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Ero-Guru: o corpo abjeto na erótica e grotesca literatura de Suehiro Maruo

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Ero-Guru: o corpo abjeto na erótica e grotesca literatura de Suehiro Maruo

Verônica Brandão1

O presente artigo analisa a representação grotesca do corpo em Ero-Guro (2005), obra erótico-grotesca do escritor japonês Suehiro Maruo. Com uma literatura considerada ero-guro-nansensu (erótico-grotesco-absurdo), Maruo traça uma diferenciada cultura japonesa que caminha pelas marginalidades e abjeções. Podemos notar como o mangá nos apresenta a fantasia, o grotesco, o horror e o erotismo em nove contos repletos de intertextualidade. A maior influência do ero-guru foi registrada na explosão de revistas de cultura de massa, na literatura popular (taishû Bungaku), com revistas que usavam mistério e crime dentro das histórias que envolviam aventura, erotismo, intriga, o bizarro e o grotesco. Ero-guro-nansensu era um modo literário dominante do modernismo estético japonês entre 1920 e 1930 e que chega aos dias atuais em novos traços de Maruo, com inspirações profundas na literatura de Edgar Allan Poe, Sade, Rimbaud, Sófocles, psicanálise freudiana, estudos de gênero e sexualidade, criminologia, inspirações em obras de Salvador Dalí e na filosofia de Georges Bataille. Na obra de Suehiro temos: Sodomia, coprofilia, incesto, canibalismo, pedofilia, zoofilia, voyerismo e flagelação. Em traço preto e branco, o mangá nos mostra que um corpo tem uma sensibilidade irônica, revelando detalhes sobre alimentação, habitação, modos de entretenimento popular, e atitudes em relação à sexualidade. As influências do ero-guro continuam populares e difundidas em formas culturais contemporâneas, além de vários mangás, temos animes, músicas e filmes.

Contexto histórico para o Ero-Guro

As décadas de 1920 e 1930 viveram um período entreguerras (1918-1939) e uma Grande Depressão (crise de 1929) na economia. O Japão, que havia sofrido com o terremoto em 19232, precisou se reconstruir rapidamente. Foram tantas as transformações durante a reconstrução pós-terremoto que o mundo ocidental adentrou e se mesclou ao universo japonês, política e economicamente. Durante os anos 20, houve o início da radiodifusão (1925), proliferação dos baa (bares), kafuee (cafés), kissaten (salões de chá), o aumento da circulação de ônibus, criação das estradas de ferro suburbanas e o início do sistema de metrô (1927), elementos que ampliavam o termo “sociedade de massa” no Japão.

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Doutora na linha de Imagem, Som e Escrita da UnB – Universidade de Brasília – PPG/Faculdade de Comunicação. Mestra em Comunicação pela UnB (Linha de Imagem e Som). Graduação em Audiovisual pela Universidade Estadual de Goiás. Brasília– DF – Brasil. E-mail: vguibrasil@gmail.com

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No dia 1º de setembro de 1923, um terremoto de magnitude 7,9 atingiu a planície de Kanto, no Japão, e destruiu Tóquio, Yokohama e arredores. Cerca de 140 mil pessoas morreram no que ficou conhecido como o “Grande sismo de Kantō”. Sobre o terremoto de 1923 no Japão ver Schenking, J. Charles. The Great Kanto Earthquake and the

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A revista Modern Sexuality, publicada pela primeira vez em 1922, era um espaço no qual cada leitor japonês foi introduzido, em locais metropolitanos do Japão, aos novos tipos de prazeres, paixões, ansiedades e esgotamentos desencadeadas pelo capitalismo moderno. Havia os ryōki (caçadores de curiosidades, caçadores de bizarrices eróticas) − pessoas que possuíam compulsão em buscar experiências estranhas e incomuns. As revistas para os gurotesuks (apreciadores do erótico-grotesco, ero-guro) e os ryōkis facilitavam certo escapismo das constrições da vida cotidiana japonesa. Devido ao envolvimento com as narrativas, os japoneses foram capazes de fantasiar sobre um estilo de vida diferente do que existia e desejar atividades que rejeitavam a incorporação no programa de construção da nação (Mclelland, 2012, p.32-33).

No começo de 1930, assuntos eróticos, grotescos (grotesque/gurotesuku) e sem sentido (nonsense/nasensu) circulavam na cultura do Império Japonês. A abreviação “ero-guro-nasensu” torna-se um sucesso atemporal, no qual o estranho e o grotesco ganhavam terreno em ilustrações, movimentos artísticos e literários japoneses. Com o tempo, a abreviação para as imagens e literaturas sobre fantasias eróticas sombrias combinadas com atitudes e objetos abjetos, tornou-se apenas “ero-guro”.

O termo ero era onipresente na mídia popular da época e ligado a discussões sobre a promiscuidade sexual e a configuração do corpo feminino (e às vezes do corpo masculino). “Contudo,ero pode ser usado em um sentido muito mais amplo, aludindo a

uma variedade de gratificações sexuais, expressividades físicas e a afirmação de intimidades sociais”. O termo “grotesco” (guro) era associado a malformações, crimes praticados de forma obscena, desigualdades sociais e consequentes práticas sociais daqueles que viviam dentro de uma cultura de consumo definida pelas dificuldades econômicas da depressão. (Silverberg, 2006, p. 29-30).

