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4. VIDAS ORDINÁRIAS

4.3. Santa Cruz

Santa Cruz, rodado em 35mm, é o quinto filme da série 6 Histórias Brasileiras,

um projeto de co-produção do Canal GNT e da Videofilmes, cujos episódios foram desenvolvidos livremente por cada um dos diretores convidados. Esse documentário é estruturado em três blocos, cada um representando um conjunto de três meses da construção da igreja evangélica Jesus é o General, em um subúrbio do Rio de Janeiro, sendo que há uma pequena introdução antes do início do primeiro módulo. A tabela abaixo ajuda-nos a perceber melhor o desenho completo do filme. Mais à frente, nos deteremos nos momentos mais significativos para a pesquisa.

Bloco Título que inicia o bloco

Descrição

Santa Cruz Narrador apresenta o pastor Jamil, o Bairro Parque Florestal e as famílias que ali habitam. Em off, é feita a pergunta que o filme pretende investigar: Por que uma doutrina que prega a abstinência de tantas coisas atrai, justamente, os que já têm tão pouco?

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A história de Zezé Apresentação da personagem e explicação do motivo que a levou a entrar para a igreja: alcoolismo na família.

Retratos: Os membros da congregação aparecem como em um retrato, encarando a câmera, e alguns deles, recitando orações. A trilha sonora, uma composição original de Vicente Sálvia / Cardantec, incide ao fundo e a legenda mostra o nome e a profissão dos personagens.

01 Os primeiros 3 meses A história de

Veronílson

Veronílson queria ler a palavra de Deus e, por sua causa, foi montada uma turma de alfabetização na igreja.

A missionária Em off, o pastor explica que a missionária é encarregada de levar as convicções do grupo para outros lugares. Apresentação de Dona Noêmia.

O Espírito Santo se manifesta

Imagens do culto. Obreiros em transe e explicação do pastor sobre os diversos dons.

Retratos: outros partícipes da congregação.

02 Os 3 meses seguintes

O pastor faz planos O pastor discute com outro membro da igreja os planos de construção da nova sede. Paralelamente, vemos um encontro corriqueiro entre vizinhas.

A história de Carmem Apresentação da personagem, que acredita na cura de sua doença pela fé.

Jardim Espírito Santo (outra área de invasão)

Vemos as lamacentas ruas do bairro vizinho ao Parque Florestal.

O pastor tem uma revelação

Jamil procura um terreno que lhe apareceu em um sonho como sendo o ideal para a construção de uma nova igreja. As imagens da busca são alternadas com outras que mostram o entregador de gás Jorge encarando a câmera.

A história de Rizoneide Rizoneide explica que entrou para a igreja por ter sido acolhida pelo pastor, o que afastou sua tristeza diária. Por uma fresta, vemos a movimentação ilegal no bairro.

Um pouco mais tarde Um homicídio no Bairro Parque Florestal, ao lado da igreja. Retratos: novos membros da congregação.

03 Os últimos 3 meses

Barra da Tijuca Veronílson aparece no trabalho e, depois, em casa, preparando-se para o batismo.

O dia do batismo Ônibus leva congregação para ser batizada nas águas de um rio. Na mesma noite Recebimento do certificado de batismo.

O primeiro dia como missionária

Carmem viaja para arrebatar mais fiéis.

Esses blocos bem definidos cronologicamente organizam a estrutura do filme, com a ajuda de subdivisões internas. Os personagens, no entanto, não se restringem ao momento em que são apresentados por intertítulos, aparecendo em outras fases do documentário, de maneira até mais impactante em alguns casos.

