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4. VIDAS ORDINÁRIAS

4.2. A Alma do Osso

O documentário inicia-se com um letreiro sobre um fundo preto, estampando a frase “Solidão é a gente demais”. Esses dizeres abrem a reflexão sobre o tema da reclusão, opção de vida escolhida por Dominguinhos da Pedra, principal e único personagem do filme, cujo nome só conheceremos ao final.

Começamos por ver uma paisagem de cerrado, com passarinhos cantando, quando um corte nos leva a uma figura peculiar, saindo de uma caverna, com roupas em trapos e uma espécie de touca de plástico na cabeça, tudo em tons de cinza que se misturam ao próprio ambiente, árido e repleto de formações rochosas. Esse homem caminha para fora de seu abrigo, em busca de lenha, e acaba encontrando o que procura. Sem entendermos o que se passa ao certo, quem é essa figura e onde está, somos levados ao próximo plano, composto por uma tomada extremamente fechada que inunda a tela de pele e textura. Reconhecemos traços de um braço, depois de um pé, e percebemos que ele está de cócoras, acendendo com um isqueiro um fogão improvisado, mais parecido com uma fogueira.

Na parte externa, uma grande quantidade de fumaça é expelida para fora da caverna e, por meio de um travelling vertical iniciado no topo da coluna de pedras, o ermitão é mostrado novamente ao lado do fogão, raspando uma panela e iniciando um ritual de lavagem das mãos que vai se repetir diversas vezes ao longo da primeira parte do filme. Sentado, ele tem ao seu alcance praticamente tudo de que precisa, com inúmeras latas cortadas ao meio, ou apenas sem a tampa, dispostas ao seu redor, cada uma com diferentes quantidades de água ou sem nada. Por vezes seguidas, ele esvazia uma delas e enche outras tantas, para depois esvaziar o que encheu e encher o que esvaziou, não sem antes meticulosamente medir o conteúdo transferido.

O homem se levanta e podemos, assim, conhecer a outra parte de sua moradia, uma espécie de despensa a céu aberto, com garrafas de água e mantimentos guardados dentro de tambores e latas, lacrados e pendurados na rocha. Ele continua sua rotina organizada, entoando uma canção, cuja letra é praticamente indistinguível.

Essa é a primeira parte do filme, apresentada antes dos créditos iniciais. Esse longo início permite-nos entender quem é o personagem e qual é a relação estabelecida entre o cineasta e essa figura tão peculiar. Até então, não ouvimos sequer uma pergunta ou esboço de entrevista. Dominguinhos nem mesmo dirige seu olhar para a câmera. Sentimos, no entanto, pelos movimentos e cortes, que alguém está presente, observando o que acontece. Pela peculiaridade do eremita, seja pelas vestimentas, pelas ações repetitivas ou pela própria condição de isolamento, formulamos diversas questões sobre sua identidade, a razão de se encontrar sozinho, sua idade, e muitas outras que, curiosamente, não nos são respondidas pelo filme nesse primeiro momento. Com isso, somos obrigados a acompanhar um fragmento do cotidiano do ermitão sem sabermos ao certo o que se passa. Esse hiato faz com que a construção do personagem seja feita simultaneamente à formulação dessas várias perguntas e à elaboração de eventuais respostas. A importância desse início está, justamente, em sua vaguidão e na falta de definições precisas acerca do personagem, permitindo o seu afastamento de rótulos que tão facilmente lhe poderiam ser atribuídos, contribuindo, assim, para uma construção mais indefinida e lacunar. Uma ausência de fatos e falas permeia todo esse início, criando signos sonoros e óticos puros44, expressos nas imagens visualizadas e no som direto que acompanha as ações repetitivas de Dominguinhos.

44 Deleuze (1990) caracteriza os signos sonoros e óticos puros da seguinte forma: “A situação sensório-motora tem por espaço um meio bem qualificado, e supõe uma ação que a desvele, ou suscita uma reação que se adapte a ela ou a modifique. Mas uma situação puramente ótica ou sonora se estabelece no que chamávamos de ‘espaço qualquer’, seja desconectado, seja esvaziado [...]. E sem dúvida estes novos signos remetem a imagens bem diversas. Ora é a banalidade cotidiana, ora são circunstâncias excepcionais ou limites. Mas, acima de tudo, ora são imagens subjetivas, lembranças de infância, sonhos ou fantasmas auditivos ou visuais, onde a personagem não age sem se ver agir, espectadora complacente do papel que ela própria representa, à maneira de Fellini, ora, como em Antonioni, são imagens objetivas à maneira de uma constatação” (DELEUZE, 1990, p. 14).

