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A CONSTRUÇÃO DO PERSONAGEM NO DOCUMENTÁRIO POÉTICAS DO SINGULAR

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Academic year: 2021

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Joana de Andrade Pinto Rennó

A C O N S T R U Ç Ã O D O P E R S O N A G E M N O D O C U M E N T Á R I O

P O É T I C A S D O S I N G U L A R

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Comunicação Social.

Área de concentração:

Comunicação e Sociabilidade Contemporânea

Linha de Pesquisa:

Meios e produtos da comunicação

Orientador:

Professor Doutor César Geraldo Guimarães

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG 2005

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RESUMO

A dissertação discute a construção dos personagens no documentário, a partir do conceito de singularidade, tal como formulado por Giorgio Agamben. Tendo como corpus analítico quatro filmes brasileiros (A pessoa é para o que nasce, A Alma do Osso, Santa Cruz e Esta não é a sua vida), o trabalho investiga as estratégias e os recursos expressivos utilizados na configuração dos personagens, orientando-se pelas noções de fabulação e de auto mise en scène.

RESUME

The dissertation discusses the construction of characters in documentaries, using as basis the singularity concept as formulated by Giorgio Agamben. The corpus of analysis is formed by four Brazilian movies (A pessoa é para o que nasce, A Alma do Osso, Santa Cruz e Esta não é a sua vida). This academic work investigates the strategies and expressive resources used in the configuration of the characters, oriented by the notions of fabulação and auto mise en scène.

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SUMÁRIO

UM PERCURSO ... 4

1. O PERSONAGEM NO DOCUMENTÁRIO... 7

1.1. A construção de mundos... 7

1.2. Fabulação... 15

2. SINGULARIDADE ... 24

2.1. O ordinário... 24

2.2. O qualquer ... 26

3. ESCOLHAS E AFETOS... 32

3.1. Um olhar sobre as tendências ... 32

3.2. Critérios ... 34

3.5. Poéticas do documentário... 36

4. VIDAS ORDINÁRIAS ... 40

4.1. A pessoa é para o que nasce... 41

4.2. A Alma do Osso... 58

4.3. Santa Cruz... 74

4.4. Esta não é a sua vida... 85

VESTÍGIOS SINGULARES ... 94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 99

FILMOGRAFIA ... 102

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UM PERCURSO

Como se dá a construção do personagem no documentário? Eis a questão norteadora de nossa pesquisa, a partir da qual voltamos nossos olhares para esse campo múltiplo e facetado constituído pelos filmes não-ficcionais. Ao longo deste trabalho, procuramos apontar certas estratégias que, quando utilizadas, permitem o atravessamento das representações por uma singularidade. Este conceito, cardinal para a elaboração de nosso trajeto teórico e analítico, foi cunhado pelo filósofo italiano Giorgio Agamben e diz respeito à figura do um qualquer, noção oposta ao típico, aquele que é categorizado e enquadrado a partir de suas particularidades.

Sob essa perspectiva, tentamos localizar diferentes formas de liberação do personagem, que, solto das amarras do estereótipo e do clichê, põe-se a fabular e a criar mundos. Para isso, analisamos quatro documentários - A pessoa é para o que nasce (Roberto Berliner, 2004), A Alma do Osso (Cao Guimarães, 2004), Santa Cruz (João Moreira Salles, 2001) e Esta não é a sua vida (Jorge Furtado, 1991) – todos produzidos no Brasil, da década de 90 em diante.

Antes de empreendermos nossa análise, no entanto, foi preciso que retomássemos, inicialmente, uma discussão sobre o personagem no documentário, partindo das reflexões de Anatol Rosenfeld sobre a ficção, mas apropriando-nos de alguns desses fundamentos para falarmos do filme não-ficcional. Em seguida, fez-se necessário pensar o próprio campo do documentário e suas especificidades, o que, naturalmente, exigiu a execução de um breve percurso histórico, como forma de situarmos melhor a questão de que estamos tratando, em um diálogo com diversos autores.

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Mas precisávamos, ainda, identificar algumas perspectivas e noções que, mesmo apenas como pano de fundo, nos levassem a lançar um outro olhar sobre o documentário, a imagem e suas potencialidades. Nesse sentido, resgatamos, dentre outros, os conceitos de auto mise en scène e de regimes da imagem (orgânico e cristalino), desenvolvidos, respectivamente, por Comolli e Deleuze.

No segundo capítulo, elaboramos um panorama acerca das duas noções basilares de nossa pesquisa: o ordinário, tal como foi pensado por Michel de Certeau, e a singularidade, concepção elaborada por Agamben. O primeiro aborda a questão da linguagem ordinária, retomando a filosofia de Wittgenstein, segundo a qual estaríamos imersos nas manifestações linguageiras da vida cotidiana. Já o conceito de singularidade permitiu-nos pensar a construção dos personagens pelo documentário, para além de uma tipificação que em muito reduz as potencialidades da obra. Agamben chega a analisar exemplos na literatura e no cinema e, nessa dissertação, tentaremos apontar, em diferentes documentários, traços de uma singularidade que perpassa o discurso cinematográfico.

Em seguida, apresentamos o caminho metodológico que nos permitiu chegar à delimitação de nosso corpus. Por um recorte temático e espaço-temporal, circunscrevemos nossa empiria em torno de obras produzidas no Brasil, a partir da década de 90, que abordassem personagens anônimos e seu entorno, em oposição a filmes sobre figuras célebres e conhecidas. Decidimos nos voltar para o comum, para o homem ordinário. É importante ressaltarmos, no entanto, que o anonimato não é o que mais nos importa e nem nos deteremos sobre essa questão ao longo da pesquisa, tendo sido apenas um primeiro recorte temático dentro de nosso estudo. O que procuramos, a todo tempo, foram vestígios de uma singularidade capaz de sulcar as representações construídas. Esses traços poderiam ser encontrados, também, em filmes sobre grandes figuras da humanidade, já que estamos nos referindo a diferentes formas de construção dos personagens, sejam eles quem forem. Um

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filme que tem como protagonista um anônimo não é, para nós, garantia de que o um qualquer irrompa. Nossa busca é guiada, na verdade, pela hipótese de que o personagem no documentário, a exemplo do que já foi feito na literatura, pode, de alguma maneira, ser singular (ao invés de típico), a partir da articulação de estratégias diversas, colocadas em andamento pela relação instaurada quando do encontro entre o cineasta e o personagem, mediados pelo aparato cinematográfico ou videográfico.

