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Dolo eventual; negligência (continuação).

1ª Subsecção Tipicidade.

VI. Dolo eventual; negligência (continuação).

CASO nº 4-J: O caso do very-light. A foi assistir ao Benfica-Sporting, integrando a claque dos

No Name Boys. Do outro lado, no topo norte, ficavam as bancadas da Juve Leo. Antes do início do jogo, A lançou um very-light, igual aos foguetes que são usados para sinalização luminosa das embarcações, por cima da bancada da Juve Leo. Quando nas bancadas se festejava o 1º golo do Benfica, A disparou outro very-light. O foguete atingiu a bancada do outro lado, matando aí um adepto do Sporting. A distância entre as duas bancadas é de cerca de 200 metros, em linha recta. A lançou o 1º foguete com a mão esquerda, inclinou-o em posição oblíqua, para cima e ligeiramente para a frente, retirou a protecção de borracha que faz aparecer a patilha e empurrou esta de modo a activar o sistema de propulsão. Assim accionado, o foguete descreveu uma trajectória em arco, indo cair para além das bancadas do topo norte, em cima de umas árvores, junto aos balneários. A previra que o foguete assim disparado sobrevoasse a bancada do topo norte do Estádio, reservada aos adeptos sportinguistas, e que já na altura se encontrava repleta de pessoas. Fê-lo de modo a que o mesmo fosse projectado de baixo para cima, em arco, sobrevoando a bancada que avistava à sua frente. Dez minutos depois do início do jogo, imediatamente a seguir ao primeiro golo do Benfica, o A, aquando dos festejos por este golo, lançou um segundo foguete. Verificava-se, nessa mesma altura, uma grande agitação no grupo de espectadores, e particularmente nos elementos afectos aos No Name Boys, que rodeavam o A, havendo abraços, empurrões, saltos, gritos e outras exaltações de grande regozijo. Também desta vez, o A segurou o foguete very-light com a mão esquerda, colocou-o obliquamente para cima e inclinado para a frente, no sentido norte, e, com a mão direita, retirou a protecção de borracha que faz aparecer a patilha. Em virtude do seu próprio estado de euforia e da permanente agitação das pessoas que se encontravam junto a si, envolvendo-o, o A, no momento em que empurrou a patilha que acciona a respectiva propulsão, inclinou mais o foguete do que havia feito aquando do primeiro lançamento. Assim disparado, o foguete seguiu uma trajectória tensa e quase em linha recta, sobrevoou os jogadores, percorreu toda a distância entre as duas bancadas e foi chocar com o corpo da vítima, que assistia ao jogo no sector 17, do topo norte do estádio, penetrando na região do peito, de frente para trás, da esquerda para a direita e, ligeiramente, de baixo para cima. Este embate provocou na vítima (...), lesões que, por si só ou associadas, foram causa da morte da vítima. O

A apercebeu-se, poucos momentos após, do impacto deste foguete na bancada de adeptos sportinguistas

onde se abriu uma clareira. Ao efectuar este segundo lançamento do foguete, A previu que tal instrumento se dirigisse na direcção norte, sendo sua intenção que o mesmo sobrevoasse a bancada de espectadores, confiando que seguisse uma trajectória idêntica ao primeiro. Conhecia o modo de activação, potência e alcance do foguete, bem sabendo que se o mesmo, na sua trajectória, viesse a embater em alguém lhe poderia causar a morte. Sabia que o modo correcto de lançar tal foguete é na vertical. Tinha ainda conhecimento que o foguete percorre em linha recta uma distância superior a 200 metros em poucos

segundos. No instante do disparo, não previu o A que logo que accionado o mecanismo de propulsão naquelas circunstâncias o artefacto saísse, como efectivamente saiu, quase em linha recta, na direcção da bancada em frente de si e que fosse atingir qualquer espectador, ferindo-o ou matando-o. Próximo do intervalo, ouviu dizer que morreu uma pessoa atingida pelo foguete, tendo concluído que essa pessoa fora mortalmente atingida pelo very-light por si lançado. Nessa noite, ao ver as imagens na televisão em companhia de um seu amigo, o A ficou emocionado e chocado, não contendo o incómodo que as mesmas lhe causavam. Cf. o acórdão de 13 de Fevereiro de 1998 do Tribunal de Círculo de Oeiras, publicado em Sub judice / causas - 2, 1998, p. 49 e ss.; e, a propósito, Maria Fernanda Palma, Casos e Materiais de

Direito Penal, Coimbra, 2000, p. 307, e O caso do Very-light. Um problema de dolo eventual, in

Themis, ano I, nº 1, 2000, p. 173.