Dona Noêmia, que começa entoando cânticos religiosos na introdução e surge mais tarde em A missionária, aparece sempre ao lado do marido, uma figura tímida e enigmática que porta grossos óculos de grau em seu rosto quase sempre cabisbaixo. Ao contar sua função dentro da igreja, Dona Noêmia, com voz sóbria e segura, explica o que faz, sendo que a câmera percebe o marido ao lado e alterna planos da narradora e de seu ouvinte / testemunha durante todo o depoimento. Ela conta sua história de pobreza e alcoolismo, quando, ainda sem pronunciar qualquer frase, vemos seu marido soltar um longo suspiro. É nesse suspiro que o sofrimento já vivido parece emergir, mais do que no próprio relato. Por um breve momento, é nesse gesto que apreendemos toda a história do casal, quando o marido fala, sem palavras, de sua dor. Esse bloco termina com Dona Noêmia de braços cruzados, lembrando-nos um general, atributo que é concedido, no título da igreja, a Jesus (Casa de Oração Jesus é o General). O marido continua presente, afastado, cabisbaixo, mas presente.

Zezé, também casada, é a próxima personagem apresentada e ficamos sabendo que é recente sua maior proximidade com o marido, alcoólatra inveterado, como comprovado por uma fotografia em que aparece fraco e visivelmente alterado. Foi por esse motivo que ela procurou a igreja, em busca da ajuda e do apoio que não conseguia na família ou com amigos. Acolhida pelo pastor, acabou levando junto o esposo, que hoje está recuperado e voltou a trabalhar.

Quando Zezé começa a contar sua história, já havíamos lhe escutado minutos antes, ao falar da abertura da igreja no bairro, logo na introdução do filme. Imitando o canto dos grilos e o coaxar dos sapos, únicos ouvintes da pregação do pastor Jamil no início da congregação, percebemos, desde então, seu lado cômico e extrovertido. Mas sua aparição mais significativa no documentário acontece, de forma singela, no terceiro bloco, logo após a passagem que apresenta Veronílson no trabalho. Zezé está no Parque Florestal e nos mostra onde moram os convertidos do bairro, evidenciando a quantidade de pessoas que fazem parte

de sua congregação e dizendo que tudo mudou muito, desde o início dos cultos, inclusive a postura dos maridos em casa. Quando ela começa a relatar, como quem conta um segredo e foge do roteiro, a maneira como o seu marido, e outros, ficaram mais meigos, ela salta de um universo de informações técnicas (quem mora onde), dados que o documentário parecia lhe requerer, para o terreno do afeto. Ao fazer isso, instala-se em uma zona suspensa, mesmo que por segundos apenas, pois a relação com o marido remete ao passado, fala do presente e do futuro, dimensões que se encontram quando ela diz que ela está agora mais feliz. É a partir dessas conversas que o diretor consegue extrair dos estados de fato traços de acontecimentos, por mais delicados que sejam, e construir figuras singulares. Ao deixar escapar sua vida amorosa, percebemos uma outra dimensão de Zezé, que, até então, não tinha sido apresentada. Ela aparece como mulher, faceta que se soma a seu lado maternal, religioso e social. Esse processo de elaboração dificulta seu enquadramento em categorias e sua tipificação, movimento que é evitado pelo diretor ao longo do documentário, ao se afastar, a todo tempo, do fácil caminho da estereotipagem pura e simples.

Em seguida ao intertítulo de Zezé, vemos um recurso de montagem que será utilizado ao longo do filme, quando os membros da congregação aparecem em uma espécie de retrato, alguns recitando orações, com a trilha sonora ao fundo. Esse bloco é apresentado sempre antes das indicações de tempo, como pode ser observado na tabela anterior. Além do nome de cada um, somos também informados sobre a profissão que exercem. Guardadas as grandes diferenças, como na passagem final de Les maîtres fous, de Jean Rouch, esses planos fazem alusão à realidade cotidiana dessas pessoas, para além da vida religiosa, que seria o tema central do documentário. Esses momentos adicionam arestas e facetas à elaboração dos personagens, contribuindo para o afastamento de uma caracterização meramente típica. O filme mostra, ainda, flagrantes da realidade cotidiana, cercando-os com o mundo do tráfico e da violência que lhes é familiar, mas que parece ser negado pelos próprios moradores. No

entanto, essas seqüências só aparecerão mais à frente, no segundo bloco, quando então nos deteremos sobre elas.