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1. O PERSONAGEM NO DOCUMENTÁRIO

1.1. A construção de mundos

O personagem, esse elemento tão caro à ficção e essencial à sua gênese, é amplamente discutido nos mais variados domínios, notadamente na literatura, no cinema e no teatro. Pode causar estranhamento, em um primeiro momento, um estudo que se propõe a pensar a construção do personagem no filme documentário, pressupondo-se que esse campo estabelece uma relação com o real que é marcadamente distinta dos gêneros ficcionais – ainda que não inteiramente diferente deles em certos aspectos. Ora, uma reflexão como a que propomos poderia ser completamente descartada se ainda tivéssemos como modelo de pensamento as teorias acerca do filme não-ficcional da primeira metade do século XX, que viam no documentário uma objetividade hoje já questionada e abandonada pelos críticos e pensadores. Na época, essas obras eram tidas, pelo público e pelos próprios teóricos que se debruçavam sobre o cinema, como um produto audiovisual capaz de apresentar o mundo tal qual é, captando, pela objetiva da câmera, o que nossos olhos já estariam acostumados a perceber. O conteúdo das imagens poderia ser diferente, mas a forma de apreensão era considerada similar àquela experimentada na cotidianidade em que estamos imersos. Nesse sentido, a própria estrutura dos filmes não-ficcionais se voltava para o apagamento dos processos de produção, criando uma ilusão de fidedignidade total ao mundo filmado que pode ser claramente observada, mesmo não tendo sido problematizada na época. Nessa perspectiva, pensar a construção do personagem no documentário teria algo de incoerente e

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despropositado, uma vez que o personagem seria, segundo essa linha de raciocínio, o próprio sujeito real, capturado em sua inteireza.

Contudo, esse tipo de entendimento sobre o documentário já foi relegado, a partir da problematização que diversos aportes teóricos empreenderam acerca da relação entre os signos e o real. Pensemos, por exemplo, na semiótica de Peirce e seu conceito de signo que, ao representar o objeto, nunca o alcança na imediatidade da sua presença e nem na plenitude dos seus aspectos. Outra perspectiva, apontada por Bartolomeu (1999), pode ser observada, em meados dos anos 60, a partir da corrente semiológica da teoria do cinema. Esse viés teórico afirmava “[...] que todo filme é um discurso ou um texto – o que implica num processo de construção [...]”1. A autora retoma, ainda, os estudos recentes de Sílvio Da-Rin (1995), que enfatizam a mesma questão.

Não existe método ou técnica que possa garantir um acesso privilegiado ao

‘real’ – qualquer referência sobre o mundo histórico terá que ser construída no interior do filme e contando apenas com os meios que lhe são próprios.

Sob esse aspecto, o documentário é um constructo, uma ficção como outra qualquer.2

Essa discussão sobre a natureza dos documentários vem acontecendo desde os anos 60 e 70, quando duas correntes teóricas chocaram-se. Esse confronto se deu, segundo Xavier (2004), entre a chamada ontologia realista e o antiilusionismo cinematográfico, sendo que este último propunha uma crítica ao positivismo defendido pela primeira, tal como explica o autor, ao remeter-se a esse período:

A idéia da nova crítica e do novo cinema, nessa fase mais desconstrutiva, era descartar toda pretensão de legitimidade que se apoiasse na crença de uma vocação especial do meio para revelar a verdade sobre o mundo. Em termos das ciências humanas, tratava-se do descarte da idéia de objetividade do documentário, fossem quais fossem seu método e sua linguagem. [...] No entanto, a versão mais extremada dessa crítica se configurou somente em torno de 1968-69, quando o antiilusionismo passou a não ver nenhuma diferença essencial entre a ficção e o documentário como formas de

1 BARTOLOMEU, 1999, p. 19.

2 DA-RIN, 1995, p. 201.

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impostação do discurso, ambos marcados pela articulação de sons e imagens como fatos inerentes ao domínio da linguagem.3

Xavier, entretanto, procura relativizar a dicotomia entre essas duas posições extremadas e valida o fato de que os signos do cinema têm vínculos materiais com o real diferentes da palavra, sem, no entanto, endossar a ontologia da imagem fotográfica.

O filme não é apenas uma sucessão de imagens diante de mim na sala de projeção, momento em que minha percepção pode examinar estruturas, relações; é também a história de uma produção que, socialmente, constrói uma identidade, uma condição fortemente marcada pelo indicial (o rastro do mundo empírico na imagem) que, reconhecido, precisa ser assumido, não como a verdade total do jogo, mas como parte integrante dele.4

Dessa forma, ao pensarmos o documentário como resultado de um recorte relativamente subjetivo da realidade, condicionado pela relação firmada entre três pólos específicos (o cineasta, o objeto filmado e o aparato cinematográfico), torna-se pertinente uma discussão sobre o personagem nesse campo, construído a partir dessa interação comunicativa que coloca em relação desejos, devires e potencialidades. Sendo assim, é interessante voltarmo-nos para a teoria da literatura que, desde a sua origem, discute o personagem, podendo abrir-nos perspectivas relevantes para o entendimento de sua construção no documentário. Nesse sentido, Anatol Rosenfeld (2004) desenvolve um pensamento que problematiza a apreensão e representação do real, tanto na ficção quanto na própria experiência cotidiana.

Segundo o autor, o mundo fictício aponta para a realidade empírica, em um processo que põe em relação seres “puramente intencionais” e seres “também intencionais”, aqui entendidos como os signos e a realidade empírica, respectivamente. O procedimento constituinte da literatura se daria, inicialmente, a partir das orações objectuais, estruturas sígnicas que projetariam o que o autor chama de contextos objectuais. Esses contextos são

3 XAVIER, 2004, p. 73

4 XAVIER, 2004, p. 75.

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elementos configuradores do universo fictício, formados por seres e mundos ‘puramente intencionais’ (signos), que só se referem aos seres ‘também intencionais’ (onticamente autônomos) de forma indireta.

É claro que, para alcançarmos a realidade empírica, em qualquer situação, precisamos de conceitos e convenções, sujeitos sociais que somos. Mas ao autor interessa uma reflexão em outra direção, que aponta para as relações que se estabelecem na própria literatura, relações estas configuradoras do processo de apreensão do fictício como uma dinâmica diferente da que pode ser observada em situações cotidianas, conectadas à materialidade do real. Para Rosenfeld, o âmago dessa disparidade deve-se ao fato de que, na ficção, o foco estaria voltado para os seres “puramente intencionais”, ou seja, para o universo das construções sígnicas, e não para o objeto que é representado.

Apropriando-nos da perspectiva do autor, podemos afirmar que o documentário encontra-se em uma zona de interseção, pois, ao mesmo tempo em que se volta para o objeto empírico, ele também é constituído de signos sonoros e visuais “puramente intencionais” que, numa tentativa de enfatizar o próprio real que lhes serve de matéria-prima, “[...] procuram omitir-se para franquear a visão da própria realidade”.5 Com isso, Rosenfeld faz referência às técnicas muito comuns e aqui já citadas que procuram apagar as características primordiais de qualquer produção simbólica, inclusive o documentário, notadamente sua objetividade relativa (pois que obtida a partir de um certo olhar, de uma certa perspectiva) e sua impossibilidade de captar e apresentar toda a complexidade do real.