Na década de 1930, os recursos visuais desenhados à mão eram uma resposta às pressões econômicas e políticas que haviam começado a censurar parte do Estado japonês. Com o Japão cada vez mais militarizado, tornou-se longa a história e o fascínio do país com a erótica. Entre civis e militares houve uma intensa exploração sexual, hedonista e sensacionalista de tudo que fosse anormal e tabu, refletindo não apenas desejos sensuais recém-descobertos, mas uma erupção de mudanças políticas extrema.

De 1926 até 1989, o Japão viveu sob o Período Showa (ou era Showa) no qual o país foi tomado pelo totalitarismo político, ultranacionalismo e imperialismo militar. De um país de samurais, o Japão passou a ser um país e comerciantes. A era Showa era altamente mercantilista. O sexo era artigo de venda, as mulheres e crianças eram objetos de exploração e o ero-guru surgiu como reflexo da sensibilidade de uma cultura que estuprava mulheres “cujas idades variavam de 12 e 80 anos”. Muitas eram mortas após satisfazerem as demandas sexuais dos militares. As que não foram assassinadas ou morreram vítimas de enfermidades causadas pelo frio, fome, pelas doenças venéreas ou abortos mal sucedidos, sobreviviam envergonhadas, silenciosas e solitárias (Okamoto, 2013).

Durante a Guerra do Pacífico (1932-1945), jovens mulheres foram exploradas sexualmente pelos militares japoneses, “entre 80 e 200 mil mulheres foram mobilizadas pelo Exército Imperial Japonês” (Okamoto, 2013, p. 91). Meninas órfãs e jovens de países sob domínio imperial japonês (provinham da Coreia, China, Filipinas, Tailândia, Vietnã, Malásia, Taiwan, Índias Orientais Neerlandesas, Indonésia, incluso o Timor-Leste) teriam sido levadas de seus lares, enganadas por falsas ofertas de trabalho ou contra a vontade. As mulheres eram levadas para o Japão e estabelecidas em locais conhecidos como “postos de conforto” ou “estações de conforto”. As habitantes dos postos eram conhecidas como “mulheres de conforto”. Os postos foram criados para

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evitar a disseminação de doenças venéreas e o estupro de mulheres japonesas pelos militares (Lapsky; Leão; Silva, 2015). As escravas sexuais eram conhecidas como

wianbu (em coreano) e ianfu (em japonês) e, em sua maioria, eram coreanas jovens e

pobres.

Observa-se que, naquela época, o exército japonês tinha à sua disposição “mulheres de conforto” do Japão (karayuki-san), mas estas eram principalmente ex-prostitutas e mulheres que trabalhavam em serviços de entretenimento, algumas das quais possuíam doenças venéreas. A fim de combater a propagação de doenças e prevenir crimes sexuais por soldados contra as mulheres dos territórios ocupados, a liderança militar sugeriu que o governo recrutasse jovens mulheres solteiras das colônias (presumidas virgens e, portanto, livres de doenças sexualmente transmissíveis) como “mulheres de conforto” para o exército japonês. Uma vez que a Coréia encontrava-se sob o domínio colonial do Japão entre 1910 e 1945, o Governo japonês optou por usar as jovens coreanas como “mulheres de conforto”. (...) o povo coreano era visto como uma raça inferior e suas mulheres mais adequadas para a exploração sexual (Okamoto, 2013, p. 94).

Algumas mulheres recrutadas, enganadas, estupradas, exploradas e com sintomas psicológicos e psicossomáticos encontravam um pouco de conforto nas bebidas, enquanto outras cometiam suicídio. Era o reino da decadência japonesa no qual as “mulheres de conforto” se viam na “humilhante tarefa de lavar e reciclar os preservativos usados para evitar a contaminação por doenças sexualmente transmissíveis” (Okamoto, 2013, p. 96). Tal contexto histórico seria pano de fundo para a literatura ero-guro.

Em tão conturbado período da história japonesa, os jovens, os mobos (modern

boy) e as mogas (modern girls), passaram a consumir o que representasse o pessimismo

e a decadência que os circulavam. Estórias que marcavam grotescamente o corpo sociocultural do Japão.Leituras que serviam para “destruição da lógica e de tudo o que nela se apoia. Destruição também da religião, da moral, da família, camisas de força que impedem que o homem viva segundo o seu desejo” (Nadeau, 1985, p. 63).

Escritores como Maruki Sado3 (transliteração de Marques de Sade em kanji, pseudônimo de Hata Toyokichi), o poeta e tradutor Horiguchi Daigaku (1892-1981) e Yokomitsu Riichi (1898-1947) foram fundamentais para “explorar o que poderia significar o erotismo no cruzamento com a modernidade, a ciência e a antropologia”. Para Yokomitsu, a forma da cultura de massa ligada ao ero-guro poderia ser chamada de “novo barbarismo”, ou seja, junção de modernidade (capitalismo), batalha de desejos para retornar a “simplicidade” e a expressão de um desejo de decadência (Amano, 2013, p. 22). Na era Showa, a noção de “dekadansu” (em katakana, do francês décadent), acabou por ser uma bandeira ideológica para um número de escolas e movimentos literários. A noção implícita de “inutilidade” foi transformada em “utilidade” como uma ideologia.

