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4. VIDAS ORDINÁRIAS

4.4. Esta não é a sua vida

Esta não é a sua vida é um curta-metragem sobre a pessoa comum, anônima e ordinária. Começamos por ver Noeli, a personagem principal, sentada em um sofá e encarando a câmera, dentro de um estúdio. Em off, ouvimos sua voz recitando versos infantis, imagem que é substituída pela vinheta de abertura, composta por formas coloridas em um fundo preto, simulando pedaços de espelhos partidos, que revelam partes de rostos humanos na medida em que se movimentam pela tela. A cada momento, um fragmento dá lugar a outro e ouvimos a trilha sonora e a narração abaixo:

“Eu não sei quem você é. Eu não tenho como saber quem você é.

Eu nunca saberei quem você é. Você está em casa, vendo TV. O seu anonimato é a sua segurança.

Não se preocupe. Esta não é a sua vida.”

Essas frases se dirigem diretamente aos espectadores e enfatizam que qualquer processo de identificação constituído a partir do filme é mera ilusão, criando, assim, um afastamento que permitirá um tipo de envolvimento de outra natureza, mais próximo de um deslocamento, provocado ora pela ironia, ora por uma espécie de poetização do relato de Noeli, quando o vivido é reencenado. Logo após, é inserido o letreiro com o título do filme, justamente quando a trilha musical chega a seu ápice. Vemos, em seguida, vários planos em movimento de travelling, todos da esquerda para a direita, mostrando diversas pessoas, cada uma delas com uma narração específica. O quadro abaixo representa essa seqüência:

Imagem Narração

Cidade ---

Homem encarando a câmera “Este homem não come vidro.”

Cidade ---

Mulher estendendo roupas em varal “Na última quarta-feira, esta mulher não deu a luz a sêxtuplos.”

Cidade ---

Menina sentada numa escada “Esta criança jamais sobrevoou o Pólo Norte.” Homem varrendo um passeio, à frente de uma

edificação histórica

“Este homem não utiliza esteróides anabolizantes.”

Mulher segurando um bebê “Esta mulher tem 25 anos e ainda não é avó.” Borracheiro, ao lado de pneus empilhados “Este homem não é sósia do David Bowie.” Senhora florista, sentada ao lado de sua banca “Esta senhora não matou a mãe e o pai a golpes

de machado.”

Silhuetas de pessoas em um ponto de ônibus “Gente comum. Eles não têm nome.”

Essa seqüência é extremamente significativa, pois já aí percebemos o tom irônico do documentário e as questões a serem trabalhadas mais à frente. Imagens do homem comum são colocadas em choque com a narração do grotesco, do exótico ou da catástrofre, temas que, normalmente, são os responsáveis por permitir que essas figuras ordinárias tenham espaço nos meios de comunicação. Ao fazer isso, o filme questiona um determinado tipo de representação midiática, exemplificada, principalmente, pelo jornalismo sensacionalista e por programas de entretenimento e futilidades, que insistem em apresentar excentricidades, incapazes que são de construir personagens singulares, uma vez que dependem da espetacularização do real e da tipificação dos personagens para se constituir.

Na seqüência seguinte, encontramos diversas imagens de diferentes pessoas sentadas no sofá do estúdio, todas apresentadas em movimentos de travelling, ora em uma direção, ora em outra. A câmera pára quando chega a um senhor que, como os anteriores, encara as lentes. Em seguida, o movimento alternado para um lado e para o outro da tela, à

medida que os cortes se sucedem, continua acontecendo, mas, agora, vemos números e tabelas intercalados com pessoas que caminham em um mercado de compras, ao som de estatísticas sendo proferidas ao fundo. Em off, ouvimos o narrador: “Números não comem, números não namoram, não trabalham, não sentem raiva. As pessoas têm nome. Qualquer pessoa.” Mais uma vez, tenta-se afastar os personagens de uma generalização ou tipificação. Isso se dá, primeiramente, quando as estatísticas são criticadas em prol da unicidade, por meio da ênfase na questão dos nomes. Além disso, opta-se pela não-espetacularização do ordinário, criticando a focalização nas bizarrices da vida humana promovida comumente pelos meios de comunicação de massa.