Para o autor, a realidade seria completamente determinada, enquanto as objectualidades “puramente intencionais” não conseguiriam alcançar a inteireza desse real que se move como uma massa fluida e cinzenta. As pessoas, ao contrário dos personagens, seriam unidades concretas, dotadas de predicados infinitos e integrados. O movimento da

5 ROSENFELD, 2004, p.18.

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ficção, segundo Rosenfeld, resume-se à seleção e transfiguração de aspectos dessa realidade em uma configuração esquemática que conseguiria apresentar-nos sujeitos transparentes, uma vez que essencialmente predicativos, proporcionando, por esse motivo, experiências distintas da vida ordinária. No entanto, a literatura moderna faz um movimento contrário, ao dotar o personagem também de zonas obscuras e indeterminadas, deslocando a dinâmica até então posta em prática. Essa mesma tentativa pode ser percebida em filmes não-ficcionais da atualidade.

Antes, porém, de pensarmos o personagem no documentário contemporâneo, é preciso que olhemos para o modelo clássico de construção dessas figuras, tal como inaugurado por Nanook, o Esquimó (1920-1922). No filme de Flaherty, Nanook aparece como o exemplar de todos os esquimós, como uma cena particular de um universo geral que é nele encarnado. O mesmo pode ser observado no documentarismo inglês da década de 30 e em tantas outras produções que fizeram uso da relação particular / geral para desenvolver uma história acerca de uma verdade, ilustrada pelo caso individual. Como pontua Consuelo Lins (2004), os documentários clássicos costumavam referir-se a homens ilustres e feitos excepcionais ou, então, a figuras exemplares e modelares de uma cultura. Para enfatizar o olhar unívoco sobre a realidade, a locução em off desempenha, nessas obras, o papel de legitimar o saber sobre o outro, sendo que a montagem, primordialmente linear, enfatiza esse olhar externo e a ilusão de verdade dos argumentos utilizados para reforçar ou comprovar a idéia central do filme.

Esse modelo clássico só foi questionado a partir da década de 60. Como bem colocou Arlindo Machado:

Tudo, no universo das formas audiovisuais, pode ser descrito em termos de fenômenos culturais, ou seja, como decorrência de um certo estágio de desenvolvimento das técnicas e dos meios de expressão, das pressões de

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natureza socioeconômica e também das demandas imaginárias, subjetivas ou, se preferirem, estéticas, de uma época ou lugar.6

As mudanças sociais, políticas e econômicas, que, nesse período, influenciaram a descrença numa gramática natural ou específica para o audiovisual, somaram-se ao desenvolvimento tecnológico de então, responsável pela maior maleabilidade e flexibilidade da produção audiovisual e pela captação direta de áudio. Conseqüentemente, novas perspectivas abriram-se e os cineastas puderam, na esteira do cinema moderno (Neo-realismo na Itália, Nouvelle Vague na França, e Cinema Novo no Brasil), criar novos rumos para a realização de filmes não-ficcionais, subvertendo a noção de uma verdade pretensamente conquistada pelos procedimentos fílmicos, tomados até então como objetivos e capazes de dar a ver de modo transparente a realidade filmada. O cinema-verdade francês e o cinema direto americano, na década de 60, foram marcos desse período ao permitirem uma nova apropriação do personagem, com fissuras, opacidades e fragmentações, abrindo espaço para o imaginário a partir do encontro da câmera com a vida em descontrole. O viés europeu permitia uma maior intervenção do cineasta, que assumia sua própria subjetividade e também a dos participantes em geral. Já o formato americano proporcionava ao espectador uma posição de observador ideal dos eventos. Apesar de essas duas correntes guardarem diferenças entre si, ambas valorizavam o imediato, a intimidade e uma despreocupação com os cânones estéticos do cinema clássico. No entanto, é importante frisarmos que, antes desse período, experimentações as mais variadas, como as conduzidas por Vertov na década de 1920, já prenunciavam a emersão de um modo de produção como o que se firmou a partir dos anos 60.

No Brasil, no entanto, nessa mesma época, a narração7 clássica permaneceu

6 MACHADO,1997, p.191.

7 Tomamos o conceito de narração da forma como Aumont e Marie (2003) o apresentam: “Fato e maneira de contar uma história, por oposição a essa própria história (o conjunto dos conteúdos narrativos, a ‘fábula’, no sentido dos formalistas) e à narrativa (o discurso que conta a história, a ‘trama’ dos formalistas). A narração é um ato, fictício ou real, que produz a narrativa” (AUMONT E MARIE, 2003, p. 208).

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prioritária, ocasionando uma leva de documentários baseados nesse modelo de construção do personagem8. Segundo Xavier (2003), essa estrutura clássica de representação, além da manutenção da relação particular / geral, é firmada pela montagem paralela, que coloca em relação duas dimensões distintas. A primeira compreende o protagonista, que surge discursando ou executando ações, e a segunda é constituída por um mosaico de depoimentos que ajudam a estruturar a figura central do filme. Esse segundo pólo é organizado, principalmente, pelas falas de observadores teóricos, porta-vozes da opinião pública e testemunhas tomadas como fonte de dados. É por essa trama de relatos que o personagem, indiretamente, é construído.

Uma alternativa a esse formato clássico de representação é a configuração dramática focalizada na entrevista e somente nela, cujo maior representante é o cinema de Eduardo Coutinho. Segundo Xavier, nesses casos não há um antes e um depois do personagem e nem uma interação com seu entorno. O que o filme apreende do depoente vem diretamente de seu encontro com o aparato cinematográfico e com o cineasta. Tudo o que surge dessa relação triádica só é possível pela aproximação desses diferentes elementos e pela interação entre eles, sendo que é nesse instante da filmagem que o entrevistado fornece os principais subsídios para sua estruturação na obra. A câmera é o elemento que configura as performances fílmicas e permite ao personagem aparecer de maneira diferente da que apareceria em uma conversa não mediada.

Da década de 60 a 80, no entanto, o cinema documentário nacional permaneceu preso ao sistema particular / geral, salvo algumas exceções e incursões por representações mais fragmentadas dos personagens. Como bem mostrou Bernadet (2003), esse período caracterizou-se, também, pela tendência a buscar o Outro. Inicialmente, como mostra o autor, os filmes não-ficcionais ficaram presos a uma idéia coletiva desse Outro, procurando

8 Alguns exemplos dessa produção nacional são os filmes Viramundo (1965 - Geraldo Sarno), Maioria Absoluta (1964-66 - Leon Hirzman), Subterrâneos do Futebol (1965 - Maurice Capovilla) e Passe Livre (1974 - Oswaldo Caldeira), dentre outros.

