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O Risco de Comer Uma Sopa e Outros Casos de Direito Penal - Miguez Garcia

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Academic year: 2021

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(1)1. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal I. Elementos da Parte Geral. 1ª Secção. Generalidades e noção de acção.. § 1 Generalidades.. A ciência do direito penal é uma ciência prática e a teoria do facto punível tem igualmente finalidades práticas, de modo que as páginas que se seguem sobre a Parte Geral (PG), que no Código se estende até ao artigo 130º, visam facilitar o estudo teórico em associação com exercícios, trabalhos e exemplos que reflectem problemas do quotidiano dos tribunais e do dia-a-dia das pessoas. Em boa parte, os casos práticos apresentados foram colhidos no Boletim do Ministério da Justiça (BMJ), cuja publicação entretanto se suspendeu, e na Colectânea de Jurisprudência (CJ), que desde há anos edita cinco tomos com jurisprudência das Relações e três com a do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Mas foram também excepcionalmente úteis as sugestões e os ensinamentos colhidos em autores nacionais e estrangeiros. Seria injusto não referir já os livros de Erich Samson, Strafrecht I, de HansJoachim Rudolphi, Fälle zum Strafrecht, de Joachim Hruschka, Strafrecht nach logischM. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(2) 2. analytischer Methode e de Klaus Tiedemann, Die Anfängerübung im Strafrecht. A melhor exposição da PG que nos veio às mãos é sem dúvida a de Kristian Kühl, Strafrecht— Allgemeiner Teil, com uma 4ª edição em 2002. Um “clássico” do direito penal, por toda a parte conhecido, com edições em português (1976, em Porto Alegre) e castelhano (1980, em Buenos Aires), é o livro do Prof. Johannes Wessels, de que em 2002 saiu a 32ª edição a cargo do Prof. W. Beulke. Muito divulgados há mais de duas décadas entre os que em Portugal se dedicam ao direito penal estão o manual do Prof. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts: AT, na tradução espanhola, e as obras de Mir Puig, Derecho Penal — Parte Genereal, Muñoz Conde e García Arán, Derecho Penal — Parte General, e G. Stratenwerth, Derecho Penal — Parte General. I [trad. de G. Romero], entre outros. Dos autores portugueses merecem menção os sumários das Lições de Direito Penal do Prof. Figueiredo Dias (com indicações bibliográficas e textos de apoio), bem como os Sumários e notas de Direito Penal (1976) e os Textos de Direito Penal, elaborados com a colaboração de Nuno Brandão (2001), em curso de publicação; ainda de Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Direito Penal. Questões fundamentais — A doutrina geral do crime, 1996; do Prof. Eduardo Correia, Direito Criminal, I e II; as Lições do Prof. Cavaleiro de Ferreira; e o 2º volume do Direito Penal da Profª. Teresa Pizarro Beleza. A PG contém sobretudo regras de imputação (cf. Tiedemann, Die Anfângerübung, p. 3) que nos permitem analisar se aquele que realiza um tipo de crime deve ser ou não punido: se se verifica erro que exclui o dolo (artigo 16º); se converge uma qualquer causa de justificação (artigo 31º); se o facto não passa da tentativa (artigo 22º) ou se tem características simplesmente negligentes (artigo 15º); se concorrem, no mesmo sujeito, várias práticas delituosas (artigo 30º, nº 1); ou se a comparticipação num facto doloso se fica pela cumplicidade (artigo 27º). Estas regras de imputação vêm descritas expressamente na lei, podendo ser comparadas, em importância e significado para as pessoas, às normas da Parte Especial (PE) que tipificam as diversas formas de comportamento punível.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(3) 3. Em geral define-se o crime como uma acção (ou omissão) típica, ilícita (=antijurídica) e culposa, dando lugar a diferentes elementos, ordenados de tal forma que cada um pressupõe a existência do anterior: a tipicidade, a ilicitude e a culpa (1). É o sistema Lizst-Beling, a quem se atribui o mérito de terem elaborado a moderna teoria da infracção. A teoria do crime é pois um produto da dogmática; apresenta-se com a estrutura de um método de análise em vários níveis. A doutrina, partindo do direito positivo, ordenou e sistematizou as regras jurídicas que condicionam a possível responsabilidade penal de uma pessoa. A sistematização dessas regras, sob a designação de tipicidade, ilicitude e culpabilidade, facilita tanto a interpretação como a aplicação prática aos casos concretos. E na medida em que as normas estão integradas num sistema, a sua interpretação obriga a levá-las em conta no seu conjunto, de maneira a manterem coerência entre elas. Por isso mesmo, a teoria da infracção criminal cumpre também uma função de garantia — não só evita uma aplicação arbitrária da lei penal, como também permite calcular como se irá aplicar a mesma lei num determinado caso (Gimbernat).. § 2 O conceito de acção. I. A acção como objecto do juízo de imputação penal. Função delimitativa do conceito de acção. O conceito de acção corresponde ao mínimo relevante para a imputação penal CASO nº 1: A e B, na companhia dum terceiro, andaram a beber, até que entraram na adega dum deles para tomarem mais uns copos. Quando A se encontrava agachado para tirar vinho duma pipa, com as pernas afastadas, de costas para B, este agarrou-lhe, por detrás, com força, por los genitales. Nesse momento, o A, contorcendo-se com dores, girou bruscamente o corpo, batendo com o cotovelo no B, que. 1. Graficamente poderíamos dizer que se trata de uma série de filtros cujos orifícios se vão tornando cada. vez mais estreitos (Enrique Bacigalupo). Só faz sentido perguntar se um determinado indivíduo agiu culposamente se antes se comprovou a existência de uma acção típica e ilícita.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(4) 4. perdeu o equilíbrio e caiu, dando com a cabeça no chão de cimento. B ficou algum tempo inconsciente e depois, muito abalado, pediu que o levassem a casa, recusando-se a ir a um hospital. Veio a morrer cerca de uma hora depois, apresentando contusão fronto-parietal produzida na queda. Resumo dos factos apreciados pelo aresto de 23 de Setembro de 1983 do Tribunal Supremo de Espanha.. Punibilidade de A? Procura-se saber se o comportamento de A transpõe o limiar da relevância como comportamento punível. Se se trata, no caso, dum comportamento reflexo, qual o alcance deste entendimento ? Foi instintivo o movimento corporal que provocou a queda do B, reconheceu o tribunal na sentença que absolveu o A. A reacção foi devida a um estímulo fisiológico ou corporal, sem intervenção da consciência, por acto reflexo ou em curto circuito. Actos reflexos consistem em movimentos corporais que surgem de um estímulo sensorial a uma acção motora, à margem do sistema nervoso central. A morte do B resultou afinal dum simples acidente — à actuação do A não se poderá atribuir o significado de acção normativamente controlável. Cf. o comentário a esta decisão em Silva Sánchez, La función negativa del concepto de acción. Algunos supuestos problemáticos (movimientos reflejos, actos en cortocircuito, reacciones automáticas), in ADPCP, 1986, p. 905 e ss.. Nos anos 50 e 60 do século passado, o conceito de acção foi uma das questões mais debatidas dentro da teoria da infracção criminal. Hoje em dia, como problema prático, o significado da teoria da acção limita-se a um ou outro apontamento. Uns, mais chegados aos finalistas, afirmam que para podermos determinar se a embriaguez plena, os actos reflexos ou os chamados automatismos devem ser considerados como acções ou nãoacções necessitamos de manejar critérios que