O estilo irrealista de ero-guro é uma maneira que os artistas contemporâneos encontraram para dissecar tabus e, ao mesmo tempo, chocar e normalizar as percepções dos observadores. As personagens das imagens ero-guro ou estão passivamente experimentando o anormal como normal, apreciando o ato, ou estão graciosamente desconfortáveis. Desta forma, os artistas tratam da continuada repressão da humanidade, reconhecendo nossas estranhas e sórdidas fantasias sexuais. Tais imagens eróticas e

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Hata Toyokichi (1892-1956) era escritor e tradutor. Traduziu obras de Goethe e Erich-Maria Remarque. Como Maruki Sado escreveu novelas e romances eróticos.

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grotescas poderiam parecer profundamente chocantes para aqueles que não estão familiarizados com a longa história da arte erótica na China e Japão.

A arte do amor é conhecida como Shunga-e, estilo de gravuras eróticas japonesas feitas pelos mesmos artesãos do Ukiyo-e 4 (estampas, retratos do mundo flutuante), mas com o tema especificamente voltado para o mundo dos prazeres. As pinturas eróticas também são poeticamente conhecidas como “imagens da primavera” e

higa (imagens secretas). O mais antigo shunga é o Chigo no Sôshi (1321). “O gosto dos

japoneses pelo erotismo sempre foi muito intenso. Ainda hoje, as histórias em quadrinhos (mangás) frequentemente têm como tema histórias mais ou menos eróticas”. (Frédéric, 2008, p.254- 255). Em 1866,temos as impressões em xilogravura conhecidas como Muzan-e, (“impressões de atrocidades” ou “imagens cruéis”). Eram imagens japonesas de natureza violenta publicadas no final do período Edo (1603-1867). Além do muzan-e, temos outra vertente do ukiyo-e que são conhecidas como “imagens sangrentas” ou “imagens manchadas de sangue” (chimidoro-e) 5

. Tais impressões sangrentas mostravam assassinatos com machado e abortos, entre várias outras crueldades. Da união de muzan-e com chimidoro-e temos a base do gênero ero-guro.

O ero-guro tornou-se a reificação das imagens modernas, um coquetel cultural de sentimentos marginalizados, abomináveis e misteriosos, um retorno ao que estava recalcado.

Suehiro Maruo, perversão e o grotesco

Suehiro Maruo é um mangaká (desenhista de mangás) reconhecido internacionalmente por seu trabalho como um artista ero-guro. O desenhista retrata cada cena de suas obras com um senso de beleza terrível de certa maneira.

Artista autodidata da cena underground dos quadrinhos japoneses, vindo de uma família pobre, nasceu em Nagasaki (Japão, 1956). As obras gráficas de Maruo são caracterizadas por uma violência extrema e uma visão mortificante do sexo, muitas de suas histórias são permeadas de um universo inspirado e influenciado por Edgar Allan Poe (1809-1849), pelo Expressionismo alemão, o Surrealismo, as pinturas de Otto Dix (1891-1969), a literatura de Sade (1740-1814), de Kafka (1883-1924), Georges Bataille (1897-1962), as fotografias e esculturas do alemão Hans Bellmer (1902-1975), entre outros. Influências com viés grotesco, horrível e fantástico.

Com uma literatura considerada ero-guro-nansensu (erótico-grotesco-absurdo), Maruo traça uma diferenciada cultura japonesa que caminha pelas marginalidades e abjeções de sentimentos e corpos, provando que o manga é uma arte decididamente livre e sem tabus. O mangaká caminha por um mundo que mescla sexo e sangue, dissecando homens e mulheres, explorando as relações dominador-dominado, revelando um ambiente cheio de desvios éticos, estéticos e sofrimentos.

Nos mangás de Suehiro há um fascínio pelo macabro, pelas criaturas malditas. “(...) criaturas malditas suscitam, por seu estranho status — metade homens, metade animais —, um fascínio recorrente.” (Roudinesco, 2008, p. 08).

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Gênero de xilogravura e pintura que prosperou no Japão entre os séculos XVII e XIX. Destinava-se inicialmente ao consumo pela classe mercante do período Edo. Entre as mais populares temáticas abordadas, temos: a beleza feminina, o teatro kabuki, os lutadores de sumo, cenas históricas e lendas populares, cenas de viagem e paisagens, fauna e flora e pornografia (produzidas, principalmente, a partir de 1660) (Frédéric, 2008, p. 1085). Como a censura na era Edo era muito forte para temas políticos e de conotações sexuais, uma forma de transgressão foi a criação marginal do subgênero do Ukiyo-e, o Shunga-e.

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Um dos traços recorrentes nos mangás de Maruo é a presença de figuras perversas, com suas vidas “inomináveis: infames, minúsculas, anônimas, miseráveis” (Foucault apud Roudinesco, 2008, p.07). Figuras que revelam o próprio corpo reduzido a um dejeto, uma abjeção da natureza.

Demoníaco, amaldiçoado, criminoso, devasso, torturador, lascivo, fraudador, charlatão, delituoso, o pervertedor era em primeiro lugar uma criatura dúbia, (...). Embora vivamos num mundo em que a ciência ocupou o lugar da autoridade divina, o corpo o da alma, e o desvio o do mal, a perversão é sempre, queiramos ou não, sinônimo de perversidade. (...) espécie de negativo da liberdade: aniquilamento, desumanização, ódio, destruição, domínio, crueldade, gozo (Roudinesco, 2008, p.11).