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representá-lo como um tipo, uma classe social, um povo. A dimensão singular dos personagens era relegada em favor de um cinema que se voltava para grandes noções, utilizando exemplos particulares para legitimar a caracterização de idéias gerais desenvolvidas pelos cineastas. Para explicar esse movimento, Bernadet traz a categoria do

“tipo sociológico”, um procedimento levado a cabo pelos filmes, com o intuito de adequar o

‘real’ a um aparelho conceitual, utilizando, para isso, estratégias tais como a produção de significação pela já mencionada relação entre o particular e o geral e a presença de um locutor ou narrador implícito que faz uso dos personagens para exemplificar e ilustrar uma teoria acerca dos homens ou do mundo. Moldada em uma estrutura abstrata, essa construção de tipos utiliza como matéria-prima as próprias pessoas filmadas, revestindo os conceitos de uma aparência real, cujo resultado é o que o autor chama de personagem dramático, a encarnação do tipo sociológico no filme. Como o movimento é sempre, nesses casos, de apresentar o produto audiovisual como uma janela para o real, todo o esforço se concentra na tentativa de se apagar qualquer traço de construção que possa se imprimir ao personagem dramático, realçando, em contraposição, os gestos e expressões dos sujeitos filmados, perpetuando, assim, a noção de que o documentário traria aos espectadores – direta e espontaneamente - o mundo e não a representação desse mundo.

É na direção inversa que procuramos ir ao discutirmos, nesta pesquisa, a construção do personagem no filme documentário. Interessa-nos, antes de qualquer coisa, descrever e analisar quais as estratégias acionadas, no documentário contemporâneo, que permitem a constituição dos personagens como figuras singulares (e não típicas).

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1.2. Fabulação

Para entendermos o complexo processo de elaboração de singularidades em obras audiovisuais não-ficcionais, lançamos mão de diferentes estudos e teorias. Dentre eles, os escritos de Comolli (2001), particularmente o conceito de auto mise en scène por ele desenvolvido, auxiliam-nos de forma significativa. Para esse autor, o personagem, ao ser filmado, se expõe, fazendo do ato de filmagem uma relação intersubjetiva que envolve troca entre os sujeitos envolvidos. O indivíduo filmado não é apenas um modelo vivo passivo.

Aquele (a) que eu filmo me olha. O que ele (ela) vê me olhando é o meu olhar (escuta) sobre ele (ela). Olhando o meu olhar, isto é, uma das formas perceptíveis de minha mise en scène, ele (ela) me envia no seu olhar o eco do meu, devolve minha mise en scène, tal como repercutiu sobre ele (ela).9

Dessa forma, o olhar é apropriado e reenviado por quem era apenas visto, o que faz com que toda mise en scène seja definitivamente modificada pela relação estabelecida no ato de filmagem. Quando um olhar retorna para quem o lançara inicialmente, essa pessoa se torna também objeto do olhar do outro e, com isso, também entra em cena. Mas Comolli vai além, ao descrever e identificar dois movimentos diferentes para definir a auto mise en scène:

Um que vem do habitus e que passa pelo corpo (o inconsciente) do agente como representante de um ou de vários campos sociais. O outro, que tem a ver com o fato de que o sujeito filmado, o sujeito em vista do filme [...] se destina ao filme, conscientemente e inconscientemente, se impregna dele, se ajusta à operação de cinematografia, nela coloca em jogo sua própria mise en scène, no sentido da colocação do corpo sob o olhar, do jogo do corpo no espaço e no tempo definidos pelo olhar do outro (a cena).10

9 COMOLLI, 2003, p. 111.

10 COMOLLI, 2001, p. 115.

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Ao problematizar essa relação particular estabelecida pelo ato de filmagem, Comolli evidencia o caráter construtivo e relacional das obras documentais, uma vez que a presença da câmera aciona complexidades antes não elaboradas. Penafria (2001) vai na mesma direção, mas por outro viés, ao questionar o ponto de vista no documentário. Segundo a autora, “o documentário deve assumir-se e ser entendido sempre como um ponto de vista, como um filme que apresenta e constrói argumentos sobre o mundo”11. Comolli já havia dito, nesse sentido, que o cinema seria, então, uma maneira de nos mostrar o mundo como um olhar, como mise en scène.

Na esteira desses pensamentos, Menezes (2003) apresenta uma perspectiva instigante, também partindo do pressuposto de que o documentário é um discurso construído e em construção. O autor tenta se afastar da associação entre o filme não-ficcional e os conceitos de representação, duplo e reprodução do real e, ao retomá-los, ressalta que, por mais que os realizadores tenham consciência de que esse tipo de obra é uma construção discursiva, nem sempre o mesmo acontece com o público em geral que, não raramente, as toma como capazes de revelar toda a verdade sobre determinado tema. Essa confusão entre a “realidade”

fílmica e a realidade propriamente dita, pressuposto que não é aniquilado por uma mera operação intelectual, impossibilita a categorização do documentário como uma representação, na medida em que, para o autor, esse conceito não se confunde com o real em si. Menezes lembra que a representação, segundo Gombrich, é construída a partir da relação entre imagens, podendo se estruturar por meio de uma imagem mental, em que a referência é a idéia concebida sobre o objeto representado, ou por códigos reconhecíveis, constituídos por formas diversas do mesmo objeto. Sendo assim, a noção de representação não foi cunhada a partir da semelhança estrita entre a coisa e a sua respectiva imagem, o que também não acontece no caso dos duplos do real. O duplo não remete a uma relação de semelhança, mas a

11 PENAFRIA, 2004, p. 11.

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uma função ritual que une dois mundos distintos, como acontece com os Kolossós, ídolos de pedra talhados grosseiramente, cujo objetivo é substituir, duplicar os corpos dos mortos, transformando-se no lugar objetivado de suas almas. O documentário não poderia, assim, ser associado a esse conceito, pois também não atua dessa maneira. Por último, o filme não- ficcional não pode ser pensado como reprodução de uma realidade externa, sem mediações, pois a operação acionada não é de cópia do real. Em contraposição a essas noções e aos pressupostos que elas carregam, o autor sugere o conceito de representificação:

Proponho que se entenda a relação entre cinema, real e espectador como uma representificação, como algo que não apenas torna presente, mas que também nos coloca em presença de, relação que busca recuperar o filme em sua relação com o espectador. O filme, visto aqui como filme em projeção, é percebido como uma unidade de contrários que permite a construção de sentidos. Sentidos estes que estão na relação, e não no filme em si mesmo.