só podem ser proporcionados pela teoria da acção. Para outros, a acção desempenha uma função de filtro, puramente delimitativa: a partir do conceito geral de acção pode eliminar-se logo tudo aquilo que nunca poderia integrar uma acção. Em geral, quando nos encontramos perante um comportamento humano qualificamo-lo logo como preenchendo ou não um tipo de ilícito. Se a conduta contiver as cores da ilicitude, avançamos então para o outro nível de valoração que é a culpa. Com efeito (cf. Fernanda Palma), a “conexão de sentido pré-normativo participa, por um lado, na constituição do juízo de ilicitude como desvalor de acção e de resultado e do seu objecto como comportamento doloso ou negligente, e conduz, por outro lado, a uma revaloração, M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(5) 5. em sede de culpa, do comportamento cuja ilicitude foi anteriormente referida a uma ética de responsabilidade”. Não fará sentido afirmar essa conexão quando alguém, arrastado pela força irresistível duma multidão em debandada, esmaga uma criança indefesa contra a parede dum prédio, provocando-lhe lesões graves ou a morte — aí, excluiremos logo a existência dum comportamento humano com relevância penal, estaremos simplesmente perante uma não acção, face a algo que só poderá qualificar-se como um infausto acontecimento. No dia-a-dia, o sentido conferido pela sociedade a uma tal situação faz com que se elimine à nascença, por inadequada e votada ao insucesso, qualquer pretensão de proceder criminalmente. Não se justifica atirar o labéu de criminoso ao homem cujo corpo projectado pela multidão esmagou a criança indefesa. Noutro exemplo, se num ataque epiléptico A arranha, com movimentos incontroláveis, a cara de quem o procura ajudar, ou origina a queda e a destruição de uma valioso peça de louça — não se imagina sequer que a pessoa atingida ou prejudicada vá fazer queixa à polícia por ofensas corporais ou por dano. O objecto de valoração é um comportamento humano, mas no sofrimento do epiléptico não se espelha uma acção com relevo jurídico-penal, a sua desdita gerou, em determinado momento, um processo causal infeliz, que em nenhuma circunstância caberá no catálogo dos ilícitos nem constituirá razão nem fundamento de reprovação. Comentará, sensível e desolado, o vizinho, o amigo, o próprio prejudicado: “Coitado, que azar o deste homem!” A fixação consciente do objectivo, a selecção consciente dos meios e a realização levada a efeito mediante um acto de direcção consciente representam o tipo ideal de uma acção, o qual, todavia, não esgota a variedade dos comportamentos humanos. Muitos dos comportamentos diários desenrolam-se, de facto, “por debaixo do umbral da consciência” —contudo, enquanto “expressão da espiritualidade do homem” (Lenckner), enquanto tivermos razões para entendê-los como “exteriorizações da personalidade” (Roxin), deverão ser catalogados como acções. “Acção é um comportamento humano que é, ou pelo menos pode ser, dominado pela vontade”. Roxin, Teoria da infracção; e AT, p. 179 e ss. “Não há crime sem conduta. Os delitos chamados de mera suspeita ou de simples posição não encontram guarida em nossa disciplina”. Paulo José da Costa Jr., Comentários.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(6) 6. II. Comportamentos inconscientes, reflexos e automáticos CASO nº 1-A: A sabe que sofre de epilepsia e até já foi afectado na rua por essa doença, sem consequências para terceiros. Por isso, tem a preocupação de seguir à risca as prescrições dos médicos. Há duas semanas, porém, A esqueceu-se de tomar um medicamento muito recomendado, contra o que era seu hábito. Apesar disso, pôs-se ao volante do automóvel. Em certa altura do percurso A sofreu um súbito ataque de epilepsia e perdeu o controle do carro, que foi atropelar violentamente B, na altura em que este atravessava pela passagem destinada aos peões.. CASO nº 1-B: A seguia conduzindo o seu automóvel. No momento em que circulava por uma curva entrou-lhe pela janela, que se encontrava aberta, um insecto num olho. A fez, por isso, um “brusco movimento de defesa” com a mão. Este movimento comunicou-se à direcção do carro e o A perdeu o domínio da condução, de tal sorte que o automóvel entrou na faixa contrária e aí chocou violentamente com outro que vinha em sentido contrário, tendo ficado feridas diversas pessoas.. Toda a gente estará de acordo em que, naquele caso do indivíduo que é arrastado pela força indomável da multidão e vai esmagar a criança, como em todos os casos de vis absoluta, à qual se não pode resistir (cui resistere non potest), ou de inconsciência absoluta — não há acção. Aquele que, submetido à força irresistível de quem lhe comanda a mão (vis absoluta), “faz” a assinatura alheia, não comete uma falsificação. Diferente será o caso do indivíduo que imita a assinatura de outro sob a ameaça duma pistola apontada à cabeça (vis compulsiva, a violência moral ou relativa): aquele que “assina” age, mesmo que o seu comportamento, típico e ilícito, possa ser desculpado, por aplicação do artigo 35º — houve uma acção voluntária, ainda que desacompanhada da liberdade de decisão e de realização da vontade (coactus, sed voluit).. A mãe que durante um sono profundo, com as faculdades anímicas inteiramente “desligadas”, esmaga com o seu corpo o filho que dorme a seu lado não poderá ser penalmente responsabilizada por uma morte causada nesse estado de inconsciência. Nem o seria em caso de sonambulismo ou de hipnose. Mas o médico que estando de serviço na urgência hospitalar toma um forte sonífero, omitindo uma determinada acção que tinha o dever de praticar, pode ser responsabilizado tanto civil como criminalmente. É certo que também a mãe tinha a obrigação de não criar uma situação de risco para a vida ou a integridade física do filho. Mas aqui a “acção” não está no esmagamento do filho ou na inacção do médico que chegou ao hospital, mas sim “na conduta precedente que criou uma situação de perigo para determinados bens jurídicos, ao impossibilitar o M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(7) 7. cumprimento do dever de não lesar, ou de salvar, bens jurídicos alheios” (Prof. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa, p. 92). (2) Nesse sentido, terá havido imprudência da parte da mãe, quando colocou o filho a dormir, podendo prever que durante o sono o seu corpo abafaria o do menino (cf. Lenckner, S/S, p. 143). Impõe-se, tudo o indica, diferente solução quando a morte da criança ocorrer porque um terceiro a depôs ao lado da mãe, enquanto esta dormia, em termos de a isentar de qualquer implicação no facto. Já anteriormente se falou do epiléptico que, de repente, entrando em espasmos e convulsões, parte a jarra alheia durante o desmaio. Há também quem ponha em dúvida que um caso destes seja —no limite— inteiramente alheio ao Direito, observando-se, com Armin Kaufmann, que o epiléptico foi por si mesmo ao local onde tudo aconteceu. Por maioria de razão, se o epiléptico do caso nº 1-A, por descuido, omite o cumprimento da prescrição médica com danos para terceiros, a sua responsabilização será ainda mais evidente, mas com base numa actio libera in causa (cf. o artigo 20º, nº 4). Com o que se pretende apenas demonstrar que as questões de imputação nem sempre se apresentam como evidentes, ganham, por vezes, contornos e relevo surpreendentes, a exigir atenções redobradas. Devemos alinhar aqui alguns acontecimentos que participam de processos causais vinculados a movimentos corporais de uma pessoa, como certos actos reflexos, que são causados por uma excitação de carácter fisiológico, um acesso de tosse, um vómito repentino, que praticamente impossibilitam o controle dos movimentos. É de acto reflexo a conhecida imagem da medicina, em que o médico bate com o martelinho no joelho do paciente e o induz a projectar o pé para a frente, de forma descontrolada. Outros exemplos são as contracções derivadas do contacto com uma corrente eléctrica ou da entrada dolorosa de um insecto num olho. Ninguém sustentará em tais casos a relevância penal do comportamento. Mas como melhor se justificará a seguir, houve. 