Em seguida, roletas de cassino são mostradas e, por fim, um círculo de metal comum a sorteios de loteria. É extraído um número do conjunto de bolas brancas que se movimenta na tela. Vemos, então, Noeli, a personagem principal, dizendo para a câmera o seu nome completo. Em off, o narrador continua: “Uma pessoa é escolhida ao acaso. Qualquer pessoa.” Essa passagem tenta apresentar os procedimentos metodológicos do documentário, que não sabemos, comprovadamente, terem sido utilizados. De qualquer maneira, isso pouco nos importa, pois não nos interessa se a explicação dada é verdadeira ou falsa, mas sim o papel que exerce no próprio documentário. Ao mostrar a escolha do protagonista dessa forma, o filme legitima a construção do personagem como singularidade, uma vez que a opção não teria sido feita unicamente por suas particularidades.

Em seguida, Noeli entra na residência de sua madrinha e a abraça, emocionada. Um homem lhe pergunta o que aconteceu e ela começa a contar sobre o encontro com o cineasta. Diz que estava no beco de sua casa quando foi chamada pela equipe. A partir daí, o que vemos são imagens feitas no momento do encontro e o som direto toma o lugar da narração em off para ouvirmos o primeiro questionamento do diretor: “A senhora já apareceu na televisão?” Diante de sua resposta negativa, Noeli conta que eles, então, perguntaram se

ela não gostaria de participar de um filme. Enquanto ela descreve o que fazia, onde estava, por onde passava, vemos sempre a imagem correspondente a seu discurso. O que poderia parecer redundante, é feito de maneira irônica, como uma reconstituição dos fatos que contribui para enriquecer ainda mais a crítica aos dispositivos telejornalísticos usuais. Ao final, vemos novamente Noeli com a madrinha, dizendo que revelou toda a sua vida para a equipe durante a entrevista feita no dia anterior.

Entra a trilha sonora e vemos o beco onde mora e, em seguida, sua casa por dentro. Seu depoimento começa em off, quando está mexendo no fogão, mas logo é sincronizado com sua imagem em uma cadeira, sentada de frente para a câmera. Ela conta que, quando era pequena, pensava em ser uma dona de casa, como é hoje, e ter um bom casamento. Ao dizer que não possui todos os bens materiais que desejava, Noeli não parece se abater, pois acaba concluindo que o amor é que faz a felicidade. Em seguida, já do lado de fora, ela diz que tudo lhe serve. Se alguém a manda para um lugar, ela vai e não se importa, pois é esse o seu jeito. Aparentemente um sujeito sem vontades, levado pelas circunstâncias da vida, a personagem principal entra em choque com representações espetacularizadas do homem ordinário e, assim, nos lembra Bartleby. Como o célebre personagem de Melville, esse nada de vontade, bem discutido por Peter Pál Pelbart (2000), pode ser entendido como uma estratégia contra os clichês, viabilizando a crença em um mundo de nós separado por essas estruturas da linguagem. Uma vida comum, uma mulher comum, um personagem singular. É justamente por não se fixar nas particularidades de Noeli que o documentário consegue construí-la como uma figura qualquer.

Abaixo, reproduzimos uma seqüência do filme que, como já mencionado anteriormente, utiliza a redundância entre imagem e som para criar uma fábula poética da vida de um qualquer.

Depoimento de Noeli Imagem Foi morar com a madrinha desde nova, pois a

mãe não tinha como criá-la.

Imagem simulando um retrato da família da madrinha.

Conta que chorou muito quando deixou a mãe. Zoom out mostrando uma senhora na sacada de uma varanda.

Ia de cavalo para a casa da madrinha. Foto de uma charrete antiga e imagens da casa vazia.

Ficou muito triste e gostava de ficar olhando para a estrada, esperando que a mãe fosse lhe buscar.

Noeli em uma janela, olhando para uma estrada.

Teve muitas saudades da mãe. (Entra a trilha sonora)

Ela encontra a mãe. Imagem das duas sentadas em cadeiras, olhando para a câmera.

