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O poeta descobre a literatura: em torno de um poema de João Cabral

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Academic year: 2021

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joão cabral talvez estivesse de acordo com Octavio Paz, quando o poeta mexicano diz que a melhor biografia de um poeta são seus versos. De fato, ao percorrermos a poesia de Cabral, deparamo-nos o tempo todo com os traçados de uma geografia afetiva bastante peculiar (que inclui e aproxima Recife, Sevilha, Dacar, Quito e outros lugares onde o poeta serviu como diplomata) e com um vigoroso painel de gostos e predileções artísticas pessoais (Miró, Le Corbusier, Francis Ponge, Lincoln Pizzie). Raramente frequentada, a poesia da memória, quando assumida pelo poeta (é o caso dos poemas de A escola das facas, livro em que o memorialismo é nota dominante), oferece ao leitor menos o trajeto biográfico do homem que o itinerário de formação do poeta. É da poesia da memória que Cabral extrai a substância social de seus versos e as raízes da atitude ética que norteia sua obra. Engana-se, porém, quem pensa que as peças autobiográficas de Cabral redundam em evocação sentimental e nostálgica do passado ou, ainda, num afrouxamento daquela poética rigorosa, racional, altamente intelectual, nada afeita a arroubos líricos e ao excesso subjetivo, que vinha se formando desde, pelo menos, O engenheiro (1945): antes, a perspectiva do poeta como sujeito empírico e histórico segue alimentando a produtiva e perene tensão entre lírica e antilírica, expressão e contenção, espelhamento e opacidade do sujeito.

Em A escola das facas (1980), o título já aponta para um processo de aprendizagem – aprendizagem do corte ou do cortante, que se dá no universo dos engenhos, dos canaviais, dos cassacos e trabalhadores do eito, íntimos do menino João. Aliás, como sinaliza Davi Arrigucci Jr. (2010, p. 27), o mundo do trabalho, enquanto “gesto, que ao dar corpo ao desejo, funda toda construção humana e lastreia nossa

O poeta descobre a literatura:

em torno de um

poema de João Cabral

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experiência histórica”, deita raízes profundas na noção cabralina de poesia como trabalho de arte. A “marca de humana oficina” (luz redentora que estoura ao fim de Morte e vida severina), as mãos que transmitem a vontade humana ao mundo exterior hostil, o embate necessário e às vezes acerado com a natureza, são todos valores básicos para o pensamento poético cabralino, os quais recebem do poeta síntese exemplar na lição valiosa que lhe transmitira “O ferrageiro de Carmona” (Crime na Calle Relator): “só trabalho com ferro forjado/ que é quando se trabalha ferro/então, corpo a corpo com ele/domo-o, dobro-o, até onde quero”. Assim, compreende-se melhor tanto o elogio, muitas vezes reiterado, da poesia como construção racional de um objeto de linguagem, quanto a galeria de “artes poéticas”, dedicadas a figuras como o toureiro espanhol Manolete, a bailadora andaluza e o cassaco de engenho que, embora díspares, são unificados por um mesmo senso ético de resistência e de árduo e consciente trabalho sobre sua matéria.

E se foi – como o atestam diversas entrevistas do poeta – com o Bandeira e o Drummond modernistas que Cabral (até então propenso a tornar-se jogador de futebol ou crítico de arte) decidiu virar poeta, foi com os empregados dos engenhos da família, nessa zona profícua do trabalho, que Cabral descobriu a literatura, não como arte destinada unicamente à apreciação solitária, mas como um fenômeno naturalmente social, como tecido vivo de impasses, contradições e travamentos e que, por isso mesmo, contém, ao mesmo tempo em que dissipa, as marcas da desigualdade e da opressão. Veja-se o seu magistral “Descoberta da literatura”:

No dia-a-dia do engenho, toda a semana, durante, cochichavam-me em segredo: saiu um novo romance. E da feira do domingo me traziam conspirantes para que os lesse e explicasse um romance de barbante. Sentados na roda morta de um carro de boi, sem jante, ouviam o folheto guenzo,