O título do filme é apresentado em seguida, por meio de grafismos sobre um fundo preto e uma tipografia que mostra e esconde as palavras que dão nome ao documentário. De maneira esquemática, o filme se estrutura da seguinte forma:

Descrição da seqüência Situação 01 Dominguinhos em sua rotina de afazeres – Vídeo digital Rotina

02 Título Título

03 Eremita imerso na paisagem, imagens abstratas (água) – Predominância de super-8

Suspiro

04 Dominguinhos faz café – Vídeo digital Rotina 05 Eremita imerso na paisagem, imagens abstratas (água) –

Predominância de super-8

Suspiro

06 Dominguinhos mexendo na fogueira Rotina

07 Imagens abstratas (fogo) Suspiro

08 Dominguinhos toca violão em frente à fogueira Depoimento sobre os sonhos 09 Garrafas dependuradas – Super-8 Suspiro

10 Ermitão em sua rotina, cantando e tocando violão Rotina 11 Imagens abstratas (algo suspenso no ar, flores e capins) -

Predominância de super-8

Suspiro

12 Dominguinhos conta caso Depoimento do corisco 13 Escuridão. Raios revelam garrafas e o eremita Suspiro

14 Dominguinhos fala do choque elétrico Depoimento sobre internação médica

15 Paisagem com um foco de incêndio. Rio em vista aérea Começa como suspiro e depoimento sobre inferno entra

em off.

16 Depoimento de Dominguinhos Continuação da fala anterior 17 Imagens abstratas (bola vermelha, flores, escuro) Suspiro

18 Imagem abstrata toma a tela e se transforma em textura para a entrada de frases escritas

Letreiros

19 Depoimento do eremita Depoimento sobre herança e economia

20 O ermitão assiste a cenas gravadas Dominguinhos vê e escuta Dominguinhos

Durante quase todo o filme, seqüências mostrando o dia-a-dia do personagem são intercaladas pelo o que chamamos suspiros. Esses momentos permitem, tal como na rotina mostrada no início do filme, mas de forma diferente, a aparição de signos sonoros e óticos puros. Após o título, por exemplo, começamos por ver a imagem de sua sombra no chão, em Super-8, e, logo depois, o ermitão ao longe, no topo de uma montanha rochosa, com um braço estendido. Quando está nessa posição, a trilha sonora, que havia sido interrompida para dar lugar ao som ambiente, volta a aparecer, composta por instrumentos de corda variados e quase dissonantes em alguns momentos. O cineasta utiliza estratos de composições de Bach e Brahms, bem como músicas instrumentais do grupo O Grivo, especialmente feitas para o filme.

O som direto volta a incidir quando ele começa a descer o morro, por um caminho marcado no chão, segurando a lata e um recipiente para armazenar água. O plano seguinte, do topo da montanha, mostra o trajeto delineado no mato, provavelmente pelo uso constante, com nosso personagem atravessando a tela. A composição é extremamente plástica, exibindo um ponto que se move em uma linha tortuosa que vai da parte de baixo ao alto do enquadramento. Já na beira de um riacho, sentado de cócoras, ele enche e esvazia sua latinha, deixando pingar as últimas gotas calmamente.

Das gotas que pingam do recipiente, somos levados a gotas sobre a superfície da água, filmadas extremamente de perto, como que visões de um microscópio que nos remetem, mais uma vez, a grafismos e formas abstratas. Acompanhamos o movimento lento da bolha ao som da trilha sonora, que volta a tocar, juntamente com o som ambiente. Seguimos lentamente a trajetória da esfera até que, ritmada por tambores que batem ao fundo, ela estoura e cede lugar a outra imagem.

