Arquivos de Neuro-Psiquiatria
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http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X1984000400012&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 14 nov. 2017.
REFERÊNCIA
DELGADO-RODRIGUES, R. N. Neurocisticercose associada a hipoparatireoidismo e doença de Fahr(?): registro de um caso. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, São Paulo, v. 42, n. 4, p. 388-391, dez. 1984. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-282X1984000400012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 14 nov. 2017. doi:
NEUROCISTICERCOSE ASSOCIADA
A HIPOPARATIREOIDISMO Ε DOENΗA DE FAHR (?)
REGISTRO DE UM CASO
R. N. DELGADO-RODRIGUES *
Calcificaηυes cerebrais sγo achados radiogrαficos relativamente comuns, po dendo estar associados a grande n٥mero de causas, dentre as quais: traumas, infecηυes, infestaηγo por parasitos, anomalias congκnitas, desordens metabσ licas1 0. Em especial, as calcificaηυes dos gβnglios basais, quando ocorrem,
sγo comumente bilaterais e quase invarialmente simιtricas 2
> s
>1 3
. Estas sγo conhecidas desde o tempo de Virchow e Bamberger, que as descreveram em estudos "postmortem". No entanto, foi apenas em 1935 pela apresentaηγo radio lσgica de Fritzsche que vieram a atrair a atenηγo dos neurologistas1 3
. A partir de 1939 comeηouse a associαlas a dist٥rbios da glβndula paratireσide, a saber, hipoparatireoidismo, e mais recentemente pseudohipoparatireoidismo e pseudo pseudohipoparatireoidismo 4
>1 3
. No tocante ao hiporatireoidismo, tal associaηγo chega, em estudos recentes, a 7080%8. Existem descritos, se bem que espo
rαdicos, casos sem etiologia definida2
» 8
» 1 ϋ
· 1 3
« e ainda outros familiares idio pαticos 2
.3
» 9
»1 2
. Encontrase aν o pomo da discσrdia, com o qual hα de defrontarse todo o que busca uma definiηγo para a chamada "doenηa de Fahr". Este epτnimo teve sua origem no caso relatado por Fahr em 1936 \ sob o tνtulo "calcificaηγo idiopαtica dos vasos cerebrais". Descreveu entγo um caso isolado, em adulto, de calcificaηγo bilateral e simιtrica dos gβnglios basais, sem qualquer traηo hereditαrio. Apesar disso, o epτnimo foi amplamente absor vido pela literatura especializada. Passouse entγo a classificar sob ele as calci ficaηυes bilaterais e simιtricas de gβnglios da base, acompanhadas ou nγo de calcificaηυes cerebelares, fossem elas de ocorrκncia familiar, idiopαticas, com evidκncia de transmissγo genιtica ou nγo. Igualmente encontramse sugestυes de que a assim chamada "doenηa de Fahr" seja, na verdade, um conjunto de entidades que incluiria atι as desordens endσcrinas mencionadas 3>1 6. Os casos
apresentados por Babbitt e col.1
sob o tνtulo "ferrocalcinose cerebrovascular idio pαtica familiar" nos fazem delinear uma doenηa de inνcio na infβncia, grave, com manifestaηυes neurolσgicas pronunciadas, dist٥rbios severos do crescimento e deterioraηγo mental progressiva, de carαter autossτmico recessivo. Tal quadro tambιm foi observado por outros autores9. Entretanto, diversos relatos existem
de clara identificaηγo com a entidade citada como "doenηa de Fahr", nos quais
o dist٥rbio neurolσgico mais evidente era um dιficit na fala 1 0 > M e a trans
missγo, autossτmica dominante1 1»1 2.
Levando em conta todos esses fatores, procuramos uma forma de conceituar a doenηa. Descrevκlaemos ΰ luz dos critιrios sugeridos por Moskowitz e col.1 1,
citados por Millen em artigo recente1 0. Sγo eles: 1) calcificaηυes simιtricas
de gβnglios basais, sem outras caracterνsticas clνnicas de hipoparatireoidismo ou pseudohipoparatireoidismo; 2) nνveis sιricos de cαlcio e fosfato normais; 3) responsividade tubular renal ao hormτnio paratireσideo ( P . T . H . ) ; 4 ) evi dκncia de transmissγo hereditαria; 5) ausκncia de causas metabσlicas infecciosas ou tσxicas. A calcificaηγo familiar idiopαtica de gβnglios da base pode ter mani festaηυes neuropsiquiαtricas variαveis que, de modo geral, incluem as jα citadas por Babbitt1 e outros3» 8» 9.1 0 .i a» w . Nada se pode afirmar a respeito de um
prognσstico definido 1 0. A fisiopatologia do processo de calcificaηγo foi sugerida
por Eaton e col.6. Haveria preliminarmente deposiηγo de material colσide nos
vasos sangόνneos cerebrais e em torno deles, com posterior calcificaηγo e pre cipitaηγo de ferro. Todavia, jα se demonstrou tambιm a presenηa de zinco, alumνnio, manganκs, magnιsio e outros materiais em semelhantes depσsitos3»1 0.