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a seu leitor semelhante, com as peripécias de espanto preditas pelos feirantes. Embora as coisas contadas e todo o mirabolante, em nada ou pouco variassem nos crimes, no amor, nos lances, e soassem como sabidas de outros folhetos migrantes, a tensão era tão densa, subia tão alarmante, que o leitor que lia aquilo como puro alto-falante, e, sem querer, imantara todos ali, circunstantes, receava que confundissem o de perto com o distante, o ali com o espaço mágico, seu franzino com o gigante, e que o acabassem tomando pelo autor imaginante ou tivesse que afrontar as brabezas do brigante. (E acabaria, não fossem contar tudo à Casa-grande: na moita morta do engenho, um filho-engenho, perante cassacos do eito e de tudo, se estava dando ao desplante de ler letra analfabeta de curumba, no caçanje próprio dos cegos de feira, muitas vezes meliantes). (melo neto, 2008, pp.421-422)

Como “poema de iniciação” (secchin, 1985, p. 285), “Descoberta da literatura” visivelmente arma, desde os primeiros versos, uma interessante articulação de aproximações e distanciamentos, que dá

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conta desse lugar tenso e desconfortável que o poeta ocupa – posto, por assim dizer, entre a “Casa-grande” e a “Senzala”, entre uma certa expectativa de literatura e uma prática popular, embora escrita, ainda muito dependente de um suporte de oralidade (“letra analfabeta”). O sinal de diferença que separa um possível cânone da Casa-grande e os romances de cordel, na verdade, não parece resultar unicamente da conformação oral de que essa produção é originária. A condenação é social – condenados são os cegos de feira, autores dos folhetos e prováveis meliantes, o português estropiado (“caçanje”: língua crioula falada por povos angolanos e, por extensão, português “incorreto”), o público ouvinte (“cassacos de eito e de tudo”). Ainda mais: para a Casa-grande, aos romances de barbante – e aqui seguimos a pista lançada por José Pasta Jr. - certamente não caberia o rótulo “literatura”:

[…] a postura de recusa exemplar das chamadas artes do povo surge não das origens na matriz escrita tomada em si – de que a literatura aparece como a manifestação originária mais forte –, mas sim de uma determinada e específica concepção de literatura (e, por extensão, dos códigos “altos”).(pasta, 2003, p. 64).

De acordo com o crítico, para determinados setores, por alguma razão impossibilitados de fruir e compreender as manifestações artísticas populares, a literatura é delimitada a partir de um recorte já em si conservador, de uma concepção bastante estreita, que enfeixa sob o manto poderoso do “literário” apenas aqueles objetos estéticos que se lhe afiguram como obras: criação individual, original, homogênea quanto ao gênero e ao código a que pertence, integrante de um regime de produção e difusão sensivelmente diverso daquele em que se insere a literatura de cordel e que é registrado pelo poema de Cabral. Por isso mesmo, o título do poema ganha outro contorno: descobrir os romances de cordel é descobrir a literatura em sentido amplo, como arte da palavra, fora das limitações dos regimes discursivos próprios a esta ou àquela classe. É tomar contato (e vai nisso seu caráter conspirante) com aquilo que a ideologia familiar marginalizava ou escondia. Des-cobrir: tirar a cobertura, trazer à tona, erguer o véu.