Voltando ao início do primeiro módulo, somos apresentados à história de Veronílson. O plano mostra uma aula de alfabetização acontecendo no barracão da igreja e o pastor explica que foi por causa desse membro da congregação que o ensino começou. Veronílson conta que se esforça para ler a palavra de Deus e, em um dado momento da aula, tenta entender o que está no quadro negro. A professora o encoraja a decifrar as sílabas e eis que, depois de um tempo em suspensão, o personagem descobre, entre gaguejos, que conseguiu ler a palavra mamão. É nesse momento, longe dos discursos evangélicos e envolvido em uma atividade comum, que percebemos Veronílson como um qualquer. Entendemos aí a sutileza do acontecimento captado, que extravasa o próprio plano e desloca a construção do personagem para um lugar da singularidade.

Ao final do primeiro bloco, O Espírito Santo se manifesta, o culto é mostrado mais apropriadamente. Os oradores aparecem rezando em voz alta, as pessoas choram, gritam, entram em uma espécie de transe, delírio. Aqui, já não importa mais a ação, os personagens vagueiam por esse universo que não sabemos se é real ou imaginário. São afetados pelo contato com uma transcendência na qual crêem e, ao mesmo tempo, nos afetam ao se transfigurarem para incorporar esse papel. Um depoimento do pastor fora do culto explica como são os dons de revelação e profecia que os obreiros, os mais íntimos de Deus, possuem. São então mostradas novas imagens da cerimônia e esses membros da congregação, que dirigem o culto com a ajuda de um microfone, são apresentados. Estão todos ainda em transe. Mostra-se, novamente, o pastor Jamil na sala vazia, contando que ainda não recebeu nenhuma dádiva, mas que espera, calmamente, com a certeza de que um dia ela virá.

Do lado de fora da igreja, encontramos um senhor bem arrumado e robusto que diz estar vindo do trabalho. Para nossa surpresa, já o conhecemos. Há, então, um corte que

revela tratar-se do marido de Zezé, agora afastado das bebidas. Entrando na igreja lotada, ouvimos uma ladainha que ainda vamos escutar diversas vezes, cujo refrão repete a frase: “Se Deus é por nós, ninguém será contra nós!” Ao fim da cerimônia, as pessoas voltam para casa. É o fim de mais um culto.

O encontro dos fiéis impressiona pela entrega dessas pessoas à sua religiosidade. É nessa hora que percebemos a ligação em comum entre todos os personagens, além da proximidade local e da situação financeira precária. O culto é um palco para que as frustrações, esperanças e convicções aflorem, dando a eles uma voz ativa que não lhes é permitida socialmente. Dentro daquela igreja, eles são os protagonistas e não os agentes periféricos da vida social. Será o documentário também um palco para que esses, com tão pouca voz, se expressem? Caso seja assim, como fazer com que os depoimentos não se prendam a um discurso institucionalizado e já engessado? É essa a grande questão que procuramos entender.

Como exemplo de uma seqüência que escapa de uma possível categorização, podemos mencionar a passagem seguinte, no início do segundo bloco, quando, no momento em que o pastor faz as contas para a construção de uma nova sede da igreja, com a ajuda de Antônio (obreiro da igreja e também mestre de obras), uma mulher conversa com Rizoneide. Em montagem paralela, as duas seqüências são alternadas e o que nos prende não se encontra na discussão sobre a construção da igreja, pretenso tema central do documentário, mas na conversa banal entre as duas vizinhas. A mulher conta que um cachorro a mordeu, pergunta sobre o filho de Rizoneide, que esteve internado, mas já voltou do hospital, ri da mordida que levou. Tendo a igreja como pano de fundo, nesse momento, os personagens são construídos como singularidade, uma vez que aí não se busca um julgamento, uma verdade oculta ou a identificação de tipos. Ao contrário, são apresentados de forma corriqueira, comum, ordinária,

adquirindo posturas que não necessariamente são configuradoras de um real mais ou menos verdadeiro, mas que revelam verdades possíveis e uma complexidade própria do singular.