OBSERVAΗΓO
O.A.S., com 28 anos, sexo feminino, parda, natural de Goiβnia, atendida pela primeira vez no ambulatσrio de Neurologia do Hospital Presidente Mediei (Hospital Escola) (D.F.) no dia 260583, com histσria de crises convulsivas desde os 3 anos de idade. Ao ser entγo levada ao pediatra, este diagnosticou doenηa de Sγo Guido (sic). Nγo foi medicada na ιpoca. Dez anos depois, retornando a serviηo mιdico por conta da persistκncia da sintomatologia supra, foi medicada com Hidantal e Tensil. Obteve melhora do quadro clνnico com normalizaηγo eletrencefaiogrαfica. Nγo sabe informar a duraηγo do tratamento. Um ΰno antes da consulta, voltou a apresentar convulsυes tτnicoelτnicas generalizadas, sem sialorrιia ou liberaηγo de esfineteres, precedidas de diplopia e tonteiras com sensaηγo vertiginosa objetiva e perda da consciκncia em todos os episσdios. Fez uso, a partir de entγo, de diversos esquemas de anticonvulsivantes sem obtenηγo de controle total sobre as crises, que persistiam atι a ιpoca em que procurou o hospital. Trκs meses antes da consulta, adicionouse ao quadro cefalιia diαria, s٥bita, intensa, predominando nas regiυes parietais bilateralmente, sem fatores predisponentes ou aliviantes, e acompanhada de tontura sem vertigem e, por vezes, diplopia. Antecedentes familiares — um primo e um tio paterno com disritmia. Diver
sos casamentos consangόineos na famνlia paterna. Antecedentes pessoais — nasceu dθ
parto normal, domiciliar, a termo, sem intercorrκncias. Apresentava entγo um dedo supranumerαrio em cada mγo e palato ogival. Antecedentes patológicos — sofreu aci
dente automobilνstico em 1963, sendo incerta a ocorrκncia de traumatismo craniencefαlico. Elimina esporadicamente tκnias. Exame clinico — normal. Exame neurológico — notase
apenas certo grau de debilidade mental. O restante do exame ι normal. Exames
complementares — Hemograma: discreta anemia. Bioquνmica: hipocalcemia e hiper
Parasitolσgico de fezes: negativo, RaiosX de crβnio revelaram calcificaηυes intrace rebrais ΰ esquerda. Tomografia computadorizada: "calcificaηυes intracerebrais na subs tβncia branca do lobo frontal direito, n٥cleos cinzentos da base e do cerebelo. Este ٥ltimo fato sugere que nγo se trate de um processo metabσlico sistκmico e, sim, de uma alteraηγo de carαter familiar, como a doenηa de Fahr" (Dr. Luνs Antτnio P. Portela Instituto de Neurologia de Goiβnia). E.E.6.: raras pontas nas regiυes tem porais. E.C.G.: intervalo QT alargado e achatamento de ondas T. Biomicroscopia: discretas opacificaηυes em faixa no cristalino de ambos os olhos. Tratamento — dieta
hipercαlcica; carbamazepina, fenitoνna e fenobarbital, associados; cαlcio; propericiazina; vitaminas A e D3. Evolução — Durante a internaηγo a paciente apresentou labilidade
emocional, dist٥rbios de comportamento e depressγo pronunciada, que cederam com o uso da propericiazina. A cefalιia e a tontura persistiram quase diαrias. Durante curtos perνodos padeceu de tremores finos das extremidades, obstipaηγo intenstinal, dores no membro inferior esquerdo, tetania (na vigκncia de dieta hipocαlcica) e otalgia;
que cessaram com terapia adequada. Sofreu uma crise convulsiva apσs um mκs de internaηγo, e leucorrιia esbranquiηada e fιtida. Recebeu alta em 150783 e ainda nγo retornou ao ambulatσrio para controle.
COMENTΑRIOS
As evidκncias clνnicas e laboratoriais do caso ora apresentado nos fazem pensar num dist٥rbio endσcrino do tipo hipoparatireoidismo idiopαtico ou pseu dohipoparatireoidismo. Isto ι compatνvel com os dados obtidos na literatura que mostram a associaηγo destas entidades com as calcificaηυes cerebrais, parti cularmente as bilaterais e simιtricas de gβnglios da base. Os critιrios de Mosko witz nao foram preenchidos pela nossa paciente, apesar de nγo se ter avaliado a responsividade tubular renal ao P.T.H.. Da mesma forma, o quadro descrito difere em quase todos os seus aspectos mais significativos da calcificaηγo fami liar idiopαtica de gβnglios da base, conforme relatado por vαrios a u t o r e s1'3»6,
β, 9, ίο, ia, is. Dessa forma, nγo vemos razγo para classificarmos esta paciente como portadora de "doenηa de Fαhr". O mau uso deste epτnimo jα vem de muitos anos e cremos necessαrio mais critιrios em sua aplicaηγo.
A paciente tambιm apresentava uma reaηγo de Weinberg positiva no lνquido cefalorraquidiano, o que nos leva a afirmar a presenηa de neurocisti cercose. Esta entidade comumente apresenta quadro clνnico muito variado1 5
. Contudo, ao que se saiba, as calcificaηυes intracranianas da citada doenηa sγo nodulares, ٥nicas ou m٥ltiplas, sem o carαter de simetria e bilateralidade simul tβneas. Portanto, nγo se deve responsabilizar a neurocisticercose isoladamente pelas manifestaηυes clνnicolaboratoriais do presente caso.
RESUMO
SUMMARY
Neurocysticercosis associated to hypoparathyroidism and Fahr's disease(?). A case report.
The author reports a case of neurocysticercosis and hypoparathyroidism in a 28 yearold female with bilateral symmetric basal ganglia calcification demons trable by C.A.T.Scan. A brief review of the literature is made in order to show why the eponym "Fahr's disease" should not be applied to this case.
REFERÊNCIAS
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