Como se disse, o poeta encontra-se entre dois universos estranhos um ao outro, os quais deveriam seguir imiscíveis (os parênteses que isolam a reação da Casa-grande, ao fim do poema, são marcas desse

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desejo de distância), mas cuja confluência é permitida, vez ou outra, pelo regime de sociabilidade flexível e algo estranho da vida dos engenhos. De um lado, o poema acumula distâncias: não apenas a assimetria entre filho-engenho/cassacos de eito, mas também a discrepância entre a “roda morta”, o “carro de boi, sem jante” – marcas da realidade precária de um engenho, ao que tudo indica – o “fogo morto”, e o “espaço mágico” das incontáveis peripécias de bravos gigantes, envolvidos em lances de crime e amor, lidos, entretanto, por um menino franzino, temeroso de que seus ouvintes, pouco acostumados às regras do jogo literário e à natureza do texto ficcional, o confundissem com o brigante. Por outro lado, o “folheto guenzo” (= muito magro) é semelhante ao seu leitor: por força da metonímia, folheto e menino aproximam-se por um nexo comum (o aspecto franzino do jovem poeta liga-se ao tamanho e às características do pequeno romance de barbante). A escolha do adjetivo, certamente, não é casual: o rio Capibaribe, eu-lírico do longo poema narrativo O rio (1954), assim se refere ao menino do cais da Jaqueira (o próprio Cabral) que o via correr: “há na curva mais lenta/do caminho da Jaqueira/onde (não mais está)/um menino bastante guenzo/de tarde olhava o rio/como se filme de cinema”.

O “frágil assentamento do poeta em qualquer dos dois polos” traduz-se também na organização formal do poema, que “se utiliza de um metro popular, típico de cordel (redondilha maior), mas se esquiva da tradicional cesura na terceira sílaba, e trabalha com uma rima difícil (-ante) em termos de contingente vocabular” (secchin, 1985, p. 287). Além disso, o uso da rima toante, vezo da poesia cabralina, em alguns versos (engenho/segredo, lances/migrantes), diverge do procedimento básico da literatura de cordel, a rima consoante.

Tensionado entre dois lugares sociais diferentes, ao mesmo tempo próximos e distantes, a meio caminho entre dois códigos literários, sem aderir totalmente a nenhum deles (se, por um lado, adota o verso popular de sete sílabas, por outro não abre mão da rima toante), o poeta lê os folhetos “como puro auto-falante”, unicamente como mediador, portador de uma palavra alheia, incumbido de torná-la legível ao maior número possível de pessoas. Mas, como é típico do regime de transmissão oral, ao Cabral-menino cabia não apenas ler, como também explicar os romances de barbantes. A autoridade é o leitor e não o texto; é ele quem poderá ser interpelado por seus

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ouvintes e terá de haver-se com saídas que não as do texto.

Se o poeta toma parte do ritual, se escapa à tutela familiar e descobre uma manifestação literária antes censurada, graças ao quê intui que o domínio do discurso e a socialização da palavra são, antes de mais nada, “o exercício de uma consciência de lugar social” (Ibid., p. 285), se ultrapassa a barreira que separa dois universos distintos, mas não se coloca inteiramente no lugar de seu Outro social, cumpre então perguntar pelo sentido e pela repercussão dessa experiência formadora, em termos da poética do escritor. Ou, noutras palavras, por que o poeta não incorpora em seu poema os procedimentos formais típicos da literatura de cordel, sem reservas ou distâncias?

Parece útil voltarmo-nos a um pequeno ensaio teórico de Cabral, apresentado como tese ao Congresso Internacional de Escritores de São Paulo, de 1954, intitulado “Da função moderna da poesia”. Em linhas gerais, nesse texto, o poeta sustenta que o desenvolvimento da lírica no século XX permitiu aos poetas avançarem consideravelmente no tocante ao refino dos meios expressivos, à adequação da linguagem poética e à representação mais fiel da realidade moderna. Todavia, em compensação, obliterou-se a contraparte orgânica da poesia – seu poder de comunicação. Desprezando o poder social e coletivo da literatura, os poetas, afirma Cabral, dão-se em espetáculo, entregam-se ao máximo individualismo, às imagens cerradas, a um tipo de escrita intransitiva, que dissolve os elos necessários entre o poema, o poeta e seu público. O poema descolou-se da práxis, tornou-se excessivamente hermético e não encontra mais lugar em meio às exigências azafamadas da vida moderna. Diz Cabral:

Cada tipo de poema que conheceu a literatura antiga nasceu de uma função determinada: ajustar-se às exigências da estrutura perfeitamente definida do poema era, para o poeta, adaptar sua expressão poética às condições em que ela poderia ser compreendida e, portanto, corresponder às necessidades do leitor. O poeta moderno, por não ser funcional, exige do leitor um esforço sobre-humano para se colocar acima das contingências de sua vida. O leitor não tem a ocasião de defrontar-se com a poesia nos atos normais que pratica durante a sua rotina diária.(melo neto, 2008, p. 736.)