Após uma breve visita a outro bairro, conhecemos a história de Carmem, mais um membro da congregação. Ela caminha com dificuldade devido a um problema nos pés que, segundo os médicos, não tem cura. Conta que abriu mão da vaidade para se tornar cristã, alerta para a importância da honestidade em seu depoimento no culto, diz que tirou o ‘gato’ do relógio de luz de sua casa por causa de sua religiosidade. Surge a imagem do equipamento de medição de sua casa e o que nos captura a atenção é uma etiqueta colocada dentro do aparelho, em que está impresso o Salmo 91 da Bíblia, já diversas vezes citado pelos fiéis como um salmo de extrema força. Em troca da vida cristã que leva, ela espera pela cura de sua doença, o que, para ela, deverá acontecer logo após o batismo que se aproxima. Sua convicção ferrenha será testada nesse momento final, ao qual nos reportaremos mais à frente.

No próximo intertítulo, Jardim Espírito Santo(outra área de invasão),é utilizada, mais uma vez, a montagem paralela, com a alternância de imagens do pastor caminhando e de Jorge, membro da igreja e entregador de gás. O pastor conta que teve uma revelação, com a ajuda de anjos, e que nesse bairro em que se encontra está o terreno que deve comprar para construir uma filial da congregação. Entrecortando a procura do terreno, temos um plano médio de Jorge, sentado em seu carrinho de gás, olhos fixos na lente, o que cria uma atmosfera um tanto surreal. A cada vez que aparece, o plano de Jorge se fecha mais. Ele está sempre encarando a objetiva e como que encarnando uma persona para a câmera, influenciando e sendo influenciado pelo aparato cinematográfico. Ao final, o pastor não encontra o terreno, mas encontra possíveis novos membros para sua congregação.

Após mostrar um culto de agradecimento, realizado na casa de quem recebeu uma graça e caracterizado como uma reunião social pelo narrador do filme, vemos, já de dia, Zezé com seu filho excepcional e uma vizinha. A aparente calma do bairro só se abala ao vermos

um grupo de rapazes, que aparecerão também em outros momentos, manuseando o que parece ser algum tipo de droga. Aqui, a realidade do tráfico e da violência parece não deixar de emergir e reaparece, novamente, quando Rizoneide conta um pouco de sua história. No final de seu depoimento, a câmera deriva e captura, por uma fresta, um homem na mesma situação dos anteriores, bem ao lado do templo. Um pouco mais tarde, como é assinalado por mais um intertítulo, uma tomada mostra as pessoas paradas perto da igreja, todas com o semblante sério e olhando fixamente em uma direção. Não sabemos o que se passa, apenas que algo acontece. Um acontecimento. Escutamos o choro de uma mulher. A câmera então revela um amontoado de gente ao redor de um corpo no chão. A voz em off do pastor explica que um rapaz foi morto em frente à igreja. Vestígios de um acontecimento, no entanto, restam apenas nas feições das pessoas, pois, quando o corpo é filmado na rua, já nos escapou. Está antes desse acidente e, de certa forma, se prolonga no choro em off, nos rostos encarando algo que não vemos. O real irrompe de forma agressiva, interrompendo qualquer tentativa de roteirização, ao impor-se sobre a história que é contada (a criação da igreja evangélica) e mesclando-se a ela. De longe, os personagens observam essa realidade que lhes é tão próxima, já de certa maneira acostumados às conseqüências da violência urbana, sendo afastados, por força do acontecimento, do discurso religioso que proferem ao longo do filme, uma vez que, nesse momento, também são pegos de surpresa.