2. “A asserção de Roxin segundo a qual ‘quem cai inconsciente e parte assim um vaso não agiu’ deve. frontalmente contestar-se: pode perfeitamente conceber-se que o agente devesse ter tomado um remédio para evitar o ataque, sabendo que se o não fizesse poderia praticar um certo ilícito típico; neste caso a pessoa “agiu” e pode mesmo, em certas condições, ser jurídico-penalmente responsabilizada e punível”. Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 39.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(8) 8. ainda acção quando uma condutora perdeu o controle do carro, provocando um acidente, por se ter inclinado para trás, defendendo-se dum insecto que subitamente lhe entrou num olho (cf. Eser / Burkhardt, caso nº 3). 3. A responsabilidade penal pode incidir em comportamentos inconscientes. Mas até onde poderá ir um tal alargamento? É a vontade que separa a acção humana do simples facto causal. Esta vontade tem sido entendida, como observa Lenckner, na maior parte dos casos, como vontade consciente, de forma que a qualidade de acção parece estar posta em dúvida naqueles casos em que a “actividade de direcção” também se pode produzir, em razão da automação, de modo inconsciente. Os automatismos são produto da aprendizagem, por ex., ao andar, ou no exercício continuado da condução automóvel: meter as mudanças, dar gás, guinar a direcção para a esquerda ou para a direita, fazer sinais de luzes, meter o pé ao travão. A doutrina actual, mesmo quando se inclina para a não acção nos actos reflexos, afirma-a em geral ao nível dos automatismos, que se desenvolvem sem a intervenção da consciência activa. Na primeira metade do século vinte, quando ainda se não adivinhava a complexidade dos comportamentos nas actuais sociedades de tecnologia avançada, e sobretudo se não atendia às incidências que hoje tem a condução automóvel, um autor como Mezger equiparava os actos automáticos aos movimentos reflexos — e como os automatismos eram reflexos não podiam ser catalogados nas acções, na medida em que se desenrolam por “debaixo do umbral da consciência”. Também por essa altura apareceu em voga a teoria final da acção. Para esta teoria (recorde-se, nomeadamente, os nomes de Welzel e Maurach) “actividade final é uma intervenção causal conscientemente dirigida a um fim”. A aplicação literal desta maneira de ver impediria que se afirmasse a acção em todos os casos duvidosos. Consequentemente, em relação aos comportamentos automatizados, em especial na condução rodoviária, onde a sua importância se faz sentir mais vincadamente, não teríamos outro remédio que não fosse negar o seu envolvimento no conceito de acção. O próprio Welzel entendia que na prática era inadmissível uma tal solução (Das Deutsche StrafR, p. 153), ao escrever que, por ex., o condutor tem de adequar a velocidade à medida do seu domínio das manobras técnicas e da sua capacidade de reacção. Ainda que M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(9) 9. a correcção das nossas acções não derive, no caso concreto, de uma direcção consciente da acção, mas de disposições automatizadas para a acção adquiridas anteriormente, a sua falta pode ser censurada ao autor na medida em que ele, na execução da sua acção final, não teve em consideração os perigos da situação e os limites funcionais das suas disposições automatizadas, mesmo quando podia tê-los reconhecido. Por isso mesmo, nos automatismos, como no caso das reacções emocionais ou de formas de embriaguez profunda (sem se excluir totalmente a consciência), quer dizer, em todos os casos duvidosos, de que se exceptuam os actos reflexos, a doutrina tende a reconhecer a existência de acções — ainda que para isso tenha que recorrer à noção de finalidade inconsciente, como faz Stratenwerth. É possível, diz-se, interpor a vontade consciente por forma a orientar o comportamento (Rudolphi). “A acção penalmente relevante exige (mesmo que automática) pelo menos uma possibilidade efectiva de substituir o comportamento automático por um comportamento conscientemente dirigido, imediatamente antes ou durante a execução do agente. Se o agente para se defender duma mosca ou de uma abelha tira repentinamente as mãos do volante e deixa o carro guinar para a faixa contrária (provocando um acidente) parece ser possível afirmar que poderia ultrapassar conscientemente a cedência a uma reacção defensiva excessiva e incontrolada, se tivesse a possibilidade de prever que outros veículos viajavam na faixa contrária (limiar subjectivo da negligência inconsciente).” Cf. Profª Fernanda Palma, referindo Jakobs, AT, p. 69 e ss. e Eser / Burkhardt, Derecho Penal, p. 144. Se um automobilista, que circula de noite a 90 quilómetros por hora, ao ver aparecer subitamente na estrada um animal do tamanho duma lebre, a uma distância de 10-15 metros, dirige o carro para a esquerda e embate no separador central, provocando a morte de quem o acompanha — a reacção de desviar o carro, diz Roxin, AT, p. 205, a propósito deste caso julgado pelos tribunais alemães, é uma actividade automatizada, em que o condutor actua no seguimento de uma longa prática, a qual se transforma, eventualmente sem uma reflexão consciente, em movimentos. Os movimentos que se repetem constantemente estão, via de regra, em grande parte automatizados no homem. É o que acontece com o andar e a condução automóvel. Esta automatização de alguns comportamentos é dum modo geral favorável, por permitir acelerar a reacção em situações que não consentem qualquer reflexão, por nisso se perder demasiado tempo. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(10) 10. Ainda assim, a automatização pode conduzir, em certos casos, a reacções erradas, que se produzem de maneira tão pouco consciente como as formas correctas de conduzir. Mas também os automatismos são acções. De acordo com Roxin, AT, p. 155 e ss., as disposições para agir que são fruto da aprendizagem (erlehrnte Handlungsdispositionen) pertencem ao conjunto da personalidade, são, por isso mesmo, afirmações da personalidade, independentemente das consequências, nocivas ou não, a que conduzam. Os automatismos e as reacções espontâneas, como os estados de violenta excitação emocional e de embriaguez profunda constituem acções. Todos eles representam respostas do aparelho anímico ao mundo exterior, são ainda “exteriorizações da personalidade”, e portanto expressão da parte anímico-espiritual do ser humano. Lenckner, que igualmente reconhece a existência de acção nos comportamentos automáticos, recorre “à expressão da espiritualidade do homem”, próxima, no seu significado e alcance funcional, da que emprega Roxin. Por um lado, dá como assente que a maior parte das formas comportamentais do quotidiano permanece por debaixo do limiar da consciência. Por outro, entende que o facto de as reacções automáticas associadas à circulação rodoviária poderem ser, por vezes, qualificadas como erradas — embora, na maior parte dos casos, felizmente sejam correctas — mostra que aqui não se trata da qualidade da acção, porque, negando-a, não se colocaria, pertinentemente, a questão da sua qualificação como correcta ou incorrecta. Estes casos distinguem-se dos reflexos corporais puros, constituídos por reacções que “aparecem como resposta (pessoal), dada pelo comportamento, a uma determinada situação”. De forma que, acrescenta Lenckner, o limiar da não acção só se ultrapassa quando de todo estiver excluída a possibilidade de uma intervenção consciente na actividade de direcção que se desenvolve de modo inconsciente.. No caso aqui apresentado como o caso nº 1-B, Eser / Burkhardt apreciam assim a punibilidade de A: a condução de um automóvel com a janela aberta e sem que o condutor se concentre suficientemente de modo a evitar automatismos perigosos fazem da condução um comportamento não permitido e perigoso —trata-se, portanto, de um comportamento objectivamente típico. Este comportamento típico produziu lesões corporais noutras pessoas. A produção do resultado típico é também a realização do risco não permitido por parte de A. Daí que o tipo objectivo do [artigo 148º] se encontre preenchido. Faltará analisar também em sede de ilícito se A actuou negligentemente e se a resposta for afirmativa então passamos à apreciação das possíveis causas de justificação e, eventualmente, das causas de exclusão da culpa.