A tinha sido acusado de ter lançado o foguete, propositadamente, na direcção da bancada

dos adeptos contrários, para os assustar e intimidar, representando a possibilidade de o foguete, na sua trajectória, vir a embater nalgum espectador. Ainda segundo a acusação, A sabia que se tal sucedesse o impacto do foguete era susceptível de produzir a morte do espectador atingido, pelo que se conclui que A admitiu essa mesma possibilidade, conformando-se com a sua eventual verificação (fórmula do dolo eventual).

A fórmula positiva de Frank: "em qualquer caso, eu actuo". O acórdão sublinha

que o Código Penal português acabou por perfilhar, em matéria de dolo eventual, a fórmula positiva de Frank segundo a qual se o agente no momento da realização do facto, e não obstante a sua previsão como possível, quer actuar, e aconteça o que acontecer, seja qual for o resultado da sua actuação, não renuncia à sua actuação, será responsável a título de dolo pelo facto previsto. Haverá dolo se A diz: tanto se me dá que o livro seja meu ou alheio — em qualquer caso, levo-o; ou, o que dá no mesmo: aconteça o que

acontecer, em qualquer caso, eu actuo. Não haverá dolo se A separar as águas: se tivesse

tido a certeza de que o livro era alheio, não o teria subtraído. Com outra formulação aparece-nos a chamada fórmula hipotética de Frank: haverá dolo eventual quando pudermos concluir que o agente, que previu o facto como possível efeito da sua conduta,

não a teria alterado, para o evitar, mesmo que previsse aquele efeito como necessário

(cf. Beleza dos Santos, Crimes de Moeda Falsa; e Eduardo Correia, Direito Criminal, I, p. 381). O Prof. E. Correia, autor do Projecto, criticou as duas fórmulas, e acabou por propor que a Comissão adoptasse a seguinte redacção, que amplia a da fórmula negativa de Frank: Se a realização do facto for prevista como mera consequência possível ou

eventual da conduta, haverá dolo se o agente, actuando, não confiou em que ele se não produziria — ou seja: desde que o agente actuou, não confiando que o facto previsto

como possível se não produziria, haverá dolo. No decorrer da discussão, um dos membros da Comissão revisora assinalou a sua preferência por uma fórmula que consagrasse a ideia alemã do "in Kauf nehmen" ou do "sich mit ihr abfinden"; outro preferia que se fizesse apelo à ideia da "indiferença do agente pela realização do facto", um terceiro foi mais longe na ideia da restrição ao âmbito do dolo, preconizando que este só deveria considerar-se existente quando o agente "aceitou a realização do facto previsto como possível". A Comissão acabou, como se sabe, por adoptar a fórmula da

conformação, de sentido positivo: "actuou conformando-se com a sua produção". (Sobre

tudo isto, cf. Actas, acta da 7ª sessão, p. 116 e ss.). O Projecto alemão de 1962 continha idêntica proposta: "actua dolosamente (...) quem considera possível a realização típica e se conforma com ela" (§ 16).

Opção entre alternativas. O agente pretende realizar um facto mas, em via subsidiária, conforma-se com

a realização de outro que àquele se encontra ligado. A expressão in Kauf nehmen é difícil de traduzir, diz Gimbernat. Originariamente, tinha a ver com a argúcia de alguns comerciantes que, para dar saída a produtos menos apetecíveis, vinculavam a venda das mercadorias desejadas à obrigação de o cliente adquirir também aqueles produtos pouco procurados. Se o interessado não compra o produto de baixa qualidade, também não conseguirá levar o que lhe interessa: diz-se assim que o cliente nimmt ihn in

Kauf: leva-o, comprado, por acréscimo. O resultado produzido com dolo eventual não era perseguido

directamente; o que o autor queria directamente era outro resultado, e para alcançar este "comprou o outro", i. e, resignou-se a ficar com ele. Cf. Gimbernat, Estudios de Derecho Penal, p. 247.

No caso do cinturão, os dois ladrões não tinham a certeza de que a vítima morreria estrangulada. Conheciam, no entanto, o perigo concreto, e sabiam que não poderiam dominá-lo, face à maneira como actuavam. Por outro lado, nenhum deles queria, directamente, a morte do dono da casa; o que eles queriam era pô-lo inconsciente para poderem roubá-lo à vontade. Só que, para conseguirem este resultado, "compraram" o outro, resignaram-se com a produção duma morte que não queriam —e ainda por cima, acabaram por levar as coisas, apoderando-se delas. No caso do professor que vai com os alunos para a beira do rio também podemos afirmar que o agente conhecia o perigo concreto para a vida dos alunos que se metessem na água, ainda que confiando em que tudo iria correr bem. É claro que o professor tem a nossa simpatia —o que não acontece

com os dois ladrões: limitou-se a deixar ir os alunos para a água, fê-lo por ser "um tipo porreiro", houve o contributo "culposo" do próprio aluno que morreu... E não houve qualquer decisão contra a vida do aluno, pelo que ao professor só poderá imputar-se a infracção negligente.