Como podemos observar, a cada fala é inserida uma imagem correspondente, ilustrando o testemunho dado. No entanto, por mostrar exatamente o que é falado ou uma interpretação disso, o documentário cria, ainda, uma ambientação levemente cômica, satirizando um recurso comumente utilizado em telejornais e reportagens, mas de forma mais sensível e atenta ao que é relatado, construindo uma dramatização poética da experiência da personagem, reencenando o vivido com a ajuda da própria protagonista.

O mesmo procedimento é usado na seqüência seguinte, quando Noeli conta que passou a infância na casa da madrinha, levando uma vida comum. Ia para a escola, voltava para a lavoura, comia bergamota escondido do pai, brincava de boneca. A cada etapa relatada, uma imagem é associada, como se Noeli fizesse a reconstituição de sua vida de menina. Com isso, ela anda pela estrada, como se estivesse indo para a escola, tira leite de vaca, sobe em árvore de bergamota, brinca de boneca com a filha e, quando conta que apanhou do pai porque fazia com a amiga uma barriga falsa e fingia estar grávida, vemos a foto de um recém-nascido e de uma família.

Essas dramatizações da história de Noeli, recorrentes ao longo do documentário, parecem apresentar a vida da personagem como um pequeno conto, feito do que há de mais

prosaico, mas nem por isso banal. Seu relato curiosamente insípido transforma-se, a partir dessa conjugação de imagens, em algo romanesco, mas sem ser romanceado.

Em seguida, entra a trilha sonora e aparece uma foto da personagem quando jovem. Em off, ela conta do primeiro baile que freqüentou e, em seguida, que ficou noiva duas vezes, mas desmanchou porque descobriu que o pretendente não tinha caráter. Ela conclui, sentada de forma mais relaxada na cadeira, que são os bailes que estragam as pessoas. Continua o relato, lembrando-se de outra festa em que estava com o segundo noivo, como faz questão de ressaltar, e se encontrou com um homem que era por ela apaixonado, mas que não tinha a aprovação do pai. Daí surge a narração de uma cena de ciúmes, sem motivo algum, segundo ela justifica. No entanto, seus olhares parecem não coincidir com a rápida explicação dada.

Na próxima seqüência, com uma pontuação da trilha, somos levados a Porto Alegre e ficamos sabendo, pela voz de Noeli em off, que ela se mudou para essa cidade em 1980. Ela fala da época em que conheceu seu marido, funcionário de uma padaria, e, novamente, a vemos encenando suas idas ao estabelecimento para encontrar o novo pretendente. A personagem explica como foi o começo do namoro e diz que sua intenção era não ter nada sério com ele, apenas deixá-lo completamente apaixonado para depois ir embora. No entanto, percebeu que ele lhe interessava. Nesse momento, vemos um plano mais fechado de Noeli, ao contar que seu pai colocou empecilhos, pois era contra o casamento inter-racial e o namorado da filha era negro. Quando ela começa a falar da não-aceitação paterna em relação ao namoro com o rapaz negro, vemos uma imagem de um senhor branco, que poderia ser o pai, mas não sabemos, parado em frente à câmera, sorrindo. No momento em que ela explica o motivo, ou seja, explicita que seu marido é negro, a câmera faz um rápido movimento para a esquerda e mostra seu esposo, também sorrindo.

Ela conta, em seguida, que decidiu terminar o namoro, o que provocou intenso sofrimento no noivo. Ao pensar melhor, Noeli diz ter percebido que já havia feito de tudo um pouco na vida e, com isso, resolveu que era hora de parar e se casou. A trilha sonora volta e vemos fotos do seu casamento e imagens de seus filhos, terminando com uma gravação recente das crianças ao lado dos pais. Logo após, volta-se à textura televisiva e Noeli diz que, caso o marido decida largá-la algum dia, não poderá dizer que ela, a primeira mulher, o tratava mal.