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(11) 11. Há divergências na apreciação das acções em curto circuito, em que o elemento voluntário se mantém, executando-se, porém a uma velocidade tal que ao agente falta a possibilidade de mobilizar as reacções inibidoras do comportamento (Bacigalupo), por ex., o autor mata quem acaba de matar o seu próprio filho — em geral afirma-se a existência de uma acção, já que nestes casos sempre seria possível interpor uma vontade consciente a orientar o comportamento.. III. Causalismo e finalismo na teoria do crime O que atrás se disse encontra-se de algum modo ligado às teorias que historicamente se foram desenvolvendo em torno de alguns aspectos do conceito de acção. A teoria causal da acção é o sistema de v. Liszt e Beling (desenvolvido com outros pormenores por Radbruch: vd. Welzel, p. 39) — identifica-se com o chamado sistema clássico, que se desenvolveu nos finais do século dezanove, de algum modo como reacção ao modelo hegeliano, até então dominante, no contexto positivo-naturalista da época, em que as ciências naturais e o correspondente método tinham uma grande influência em todas as esferas do saber. O traço mais relevante da teoria causal da acção consiste em se abstrair do conceito de vontade, considerando como critério único determinante a eficácia causal da vontade. Não importa o conteúdo da vontade, por não interessar à acção o que o autor queria, mas a simples causação das consequências de um acto voluntário. Já se vê a importância conferida por esta teoria à associação da causalidade com o conceito de acção: ao fim e ao cabo, o conceito causal de acção só tem em conta a produção causal do resultado. A acção é a causação, ou não evitação, do resultado (morte da vítima do homicídio, destruição da coisa alheia no dano), derivada de uma manifestação volitiva: define-se, portanto, como uma causação arbitrária ou não evitação de uma modificação (de um resultado) no mundo exterior. Acção é todo e qualquer acto proveniente da vontade que ponha em perigo interesses, quer se trate de um movimento corporal, quer se trate da sua falta de realização, compreendendo a acção em sentido estrito e a omissão (conceito unitário), uma e outra proveniente da vontade (v. Liszt). O conteúdo da vontade sai do âmbito da acção e inclui-se na culpa. Para se poder sustentar que existe uma acção basta saber que o sujeito, volitivamente, actuou ou permaneceu inactivo, o conteúdo da vontade só tem importância para o problema da culpa.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(12) 12. O sistema clássico servia-se de um conceito objectivo de tipicidade, à margem de qualquer valoração, consequentemente, de uma ilicitude objectiva e formal. No ilícito não se levavam em conta factores de outra natureza: tudo o que for objectivo pertence à ilícitude, tudo o que é subjectivo integra-se na culpa. Compreende-se assim que, sendo o conteúdo da vontade de feição subjectiva, não tenha lugar no conceito penal de acção. Mais tarde, quando o sistema evoluiu, por influência da filosofia de raiz neo-kantiana, começou a definirse o ilícito como um comportamento socialmente danoso, surgindo então a possibilidade de graduar o ilícito e de nele incluir elementos subjectivos, não apreensíveis pelos sentidos, e cuja ausência determina a atipicidade da acção. A descoberta destes elementos subjectivos como integrantes da ilicitude conduziu à negação da neutralidade do tipo penal. Por outro lado, o conceito causal de acção foi sendo progressivamente rejeitado como a pedra angular do sistema penal e como portador das características do crime. Vem desse tempo a ideia, que ainda hoje subsiste, do bem jurídico como princípio metodológico para a interpretação dos tipos penais.. Modelo estrutural “causal” (neo-clássico). Cf. Baumann/Weber/Mitsch, Strafrecht, AT, 10ª ed., p. 177. Acção I. Tipicidade 1. Tipicidade da acção: nos crimes de resultado, o resultado previsto no tipo e a correspondente conexão entre acção e resultado, a causalidade. 2. Elementos subjectivos do ilícito. II. Ilicitude. Ausência de causas de justificação. III. Culpa 1. Capacidade de culpa. 2. Dolo. 3. Ausência de causas de desculpação. IV. Outros pressupostos de punibilidade (excepcionalmente).. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(13) 13. Concepção psicológica da culpa / teoria normativa da culpa. A culpa passou a ser entendida como um autêntico juízo de censura. O sistema clássico caracterizava-se ainda por uma concepção psicológica da culpa, concebida como um simples nexo psíquico entre e facto e o seu autor, que tanto podia revestir a forma dolosa como a negligente — dolo e negligência constituem as duas formas de manifestação da culpa e só se distinguiam entre si pela intensidade da relação psicológica. As dificuldades que a visão psicológica da culpa enfrentava (pense-se na negligência inconsciente, em que essa relação entre o facto e o seu autor nem sequer está presente; ou em que a pura relação subjectiva entre o comportamento e quem o realiza pode existir tanto nos imputáveis como nos não imputáveis) vieram a ser corrigidas pela chamada teoria normativa da culpa. Foi Reinhard Frank quem, na primeira década do século 20, referindo-se à insuficiência da relação psicológica para a culpa, utilizou o termo censurabilidade para a definir e ampliar os seus contornos (cf. Welzel, p. 139). A culpa não se esgota numa simples relação psíquica entre a vontade e o evento fixada na lei, torna-se juízo de reprovação assente na estrutura lógico real do livre arbítrio. Como diz Welzel, a culpa fundamenta a reprovação pessoal contra o autor, por não ter deixado de praticar a acção antijurídica, apesar de isso lhe ser possível. Por outras palavras, a culpa fundamenta a censura pessoal contra o agente já que este, em aberta contradição com a ordem jurídica, não omitiu, como devia, a conduta ilícita, embora o pudesse ter feito, adoptando outro comportamento — dever e poder são assim duas colunas essenciais desta categoria. O sujeito é culpado se pudermos censurá-lo, dependendo esta possibilidade não só do dolo ou da negligência, mesmo só inconsciente, como ainda da capacidade de culpa, ou seja, da imputabilidade. Imputabilidade, consciência do ilícito, exigibilidade de outro comportamento. Para Welzel, p. 138 e ss., elementos da censurabilidade são — a imputabilidade: atentas as suas forças psíquicas, o autor é capaz de se motivar de acordo com a norma; — e a possibilidade de avaliar o ilícito: o autor está em condições de se motivar de acordo com a norma por ter a possibilidade de compreender a antijuridicidade. Do juízo de censura participam ainda os elementos da exigibilidade de outro comportamento.. A teoria normativa da culpa teve um grande significado na evolução destes conceitos, permitindo que o dolo se separasse da culpa, passando para o âmbito da ilicitude, de acordo com a teoria finalista: “a quintessência desta teoria reside na afirmação de que o. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(14) 14. dolo como factor caracterizador da acção seria um elemento essencial do ilícito” (cf. Eser / Burkhardt, p. 36; e Welzel, especialmente p. 61). Por outro lado, “extraindo este objecto da valoração da categoria da culpa e situando-o na do ilícito, estava cumprida a condição necessária para “reduzir” (“purificar”) a culpa àquilo que verdadeiramente ela deve ser: um “puro juízo de (des)valor”, um autêntico juízo de censura” (Figueiredo Dias/Costa Andrade, Direito Penal. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime. UC, 1996, p. 329). Idêntico papel no desenvolvimento de uma nova sistemática na estrutura de crime coube a outros elementos subjectivos do ilícito. A finalidade é “vidente”, a causalidade “cega” (Welzel, p. 33). A teoria finalista da acção foi especialmente desenvolvida por Welzel como corrente contrária à teoria causal, o seu ponto de enlace com o direito penal foi, como explica Roxin, a luta contra o conceito causal de acção. Para os finalistas, o conceito de acção do direito penal deveria ser um conceito ontológico. O que define a acção humana é a finalidade: o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as consequências possíveis da sua actividade futura, propor-se objectivos diversos, e dirigir aquela actividade, de acordo com um plano, à consecução de um fim (Welzel, p. 33). A acção humana é, portanto, um acontecer “final” e não somente “causal”. A acção é baseada na direcção do comportamento do autor a um fim previamente fixado por este —é assim o exercício de actividade final (conceito ontológico, da realidade) e existe antes da valoração jurídica (conceito pré-jurídico). O lugar sistemático do dolo é o ponto culminante da teoria da acção final, caracterizando-a e caracterizando também o correspondente sistema (Eb. Schmidhäuser). Na concepção finalista, o tipo engloba, juntamente com a sua parte objectiva (que tradicionalmente aparecia como sendo a sua essência), uma parte subjectiva, formada pelo dolo e pelos restantes elementos subjectivos específicos do ilícito (cf. Welzel, especialmente, p. 58: “nos delitos dolosos, o tipo contém uma descrição precisa dos elementos objectivos e subjectivos da acção, incluindo o resultado”). O tipo objectivo corresponde à objectivação da vontade integrante do dolo, compreendendo portanto as características do produzir externo do autor. O dolo, elemento fundamental da parte subjectiva, é constituído pela finalidade dirigida à realização do tipo objectivo. Se a finalidade pertence à estrutura da acção, como pensam os finalistas, e o tipo configura acções, compreende-se perfeitamente que se inclua o dolo, não na culpa, mas no tipo. Todavia, o dolo não se esgota na finalidade dirigida ao tipo objectivo: como a ilicitude não é um elemento do tipo, não deverá estender-se à ilicitude o conhecimento e a vontade próprios do dolo. Deste modo, o erro do tipo. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(15) 15. excluirá o dolo, e portanto a tipicidade. Se o erro se referir à ilicitude, deixará intacta a tipicidade da conduta. (Cf. Welzel, p. 62 e ss.; Eb. Schmidhäuser, p. 138).. Ainda o dolo como elemento do ilícito. Uma das conclusões mais relevantes da dogmática finalista é a de que o dolo como factor caracterizador da acção seria um elemento do ilícito. O dolo, constituindo um elemento básico da acção, pertence imediatamente ao tipo de ilícito. Aquilo que exprime o sentido de uma acção é a finalidade do autor, é a condução do acontecimento pelo sujeito, de forma que para os finalistas — e ao contrário do que acontecia com os causalistas — a espinha dorsal da acção é a vontade consciente do fim, rectora do acontecer causal. Devendo o tipo descrever também a estrutura final da acção, isso supunha uma deslocação do dolo e da negligência — até então entendidos como formas de culpa — para o âmbito da ilicitude, que, como se sabe, é a primeira área de valoração na estrutura do crime. O dolo e a negligência não são elementos da culpa mas formas de infringir uma norma e, por conseguinte, são formas de ilicitude; o dolo constitui um elemento subjectivo do tipo de ilícito doloso e a infracção do dever de cuidado diz respeito ao tipo de ilícito negligente, de forma que, nesta concepção, deverão tomar-se em consideração elementos pertencentes à pessoa que realiza a acção: a direcção da acção ao resultado nos crimes dolosos e a infracção do dever de cuidado nos crimes negligentes. Se na tentativa o dolo pertence ao tipo e não só à culpa, tem que conservar a mesma função quando se passa ao estádio da consumação.. Modelo estrutural “final” Cf. Baumann/Weber/Mitsch, Strafrecht, AT, 10ª ed., p. 177. Acção. I. Tipicidade 1. Tipo objectivo: nos crimes de resultado, resultado e causalidade. 2. Tipo subjectivo. a) Dolo b) Elementos subjectivos do ilícito.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(16) 16. II. Ilicitude. Ausência de causas de justificação. III. Culpa. 1. Capacidade de culpa. 2. Ausência de causas de desculpação. IV. Outros pressupostos de punibilidade (excepcionalmente).. IV. Desenvolvimentos posteriores. A actual teoria da evitabilidade individual (Jakobs) é correntemente encarada como um desenvolvimento da teoria final da acção. O que importa é a imputação objectiva de uma conduta típica a uma pessoa, a realizar de acordo com o ponto de vista social. A acção é um comportamento exterior evitável, uma conduta que o seu autor poderia ter evitado se estivesse para tanto motivado. Um comportamento será evitável quando o seu autor tinha a possibilidade de o dirigir finalmente, em direcção a um fim por ele mesmo determinado. O indivíduo que é arrastado pela multidão e esmaga um menino contra uma parede não tinha nas suas mãos evitar tão trágico desfecho. De certo modo, o critério de Welzel é o inverso da doutrina tradicional. Nesta última, e só na sua fase mais avançada, como vimos, é que excepcionalmente se incluíram elementos subjectivos no ilícito — e apenas na medida em que influíam na "danosidade social" e tinham a ver com o resultado. Como observa Cordoba Roda, para Welzel, o fundamental está no desvalor do acto, chegando o penalista alemão ao ponto de afirmar que a lesão do bem jurídico (o desvalor de resultado) só tem significado jurídico-penal dentro de uma acção pessoalmente antijurídica (dentro do desvalor da acção). Mas a discussão entre causalistas e finalistas está dada por encerrada. (3) Muita coisa ficou do. 3. Aproximando-se das construções clássicas (conserva, por ex., o dolo como elemento da culpa), pode. ainda hoje apreciar-se o excelente manual de Baumann / Weber / Mitsch, Strafrecht — Allgemeiner Teil, 10ª ed., 1995; nos quadros do finalismo, um dos exemplos mais interessantes é a exposição de Udo Ebert, Strafrecht, AT, 2ª ed., 1992.