que é conjecturável a revisão da questão, compete, então, proceder a essa própria revisão. Nesse viés, incumbe levantar todas as soluções sucintamente descritas, para analisar quais delas são aproveitáveis no sistema brasileiro, considerando, claro, a Constituição como eixo e suporte, numa interpretação lógico-sistemática do ordenamento.

Embutindo-se nessa pretensão, consigne-se que alguns autores são, na doutrina brasileira, nessas específicas situações, pela aplicação postergada do princípio do contraditório, isto é, defendem a intimação das partes para manifestarem-se após a aplicação da emendatio libelli172.

Quanto a isso, porém, não se visualiza qualquer justificativa razoável. Se o magistrado percebe e conclui, somente no momento de prolação da sentença, que os fatos aludidos mais amoldam-se a outro tipo penal, deve intimar, de plano, as partes a respeito de tal intento. Ora, se a função da providência é justamente a de que o juiz considere, no seu posicionamento, o

172 Nesse sentido, por exemplo, Malan (MALAN, Diogo Rudge. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 179) e Aury Lopes Jr., numa visão particular, defendendo que dois caminhos podem ser adotados: (a) a consulta prévia às partes em nome do princípio constitucional do contraditório, em que seriam elas convidadas a esclarecer o juiz sobre a possível reclassificação do fato; ou (b) se não houver consulta prévia, a intimação das partes após a emendatio libelli, para que, em nome do contraditório, conheçam e se manifestem sobre a nova classificação jurídica do fato (LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 898).

aduzido pelas partes e, em especial, pela defesa, que pode apontar novas teses frente ao tipo penal invocado, proceder a tal medida após eventual condenação mostra-se completamente descabido. Aliás, cabe ao juiz demonstrar que agiu na estreita dicção da lei e não ao acusado evidenciar que sofreu este ou aquele prejuízo – sobre o que melhor se debruçará ao fim do capítulo.

Sabe-se que a tradicional visão do contraditório como a ciência bilateral dos atos do processo e a possibilidade de contraditá-los, hoje, é tida em contornos muito mais críticos. A parte não mais é objeto do pronunciamento judicial e não tem a ingênua oportunidade de contraditá-los. Ela deve, de fato, intervir construtivamente no processo e o juiz deve propiciar essas condições, aliás, assim concretiza a grande novidade do sistema brasileiro referente ao princípio da não surpresa, como já abundantemente aduzido. É elementar que as partes possam influir na decisão previamente, conforme o reiterado artigo 10 do Código de Processo Civil. No mais, viu-se que com ainda mais força emerge a não surpresa no processo penal, pois o contraditório está a serviço da ampla defesa.