[...] Pensar o cinema como representificação significa poder pensar a sessão de cinema como acontecimento nos termos em que a concebia Foucault, a irrupção de uma singularidade única e aguda, no lugar e no momento de sua produção.12

A representificação destaca o caráter construtivo e relacional do documentário, ao enfatizar que o filme diz mais sobre as formas de construção do mundo do que do mundo propriamente dito.

Comolli (2001) concebe esse vínculo entre o filme de não-ficção e o real por um outro viés, ao dizer que o documentário é construído em fricção com o real, capaz de apreender fissuras e o próprio mundo em sua opacidade, coisa que o gênero ficcional falha em alcançar. O autor afirma que, em uma sociedade onde a ficção roteiriza as relações de maneira totalizadora, o documentário surge como uma possibilidade de apresentação do real diferenciada, permitindo que o invisível e as potencialidades da experiência permaneçam não somente contidas na imagem, mas também fora e entre elas, enganando as previsões e

12 MENEZES, 2003, p. 94.

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impossibilitando o roteiro. Para Comolli, cabe à arte e ao documentário “[...] representar a estranheza do mundo, sua opacidade, sua radical alteridade, em resumo, tudo o que a ficção em nossa volta nos esconde escrupulosamente [...]”.13

Em busca de uma forma capaz de permitir a irrupção do que é mascarado pela ficção, percebemos, da década de 90 em diante, um interesse crescente por histórias do homem comum e seu cotidiano, em detrimento de uma preocupação mais genérica com a apreensão das leis explicativas da sociedade como um todo. Ao contrário dos filmes cujos personagens eram elaborados a partir da relação particular / geral, afirmando tipos sociológicos exemplares de um todo, vê-se agora uma tendência a criar espaços na obra para que a singularidade de figuras ordinárias atravesse as próprias imagens e depoimentos.

Deleuze (1990) analisa as possibilidades dessas obras a partir da potência do falso e da fabulação, refletindo sobre algo que é da ordem do acontecimento e não apenas do relato.

[...] um acontecimento não existe fora das suas efectuações. Mas também não se esgota nelas, não ‘está’ apenas no existir actual. Ele subsiste fora dessa existência sensível, não como uma noção geral, simplesmente inteligível, mas como uma singularidade real estritamente virtual. O acontecimento é virtual, melhor, é ‘o’ virtual.14

Para entendermos o que Deleuze escreve, é preciso que retomemos alguns pontos de sua reflexão. Ao pensar as imagens do cinema, o autor propõe dois regimes, o orgânico e o cristalino, sendo que, para caracterizá-los, ele analisa alguns de seus aspectos (a descrição, a relação entre o real e o imaginário, a narração e a narrativa). No regime orgânico, o que é descrito aparece como sendo independente, uma realidade que preexiste à sua descrição pela câmera. Como conseqüência dessa abordagem, esse tipo de regime define situações sensório- motoras e se coloca como um cinema de actantes, de ação. Segundo Deleuze (1990), ao contrário do cinema da vidência, em que o personagem parece tornar-se um espectador que,

13 COMOLLI, 2003, p. 108.

14 DIAS, [19--], p. 89.

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por mais que se mexa, está imerso em uma situação que ultrapassa suas capacidades motoras, fazendo com que ele registre mais do que reaja, no cinema de actantes, o personagem reage às situações e, mesmo quando se encontra impotente, isso se deve a acidentes da ação, momentaneamente atada. Reis e Lopes (1988) também discutem o termo actante, retomando Tesnière, para quem ‘os actantes são os seres ou as coisas que, de algum modo, mesmo a título de simples figurantes e da forma mais passiva, participam do processo’15. Já no regime cristalino, a descrição vale por seu próprio objeto, que é constituído ao ser descrito, remetendo a situações sonoras e óticas puras, desconectadas de seu prolongamento motor. Seria um cinema de vidente e não mais de actante.

Também a relação entre o real e o imaginário apresenta-se de forma diferente nos dois regimes. No orgânico, há uma separação entre o que é real, os encadeamentos atuais, e o que é imaginário, as atualizações da consciência. O real, reconhecido por sua continuidade (incorporada nos raccords), comporta “relações localizáveis, de encadeamentos atuais, conexões legais, causais e lógicas”16, sendo que o imaginário é concebido por oposição, aparecendo sob a forma do capricho e da descontinuidade. Já no regime cristalino, esses dois modos de existência formam um circuito, de tal maneira que trocam de papel constantemente e se tornam indiscerníveis.

Outra característica apresentada por Deleuze é a narração que, no regime orgânico, é verídica, com o tempo sendo apresentado indiretamente, dependendo do movimento para existir. No outro regime, o que ocorre é o desmantelamento do esquema sensório-motor e, com isso, as anomalias do movimento, que antes não passavam de erros, tornam-se essenciais, uma vez que o que importa não é mais o encadeamento de ações e o movimento, mas a apresentação direta do tempo. Os personagens não precisariam mais agir, apenas enxergar o que há, signos óticos e sonoros puros.

15 TESNIÉRE, 1965, p. 102.

16 DELEUZE, 1990, p. 156.

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É a condição dostoievskiana como Kurosawa a retoma: nas situações mais urgentes, O Idiota sente a necessidade de ver os dados de um problema mais profundo que a situação, e ainda mais urgente (do mesmo modo na maioria dos filmes de Kurosawa). Porém, em Ozu, no neo-realismo, na nouvelle vague, a visão não é mais sequer um pressuposto acrescido à ação, uma preliminar que se manifesta como condição, ela toma o lugar e faz as vezes da ação.17

Em oposição à narração verídica, Deleuze chama esse tipo de narração de falsificante, sendo que o falso aqui se refere não à mentira ou ao engano, mas a verdades possíveis, a virtualidades que complexificam a estrutura de mundo em que nos encontramos.

Enquanto a narração verídica remete a um sistema de julgamento, com conexões legais e um tempo cronológico, e a uma forma de verdadeiro que busca a identificação de um personagem (eu=eu), a narração falsificante quebra esse sistema, afetando os envolvidos e sempre se transformando a partir de lugares desconectados e de um tempo descronologizado. Nesse novo tipo de narração, podemos dizer que eu=outro, porque a potência do falso remete a uma multiplicidade de experiências e configurações de sentido, muito além do mero reconhecimento, colocando, “[...] no presente, diferenças inexplicáveis; no passado, alternativas indecidíveis entre o verdadeiro e o falso”.18 Nesse tipo de narração, o falsário torna-se o personagem por excelência, inseparável de uma série de outros falsários nos quais ele se metamorfoseia. Ao comentar Verdades e Mentiras (1973), o célebre filme de Orson Welles, o autor relembra o artista Vermeer de Van Megeeren, o falsário que copiou seus quadros e o perito que fez a análise, para concluir:

O perito em verdade abençoa os falsos Vermeer de Van Megeeren precisamente porque o falsário os fabricou conforme seus próprios critérios, os do perito. Em suma, o falsário não pode ser reduzido a um mero copiador, nem a um mentiroso, pois o que é falso não é apenas a cópia, mas já o modelo. [...] A diferença entre o falsário, o perito e Vermeer é que os dois primeiros praticamente não sabem mudar. Só o artista criador leva a potência do falso a um grau que se efetua, não mais na forma, mas na transformação.