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(17) 17. sistema de Welzel e dos seus imediatos seguidores. O conceito de acção e as teses finalistas muito contribuíram para as alterações sofridas pelas categorias tradicionais. O dolo, concebido como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo do ilícito, converteu-se no elemento subjectivo geral com sede na ilicitude, deixando, nessa medida, de pertencer à culpa. Em sede de tipo de ilícito, enquanto determinante da direcção do comportamento, o dolo entende-se agora, correntemente, como saber e querer, como conhecimento e vontade da realização do tipo objectivo; como forma de culpa, enquanto modo de formação da vontade que conduz ao facto, resta-lhe (cf., entre nós, a exposição de Teresa Serra, Homicídio qualificado, tipo de culpa e medida da pena, 1992, cuja leitura atenta se recomenda) o ser portador da atitude pessoal contrária ao direito — resta-lhe o que alguns apelidam de resquício do antigo dolus malus do sistema clássico, i. e, uma atitude hostil ou no mínimo indiferente em face do bem jurídico ameaçado. Dolo e negligência são ambos formas de infringir uma norma. Hoje, na negligência, leva-se em conta um dever de cuidado objectivo situado ao nível da ilicitude, ainda que se considere um dever subjectivo situado ao nível da culpa (cf. o artigo 15º do Código Penal). Finalmente, temse por adquirido que, no ilícito, ao lado dum desvalor de resultado concorre um desvalor de acção. E esta distinção pertence, indiscutivelmente, aos finalistas — é deles o mérito de terem assinalado que a ilicitude não depende apenas da causação de um resultado mas também de uma determinada modalidade de actuar, quer dizer, o injusto é injusto de resultado e injusto de acção. A causação do resultado —a lesão do bem jurídico— não esgota o ilicito. É legítimo até concluir que o desvalor de resultado poderá faltar num determinado caso concreto sem que desapareça o de acção, v. gr., na tentativa inidónea (artigo 23º, nº 3). Cf. Welzel, p. 62. O fim da teoria finalista ocorreu do modo como Thomas Kuhn descreveu o "impulso revolucionário" nas descobertas e avanços científicos: os seus teoremas dogmáticos — quando não foram de algum modo acolhidos — e a sua metodologia não foram refutados, mas apenas esquecidos, e o fio da discussão prosseguiu noutros domínios e de outras formas. W. Hassemer, História das ideias, p. 30.. As teorias sociais da acção manifestam-se em diversas posturas (Jescheck, Wessels). São teorias surgidas com o intuito de superar os conflitos entre a teoria causal e os pontos de. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(18) 18. vista finalistas e que têm em comum, segundo Eser / Burkhardt, o facto de na determinação do conceito de acção recorrerem, pelo menos, aos critérios de relevância social e de domínio (dirigibilidade, evitabilidade, intencionalidade e similares). A acção define-se como a produção arbitrária de consequências objectivamente intencionáveis e de relevância social ou como o comportamento de relevância social dominado ou dominável pela vontade. A perspectiva social é um denominador comum capaz de aglutinar comportamentos que tanto podem integrar crimes dolosos, como os negligentes e as omissões. O irmão de vinte anos, dominando perfeitamente a língua francesa, mete na cabeça da irmãzita de oito anos, que não sabe uma palavra daquela língua, que deve cumprimentar a professora de música com a saudação "Bonjour madame la cocotte", para (como diz) dar a esta uma grande alegria. Neste caso, a pequenita "agiu" pronunciando palavras de sentido injurioso. O facto de ter querido dizer algo de totalmente diverso é absolutamente indiferente para efeito do sentido social do comportamento (dela). A professora teve de suportar uma expressão lesiva da sua honra. Só quando nos aproximamos da valoração jurídico-penal relativa a esta "acção" é que interessa ponderar que a pequenita considerou a sua actuação como acto de gentileza e não como algo de injurioso. A partir daqui surge a possibilidade de qualificar o comportamento do irmão: embora não tenha dito palavra perante a professora, o seu comportamento, no todo, possui o sentido de uma injúria. Eb. Schmidt, p. 185.. Hoje tendem sobretudo a impor-se razões e argumentos funcionalistas (teleológicoracionais), defendidos por nomes conhecidos como Figueiredo Dias, Roxin e Jakobs, que visam atribuir novos conteúdos às categorias dogmáticas do crime orientando-as para o que se chama “a função do direito penal na sociedade moderna”. Funcional quer dizer que algo, seja por ex., o Direito Penal, se orienta para a função que desempenha ou deve desempenhar na sociedade moderna. Jakobs acentua que se assiste ao declínio da dogmática de base ontológica e que conceitos como os de culpa e de acção —a que a dogmática atribuiu, de forma continuada, uma estrutura pré-jurídica— se tornaram noções que para nada contribuem sem que se atenda à missão do direito penal. É assim que actualmente se discutem pontos da dogmática penal que até há pouco possuíam uma orientação praticamente inflexível, dificultando a operacionalidade do Direito penal para questões pontuais, como por exemplo: “a perspectiva da responsabilidade da pessoa jurídica, a apreciação típica definida pela teoria da imputação objectiva, bem como as novas concepções da culpabilidade” (cf. Ricardo Breier, Ciência penal pós-finalismo:. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(19) 19. uma visão funcional do direito penal, RPCC 13 (2003); cf. também Luís Greco, Introdução à dogmática funcionalista do delito). Para Figueiredo Dias a culpa é em todo o caso a mais perfeita e a mais forte forma pensável de defesa da dignidade da pessoa humana. A função que a culpa exerce no sistema é a de limitar incondicionalmente a intervenção punitiva estatal pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa humana (cf., entre outras publicações, Direito Penal. Questões fundamentais, p. 270). “Roxin ensina a pensar com os casos penais, extraindo deles, na sua significação social, a possibilidade regulativa das normas. Quem desliga a máquina que mantém as funções vegetativas de uma pessoa, quando a situação se tornou irreversível, não realiza uma acção homicida, mas apenas uma omissão por fazer, exclusivamente punível se houver posição de garante (e impune na medida em que a situação já não caiba no âmbito de protecção da vida). A acção deixa de ser um conteúdo fixo e transcendental para se tornar um conceito funcional representativo do que a norma reclama do seu destinatário. Quem desliga a máquina, naqueles casos, apenas não mantém uma vida vegetativa e artificial, apenas não a prolonga apesar de agir”. Maria Fernanda Palma, Laudatio, i n Problemas fundamentais de Direito Penal. Homenagem a Claus Roxin, Lisboa, 2002, p. 231. Na teoria do delito de Jakobs tem lugar cimeiro a circunstância de a pena ser determinada pela sua função de prevenção geral positiva. “A pena é sempre reacção à infracção de uma norma. Com a reacção, torna-se óbvio que a norma é para ser observada —e a reacção demonstrativa tem sempre lugar à custa do responsável pela infracção da norma”. A finalidade da pena coincide com a reafirmação das normas e do ordenamento (prevenção geral positiva), o que se inscreve no exercício da confiança, da fidelidade ao direito e da aceitação das consequências jurídicas do delito (cf. A. Serrano Maíllo, p. 161).. Ainda que se distanciem em muitos pontos concretos, as correntes funcionalistas têm em comum alguns princípios fundamentais. Os pressupostos de punibilidade devem orientar-se naturalmente para os objectivos do direito penal e assentar em considerações de política criminal. O que legitima o sistema de aplicação da lei não são as estruturas prévias do objecto de regulação das normas mas a coincidência das suas soluções com determinados fins político-criminais, i. e. com os fins das penas. O sistema será o sistema da lei se e na medida em que garanta resultados conformes com as finalidades das penas —e de que se possa esperar maior utilidade, reconhecimento social e maior justiça material nos casos concretos. A pré-estrutura das normas não seria então dada pela acção mas pelos fins das penas. Cf. Claus Roxin, Contribuição para a