Com sua família, Noeli aparece no estúdio, no mesmo sofá do início do curta-metragem. Em seguida, fica sozinha e diz que, se não tivesse tudo o que tem na vida, talvez fosse outra pessoa, pois gosta muito de viajar. Há um corte e ela aparece caminhando em uma rua de terra, nos fundos de sua casa, descrevendo em off sua vida cotidiana de dona-de-casa, da residência para o armazém e vice-versa. De volta ao sofá, ela se conforma, dizendo que Deus quis assim, mas que não é isso que ela quer. Ela queria crescer mais. Vemos aqui, pela primeira vez, um desejo explícito de Noeli, curiosamente, relacionado à sua participação no filme. A personagem se transforma e fabula ao longo do documentário. Logo no início, Noeli recita um poema, primeiramente em alemão e, em seguida, em português, que parece ilustrar essa situação. Seus versos dizem: “Eu sou pequena, você é grande. Me dá o meu presente que eu vou embora”. O presente que parece ter ganhado foi a participação no filme que, de certa forma, a tornou grande sem perder a pequenez.

Continuando, ela diz que, com esses poucos dias de participação nas filmagens, parece ter saído de um mundo para o outro. Sobre seu depoimento em off, vemos fotos da produção do documentário, da equipe, de Noeli sozinha e segurando a claquete do filme. Já de volta ao sofá, conta que fica preocupada em fazer o que é preciso, referindo-se à sua postura no filme, pois, para ela, ainda é difícil falar o português corretamente. Percebemos que ela está ciente de sua participação na construção de um discurso audiovisual e que sua

performance foi realizada, mesmo que inconscientemente, tendo em vista esse objetivo. Noeli reforça o depoimento anterior e diz que parece ter nascido de novo, pois está sentindo que deve começar sua vida novamente, da maneira que quer, se Deus quiser. Em seguida, vemos sua foto três por quatro, em preto e branco, e a câmera faz um movimento de zoom out, até que a tela se abre completamente e forma-se um mosaico de diversas fotografias semelhantes, cada uma de uma pessoa diferente. Em off, o narrador termina:

“Noeli tem 1,58 m, pesa 54 quilos. Noeli é dona-de-casa e tem dois filhos.

Desde criança, ela foi educada para ser dona de casa e ter filhos. Noeli tem 38 anos.

Eu não sei quem você é. Eu não tenho como saber quem você é.

Eu nunca saberei quem você é. Não se preocupe. Esta não é a sua vida.”

Assim termina o documentário, negando, novamente, qualquer identificação potencial que poderia estar sendo empreendida pelo espectador. Ao citar as particularidades de Noeli, o narrador enfatiza seu pertencimento a categorias diferentes, mas o filme como um todo também nos mostra que é impossível que ela faça parte de um ou de outro conjunto apenas. Como uma expressão não-predicativa, Noeli aponta para grupos e os representa, ao mesmo tempo em que não se restringe a nenhum deles. Não vemos apenas uma dona-de-casa, ou apenas uma mulher, ou apenas uma estatística. O que vemos é uma singularidade que atravessa o filme, construída na singeleza da vida de um qualquer.

Esta não é a sua vida é permeado por um movimento que ora nos remete ao irônico, ora à poesia. Ao longo de toda a obra, notadamente nas seqüências iniciais destacadas pelas tabelas, procedimentos utilizados pelo jornalismo e por programas sensacionalistas são evocados, tais como a definição de rótulos para pessoas comuns e a comparação com dados estatísticos. No entanto, essas estratégias já desgastadas são rearticuladas e subvertidas pelo

documentário, por meio da ironia que afasta as imagens das formas codificadas e dessingularizantes, criando uma articulação que não é meramente auto-reflexiva, mesmo que seja feito, em certa medida, o jogo metalingüístico. O documentário não abandona uma proximidade ao relato de Noeli e à experiência qualquer.

Isso nos leva à uma segunda dimensão, evidenciada nas dramatizações que se reportam a esse relato e à maneira como está fincado na experiência, mas não de forma realista. Cria-se, nesses momentos, uma atmosfera semelhante à das fábulas infantis, carregada de poeticidade e lirismo. A encenação acaba por se tornar um comentário visual acerca do discurso proferido por Noeli.