A perversão será também liberdade, criatividade quando permitir que o pervertido seja vítima e carrasco, sublime e abjeto: vítimas de uma sociedade hipócrita que coloca sexo e morte como tabu; carrasco de seus iguais. Sublime quando não se submete à lei dos homens; “abjeta, ao se tornar, como no exercício das ditaduras mais ferozes, a expressão soberana de uma fria destruição de todo laço genealógico.” (Roudinesco, 2008, p. 11).

Os mangás criados por Maruo não são apenas o choque pelo choque. Há uma apelação dos traços? Claro que existe o exagero. Temos a entrada do grotesco nas estórias criadas pelo artista japonês. “O grotesco em geral emana do polo de uma alteridade que se mostra, por vezes, desorientadora, incompreensível, incerta ou mesmo hostil ao senso comum.” (Santos, 2009, p.138).

Diante da sociedade e da cultura japonesa aniquilada e subjulgada pela cultura ocidental (leia-se norte-americana), o grotesco não é apenas mera representação burlesca, mas uma angústia complexa e perplexa diante da erosão do ser humano, do aniquilamento do mundo. “O grotesco adquire uma relação subterrânea com a nossa realidade, e um teor de ‘verdade’” (Kayser, 2003, p.31). Observar qualquer mangá ero-guro é estar diante do repentino e da surpresa, partes essenciais do grotesco (Idem, 2003, p.158).

Nove contos inorgânicos

Há quem torça o nariz para um mangá cheio de imagens eróticas e grotescas, mas a literatura de Suehiro é inorgânica e “sendo inorgânica, a literatura é irresponsável. Nada pesa sobre ela. Pode dizer tudo” (Bataille, 2003, p. 10).

Neste artigo analisamos o modo como o corpo se mescla ao erótico e ao grotesco presente nos nove contos da obra “Ero-Guro”, lançada no Brasil pela Editora Conrad, em 2005. São nove contos permeados de perversão, horror, sexo e dejetos. Na obra de Suehiro temos: Sodomia, coprofilia, incesto, canibalismo, pedofilia, zoofilia, voyerismo e flagelação. Em traço preto e branco, o mangá nos mostra que um corpo tem uma sensibilidade irônica, revelando detalhes sobre alimentação, habitação, modos de entretenimento popular e atitudes em relação à sexualidade. O estilo fantástico e irrealista de ero-guro foi uma maneira que os artistas contemporâneos encontraram para dissecar tabus e normalizar as percepções dos espectadores.

Maruo cria nove contos, com relatos distintos, repletos de referências literárias e cultura ocidental. As histórias, na ordem, são: “Noite podre”; “O garoto da latrina”; “Uma temporada no inferno”; “Receita para uma sopa de merda”; “O grande

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masturbador”; “Noite podre / O corvo de Édipo”; “O paraíso do garoto da latrina”; “O voyeur do sótão” e, finalmente, “A cidade que sucumbe”.

As narrativas imagéticas e textuais nesta obra são complementares para a representação da expressão estética de Maruo. A profusão de vozes ao longo dessa narrativa evidencia a presença exatamente do que Bakhtin aponta como dialogismo, isto é, um discurso que representa a constituição do sujeito em relação com o mundo, através de diálogos já existentes, dando origem a um novo texto (Urbano; Azevedo, 2013).

As influências diretas encontradas nos contos de Maruo são perceptíveis: “O Corvo” (Edgar Allan Poe); “O Grande Masturbador” (Salvador Dalí); “Uma temporada no Inferno” (Rimbaud); e “A História do Olho” (Georges Bataille). Essas são as influências mais claras, explícitas até nos título de alguns capítulos.

Corpos dilacerados, violentados, devorados, esta é a imagem recorrente do corpo humano nos contos de Maruo. Porém, nenhum corpo está na obra sem uma razão. Devemos olhar para além dos sangramentos, cortes, dejetos, perversões sexuais, para ver uma crítica mais profunda aos movimentos políticos e as convenções sociais japonesas.

Maruo não retrata personagens abastados. O que interessa ao mangaká é o que acontece no mundo dos humildes, dos famintos, dos desvalidos. Nos nove contos teremos um dominador grotesco que domina outros, mas também é dominado pelo sistema econômico e sociocultural.

No conto que abre a obra, “Noite Podre”, Suehiro traz elementos do filme surrealista francês “Um Cão Andaluz”, lançado em 1928, dirigido por Luis Buñuel e roteirizado por Buñuel e Salvador Dalí. Temos a mutilação sofrida pelo corpo, o olho/lua trespassado pela lâmina. O conto nos dá um marido (um homem mais velho) que sente prazer ao praticar sexo selvagem com sua jovem esposa. O marido é carrasco que sente mais excitação com pequenos cortes feitos no corpo da esposa. Cansada de tanta humilhação, a jovem e seu amante resolvem matar o marido. Esposa e amante acabam sendo retalhados pelo marido, perdem braços e olhos. Mesmo dilacerada, a esposa é violentada pelo marido. O carrasco violenta a esposa ensanguentada como se fosse um Perseu vitorioso segurando a cabeça da Medusa. É o triunfo do poder, do patriarcado, do corpo político e militar japonês. A mulher (e o amor) sucumbe. Buñuel e Dalí, cinematograficamente, cortam o olho; o marido retira os olhos da esposa, não haverá mais como fixar a face da alteridade, não será reencontrada a figura humana. Maruo cria um “imaginário do dilaceramento” como se desejasse “alterar a forma humana a fim de lançá-la aos limites de sua desfiguração.” (Moares, 2002, p.19). Porém, a paixão não sucumbe de todo. A mulher e o amante, mesmo lacerados e cegos, se procurem no chão e fazem amor. Um bizarro conto de amor escrito por Suehiro.