crítica da doutrina final, publicado pela primeira vez em 1962, e traduzido para português, incluído em Problemas fundamentais de direito criminal, p. 91 e ss.; e Política criminal e sistema M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(20) 20. jurídico-penal, tradução de Luís Greco, Renovar, 2002, p. 82; Winfried Hassemer, História das ideias penais na Alemanha do pós-guerra, especialmente, a partir de p. 63, bem como Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, 2ª ed., 1990, especialmente a partir de p. 22; e Figueiredo Dias, in Fundamentos de um sistema europeo del derecho penal. Libro-Homenaje a Claus Roxin, 1995, p 447 e ss. Orientação para as consequências do sistema jurídico-penal pode significar que o legislador, a justiça penal e a execução das penas não se vêem apenas na função de perseguir o ilícito criminal e impor o castigo ao criminoso, mas que visam pelo menos o objectivo de ressocializar o agente do crime e pôr um travão à criminalidade no seu todo. Hassemer, Einführung, p. 22. O direito para que serve? "... aos valores substituem-se os fins (subjectivos), aos fundamentos os efeitos (empíricos) — numa só palavra, trata-se de um finalismo que se afere por um consequencialismo. (...). Corolários disso, e em que o compromisso ideológico se manifesta: a libertação da política, o pragmatismo filosófico, o utilitarismo social (este consequência também da libertação do económico). Depois, já no nosso tempo, as formas radicais de secularismo activo, da incondicional libertação ética e bem assim a dialética holística da "razão crítica" e de todas as "teorias críticas" nelas fundadas a favor de uma total emancipação, tal como no plano social o materialismo utilitarista do bem estar, etc." A. Castanheira Neves, Entre o "legislador", a "sociedade" e o "juiz" ou entre "sistema", "função" e "problema" — os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito, RLJ, 130º, nº 3884, p. 325.. V. Outras indicações de leitura •. Albin Eser/B. Burkhardt, Strafrecht I. Schwerpunkt, 4ª ed., 1992, p. 86 e ss. Há tradução espanhola: Derecho Penal, Cuestiones fundamentales de la Teoría de Delito sobre la base de casos de sentencias, Ed. Colex, 1995.. •. Alfonso Serrano Maíllo, Ensayo sobre el Derecho Penal como ciencia. Acerca de su construcción. Madrid, 1999.. •. Beatriz de La Gándara Vallejo, Algunas consideraciones acerca de los fundamentos teóricos del sistema de la teoría del delito de Jakobs, ADPCP, vol. L, 1997.. •. Bockelmann/Volk, Strafrecht. Allgemeiner Teil, 4ª ed., 1987.. •. Castanheira Neves, Entre o "legislador", a "sociedade" e o "juiz" ou entre "sistema", "função" e "problema" — os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do Direito, RLJ, 130º, nº 3883 e ss.. •. Castanheira Neves, O Direito hoje e com Que Sentido? O problema actual da autonomia do direito, Instituto Piaget, 2002.. •. Cavaleiro de Ferreira, A tipicidade na técnica do direito penal, Lisboa, 1935.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(21) 21. •. Claus Roxin, Reflexões sobre a problemática da imputação em direito penal, i n Problemas fundamentais de direito penal, p 145 e ss.. •. Claus Roxin, Strafrecht, Allgemeiner Teil, Bd. 1. Grundlagen, der Aufbau der Verbrechenslehre, 2ª ed., 1994. Há tradução espanhola.. •. Claus Roxin,Teoria da infracção, in Textos de apoio de Direito Penal, tomo I, AAFD, Lisboa, 1983/84.. •. Dirk von Selle, Absicht und intentionaler Gehalt der Handlung, JR 1999, p. 309 e ss.. •. Eb. Schmidt, Teoria da infracção social, in Textos de apoio de Direito Penal, tomo II, AAFD, Lisboa, 1983/84.. •. Eberhard Schmidhäuser, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 1970.. •. Edmund Mezger, Derecho Penal. Parte General. Libro de estudio. Tradução da 6ª ed. alemã, Buenos Aires, 1958.. •. Enrique Bacigalupo, Princípios de derecho penal, parte general, 2ª ed, 1990.. •. F. Haft, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 6ª ed., 1994.. •. Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, especialmente, p. 471 e ss. e p. 542 e ss.. •. G. Jakobs, Estudios de derecho penal, 1997.. •. G. Jakobs, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2ª ed., 1993. Há tradução espanhola.. •. Günter Stratenwerth, Derecho Penal, Parte general, I, El hecho punible, 1982, p. 107 e ss.. •. H.-H. Jescheck, Grundfragen der Dogmatik und Kriminalpolitik im Spiegel der Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft, in ZStW 93 (1981), p. 1.. •. H.-H. Jescheck, Lehrbuch des Strafrechts: Allg. Teil, 4ª ed., 1988, de que há tradução espanhola.. •. Hans Welzel, das Deutsche Strafrecht, 11ª ed., 1969. Há tradução parcial para o espanhol com o título Derecho Penal Aleman, Parte general / 11ª edicion, 4ª edicion castellana, Editorial Juridica de Chile, 1997.. •. Johannes Wessels, Strafrecht, AT-1, 17ª ed., 1993: há traduções para português e para castelhano a partir de edições anteriores.. •. Jorge de Figueiredo Dias / Manuel da Costa Andrade, Direito Penal. Questões fundamentais. A doutrina geral do crime, 1996.. •. Jorge de Figueiredo Dias, Sobre a construção da doutrina do crime (do facto punível), in Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora, 2001.. •. Jorge de Figueiredo Dias, Sobre o estado actual da doutrina do crime, 1ª parte, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 1º (1991).. •. Jorge dos Reis Bravo, Critérios de imputação jurídico-penal de entes colectivos, RPCC 13 (2003), p. 207.. •. José Cerezo Mir, Curso de derecho penal español, parte general, II. Teoría jurídica del delito/I, 5ª ed., 1997.. •. José Cerezo Mir, El concepto de la acción finalista como fundamento del sistema del Derecho penal, in Problemas fundamentales del derecho penal, 1982.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(22) 22. •. José de Sousa e Brito, Sentido e valor da análise do crime, Direito e Justiça, volume IV 1989 / 1990.. •. Juan Bustos Ramírez, Manual de derecho penal español. Parte general, 1984, p. 170.. •. Juan Cordoba Roda, Una nueva concepcion del delito - la doctrina finalista, Barcelona, 1963.. •. Kristian Kühl, Strafrecht, AT, 1994.. •. Lenckner, in S / S, Strafgesetzbuch, Kommentar, 25ª ed., p. 142 e s.. •. Luís. Greco,. Introdução. à. dogmática. funcionalista. do. delito,. www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/direito_penal.htm •. Manuel Jaén Vallejo, El concepto de acción en la dogmática penal, Colex, 1994.. •. Maria Fernanda Palma, A teoria do crime como teoria da decisão penal (Reflexão sobre o método e o ensino do Direito Penal), in RPCC 9 (1999), p. 523 e ss.. •. Maria Fernanda Palma, Questões centrais da teoria da imputação e critérios de distinção com que opera a decisão judicial sobre os fundamentos e limites da responsabilidade penal, i n Casos e Materiais de Direito Penal, Coimbra, 2000, p. 53.. •. Max Weber, Conceitos sociológicos fundamentais, tradução por Artur Morão do 1º capítulo de Wirtschaft und Gesellschaft, Edições 70, 1997.. •. Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal, 6ª ed. actualizada, Saraiva, 2000.. •. Ricardo Breier, Ciência penal pós-finalismo: uma visão funcional do direito penal, RPCC 13 (2003).. •. Rudolphi, in Rudolphi / Horn / Samson / Schreiber, Systematischer Kommentar zum Strafgesetzbuch. Band I. Allgemeiner Teil, 2ª ed., 1977.. •. Ruiz Antón, La acción como elemento del delito y la teoría de los actos de habla: cometer delitos con palabras, ADPCP, vol. LI, 1998.. •. W. Hassemer, Einführung in die Grundlagen des Strafrechts, 2ª ed., 1990.. •. Winfried Hassemer, Strafrechtswissenschaft in. der. Bundesrepublik Deutschland, in. Rechtswissenschaft in der Bonner Republik, Studien zur Wissenschaftsgeschichte der Jurisprudenz, hrsg. von Dieter Simon, Suhrkamp, 1994, p. 282 e ss.; encontra-se traduzido para português com o título História das ideias penais na Alemanha do pós-guerra, e publicado pela AAFDL, 1995. Há também tradução espanhola, com o título La ciencia jurídico penal en la República Federal Alemana, publicado no ADPCP 1996, p. 36 e ss.