O adepto benfiquista representou o risco de acertar nos espectadores do outro lado do estádio? E conformou-se com esse risco de resultado? Num caso como o do very light, que comporta acção de grande risco, em que —como acentua a Prof. Fernanda Palma— a possibilidade de erro e do desvio do processo causal é grande, "o objecto do elemento intelectual do dolo é a própria possibilidade de desvio do processo causal" (recorde também o que oportunamente escrevemos sobre o objecto do dolo). Se for possível concluir que, in casu, este risco de resultado foi objecto da representação do agente, ainda assim temos que abordar a questão do enlace volitivo, analisando as motivações do adepto benfiquista e, nomeadamente, interpretando a "sequência lógica entre as motivações do agir e o desfecho da acção, numa perspectiva de raciocínio prático". Essencial será —e aqui continuamos a seguir a lição da Prof. F. Palma— a consideração de que o fim lúdico associado ao disparo festivo do "very light" não engloba, nos casos de uma personalidade determinada por motivações normais, a aceitação da morte de um espectador". Por outro lado, "para revelar que a acção realizada é uma acção tipicamente deficiente na sua consistência racional, e, portanto, não dolosa", "é essencialíssima a descrição da reacção do arguido, em sua casa": nessa noite, ao ver as imagens na televisão, o arguido ficou emocionado e chocado, não contendo o incómodo que as mesmas lhe causavam. Não estaremos assim perante uma personalidade indiferente ao resultado, pelo que ao autor do disparo não será de endereçar uma censura própria da culpa dolosa.

O Tribunal de Círculo de Oeiras considerou A autor dum crime de homicídio negligente do artigo 137º, nº 2 (negligência grosseira).

VII. A recklessness.

A partir do estudo, já por várias vezes citado, de Th. Weigend (cf. também, por ex., Markus Dubber, Reforming American Penal Law, in The Journal of Criminal Law &

Criminology, vol. 90, p. 49), podemos apreender algumas realidades do direito penal americano, que nem sempre se encontram disponíveis, mas que de algum modo se projectam na boa compreensão do chamado dolo eventual. Interessa-nos sublinhar o sentido da recklessness, termo que faz parte do espectro dos elementos subjectivos (mens rea), que vai da "improperly" àquela expressão terrível que dá pelo nome de "willful, deliberate, malicious and premeditated". A edição de um modelo de código penal moderno (Model Penal Code), no ano de 1962, contribuiu para reduzir significativamente a complexidade existente, de forma que impera agora a tendência para empregar apenas quatro diferentes formas de culpa: "intention, purpose", "knowledge", "recklessness" e "negligence". Se lermos as definições que estas quatro formas de mens rea têm, por ex., no Model Penal Code, encontraremos a equivalência de "intention" na intenção (dolo directo), de "knowledge" no dolo necessário, e de "negligence" na nossa negligência inconsciente, mas neste caso só se houver uma violação grosseira das regras de cuidado. A recklessness ficará situada entre o dolo e a negligência consciente (grave) e define-se assim:

"A person acts recklessly with respect to a material element of an offense when he consciously

disregards a substantial and unjustifiable risk that the material element exists or will result from his conduct. The risk must be of such a nature and degree that, considering the nature and purpose of the actor's conduct and the circumstances known to him, its disregard involves a gross deviation from the standard of conduct that a law-abiding person would observe in the actor's situation. "Actua recklessly

relativamente a uma circunstância típica quem, conscientemente, se comporta de forma descuidada perante um risco injustificado e de certa monta, cujo elemento material se verifica ou se realiza com essa conduta. A natureza e a medida do risco deverão ser de tal ordem que a falta de atenção ao mesmo, considerando a espécie e os fins da conduta do agente, bem como as circunstâncias por este conhecidas, representará um grosseiro desvio do padrão comportamental que uma pessoa fiel ao direito observaria na situação do agente.

A uma leitura atenta —comenta o nosso informador—, esta descrição complicada revela o que há de específico na recklessness e que consiste no agir face à realização típica do risco. A literatura anglo-americana desenvolve este ponto de maneira mais clara que o próprio texto legal. Diz-se, simplesmente, por ex., no comentário ao Model Penal Code "... recklessness involves conscious risk creation"; e Galligan fala de recklessness quando o agente sabe que a produção do resultado é provável (mas não certa) e, não obstante, age. Se além disso a recklessness exige um elemento de atitude interior,

nomeadamente a indiferença em relação ao bem jurídico ameaçado —é coisa que se discute entre os juristas do common-law tanto quanto acontece na Alemanha.

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