Em “O Garoto da Latrina”, temos a imagem de Marlene Dietrich quase voyeu na cena. Dietrich aparece em um pôster 6 pendurado na parede da latrina, na parte inferior, no mesmo local em que vive o garoto da estória. Uma mãe jogou o próprio bebê na latrina. Outro conto que revela a crise social japonesa no qual mulheres abortavam ou abandonavam os filhos, como fizeram várias “mulheres de conforto”. A criança sobrevive e cresce em meio aos dejetos. O garoto veio dos condutos sexuais que evacuaram dejeções, nossas “partes pudendas”, e passou a habitar a área da imundície, da corrupção e, futuramente, para o garoto, local de sexualidade. Inter faeces et urinam

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Imagem de Marlene Dietrich, referência ao filme expressionista/realista alemão Der Blaue Engel (“O Anjo Azul”, 1930). Dietrich representa Lola Lola, uma atriz do Cabaré Anjo Azul que seduz um professor ginasial que acaba tendo sua vida degradada.

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nascimur, dizia: “Nascemos entre fezes e urina” (Santo Agostinho apud Bataille, 1987,

p. 38). O garoto cresceu e tornou-se um psicopata escatológico. As mulheres que iam até a latrina, eram aliciadas e violentadas pelo jovem. O psicopata também se alimentava da urina e fezes das vítimas. Vivendo no campo da repugnância e da náusea o jovem lutou com a morte e fez da latrina seu túmulo e lar, sua fonte de alimento e prazer. “Não há melhor meio de se familiarizar com a morte do que associá-la a uma ideia libertina” (Bataille, 1987, p. 18).

No conto “Uma temporada no inferno”, temos um jovem que circula pela cidade como se percebesse todo caos ao redor e, mesmo assim, não fosse afetado pelo horror. É um conto simples sobre um doce inferno de existir e resistir destruindo a beleza, como fez Rimbaud em obra homônima. É a visão pessimista e decadente do mundo pelos olhos de um jovem oriental. Um corpo jovem e, em pleno sentimento de decadência social, no qual o horror caminha lado a lado com a inocência em uma temporada no submundo japonês do entreguerras. Ao fazer o caminho usual para a escola o rapaz vê três corpos, uma jovem e um casal de meia-idade, mutilados na estrada e decide não se envolver com a situação.

Temos um garoto que odeia a própria vida, a família, usa tapa-olho e recebe a constante visita de uma grande lesma falante. “Heil Hitler” é como o jovem recebe a lesma. Há uma cumplicidade entre o rapaz e o molusco, uma relação Japão-Alemanha. A atmosfera é surrealista e o jovem é um “enfant terrible” rimbaudiano que sonha eroticamente com a moça morta na estrada. Para o rapaz que parece viver num pesadelo e num deslumbramento, a garota morta se parece com a jovem Audrey Hepburn7, o que nos dá uma indicação de tempo, possivelmente entre as décadas de 1940 e 1950. Temos a saudação nazista (representação de uma das potências do Eixo) 8 e Audrey (representação dos Estados Unidos, um dos aliados) 9 no conto. Em uma atmosfera onírica os jovens se relacionam sexualmente, Japão e Estados Unidos. Há a constante vontade de morrer, uma sensação de incompreensão familiar. Viver, para o moço, é uma estadia no inferno.

“O inferno é uma ideia frágil que Deus nos dá involuntariamente de si mesmo. (...). O ser se convida a si mesmo para a terrível dança cuja síncope é o ritmo dançante, e que devemos aceitá-la como ela é, já sabendo do horror que a acompanha (Bataille, 1987, p.174).

Os pais riem da constante vontade de morrer do filho e acabam sendo espancados até a morte. Os corpos de um casal na estrada eram pedaços da memória guardada de um jovem que assassinou os pais. O mundo, as pessoas, a história em fragmentos, em ruínas, e o que resta ao jovem é a memória de corpos dilacerados pelo caminho. Vivendo no caos, no horror, na decadência da existência, em um inferno psicossocial em meio a tantas guerras, a luta do jovem é com seus próprios fantasmas, com a sombra que o persegue. Tornar-se mal é encontrar a si mesmo, mas na escuridão. “O Bem é o passivo subordinado à Razão. O Mal é o ativo que nasce da Energia. O Bem é o Céu. O Mal é o Inferno...” 10 (Blake apud Bataille, 1989, p. 80-81).

No conto “Receita para uma sopa de merda”, nitidamente inspirado na obra “História do Olho” (Histoire de l'oeil, 1928) de Georges Bataille, temos três jovens

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Audrey Hepburn (1929-1993), premiada atriz e humanitária britânica que estrelou diversos filmes, entre eles Bonequinha de Luxo e A Princesa e o Plebeu.

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Potências do Eixo: Alemanha, Itália e Japão.

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Aliados da Segunda Guerra Mundial: União Soviética, os Estados Unidos e o Império Britânico eram as principais forças.

10

Texto presente em “O Casamento do Céu e do Inferno” de William Brake. No original francês: “Le Bien est le passif subordonné à la Raison. Le Mal est l'actif naissant de l'Énergie. Le Bien est le Ciel. Le Mal est l'Enfer...”