A próxima seqüência continua utilizando um zoom macro para mostrar detalhes em aparência gráfica, conferindo a objetos e situações banais uma beleza estranha. Vemos

agora uma teia de aranha coberta por gotas de orvalho, ao som não mais de tambores, mas de instrumentos de cordas. A primeira teia dá lugar a outra, e a outra, e a outra, continuando a ocupar toda a tela, pontilhadas por gotas de água, o que causa um efeito de impressionismo às avessas, pois vemos apenas as partículas que formam o todo, com uma proximidade que acaba afastando a imagem de sua indicialidade e aproximando-a de uma iconicidade poética45, menos presa à representação usual e realista de uma teia de aranha. O vento balança a trama de fios finíssimos, alguns desfocados, outros visíveis e com maior nitidez.

Da teia, somos levados ao fundo do rio, onde cardumes de inúmeros peixes produzem um efeito plástico e visual semelhante ao das gotas nas teias. Os peixes atravessam o plano, quase trombando na câmera, voltando em seguida para perto uns dos outros, mantendo, assim, um grafismo onírico abstrato como base de composição das imagens. Do fundo do rio, passamos para sua superfície, com a câmera fazendo um travelling que nos mostra o movimento de pequenas ondas, pontuado pela trilha de cordas. A imagem é quase toda no mesmo tom, com as bordas mais claras (o rio e o céu), sendo o centro de um azul mais intenso.Voltamos a ver os peixes no fundo do mar e, mais uma vez, a bolha que passeia sobre a superfície da água. Seguimo-la até que, no ritmo da música, ela estoura novamente.

A trilha dá lugar ao som direto quando a câmera mostra o personagem sentado na beira do rio, com a lata na mão, parado, enquanto olha para o lado. Na verdade, o suspiro proporcionado pela seqüência anterior de composições gráficas, em sintonia com a trilha, funciona como uma suspensão temporal que o próprio personagem parece experimentar em sua rotina compassada e morosa de todos os dias. Esse fragmento do filme consegue revelar, por meio de imagens icônicas, qualidades e sensações da figura retratada, de forma abstrata e

45 Referimo-nos aqui aos chamados qualissignos icônicos que, segundo Júlio Pinto (1995), pertencem à primeira tricotomia dos signos formulada por Peirce, ou seja, aquela que pensa o signo em si, sem considerar a relação entre o signo, o objeto e o interpretante. É uma qualidade que é um signo. O caráter icônico aqui enfatizado diz respeito ao conceito de ícone, signo que compartilha características de seu objeto. Essa semelhança com o objeto não é, necessariamente, especular, sendo suficiente que o signo compartilhe uma única propriedade monádica com o objeto, um traço. Portanto, o qualissigno icônico é um tipo de signo que abrange uma qualidade do objeto, mas, ao mesmo tempo, conserva sua primeiridade e virtualidade, na medida em que constitui uma representação aberta do objeto.

aberta à construção de sentidos múltiplos. O mesmo acontece nos outros momentos de suspiro, recorrentes ao longo do documentário, em que a indicialidade da imagem está presente, sem que seja, no entanto, a detentora da cadeia de significação, composta, na verdade, pelas articulações internas, pela plasticidade trabalhada, pela exploração dos ruídos e da maleabilidade da imagem. Essas seqüências têm como característica o fato de se apropriarem de qualidades do objeto ao qual se lançam, traduzindo tais qualidades em signos visuais e sonoros.

Em seguida, de costas para a câmera, o ermitão caminha rumo à caverna. A lente se aproxima e os gravetos se interpõem entre Dominguinhos e o ponto em que a tomada é feita, criando mais uma intervenção plástica na imagem. Ele chega em casa e, em seguida, o vemos sentado na frente de uma cerca. Seus braços cruzados envolvem as pernas finas dobradas, quase raquíticas, e as mãos entrelaçadas as mantêm nessa posição. A mesma imagem é mostrada de outros ângulos e o plano seguinte trabalha a textura dos dedos e unhas de seus pés, repousados sobre um pedaço de madeira. Suas mãos movimentam-se em slow motion e, depois disso, a imagem, aparentemente toda captada em super-8 até o momento, é substituída pelo vídeo digital, como na primeira parte do documentário. Essa seqüência, composta por fragmentos do personagem em perspectiva macro, mostra o corpo humano em sua estranheza, de uma forma que só a máquina nos permite experimentar. Não somos capazes, nessas imagens, de distinguir o que vemos, já que a tela é tomada pela textura. Forçamos o olhar para ver algo que não está distante, mas que, justamente pela proximidade, torna-se estranho.

