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Conexão entre acção e resultado Causa, condições Causalidade Imputação objectiva Causalidade naturalística e causalidade valorativa.

1ª Subsecção Tipicidade.

I. Conexão entre acção e resultado Causa, condições Causalidade Imputação objectiva Causalidade naturalística e causalidade valorativa.

CASO nº 3: A e B trabalham no mesmo matadouro, mas são como o cão e o gato, andam continuamente em discussão um com o outro e até já foram chamados à gerência, que os pôs de sobreaviso: ou acabam com as disputas, ou vão ambos para a rua. Mas nem isso chegou para os acalmar. Uma tarde, A, porque não gostou dos modos do companheiro, atirou-lhe ao peito, com grande violência, o cutelo com que costumava trabalhar, enquanto lhe gritava: “desta vez, mato-te mesmo!”. A força do golpe foi atenuada pelo blusão de couro que B usava por debaixo do avental de serviço e A só não prosseguiu a agressão porque disso foi impedido por outros trabalhadores, que entretanto se deram conta da disputa. A ferida produzida pelo cutelo não era de molde a provocar a morte da vítima, mas B foi conduzido ao hospital onde, por cautela, ficou internado, em observação. Numa altura em que estava sob o efeito de sedativos, B recebeu a visita de C, sua mulher, a qual tinha “um caso” com A, motivo de todas as discórdias. Logo aí C, que ambicionava vir a casar-se com A, aproveitou para se ver livre do marido, que se recusava a dar-lhe o divórcio: aproveitando um momento de sono, aplicou-lhe uma almofada na cara, impedindo-o de respirar, até que o doente se finou. O posterior relatório da autópsia descreveu a causa da morte, mas os peritos adiantaram que B sofria de uma doença do coração que não lhe permitiria sobreviver senão uns dias.

Punibilidade de A e C.

A agiu dolosamente, com intenção de matar B, ao atirar-lhe com violência o cutelo de que

estava munido, visando uma zona nobre do corpo, que foi atingida. A morte de B não ocorreu, porém, em resultado da conduta de A, pois foi causada pela aplicação da almofada, que o asfixiou. Neste sentido, a morte de B não pode ser atribuída (imputada) a A, não é "obra" de A. Todavia, uma vez que A praticou actos de execução do crime que decidiu cometer, fica desde logo comprometido com o tipo de ilícito de homicídio tentado dos artigos 22º, nºs 1 e 2, 23º, nºs 1 e 2, e 131º.

Ao penalista interessa a causa de um determinado fenómeno, de um evento particular, que pode ser, por ex., a morte de uma pessoa, um atropelamento com lesões corporais no peão, ou o desencadear de um incêndio com perigo para a vida de outrem, como acontece com muitos tipos da PE do Código: ao lado da acção, o tipo descreve o correspondente resultado —de lesão, como por ex., no homicídio (artigo 131º), ou de perigo concreto, como, por ex., no crime de exposição ou abandono (artigo 138º). A estes crimes, insiste-se, chamamos crimes de resultado (de resultado de lesão ou de dano; ou

de resultado de perigo), por oposição aos crimes de mera actividade, em que a lei se limita a descrever a actividade do sujeito, como são todos os crimes de perigo abstracto. Numa certa perspectiva, todos os factores de que depende o acontecer desse efeito —a morte de uma pessoa no homicídio, certos perigos derivados de um incêndio, etc.— são considerados, em conjunto, como a sua causa. Noutra perspectiva, causa será apenas um desses factores e só um deles: os outros serão meras condições. Numa boa parte das hipóteses nem sequer surgem dúvidas a esse respeito: se A dispara dois tiros a três metros de distância de B, atingindo-o na cabeça e no fígado, e B morre logo em seguida, não se coloca nenhum problema especial —os disparos são a causa da morte da vítima; esta "é obra" de A e pode ser-lhe imputada objectivamente.

Outra é a questão da imputação subjectiva, a questão de saber se A actuou com dolo ou negligentemente.

Noutras hipóteses, os problemas ganham contornos por vezes difíceis de destrinçar. No caso nº 3, B foi agredido por A, que agiu com intenção de matar. A lesão provocada pela agressão não era de molde a provocar a morte de B, mas esta veio a dar-se por acção da mulher, na sequência da hospitalização para tratamento da ofensa recebida. Aliás, B podia ter morrido quando era transportado ao hospital se a ambulância em que seguia se tivesse despistado por excesso de velocidade ou fosse colhida por um comboio numa passagem de nível sem guarda. Podia até ter morrido por ser hemofílico, ou por erro médico. Ou mesmo por ter sido alcançado por um incêndio que alguém ateou no edifício da clínica onde fora internado. De qualquer forma, A sempre teria morrido uns dias depois, devido a irremediáveis problemas de coração.