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realizando desejos sexuais, explorando jogos de amor. Dois rapazes e uma moça11 brincando com um olho de vaca. A pequena oriental coloca o olho do animal dentro de seu órgão sexual e pede que um dos rapazes retire com a boca, como ocorre no livro de Bataille. Outro rapaz começa a passar a língua no olho da jovem:

Dedicado ao “diversos jogos de amor”, (...) Bataille tematiza, com particular rigor, o valor de atração do vaivém orgânico. As sucessivas substituições que, ao longo da Histoire de l'oeil se operam entre as partes redondas do corpo – olho, testículos, ânus, boca, cabeça −, estendendo-se a outras formas esféricas – ovo, hóstia, sol −, recompõem o ciclo de metamorfoses que constitui um objeto erótico. (Moraes, 2002, p. 209)

Sêmen e fezes são os bizarros objetos de desejo. Com as fezes os jovens farão a sopa, pois “os pratos existem para a gente colocar a bunda em cima” (Maruo, 2005, p.57). No conto reina a parafilia (voyeurismo, sexo grupal, coprofagia) para fragmentar e dispersar o corpo, revelando a fragmentação do ser. O corpo é o primeiro alvo a ser atacado na perversão, um ataque que fascina o observador. “(...) os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos”. (Roudinesco, 2008 p.13). Maruo, ao final do conto, relata que, assim como os três personagens, teve um impactante contato com fezes:

Quando eu era criança, sem querer, tive a chance de experimentar o gosto da merda, obviamente era a minha própria. O escritor ladrão Jean Genet já escrevia: ‘A imundice abomina outras imundices’. É uma frase célebre. Ainda criança, quando sentia vontade de ir ao banheiro, tinha que correr até a minha casa. Até hoje, não consigo fazer minhas necessidades nos banheiros públicos de estações de trem e parques. Quanto ao sabor da merda, mais do que fedido é amargo. Se não acredita em mim, recomendo que experimente você mesmo. (Maruo, 2005, p. 72).

Ao fim do conto, e depois de tantas fantasias sexuais, os jovens se jogam de um precipício. O gozo da sujeira, dos excrementos, da urina, do sêmen, liberta os pervertidos do tempo e dos limites. Os três tornam-se ‘Uno’ na queda, na morte, no vazio. “O sentido último do erotismo é a fusão, a supressão do limite. O sentido último do erotismo é a morte” (Bataille, 1987, p. 85 e 94).

Ainda sobre o gozo derivado do desejo pelo olho e o caos que é o decompor da forma humana, presente tanto em Battaile, nos surrealistas, quanto em Maruo, temos o conto “O Grande Masturbador”, referência ao quadro homônimo pintado por Dalí em 1929. Há no conto uma relação conflituosa em relação ao ato sexual. Um rapaz que tem desejo sexual pela tia-avó morta é a própria associação de sexo e decadência, do incesto. Quando viva, a tia-avó havia lambido um tersol no olho do rapaz, tal fato fez explodir a sexualidade na sua vertente incestuosa. Ao se masturbar no túmulo da anciã, o jovem encontra prazer no caos, no solo sagrado do cemitério, em uma atmosfera fantasmática que deveria causar medo, mas causa tensão sexual. O corpo está em crise e somente será restaurado através do desejo. Passamos, em tal conto, do corpo fragmentado para o corpo ausente. A tia-avó não está viva, presente e, ainda assim, o jovem sente prazer em seu corpo ausente, através da memória. Gozar sobre a cova da avó morta é o próprio êxtase solitário. “Aquele que apreende um instante o valor do erotismo percebe depressa que este valor é o da morte. É talvez um valor que a solidão sufoca”. Temos, ainda no conto, imagens de animais saindo do órgão sexual feminino e cenas de dilaceramentos realizados por homens de usam o que parece ser um chapéu do Exército Imperial

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Japonês. É a transgressão do corpo em tempos de guerra, “é sempre a transgressão, a violação dos interditos em que repousa a civilização” (Bataille, 1987, p. 169).

No conto “Noite Podre/ O corvo de Édipo” teremos a perversão do incesto. Uma filha cuida do pai mutilado. O homem não tem pernas, braços, e faltam vários dentes, há uma grande barriga cheia de cicatrizes, um rosto coberto por ataduras e problemas na fala. Novamente temos apenas um olho visível no rosto da personagem (em outros contos temos tapa-olho). A filha ajuda o pai em todas suas necessidades, até sexuais. Temos uma relação de prazer e dor entre as personagens. O homem não parece humano, mas uma forma monstruosa, uma deformidade ameaçadora. O animal habita o homem inacabado como se fosse um desvio da natureza que existe apenas para gemer, comer e evacuar. Ao efetuar felação no pai, a filha arranca um pedaço do pênis. O corvo de Édipo carrega a morte no bico. Quem é o monstro? O pai, um corpo mutilado? Ou a filha, um ser que pode mutilar? “(...), a espécie humana não consegue manter-se indiferente diante de seus monstros” (Bataille apud Moraes, 2002, p.185).