Na próxima tomada, Dominguinhos mexe em sacos e vasilhas, tirando algo da pequena bacia de água e cobrindo-a com um plástico. Abre outro pote com água e transfere seu conteúdo para as latinhas, passando de uma para outra e assim sucessivamente. Continua nesse ritual até concluir a preparação de um pote de café. Vemos, ao final da seqüência, um

plano fechado de seus olhos e, na próxima imagem, ele está em pé sobre uma pedra, olhando a paisagem. Do vídeo, voltamos à super-8 e o som direto dá lugar à trilha sonora. A câmera acompanha seus pés caminhando e, em seguida, temos um plano subjetivo da visão do próprio Dominguinhos, terminando com a câmera sendo invadida pela luminosidade do sol.

Daí partimos para mais um plano em que o sol tem papel significativo. Em um

travelling rápido, vemos sua luz ao fundo e copas de árvores e galhos na frente. A trilha sonora aparece mais uma vez e somos introduzidos em uma nova seqüência em que a plasticidade das imagens e sua maleabilidade é evidenciada pelos planos. Vemos o reflexo de galhos refletidos na água, que se movimenta levemente, criando uma onda que distorce a imagem gravada, simulando uma atmosfera onírica como a em que vive Dominguinhos. Outros três enquadramentos semelhantes são mostrados, cada vez com menor definição. O próximo plano eleva à máxima potência a tendência que perpassa o filme de produzir imagens com forte apelo plástico. Vemos um travelling, também extremamente rápido, que enquadra apenas a água do rio já apresentado anteriormente. No entanto, dessa vez, a velocidade do

shutter, mais baixa do que o padrão usual, produz uma imagem em que a espuma branca provocada pelas leves ondas, ou mesmo a claridade refletida na água, deixa rastros que mais se assemelham a traços claros em um fundo escuro. Puros grafismos, abstração. Riscos que atravessam a tela e, na medida em que os planos são substituídos pelos seguintes, invertem suas direções.

Logo após, uma imagem mostra pequenos galhos e ouvimos barulhos de gotas e pingos sobre essas superfícies. São feitas várias tomadas desse mesmo conjunto, de mais perto, mais de longe, com maior claridade ou mais escuras. Essas imagens, desgarradas da caracterização do personagem, não são a representação de uma interioridade, mas de uma exterioridade que traz vestígios de um universo subjetivo. Não se busca identificar imagens da consciência ou uma pretensa essência, mas uma subjetividade que é mais ampla do que o

próprio sujeito individual. Esses suspiros, ao longo de todo o documentário, estariam na categoria que, segundo Santaella e Nöth (2001), Peirce chama de auto-representatividade do signo. Os qualissignos icônicos aqui apresentados, signos óticos e sonoros puros, são referencialmente tanto vazios quanto abertos.

[...] o observador precisa abrir mão da ilusão de referência, da relação com o objeto, concentrando-se somente na materialidade e, assim, no aspecto na primeiridade da própria imagem. [...] livres de qualquer tipo de esquema composicional e sem nenhuma tradição de gênero (regularidade, terceiridade), só têm efeito por sua própria qualidade. Nada se parece com elas e, exatamente por isso, tudo também pode ser semelhante a essas imagens.46

Depois desse momento de suspiro e suspensão dentro do documentário, Dominguinhos aparece olhando para o horizonte, com uma das mãos sobre a testa para se proteger da luz do sol que se põe. Na próxima tomada, ele aparece de costas, com os braços abertos, de frente para a paisagem, ao som de passarinhos cantando. Daí partimos para uma cena do céu azulado, com uma ave de rapina a rasgá-lo ao meio, planando até sumir por entre as nuvens. Um corte nos leva a um plano de uma menina que rodopia, mas apenas seu reflexo sobre uma poça d’água é mostrado. Com os braços abertos, ela roda ao ritmo da trilha percussiva que é introduzida. Após um pequeno intervalo, essa imagem é invertida e vemos não mais o reflexo, mas a própria garota, rodando na beira de um rio.