Outro exemplo (Eser) de dificuldades no âmbito da causalidade: A esbofeteou B, dando-lhe com a mão aberta na parte esquerda da cara. B sofreu por isso comoção cerebral e em consequência dela a lesão dos vasos cerebrais que lhe ocasionou a morte imediata. Existe aqui uma dupla relação de causalidade: em primeiro lugar, o nexo entre a acção da lesão (a bofetada de mão estendida) e o resultado da lesão (a comoção cerebral); em segundo lugar, a relação entre a lesão corporal e a morte de B.

Nestes casos, há fundamentalmente dois caminhos diferentes para responder à questão da conexão entre acção e resultado: causalidade e imputação. Ao falarmos de causalidade estamos a pensar na acção (causa) que provoca um determinado evento ou resultado (efeito). Quando falamos de imputação partimos do resultado para a acção. O primeiro

caminho é conforme às leis naturais e corresponde à doutrina clássica. O segundo caminho tem características normativas e busca resolver insuficiências dos pontos de vista tradicionais. Como veremos em breve, causalidade e imputação objectiva não podem ser confundidas.

II. Trilhando os caminhos da causalidade. A doutrina da csqn: todas as condições são equivalentes —"o que é causa da causa é causa do mal causado"; o processo de eliminação —"se não tivesses feito o que fizeste não teria acontecido o que aconteceu".

CASO nº 3-A: C seguia conduzindo o seu automóvel por uma das ruas da cidade quando lhe surgiu

uma criança a curta distância, vinda, em correria, de uma rua perpendicular. C conseguiu evitar o embate à custa de repentina travagem, mas, no momento seguinte, V, homem dos seus 30 anos, que seguia a pé pelo passeio, começou a invectivá-lo em alta grita pelo que tinha acontecido. Perante o avolumar da exaltação e do descontrolo de V, C, indivíduo alto e fisicamente bem constituído, saiu do carro e pediu- lhe contenção, obtendo como resposta alguns insultos que, indirectamente, envolviam a mãe de C. Este reagiu dando dois murros em V, que o atingiram na cara e no pescoço. V começou então a desfalecer e, apesar de C lhe ter deitado a mão, caiu, sem dar acordo de si. Transportado a um hospital, acabou por morrer, cerca de meia hora depois. A autópsia revelou que a morte foi devida a lesões traumáticas meningo-encefálicas, as quais resultaram de violenta situação de "stress", e que a mesma ocorreu como efeito ocasional da ofensa. Esta teria demandado oito dias de doença sem afectação grave da capacidade de trabalho.

No plano da causalidade, a doutrina da equivalência das condições (doutrina da "condicio sine qua non") continua, ainda hoje, a ter larga aplicação prática, nomeadamente, para a jurisprudência alemã. A teoria, cujos fundamentos vêm dos tempos de Stuart Mill ("cause"—"the sum total of the conditions") e que terá sido divulgada nos países de língua alemã por v. Buri, assenta em que causa de um fenómeno é todo e qualquer factor ou circunstância que tiver concorrido para a sua produção, de modo que, se tal factor (condição) tivesse faltado, esse fenómeno (por ex., a morte de uma pessoa) não se teria produzido.

Partindo deste quadro naturalístico da equivalência das condições, causa é, no sentido do direito penal, toda a condição de um resultado que não possa suprimir-se mentalmente sem que desapareça o resultado na sua forma concreta, ou, na formulação de Mezger, causa do resultado é qualquer condição, positiva ou negativa, que, suprimida in mente,

faria desaparecer o resultado na sua forma concreta. Exemplo (de v. Heintschel-Heinegg, p. 147):

A mergulhou numa situação financeira muito grave após ter perdido um processo judicial movido por um

credor. Para se vingar do juiz, telefonou para casa deste e disse à mulher, fingindo ser da polícia, que o marido tinha tido um gravíssimo acidente pouco antes e que não resistira aos ferimentos. A mulher, perante a inopinada notícia, perdeu os sentidos e não resistiu: pouco depois falecia. (Cf., a propósito de actos desencadeadores de perturbações psíquicas, Faria Costa, O Perigo, p. 531). Nos parâmetros da teoria da equivalência, a causalidade da notícia para a morte da mulher estabelece-se do seguinte modo: “O que é que teria acontecido se A não tivesse feito o telefonema para casa do juiz? Nesse caso, não tendo sido informada do infausto acontecimento, a mulher nem teria desmaiado, nem teria morrido pouco depois. Se se eliminar o telefonema, suprime-se o resultado, de forma que a conduta de A causou a morte da mulher.”