“O Paraíso do Garoto da Latrina” é uma continuação do conto “O garoto da latrina”. Fazendo alusão ao conto “O Flautista de Hamelin” dos irmãos Grimm12

, Maruo nos mostra um garoto que atrai moças orientais, colegiais, para uma orgia. As jovens, hipnotizadas como os ratos do flautista de Hamelin, seguem o odor de sêmen excrementos (fezes e urina) que o garoto exala e acabam em uma sodomia com homens mais velhos. O paraíso aqui é uma paródia, uma simulação do delírio, da moralidade japonesa. Homens gordos e mais velhos como representação do corpo militar e social de um período entreguerras. A exploração de jovens orientais por homens, em sua maioria militares, tanto orientais quanto ocidentais. O garoto da latrina é a personificação do desejo, da natureza traumática, da satisfação mórbida, das “irregularidades escandalosas” propostas por Sade. Orgias como contestação, como crítica histórica e como fonte de prazer doentio. “(...) é possível ter tanto prazer durante as orgias, matando ou torturando, quanto arruinando uma família, um país, ou simplesmente roubando” (Bataille, 1987, p.128). O garoto entrega as colegiais aos sádicos da mesma forma que o Japão foi invadido pela modernização ocidental, com transgressões e traumas. A noção paraíso do garoto que cresceu em uma latrina é grotesca para quem observa, mas não para quem participa de tal paraíso, pois há uma partilha do sagrado através do ato orgiástico e escatológico. Os homens sexualmente devoram as moças como meio de adquirir poder. O paraíso do garoto que habita a latrina é um universo batailleano no qual o corpo agonizante ganha relevo, um mundo cheio de dor e prazer simultaneamente.

Há em “O Voyeur do Sotão” um personagem que nos faz lembrar o sonâmbulo Cesare do filme expressionista alemão “O Gabinete do Doutor Caligari” (1920). O jovem, que fica escondido no desvão do que parece ser uma velha casa, tem imenso prazer voyeurístico por uma moça grávida. A gravidez parece ser indesejada, o feto é assassinado e a moça joga o pequeno corpo morto no desvão, no mesmo local no qual o jovem a espiona. O grotesco nesse conto é que o jovem atuará como uma consciência do crime cometido pela jovem mãe. O voyeur devolve o feto para o quarto da mãe, encontrando imenso prazer em torturá-la. O feto sobe e desce numa zona de indesejo, numa perda de unidade do corpo. Não é mais um filho, uma vítima, é apenas uma prova do crime cometido pela mãe. “O voyeur de Maruo é inquisidor ressentido, pois encontra o prazer no ato de torturar a jovem moça que assassinou seu rebento” (Urbano;

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Os irmãos Grimm, Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859), percorreram povoados da Alemanha, durante a ocupação napoleônica, e ouviram várias versões dos contos que hoje fazem parte do imaginário e cotidiano de muitos leitores. Jacob Ludwig Karl Grimm e Wilhelm Karl Grimm foram dois irmãos, ambos acadêmicos, linguistas, poetas e escritores que nasceram no então Condado de Hesse-Darmstadt, atual Alemanha.

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Azevedo, 2013). O feto que não é alguém, mas uma paródia do voyeur ou da mãe – é um ser que só observa. Somos, os leitores, paródias do feto, pois apenas observamos o ir e vir do corpo morto. “(...), cada coisa que se vê é uma paródia de outra coisa, ou da mesma coisa sob uma forma decepcionante” (Bataille, t. I, 1970, p.81).

No último, mais extenso e político conto da obra de Suehiro Maruo, “A cidade que sucumbe”, temos uma contundente crítica aos tempos fraturados do entreguerras e ao sofrimento dos menos favorecidos. A cidade é Tóquio, o ano é 1946, um ano após o ataque atômico contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki13 e o fim da Segunda Guerra Mundial. O cenário é de decadência, fome, mutilações, febre tifoide e mortes. Somos apresentados, no início do conto, a um relato da prisão de um maníaco sexual, que usava uma máscara branca, em Tóquio e, nesse mesmo momento, um estranho casal se encontra.

A trama gira em torno de um anão sádico (Senhor Hirai), uma pobre mãe e seu pequeno e faminto filho. Enquanto o marido foi para a guerra, a mulher tenta cuidar sozinha do filho e vender velas na rua. Para seduzir a mulher, o anão oferece comida. Ela recusa, mas aceita trabalhar como vendedora de churrasquinhos para o insistente desconhecido. A criança come os próprios vermes, em meio a falta de total higiene sanitária. Temos uma Tóquio suja, cheia de animais peçonhentos, vermes, moscas, cães sarnentos, casas sem energia elétrica, militares semelhantes a zumbis retornando para casa. Porém, Maruo também nos oferece imagens do mainstream norte-americano, entre imagens de miséria que sucumbe a cidade de Tóquio.

Mulheres japonesas são molestadas por soldados ocidentais. O próprio anão do conto é um ator pornô, para um militar/diretor, nas horas vagas. Uma forma que Maruo usou para mostrar a submissão do oriente para com o ocidente. Um conto grotesco que mostra o declínio e a expressão sombria da sociedade e o corpo, “superfície de inscrição”. Senhor Hirai seduz a mãe e o filho com comida para obter favores sexuais da mãe. Certo dia, Hirai mata o filho da amante e faz churrasquinho da carne da criança. A própria mãe come pedaços do filho sem saber. É a fome, é o caos. Se não fosse desgraça suficiente, a mulher se descobre grávida do anão. Em um final bizarro e apoteótico, a mulher arranca do próprio corpo o feto do monstro − Seppuku14.

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos, lugar de dissolução do Eu, volume em perpétua pulverização. A genealogia (...) está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (Machado, 1979, p. 22).