No último bloco, vemos o pastor chegando de bicicleta, com uma latinha de tinta pendurada no guidom, e inicia-se a pintura da igreja. Todos olham e palpitam sobre as cores. Com o serviço pronto, começa mais um culto. Veronílson, sozinho, ensaia em casa uma música que fala de auto-estima. É chegada a hora do batismo, ápice da trajetória da casa de oração Jesus é o General. Um ônibus aproxima-se de um riacho e todos começam a se paramentar, vestindo túnicas brancas. Há mais um momento de orações e Veronílson canta para a congregação a canção ensaiada. Todos repetem o hino, que parece aproximá-los ainda

mais. Eles descem e entram no rio, um por um, para a bênção. A trilha sonora acompanha, ao fundo, as breves palavras do pastor e o batismo de cada um, bem como as variadas reações. Do choro ao riso, da calma ao transe delirante. Carmem, que sofria para se movimentar, emerge da água saltando e se movimentando o tempo todo. Ela sobe a ladeira sozinha, sem a ajuda de ninguém, o que seria inconcebível anteriormente, e, de alguma forma, parece-nos estar mais livre como personagem do que antes, quando representava um discurso evangélico duro e bem decorado. Durante toda essa seqüência, não nos interessa mais se o que as pessoas personificam na frente das câmeras é real ou imaginário, pois já não podemos distinguir. Aqui nos lembramos de uma passagem em Deleuze (1990), quando esse autor comenta a quebra do sistema de julgamento instituído pelo regime cristalino das imagens:

Mas não se trata de julgar a vida em nome de uma instância superior, que seria o bem, a verdade; trata-se, ao contrário, de avaliar qualquer ser, qualquer ação e paixão, até qualquer valor, em relação à vida que eles implicam. O afeto como avaliação imanente, em vez do julgamento como valor transcendente: ‘gosto ou detesto’, em vez de ‘julgo’.47

O filme procura, em diferentes momentos, balizar-se por esse conceito. Um tema polêmico – a religião – é investigado com atenção pelo diretor, mantendo-se um desejo de entender, mais do que de julgar. Com extrema delicadeza, os personagens não são resumidos a fanáticos religiosos ou ignorantes apegados à fé pelas mazelas da vida, como poderia acontecer, facilmente, caso fosse trilhado o caminho da estereotipagem. Nem tampouco são transformados em alvos de uma piedade ou vitimização. Ao contrário, é justamente por evitar uma postura por demais opinativa que o documentário provoca deslocamentos e permite que a diversidade e a complexidade de seus personagens apareçam, sutilmente, em movimentos mais sugestivos do que assertivos. A singularidade dessas figuras atravessa seus depoimentos e falas, irrompendo no afeto que ultrapassa a lógica, na fé que é sentida por cada um deles e

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em suas facetas variadas, culminando em uma sensação de que não sabemos tudo o que se passa, não temos todas as noções que pensávamos ter. Não podemos, portanto, julgá-los.

Na mesma noite do batismo, eles recebem o certificado e alguns obreiros são ordenados. Em meio a muita emoção, ouvimos novamente a ladainha: “A vitória é nossa, pelo sangue de Jesus. Se Deus é por nós, ninguém será contra nós.” Repetidamente, eles entoam esses versos e nos vemos diante de uma imagem cujo prolongamento motor já não tem tanta importância. O documentário termina com Carmem indo trabalhar como missionária, pregando suas crenças no metrô da cidade. O trem parte e eles continuam a cantoria religiosa. Os créditos surgem e Veronílson aparece dizendo: “Que assim seja.” É o fim.

Analisando o documentário como um todo, percebemos que é na conversação e nos pequenos gestos que são construídos os personagens. O cineasta não foi em busca de tipos ou categorias, mas de um entendimento sobre essas pessoas e suas vidas. Os momentos de rito formam um circuito em que o real e o imaginário tornam-se indiscerníveis, importando apenas o devir, em imagens sonoras e óticas puras em que os personagens vagueiam, sentem, deliram, desejam. Vemos a proliferação de figuras cuja multiplicidade facetada foge do simples reconhecimento, revelando verdades que vão sendo construídas durante os próprios depoimentos, fugindo de um roteiro possivelmente já interiorizado aos discursos de cada um. Traços do acontecimento e a construção singular dos personagens aparecem de forma sutil e delicada (como na presença calada do marido de Dona Noêmia, nas revelações amorosas de Zezé, ou nas feições dos fiéis diante da morte do rapaz), carregando toda a sua força, extravasando o próprio quadro, o próprio tempo.

Os discursos testemunhais sobre a religião, já cristalizados, são colocados em um

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