Para a fórmula habitual da condicio, qualquer condição do resultado, mesmo que seja secundária, longínqua ou indirecta, é causa do mesmo: para efeitos causais todas as condições são equivalentes. Condição é assim qualquer circunstância sem a qual o resultado se não produziria. Para decidir se uma situação, conduta ou facto natural é condição, utiliza-se a "fórmula hipotética".

A crítica mais acertada, e ao mesmo tempo a menos justa, que se dirige à teoria das condições é a do "regresso ao infinito", por se considerarem causais, por ex., circunstâncias muito remotas ou longínquas. A morte da vítima foi causada pelo assassino, mas também se poderia dizer o mesmo dos ascendentes deste, os pais, avós, bisavós. Um acidente de viação com vítimas terá sido causado não só pelo condutor mas também pelo fabricante e pelo vendedor do carro. Poderia até ser causa do adultério o carpinteiro que fez a cama onde os amantes o consumaram. Outra objecção é a de que assim se responsabilizam pessoas mesmo quando entre o facto e o evento danoso as coisas se passaram de forma totalmente imprevisível, anómala ou atípica, como no exemplo do ferido, que não morre da agressão, mas no acidente da ambulância que o transporta ao hospital: sendo as condições equivalentes, o agressor seria responsável pelo efeito letal, mesmo que a ferida por si produzida fosse de molde a curar-se em oito dias. Ainda assim, certas insuficiências da doutrina foram sendo corrigidas, por ex., recorrendo à imputação subjectiva: quem causa a morte de outra pessoa, ou actua dolosamente ou o faz por negligência, e só nessa medida é que o facto será punível. A

doutrina da adequação (causalidade adequada) foi chamada a preencher algumas das insuficiências da fórmula da condicio.

No caso nº 3, A, ao atirar com o cutelo contra o peito do colega de trabalho, ferindo-o, pôs uma condição que, lançando mão da teoria da equivalência, não poderá eliminar-se mentalmente sem que desapareça o resultado. Deste modo, não tem significado, face à equivalência das condições, a circunstância de se tratar de um processo completamente atípico, e de à acção de A se vir juntar a conduta de C. Para esta teoria, mesmo a intervenção de um terceiro, seja ela dolosa ou simplesmente negligente, não quebra a cadeia causal. Nesta perspectiva, a actuação de A é causal da morte de B. O exemplo nº 3 adianta a hipótese de A morrer devido a problemas cardíacos. Os processos causais hipotéticos são aqueles em que o autor provoca o resultado, mas este sempre teria acontecido por forma independente daquela acção. Ora, o que aconteceu foi que uma outra condição, adiantando-se, apressou a morte — acelerou-se o resultado, como em geral acontece quando se dispara sobre um moribundo, ou quando vem um indivíduo, diferente do carrasco, e antes da hora oficialmente marcada para a execução, accionando a guilhotina, mata o condenado. O comportamento da mulher, ao aplicar a almofada na cara de quem, prostrado na cama do hospital, não se podia defender, é causal do resultado (artigo 131º), de acordo com a fórmula habitual da condicio, mesmo que, sem essa actuação, a morte fosse inevitável e se daria num momento posterior devido à doença (processo causal hipotético). A morte (note-se: o mesmo resultado) sempre ocorreria, embora de outra maneira. Se se atender ao decurso causal efectivo, a causalidade não se exclui nos casos em que intervêm processos causais hipotéticos. Isto significa que não se pode contar com tais processos. Não é legítimo perguntarmos, por ex., o que se teria passado se o ofendido não tivesse sido transportado ao hospital: são as circunstâncias efectivamente realizadas que deverão ser suprimidas in mente, e não as hipotéticas (cf. Bustos Ramírez, p. 170). Decisivo é o resultado concreto na sua especial conformação, não uma morte qualquer, como resulta do artigo 131º, mas a morte ocorrida em Salzburg, no dia 7 de Novembro de 1983, pelas 23h12m, junto à casa do compositor Amadeus Mozart, depois de uma refeição a que alguém adicionou uma porção de veneno para os ratos (Triffterer; Öst. StrafR, p. 123).