Em “A cidade que sucumbe”, além do corpo, Maruo explora o lado psicológico das personagens. Não há amor, apenas necessidade de sobreviver, como humano ou como animal, em um mundo grotesco que leva a todos ao caos e a morte.

Uma mãe joga o filho na latrina, a outra arranca o filho do próprio ventre, o filho mata os pais, a filha mutila o pai, os jovens se jogam do penhasco... Cada ser foi tocado no ponto em que sucumbia − no próprio futuro, na ferida aberta de uma triste e grotesca realidade pós-guerra.

O grotesco pode tornar-se de fato uma radiografia inquietante, surpreendente, às vezes risonha, do real. Daí sua frequente desconstrução das obras criadas pelo idealismo cultural, tanto pelo apelo ao que é libidinalmente baixo quanto pela

13

Hiroshima foi atacada, em 06 de agosto de 1945, pela bomba atômica de fissão denominada Little Boy, lançada pelo governo dos Estados Unidos. No dia 09 de agosto do mesmo ano, outra bomba ataca a cidade de Nagasaki.

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Ritual suicida japonês reservado à classe guerreira, principalmente samurai, em que ocorre o suicídio ao abrir o ventre e extrair seus órgãos internos com arma branca.

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exposição do mal-estar do corpo dentro da linguagem. Grotesco é quase sempre o resultado de um conflito entre cultura e corporalidade. (...) é quase sempre também uma certa visibilidade disso que Freud chamou de “pulsão de morte”, em especial quando surge a abolição da diferença (fundacional) entre humano e não humano. Com efeito, mostra-se aí algo correspondente ao trabalho psíquico de dessubjetivação, desinvestimento dos valores simbólico e caos. A hierarquia e as diferenças são desqualificadas, instalando-se um campo de determinações, mas sem filiação nem dívida simbólicas. A racionalidade e a coerência das instituições são solapadas pelo caos e pela dissociação – funções complementares da pulsão de morte –, características do grotesco. (Sodré; Paiva, 2002: p. 60)

O grotesco encontra a morbidez na obre de Maruo. O abjeto como algo que é necessário ser usado para se tornar humano. Não há limites para a imaginação humana, nem para as imagens do “mal”. As flores são tanto para o amor quanto para o mal. Há um fascínio angustiante pelas formas degeneradas. Há um fascínio pelo olho, o olhar e pelas máscaras nas imagens da obre de Suehiro. Alguns personagens usam ataduras na face, tapa-olho, máscara cirúrgica, ou seja, elementos que reduzem o rosto humano em qualquer coisa informe. Para Bataille, as máscaras representam uma “obscura encarnação do caos’, (...), as incansáveis interrogações da humanidade” (Moraes, 2002, p.171).

Considerações finais

Suehiro Maruo usou imagens grotescas, abjetas do corpo para inscrever os conflitos existentes em na sociedade japonesa, uma sociedade que habitou o pesadelo em tempos de guerras. Pessoas devastadas pela morte, condenadas a morte e a putrefação. Com seus contos eróticos grotescos, Maruo retira a máscara que aliena o rosto da história oriental. O outro, o puro caos, o estranho está dentro e fora do corpo mutilado pela dor, pela pobreza, pela violência. A morte parece ser a única saída. Para os que possuem os olhos castrados, a obra aqui analisada, pode parecer obscena. O erótico grotesco é a única brutalidade capaz de romper com aquilo que sufoca, assim como o horror.

Durante nove contos, vagueamos por aquilo que a cultura ocidental quase sempre rejeitou – a imperfeição, o corpo monstruoso e dilacerado, a convulsão sexual. As estórias são feias não banais; grotescas não populares; imorais, mas jamais injustas. É o marginal como uma possibilidade de redescobrimento do corpo sociocultural. Maruo nos propõe pensarmos nossa fatídica imperfeição diante do caos do mundo. O mangaká desenha a crueldade dos fatos de forma sensível, repletas de obscenidades e desencanto. Mergulhamos, em cada conto, nos traumas da vida de olhos bem abertos, testemunhando de modo obsceno as luzes e as sombras do humano.

O mundo que Suehiro nos apresenta não é um mundo completamente estranho, é apenas um mundo às avessas de um imaginário assustador que povoa nossa história, nossa cultura.

Para Maruo, o corpo violado, doente ou danificado também seria a base da evidencia de um importante testemunho necessário contra o poder (ou mesmo como reivindicar de um indeterminado poder). Uma critica que engloba portanto, além da sexualidade, do corpo e de seus orifícios, a ordem política, social, moral e cultural (Casturino, 2010, p. 214-215).

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O movimento cultural ero-guro representou uma fascinação pelos instintos mais primitivos, irracionais, eróticos e tanáticos, normalmente reprimidos pela lógica, pela civilização do superego e pela ética sociocultural. As imagens grotescas, surreais e macabras influenciaram e influenciam artistas japoneses. Imagens que possuem muito sangue, vísceras, várias abjeções... Tudo misturado ao erótico e a violência, causando angústia e/ou curiosidade aos observadores. As influências do ero-guro continuam populares e difundidas em formas culturais contemporâneas, além de vários mangás, temos animes, músicas e filmes. Maruo nos deu a parte mais obscura de sua cultura, para nos mostrar que a perversão é também uma criatividade, superação de si, expiação da maldade.

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