17 DELEUZE, 1990, p. 157.

18 DELEUZE, 1990, p. 161.

(21)

O artista é criador de verdade, pois a verdade não tem de ser alcançada, encontrada nem reproduzida, ela deve ser criada.19

Quanto à narrativa, o último conceito associado aos dois regimes, Deleuze a concebe como o desenvolvimento de dois tipos de imagens, as objetivas (quando o personagem é visto) e as subjetivas (quando o personagem vê), além das relações complexas que se estabelecem entre elas. A distinção entre objetivo / subjetivo e a busca de uma identificação do público com esse olhar claramente marcado do personagem, comuns ao regime orgânico das imagens, passam a não valer em um novo modo de narrativa. Chega-se, então, a uma simulação de narrativa, com a distinção entre objetivo e subjetivo se esvaecendo.

A simples contraposição entre ficção e documentário não nos ajuda a compreender o que o autor entende por narrativa simulante. Não basta eliminar a ficção, é preciso libertá-la do modelo de verdade que a penetra, permitindo que a função fabuladora20 seja encontrada.

Quando Perrault se dirige a suas personagens reais do Quebec, não é apenas para eliminar a ficção, mas para libertá-la do modelo de verdade que a penetra, e encontrar ao contrário a pura e simples função de fabulação que se opõe a esse modelo. O que se opõe à ficção não é o real, não é a verdade que é sempre a dos dominantes ou dos colonizadores, é a função fabuladora dos pobres, na medida em que dá ao falso a potência que faz deste uma memória, uma lenda, um monstro. [...] Então o cinema pode se chamar cinema- verdade, tanto mais que terá destruído qualquer modelo de verdade para se tornar criador, produtor de verdade: não será um cinema da verdade, mas a verdade do cinema.21

Nesse sentido, ao pensarmos o documentário, a construção do personagem como singularidade se dá no momento em que o próprio personagem se põe a fabular, a ficcionar

19 DELEUZE, 1990, p. 178.

20 Bergson explica a função fabuladora do seguinte modo: “Se a inteligência ameaçar [...] romper em certos pontos a coesão social, é preciso que, nesses pontos, haja um contrapeso à inteligência. Se esse contrapeso não pode ser o próprio instinto, dado que seu lugar está tomado pela inteligência, impõe-se que uma virtualidade de instinto, ou, se preferimos, o resíduo de instinto que subsiste em torno da inteligência, produza o mesmo efeito:

ele não pode atuar diretamente, mas, dado que a inteligência opera sobre representações, suscitará ‘imaginários’

que resistirão à representação do real e que conseguirão, por meio da própria inteligência, contrapor-se ao trabalho intelectual. Assim se explicaria a função fabuladora” (BERGSON, 1978, p. 99).

21 DELEUZE, 1990, p. 183.

(22)

sobre si mesmo, permitindo que seu devir surja e crie-se, assim, uma verdade. Nesse momento, ele deixa de ser simplesmente visto objetivamente ou de ver subjetivamente para fabular e se inventar, afirmando-se tanto mais real quanto mais inventa. Para Deleuze, o devir do cineasta e o do personagem já pertencem a um povo, o que caracteriza um discurso indireto livre22. Além disso, por se preocupar mais com os personagens do que com a própria história contada, a narrativa simulante, formada a partir da noção de que eu é outro, alcança a potência do falso e destrona a narrativa veraz. Quando comenta a obra de Jean Rouch, Deleuze desenvolve melhor esses conceitos:

A personagem está sempre se tornando outra, e não é mais separável desse devir que se confunde com um povo. Mas o que dizemos da personagem vale, em segundo lugar e notavelmente, para o próprio cineasta. Também ele se torna um outro, na medida em que toma personagens reais como intercessores e substitui suas ficções pelas próprias fabulações deles, mas, inversamente, dá a essas fabulações a figura de lendas, efetua a sua ‘acessão à legenda’. Rouch faz seu discurso indireto livre, ao mesmo tempo em que suas personagens fazem o da África.23

Ao distinguir os dois regimes de significação (orgânico e cristalino), Deleuze aponta-nos as possibilidades que se refletem na caracterização do personagem que, quanto mais fabula e inventa, mais real se torna.

Godard, que muitas vezes reconheceu sua dívida com Rouch, insiste cada vez mais nesse ponto: é preciso que a imagem compreenda o antes e o depois, que reúna assim as condições para uma nova imagem-tempo direta, em vez de ficar no presente ‘como nos filmes ruins’. É sob essas condições de imagem-tempo que uma mesma transformação arrasta o cinema de ficção e o cinema de realidade e confunde suas diferenças: no mesmo movimento, as descrições tornam-se puras, puramente óticas e sonoras, as narrações, falsificantes, as narrativas, simulações. É todo o cinema que se torna um discurso indireto livre operando na realidade.24

22 Segundo Reis e Lopes (1988), o discurso indireto livre “é um discurso híbrido, onde a voz da personagem penetra a estrutura formal do discurso do narrador, como se ambos falassem em uníssono, fazendo emergir uma voz ‘dual’. [...] O discurso indireto livre, ao proporcionar uma confluência de vozes, marca sempre, de forma mais ou menos difusa, a atitude do narrador em face das personagens [...]” (1988, p. 277).

23 DELEUZE, p. 185, 1990.

24 DELEUZE, p. 188, 1990.

(23)

É a partir desses diversos olhares acerca do documentário e das potencialidades da imagem que tentaremos entender como se dá a elaboração dos personagens em filmes não- ficcionais. Fizemos, até então, uma retomada de diferentes perspectivas e aportes teóricos que, de formas variadas, pensaram esse tipo de construção simbólica. No entanto, devemos, ainda, perceber como os conceitos já discutidos relacionam-se com as noções de singularidade e de ordinário, tal como as apresentaremos em seguida.