Havendo várias condições em alternativa (não cumulativas) qualquer delas poderá eliminar-se mentalmente sem que desapareça o resultado na sua forma concreta. Portanto, cada uma delas é causal do resultado — o que contraria a fórmula da condicio. Se A e B disparam simultaneamente sobre C, atingindo-o, um na cabeça outro no coração, a hipótese é de causalidade alternativa (dupla causalidade). Aplicando-lhe a fórmula da

condicio, i. é, se por forma independente suprimirmos mentalmente cada uma das

condições (o disparo) o resultado não deixa de se verificar. Consequentemente, na lógica da condicio, nenhum dos disparos seria causa da morte —o que levaria à absolvição de ambos. O resultado só se eliminaria se afastássemos cumulativamente os dois disparos, o que certamente demonstra os limites desta teoria, como observa Bustos Ramírez, exigindo que se lhe introduzam certas correcções, com os olhos postos nos objectivos do direito penal. Dizendo por outras palavras, a fórmula já não serve— nem mesmo colocando o resultado na sua conformação concreta —quando se trata de causas idênticas e contemporâneas, capazes de produzir o mesmo efeito independentemente uma da outra (gleichzeitiger, gleichförmiger und unabhängig voneinander wirksamer

Ursachen). Noutro exemplo, citado por Eser, do filho e da filha que odeiam o pai, cada

um deles, sem o outro saber, prepara-lhe uma bebida, adicionando-lhe uma dose mortal de veneno; o pai bebe o copo preparado pela filha e morre, mas teria acontecido o mesmo se tivesse bebido do outro copo. Cf. também Kühl, JR 1983, p. 33.

No caso nº 3-A, está fora de dúvida que C agrediu V corporalmente, em termos de lhe produzir, como consequência da sua actuação dolosa, oito dias de doença. A mais disso, o resultado mortal — que na sua expressão naturalística, enquanto acontecimento infausto e infelizmente definitivo, também não deixa espaço para discussão —, fica vinculado à apreciação da relação causal, como qualquer outro pressuposto geral da punibilidade. Está em causa, portanto, um comportamento humano e todas as suas

consequências.

No caso nº 3-A, e utilizando a fórmula da condicio, não é possível excluir a causalidade mortal do murro dado por C — ainda que V já estivesse em risco de morrer por se encontrar extremamente depauperado. Todavia, mesmo para um não jurista, parece claro que a morte de V não deverá ser atribuída a C.

O caso nº 3 representa um processo causal atípico, como são todos aqueles em que A, com intenção de matar B, o fere tão ao de leve que este só tem que receber ligeiros

curativos no hospital, para onde é transportado, mas no caminho, por hipótese, a ambulância onde B seguia intervém num acidente, batendo fragorosamente num automóvel que se lhe atravessa à frente num cruzamento, e B morre, por ter saído gravemente ferido do acidente. Para a fórmula da condicio— e recapitulando —a atipicidade do processo causal não exclui a causalidade.Como veremos a seguir com mais pormenor, a resposta será diferente para quem opere com a teoria da adequação. Esta teoria não identifica causa com qualquer condição do resultado, mas apenas com aquela condição que, em abstracto, de acordo com a experiência geral, é idónea para produzir o resultado típico. Deste modo, não haverá realização causal (adequada) se a produção do resultado depender de um curso causal anormal e atípico, ou seja, se depender de uma série completamente inusitada e improvável de circunstâncias com as quais, segundo a experiência da vida diária, não se poderia contar. A teoria da adequação, não sendo uma teoria da equivalência, procura limitar os inconvenientes que dela resultam, restringindo o âmbito da responsabilidade penal no plano da causalidade: é por isso, mais exactamente, uma teoria da responsabilidade, e não, propriamente, uma teoria da causalidade.

O caso do homem do matadouro mostra igualmente que, na perspectiva da teoria da adequação, a morte não pode ser atribuída à agressão com o cutelo, pois foi directa e imediatamente provocada pela mulher —com a particularidade de a acção desta se seguir à acção do primeiro agressor. De resto, o homem sempre teria morrido uns dias depois, de irremediáveis problemas de coração, ou poderia ter morrido num acidente quando era transportado ao hospital.

Até agora, o nosso objectivo tem consistido em averiguar se a morte das vítimas foi causada, num caso, pela agressão inicial com o cutelo, ou pelo murro, no outro — enfim, se a morte "é obra" do agressor, ou se é atribuível à acção de outra pessoa, ou se "é obra" do acaso. A primeira indagação faz-se no plano da causalidade da acção relativamente ao resultado. O ponto de partida é o da teoria das condições (condicio sine qua non: csqn), donde arranca a teoria da causalidade adequada. A qual tem desde logo a vantagem de excluir os processos causais atípicos. Ou, mais modernamente, a teoria da imputação objectiva, que nalguns casos supera e elimina algumas das desvantagens daquelas outras teorias.

III. A importância do nexo causal e da previsibilidade do resultado. À teoria da

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