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(23) 23. 2ª Secção. O facto doloso por acção na forma consumada.. § 3º A ilicitude dos crimes dolosos por acção e os diversos níveis de valoração. Juízo de ilícito sobre o facto e juízo de desvalor sobre o agente.. Pela acção perguntamos de que é o homem capaz. Pelo ilícito perguntamos de que é que o homem é capaz em determinadas situações e desempenhando certos papéis. Pela culpa perguntamos de que é que este homem é capaz (Kaufmann, apud Faria Costa, O Perigo, p. 423).. I. Comportamento humano e tipicidade como requisitos da ilicitude. É no tipo que a lei descreve uma conduta humana desaprovada. A punibilidade de uma conduta depende de pressupostos gerais que como tal a declaram —a tipicidade, a ilicitude e a culpa. Já atrás observámos que a doutrina penal define correntemente o crime como uma acção (ou omissão) típica, ilícita e culposa, distinguindo estes três elementos e ordenando-os de tal forma que cada um deles pressupõe a existência do anterior. O sistema (sistema Liszt-Beling) é o de fazer intervir um escalonamento gradual — o julgador ou o aplicador do direito tem que valorar, em diversas fases ou em diferentes níveis, o comportamento de um possível criminoso antes de chegar ao juízo definitivo que o declara ou não merecedor de uma reacção criminal. Ao determinarmos os pressupostos mínimos do agir criminoso cumprimos o primeiro degrau de valoração, integrando a matéria fáctica numa norma penal, levando a cabo uma operação constitutiva de um juízo de ilicitude como M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(24) 24. desvalor de acção e de resultado. Eventualmente, faltando nessa conduta os elementos objectivos ou subjectivos pertinentes ao juízo de imputação penal, poderemos já então excluí-la do leque das condutas típicas. “Quem” fizer isto ou aquilo — será punido”. Trata-se por conseguinte de analisar, ao nível da tipicidade, se um determinado comportamento (acção ou omissão) é ou não ilícito. Com o termo tipicidade quer-se significar que o legislador descreve as condutas proibidas ou que tem por obrigatórias dum ponto de vista jurídico-penal. Basicamente, a tipicidade descreve aquilo que é contrário a Direito, assinalando o que é proibido ou o que é obrigatório. A descrição legal fixa os pressupostos que têm de ser preenchidos para que alguém possa ser perseguido por furto, por homicídio ou como autor de um crime de ofensa à integridade física ou de omissão de auxílio, cumprindo-se deste modo o preceito constitucional segundo o qual ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior (artigo 29º, nº 1, da Constituição da República). Neste âmbito pode surgir a questão das chamadas normas penais em branco. O Prof. Cavaleiro de Ferreira identificava a norma penal em branco como “aquela em que falta inicialmente o preceito primário; comunica-se a sanção de uma infracção cujos elementos constitutivos só parcial, e não totalmente, estão definidos no preceito primário”. O preceito primário, que contém a ameaça penal, é completado por remissão para outra norma. As possibilidades de remissão são para outro preceito contido na mesma lei penal, para outra lei distinta ou para uma disposição de grau ou nível inferior (v.g., um regulamento). Hoje em dia pode ilustra-se o conceito com o artigo 279º, onde se exige que a conduta do agente poluidor contrarie prescrições ou limitações que lhe foram impostas pela autoridade administrativa em conformidade com leis ou regulamentos, sob a cominação da aplicação das penas previstas para a prática do crime, constituindo como que uma condição objectiva de punibilidade. Cf. o acórdão da Relação do Porto de 3 de Abril de 2002, CJ 2002, tomo II, p. 235. Cf. também Luís Filipe Caldas, A propósito do novo artigo 227º-A do Código Penal Português, RPCC 13 (2003), p. 516. Há quem encare de modo diferente os tipos penais abertos, em que parte dos elementos constitutivos da infracção não estariam incluídos no tipo. Um exemplo corrente é o dos crimes simplesmente negligentes, onde fica para o juiz a tarefa de especificar os limites da matéria de proibição, outro, a norma do artigo 10º. No acórdão do Tribunal Constitucional nº 147/99, de 9 de Março de 1999, BMJ 485-63, a recorrente sustentara que o carácter vago e incompleto de parte da norma penal que refere contraria os princípios da tipicidade e da legalidade consagrados constitucionalmente. Outras questões de (in)constitucionalidade podem ser vistas em Rui Patrício, Norma penal em branco, em comentário ao Acórdão do Tribunal da M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

(25) 25. Relação de Évora de 17.4.2001, RMP 2001, nº 88. Ainda, Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 47, e O problema da consciência da ilicitude em direito penal, p. 76 es s.; e Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal PG, 1, 1988, p. 35.. Se a conduta preenche todos (4) os elementos, objectivos e subjectivos, correspondentes à descrição normativa, será em princípio ilícita. Quem, por ex., mata outra pessoa dolosamente realiza o ilícito descrito no artigo 131º, preenchendo o seu comportamento todos os elementos típicos deste crime. Este juízo de ilicitude não é porém definitivo, mesmo só no que toca à antijuridicidade (=ilicitude; =injusto) do comportamento que, excepcionalmente, poderá estar coberto por uma causa de justificação, por uma eximente da conduta, a qual pode, por ex., ter ocorrido em situação de legítima defesa (artigo 32º). As causas de justificação procedem do ordenamento jurídico na sua globalidade, daí a desnecessidade de se encontrarem previamente estabelecidas no Código Penal, falando-se inclusivamente em causas de justificação supralegais. O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica — nomeadamente, não é ilícito o facto praticado em legítima defesa (artigo 31º, nºs 1 e 2, alínea a). “Justificar é explicar as razões por que aconteceu um determinado facto ou por que se teve certa conduta”. Faria Costa, O Perigo, p. 437, nota 147.. Por último, seja o comportamento doloso ou negligente, há lugar a uma revaloração em sede de culpa, perscrutando-se a posição assumida pelo agente perante a ordem jurídica, e não se excluindo, ainda aqui, que a ausência de culpa possa conduzir à irresponsabilização do agente pelo seu facto. O direito penal, ao impor proibições, pretende evitar factos especialmente indesejáveis, atenta a sua grave danosidade social, isto é, pretende evitar os factos penalmente antijurídicos. Mas o direito penal não pode castigar quem realiza algum destes factos sem culpa. A questão de saber se concorre ou. 4. Faltando um desses elementos (basta a falta de um), a conduta será atípica. Se a coisa não é alheia ou o. agente não actua com intenção de apropriação não poderá haver furto; se a mulher adulta consente na cópula, não se poderá falar de crime sexual; se alguém entra a convite do dono da casa, o consentimento exclui a tipicidade da conduta. Na falta de dolo, o crime, eventualmente, poderá ser castigado como negligente (veja-se em especial o artigo 16º, nºs 1 e 3). Nem sequer haverá acção, como já vimos, nos actos reflexos ou em caso de força irresistível, entre outros.. M. Miguez Garcia. O risco de comer uma sopa e outros casos de Direito Penal. I — Elementos da Parte Geral. 2004..

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