(24)

2. SINGULARIDADE

2.1. O ordinário

Michel de Certeau (1994) aponta para um movimento inaugurado nas ciências, artes e filosofia, a partir da modernidade, em que as musas e os deuses, figuras inspiradoras e arquetípicas, cederam lugar ao homem ordinário, representante da recente sociedade de massas. O Outro a que a cultura sempre se refere passa a ser, com isso, não mais o célebre ou o exótico, mas o anônimo. Essa inversão, no entanto, não foi feita sem que antes se passasse por uma elevação do próprio homem ordinário a uma instância universal e abstrata do saber, tratando-o como uma forma generalizante, semelhante às figuras anteriores, e não como uma nova perspectiva para o pensamento. Segundo Certeau, Freud, ao se voltar para o homem comum, também o fez aproximando-o de um Deus, procurando, assim, legitimar um saber particular e, pela generalização, validá-lo por toda a história. Mais tarde, no desenvolvimento de seus estudos, o próprio Freud criticou sua teoria, justamente por esse motivo.

Esse movimento só vai se completar de forma mais sólida quando o trivial e o cotidiano deixarem de ser o objeto do discurso para se tornarem seu lugar. O homem ordinário transforma-se em narrador, definindo “[...] o lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento”.25 Essa operação, entretanto, não é radical, uma vez que o que importa não é falar sobre o ordinário, indizível para o autor, ou estar em seu lugar, o que, para Certeau, seria falsa mística, mas permitir uma aproximação de fronteiras entre os

25 CERTEAU, 1994, p. 63.

(25)

procedimentos de análise e esse espaço discursivo da trivialidade. Ao falar desse processo, o autor pontua:

Mesmo que seja aspirada pelo rumor oceânico do ordinário, a tarefa não consiste em substituí-la por uma representação ou cobri-la com palavras de zombaria, mas em mostrar como ela se introduz em nossas técnicas – à maneira como o mar volta a encher os buracos da praia – e pode reorganizar o lugar de onde se produz o discurso.26

A opção pelo ordinário significa a recusa da fala do especialista ou do perito, chancelando, dessa forma, um processo em que a repetição comporta a diferença. O familiar e o estranhamento estão conectados nesse contexto e faz-se uma escolha pela imanência e pela imersão no cotidiano, sem nenhuma forma de transcendência. Certeau continua suas reflexões discutindo os conceitos do filósofo Wittgenstein que, numa tentativa de trazer a linguagem para seu uso ordinário, fez uma crítica radical à figura do perito, elemento que “[...] se pronuncia em nome do lugar que sua especialidade lhe valeu”.27 Para Wittgenstein, o filósofo não seria capaz de se tornar um perito da linguagem, pois está dentro dela, não podendo, então, referir-se a nada fora desse domínio. Nos escritos desse autor, a linguagem é apresentada como algo verdadeiramente real, não sendo possível a posição de um observador que, de um ponto distante e com um saber específico, a analisaria, revelando, assim, seu papel fundamental em nossa historicidade e em nossa própria constituição como seres humanos.

Segundo o filósofo, estaríamos como que imersos na linguagem ordinária e só conseguiríamos apreendê-la como um conjunto de práticas em que estamos envolvidos e implicados.

Não é mais a posição de profissionais, supostamente cultos entre selvagens, mas aquela que consiste em ser um estrangeiro na própria casa, um

‘selvagem’ no meio da cultura ordinária, perdido na complexidade do que se ouve e do que se ouve comumente. E como ninguém ‘sai’ desta linguagem, nem pode encontrar outro lugar de onde interpretá-la, não há, portanto, interpretações falsas e outras verdadeiras, mas apenas interpretações ilusórias. Em suma, não existe saída, e apenas o fato de se ser um estranho dentro mas sem fora, e na linguagem ordinária, resta ‘lançar-se contra os

26 CERTEAU, 1994, p. 64.

27 CERTEAU, 1994, p. 67.

(26)

seus limites’ – situação próxima da posição freudiana, com uma pequena diferença: Wittgenstein não toma como referência um inconsciente para designar esta estranheza em si.28

A perspectiva desse filósofo, retomada por Certeau, apresenta pontos em comum com a discussão encabeçada por Agamben (1993), bem como elementos discordantes. Em seu livro A comunidade que vem, esse autor desenvolve o conceito de singularidade que será, em breve, por nós apropriado.

2.2. O qualquer

Qualquer é uma semelhança sem arquétipo, isto é, uma Idéia.29

Essa figura do um qualquer é constituída por uma indiferença entre o comum e o próprio, excluindo a antinomia entre o individual e o geral, originada na própria linguagem, conforme escreve Agamben:

[...] o inteligível, segundo a bela expressão de Gersonide, não é um universal nem um indivíduo enquanto incluído numa série, mas a ‘singularidade enquanto singularidade qualquer’. Nesta, o ser-qual é tomado independentemente das suas propriedades, que identificam a sua inclusão em um determinado conjunto, em determinada classe (os vermelhos, os franceses, os muçulmanos) – e considera-se que ele não remete para uma outra classe ou para a simples ausência genérica de pertença, seja ela qual for, mas para o seu ser-tal, para a própria pertença.30

O ser qualquer livra-nos do confronto entre o caráter inefável do indivíduo e o universal, a partir da contradição firmada quando pensamos que o ser-dito, também chamado

28 CERTEAU, 1994, p. 73.

29 AGAMBEM, 1993, p. 41.

30 AGAMBEM, 1993, p. 12.

(27)

de ser-na-linguagem, propriedade fundadora de possíveis pertenças (o ser-dito amarelo, francês, pássaro), é capaz de colocar em cheque essas mesmas condições. Agamben postula que o qualquer surge em um paradoxo da própria linguagem, evidenciado pelas expressões não-predicativas, aquelas que definem um conjunto, mas, ao mesmo tempo, fazem parte dele, quebrando o esforço tipificador dos lógicos e de seu pensamento. Inicialmente, o autor explica que Russel identificou certas expressões, tal como ‘todos’, ‘cada um’ e ‘qualquer’, que produziriam antinomias ao nomear classes. No entanto, Agamben pontua que essas palavras são muito mais numerosas do que as originalmente elencadas pelos lógicos, já que, na verdade, todas as expressões, ou quase todas, podem referir-se a membros de sua extensão ou também a si próprias, selando, assim, uma situação paradoxal. O ser-na-linguagem é a expressão não-predicativa por excelência, na medida em que denota uma classe e, simultaneamente, diz respeito a si mesmo.

Para solucionar essa contradição imanente, Agamben volta-se para uma teoria das idéias. Segundo o autor, a idéia de uma coisa é a própria coisa, pois exprime-se e é recuperada apenas por meio de uma operação anafórica, puro ser-dito.

Qualquer é a figura da singularidade pura. A singularidade qualquer não tem identidade, não é determinada relativamente a um conceito, mas tampouco é simplesmente indeterminada; ela é determinada apenas através da sua relação com uma idéia, isto é, com a totalidade das suas possibilidades.31

Para tentarmos entender melhor o conceito de singularidade, poderíamos pensar no rosto humano que, ao mesmo tempo, aponta para o universal por meio de seus traços sempre semelhantes à espécie, mas também para o individual e o próprio, constituindo-se em uma forma de hiato entre esses dois pólos. Essa dupla face, no entanto, é percebida como indiferente e não como um traço característico pontual.