Ora, a “função determinada” e as “necessidades do leitor”, a adequação do texto às exigências próprias a seu gênero são atingidas em cheio pelos romances de cordel, no episódio narrado em “Descoberta

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da literatura”: entretanto, como os cassacos do eito não podem defrontar-se com a poesia em suas atividades normais, a literatura só pode emergir quando o trabalho silencia, quando a opressão cala em favor da imaginação.

Ainda em “Da função moderna da poesia”, Cabral propõe a reabilitação de formas literárias tradicionais, como a poesia narrativa, a sátira e a anedota ou os metros menores, caídos em desuso na modernidade. Contudo, isso não significa tomar as formas como a-históricas, ou recuperá-las sem mediações ou distanciamentos. Igualmente, a aspiração do poeta a uma poesia “funcional” não deverá horripilar aqueles já escaldados pela deformadora lógica utilitarista do capitalismo. O que está em jogo, segundo me parece, é a refuncionalização e a ressignificação das formas da tradição que, gastas pelo tempo, adquiriram certa dicção mais impessoal, infensa ao exagero e à saturação do individualismo moderno e mais abertas à comunicação.

Assim, na construção Morte e vida severina, por exemplo, os mistérios e moralidades medievais e os autos pastoris do folclore pernambucano são convocados, mas despidos de sua funcionalidade religiosa e transcendental original e postos a serviço da denúncia das miseráveis condições materiais de vida da população nordestina. Nessas formas, que a pesquisa modernista relegou ao esquecimento ou das quais aproximou-se apenas com intenção paródica, Cabral vislumbrou algumas virtualidades afins à sua poesia: certo gosto pelas imagens concretas, o tom didático, o caráter “épico” (acentuadamente narrativo) da dramaturgia sacra etc.

Peter Bürger pergunta-se, a alturas tantas de sua Teoria da vanguarda, se a superação da autonomia da obra de arte – isto é, sua reinserção plena na práxis vital e no cotidiano das pessoas – é mesmo desejável e se a distância entre a arte e a práxis não garantiria afinal “a margem de liberdade dentro da qual alternativas para o existente passem a ser pensáveis” (bürger, 2008, p. 114). Desejando restituir à poesia um vetor de socialização e comunicabilidade, dotá-la novamente de um poder transitivo, tal como se vê em “Descoberta da literatura”, Cabral não dispensa, em momento algum, no tocante à sua matéria e às formas de que se serve, a atitude reflexiva distanciada e o vigoroso lastro crítico que sustentam sua poesia, a qual, como toda obra de arte verdadeiramente grande, finda a leitura (ou a audição), dá a seus leitores rudimentos que lhes permitam pensar nas alternativas realmente capazes de transformar o existente.

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Referências bibliográficas

arrigucci jr., Davi. “João Cabral: o trabalho de arte”. In: ______. O guardador de segredos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp.

26-33.

bürger, Peter. Teoria da vanguarda. Tradução de José Pedro Antunes.

São Paulo: Cosac Naify, 2008.

melo neto, João Cabral. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova

Aguilar, 2008.

pasta jr., José Antônio. “Cordel, intelectuais e o Divino Espírito

Santo”. In: bosi, Alfredo (org.). Cultura brasileira: temas e situações.

São Paulo: Ática, 2003, pp. 58-74.

secchin, Antônio Carlos. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo:

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