A próxima cena surge em consonância com a ambientação onírica do documentário, mas não é constituída por imagens distorcidas, fora de foco ou em angulações pouco usuais. O que a aproxima do universo de sonhos é o próprio objeto representado, já que o plano apresenta uma casa de madeira flutuante, à deriva em um rio de proporções gigantescas. Em seguida, é mostrada outra casa como essa, com uma pessoa na beirada da pequena varanda formada na base de madeira da construção. A trilha sonora de cordas cria a atmosfera da seqüência, que apresenta ainda outra casa, ou a mesma, agora com um menino

46

soltando um papagaio transparente, flutuando no céu como a moradia na água. Várias pessoas aparecem na varanda, e depois apenas um senhor. Na próxima tomada, suspenso no ar, vemos um estranho objeto no céu. Com cuidado, é possível perceber um fio que o prende, mas o efeito assemelha-se ao da ave de rapina sobre o fundo azul ou ao do papagaio de plástico transparente.

A trilha que, em alguns momentos, aparece dissonante, como se cordas a esmo fossem sendo tocadas em busca de uma melodia, revela-se como mais uma faceta do ermitão, pois vemos, no plano seguinte, que é ele quem toca um violão velho, sentado no escuro, cantando uma música cuja letra é, em grande, parte irreconhecível. O filme aproveita esse talento musical só agora revelado para compor sua trilha, mesmo que o resultado final incorpore outros elementos que não apenas a canção dedilhada por Dominguinhos. Mas é ele quem dá o tom.

Em seguida, um círculo de fogo acende-se no chão e fogos de artifícios e chamas de uma fogueira promovem um espetáculo visual feito por fagulhas e brasas. Dominguinhos aparece novamente, agora mexendo na fogueira, sem a trilha sonora que tocava no início dessa seqüência. Senta-se, levanta-se, coloca uma placa de ferro sobre o fogo e improvisa uma maneira de aquecer sua panela.

O próximo plano, bastante fechado no pescoço e na barba do personagem, prepara-nos para a primeira fala direta do ermitão. Ele conta que acredita ter sonhado mais do que qualquer outra pessoa, o que já vem fazendo há 50 anos, sendo que isso não atrapalha sua mente, segundo acredita. Diz ser difícil passar uma noite sem sonhar, coisa que faz para ele e para os outros. Sonha com os que já morreram e com os que estão vivos, com pessoas tentando matá-lo com um revólver e ele correndo. Sonha com eles ‘avoando’. Pela primeira vez, o eremita aparece conversando articuladamente, mesmo que as palavras não sejam sempre claras ou inteligíveis. Curiosamente, ele fala do sonho, da importância que essa

dimensão onírica tem em sua vida, fato que o filme, indiretamente, já nos mostrou, ao criar sensações e ambientações próximas de um estado inconsciente do ser humano, com figuras abstratas e lentas, imagens sonoras e óticas puras, em que a ação não mais possui uma relevância desencadeadora de sentidos. Ao longo do filme, a dimensão objetiva e subjetiva das imagens esvaece-se, proporcionando uma indiscernibilidade característica do regime cristalino, tal como já vimos.

Após esse depoimento inicial, o único do filme até então, vemos uma imagem da fogueira do alto, depois mais aproximada. Ele suspira em off e diz: “Ai, ai...” O quadro entra em fade e começa a tocar a trilha. Imagens em super-8 mostram garrafas de água dependuradas por fios em sua caverna. Planos mais abertos intercalados por outros mais fechados dos mesmos objetos remetem, mais uma vez, a um universo de linhas e contornos, volumes e sombras.

Na seqüência seguinte, o eremita aparece de costas, olhando a paisagem, com o som ambiente no áudio. Um novo corte mostra um ônibus passando por uma estrada ao longe, já com a imagem em vídeo digital. Em casa, ele lava um coador e, no plano seguinte, olha fixamente para um ponto no horizonte, sentado, com a trilha sonora a tocar. O som ambiente volta quando a paisagem é mostrada. Ele sai da caverna, circundada por uma cerca de madeira

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