31 AGAMBEM, 1993, p. 53.

(28)

[...] o rosto humano não é nem a individuação de uma facies genérica nem a universalização de traços singulares: é o rosto qualquer, no qual o que pertence à natureza comum e o que é próprio são absolutamente indiferentes.

[...] a passagem da potência ao acto, da forma comum à singularidade, não é um acontecimento cumprido de uma vez por todas, mas uma série infinita de oscilações modais.32

Nessa perspectiva, a singularidade destaca-se, justamente, por não ter particularidades observáveis, que possibilitariam o enquadramento do ser em um grupo específico, como, por exemplo, o conjunto das donas-de-casa, dos excluídos, dos artistas, etc.

O um qualquer é uma estrutura completa e complexa, representada na literatura por homens cinza, sem particularidades, como no célebre texto de Musil (O homem sem qualidades) ou na figura de Bartleby, concebida por Melville. O um qualquer dá nome e, ao mesmo tempo, está dentro do conjunto denotado.

Michael Hanke (2004), ao escrever acerca do romance de Musil, explica que esse livro conseguiu destituir a ontologia substancialista clássica por meio da ausência de qualidades. O autor esclarece que, segundo essa corrente filosófica, o mundo constitui-se por coisas diversas que são determinadas por qualidades e interligadas por múltiplas relações.

Além disso, cada ente, ou seja, tudo o que é ou pode ser, diferencia-se em dois aspectos.

Primeiramente, por meio de sua essência (o que é). Em seguida, por sua existência (o fato que é). Sendo assim,

Essa ontologia substancialista, defendida por Platão e Aristóteles e levada adiante por Descartes e Hegel, reconhece as substâncias como núcleos da realidade do mundo. A essas substâncias atribuem-se qualidades, isto é, as substâncias servem como substratos ontológicos para suas qualidades (a essência, Wesen). Surge daí a descrição do mundo nos moldes do esquematismo essencialista da metafísica ocidental e seu desdobramento como cosmos ou ordo, começando pelas substâncias sensíveis e acabando no ente supremo, que é Deus.33

32 AGAMBEM, 1997, p. 23.

33 HANKE, 2004, p. 129.

(29)

Todo esse projeto filosófico é colocado abaixo pelo livro de Musil e, da mesma forma, pelas postulações de Agamben. Segundo esse autor, a transcendência, ao invés de uma utopia a ser alcançada, é inerente ao próprio ter-lugar das coisas, pura imanência. A singularidade, nesse contexto, não é constituída de forma abrupta, mas pelo que o filósofo chama de uma série de oscilações modais geradoras, em uma troca reversível e recíproca, do ser qualquer. Ao contrário da cisão entre essência e existência, promovida pela ontologia ocidental, poder-se-ia pensar no ser em sua emergência (manare), um ser que é o seu modo de ser, e não de uma forma ou de outra. Mesmo permanecendo singular e não indiferente, como coloca o autor, é múltiplo e valeria por todos. Essa maneira emergente é o lugar da singularidade qualquer.

Ao debruçar-se sobre a figura de Bartleby, Agamben explica que a “potência suprema” tanto pode a potência quanto a impotência. O personagem de Melville escreve, segundo o autor, sua potência de não escrever. Retomando Aristóteles, Agamben postula que o pensamento é também potência pura, na medida em que pode não pensar. Graças a essa potência, ele pode virar-se para si próprio e ser pensamento do pensamento. Peter Pál Pelbart (2000) também analisa o personagem escriturário, a partir da perspectiva deleuziana. Segundo o autor, a expressão I would prefer not to – Eu preferiria não, proferida pelo copista ao longo do romance, cria uma força de neutralidade ao cavar uma zona de indiscernibilidade entre o preferível e o não-preferido. Sendo assim, o neutro torna-se uma estratégia para se escapar do sentido. Também em Musil, há um apagamento que engendra novas singularizações, uma vez deslocados os códigos cristalizados, gerando uma espécie de resistência passiva que coloca o mundo a correr.

O nada de vontade de Bartleby torna-se, então, uma estratégia contra os clichês que regulam nossas maneiras de ver o mundo. Segundo Deleuze, a expressão pronunciada

(30)

pelo personagem instaura na própria língua uma espécie de língua estrangeira e, ao fazer isso, confronta toda a linguagem com o silêncio. Além disso,

[...] desarticula os atos de fala segundo os quais um patrão pode comandar, um amigo benevolente fazer perguntas, um homem de fé prometer. Se Bartleby recusasse, poderia ainda ser reconhecido com um rebelde ou revoltado, e a esse título desempenharia um papel social. Mas a fórmula desarticula todo ato de fala, ao mesmo tempo em que faz de Bartleby um puro excluído, ao qual já nenhuma situação social pode ser atribuída. É o que o advogado percebe com terror: todas as suas esperanças de trazer Bartleby de volta à razão desmoronam, porque repousam sobre uma lógica dos pressupostos, segundo a qual um patrão ‘espera’ ser obedecido, ou um amigo benevolente, escutado, ao passo que Bartleby inventou uma nova lógica, uma lógica da preferência que é suficiente para minar os pressupostos da linguagem.34

Pelbart (2003) pergunta-se, ainda, como desafiar as instâncias que expropriam o comum e que o transcendentalizam. Para o autor, na esteira do pensamento de Agamben, seria esse o papel da singularidade qualquer, que não reivindica uma identidade nem faz valer um liame social, constituindo uma multiplicidade inconstante.

A singularidade qualquer, que quer apropriar-se da própria pertença, do seu próprio ser-na-linguagem, e declina, por isso, toda a identidade e toda a condição de pertença, é o principal inimigo do Estado.35

A partir dessas reflexões filosóficas, podemos, então, chegar ao conceito de singularidade tal como o estamos utilizando neste estudo, que se confunde, em certa medida, com o de um qualquer. A singularidade não deve ser pensada como uma essência inerente a cada indivíduo, recalcada por regras e comportamentos sociais, a ser alcançada ou não pela representação. Ao contrário, a singularidade é uma figura da linguagem e só existe nela, ou seja, é construída por signos, sejam eles sonoros, visuais, verbais, quaisquer. Em nosso caso, a materialidade simbólica do documentário articula estratégias de representação que podem apresentar uma singularidade ou traços dela. Mas o que seria, enfim, esse conceito? Talvez, a

34 DELEUZE, 1997, p. 85

35 AGAMBEM, 1993, p. 68.

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