Ao longo dessas seqüências, a personagem é incentivada a performar sua própria vida, dentro de uma moldura de gênero (a dramatização), mas sem se reduzir a codificações já estabelecidas. Por meio desse gesto, o documentário sobre Noeli, uma pessoa comum, acaba por modificar a própria vida da personagem, na medida em que permite que ela narre, de uma forma singular, a sua história, escapando, assim, das marcas e amarras de estilo, dando ao cinema a potência criadora a que tem direito.

VESTÍGIOS SINGULARES

Os quatro filmes que analisamos em nossa pesquisa tratam do personagem comum e ordinário de maneiras variadas e revelam, em certos momentos, traços de uma singularidade qualquer. Durante todo o nosso percurso, tentamos entender como isso se deu e por meio de quais estratégias, já que as figuras retratadas pelos documentários em questão poderiam, facilmente, estar presentes nos já conhecidos jornais televisivos sensacionalistas, nos programas de auditório com suas estratégias de espetacularização ou na extensa indústria de futilidades que, embora sejam fonte de entretenimento para muitos, dificilmente conseguem ultrapassar suas próprias molduras engessadas, que enquadram e estereotipam realidades. Os personagens aqui estudados, guardada essa parecença, não se assemelham em nada aos personagens comumente tipificados e dessingularizados que encontramos nesses nichos midiáticos. O que, afinal, permite essa diferença?

As pequenas sagas retratadas nas obras abordadas carregam algo do exótico e do grotesco, traços geralmente oferecidos por alguns gêneros do discurso midiático como formas de capturar os espectadores. No entanto, os filmes escolhidos que compõem nosso corpus

analítico não se resumem a isso. Pensemos, por exemplo, em A pessoa é para o que nasce. As três irmãs são cegas, pobres e desamparadas, oriundas de uma região sofrida e com uma família desestruturada, sendo que, por meio da música, encontram uma certa fama. As mazelas de suas vidas, expressas nos adjetivos acima enumerados, já seriam capazes, por si sós, de despertar a atenção daquelas estratégias midiáticas às quais, por oposição, nos referimos. Não bastasse isso, Maroca, Poroca e Indaiá tornam-se celebridades, conhecidas por todos pela forma como tocam seus ganzás e cantam o enredo de suas vidas. Uma composição melodramática dessa história pareceria ser o caminho natural para contá-la, uma vez que

temos à mão um material bruto que poderia, facilmente, compor uma narrativa em outro meio discursivo, que não o documentário, tal como os já assinalados.

Mas, ao contrário disso, o cineasta opta por incorporar os momentos que quebram esse discurso apelativo do melodrama, ao inserir as falhas de roteiro, as irrupções do real por entre uma estrutura previamente esboçada, mesmo que sutilmente. Além disso, apresenta-nos uma dimensão que não anula, mas afasta as personagens desse leque de peculiaridades destacado. Pelo afeto, pelo amor e também pela explicitação da sexualidade dessas que são mulheres antes de serem cegas, pobres e desprovidas, são afastados os possíveis preconceitos que poderiam facilmente vir a emoldurar e a enrijecer a narrativa. Ao fazer isso, Berliner consegue apresentar-nos facetas que poderiam estar antes escondidas pelo puro estereótipo.

No caso de Dominguinhos da Pedra, um homem que se isolou de tudo e de todos (de quase tudo e de quase todos), para viver em uma caverna, solitário, imerso em uma rotina obsessiva e, ao mesmo tempo, contemplativa, a estratégia da particularização também poderia ter se colocado como uma opção para representá-lo. Mas não é isso que vemos em A Alma do Osso. Ao nos mostrar a duração de seu dia-a-dia compassado pelos gestos repetitivos e meticulosos, os momentos em que envereda por histórias fantásticas e as imagens oníricas abstratas salpicadas ao longo do documentário, o diretor consegue sair de um registro para outro, do típico ao singular. Quando assistimos ao filme pela primeira vez, sentimos quase que um incômodo, na medida em que somos apresentados ao personagem, mas sem o embasamento de dados e informações que nos ajudariam a categorizá-lo de alguma forma. As lacunas não preenchidas pelo documentário, as deixas sutis que aguçam nosso imaginário, acabam por nos ajudar a configurar um outro tipo de experiência, na qual estamos

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