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MUDANÇAS TÉCNICAS ENTRE O HOLOCENO INICIAL E MÉDIO: O CASO DA TOCA DO JOÃO LEITE (PI)* LÍVIA DE OLIVEIRA E LUCAS**

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Goiânia, v. 13, n.2, p. 41-56, jul./dez. 2015.ARTIGO

O

Resumo: este artigo apresenta a análise tecno-funcional de dois conjuntos líticos associados respectivamente à transição Pleistoceno-Holoceno e ao Holoceno médio, presentes na sequ- ência arqueológica da Toca do João Leite, sudeste do Piauí. Os resultados dessas análises permitem verificar uma profunda mudança técnica entre estes dois períodos, possibilitando assim ressaltar essa ruptura como um fenômeno regional, ocorrida nas regiões Centro e Nordeste do Brasil.

Palavras-chave: Transição Pleistoceno-Holoceno. Holoceno médio. Tecnologia lítica. Serra da Capivara.

MUDANÇAS TÉCNICAS ENTRE O HOLOCENO INICIAL E MÉDIO: O CASO DA TOCA DO JOÃO LEITE (PI)*

* Recebido em: 22.10.2015. Aprovado em: 27.11.2015.

** Mestre em Arqueologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Auxiliar de pesquisa pela Uni- versidade Federal do Vale do São Francisco. E-mail livia.lucas@univasf.edu.br.

s períodos que correspondem à transição Pleistoceno-Holoceno e ao Holoceno médio representam um importante momento para o povoamento do território brasileiro. O aumento de sítios arqueológicos datados do Holoceno antigo (PROUS, 1991; LAVAL- LÉE, 1995; MARTIN, 1996; DILLEHAY, 2008; BUENO, 2011; VILHENA-VIALOU, 2011), e as mudanças climáticas e técnicas verificadas no Holoceno médio (MELLO, 2005), torna esses períodos significativos na compreensão da ocupação do território e nas dinâmicas ocupacionais dos grupos humanos.

Tecnicamente menciona-se uma ruptura entre as indústrias líticas destes perí- odos, em uma escala regional, abarcando as regiões Central e Nordeste do Brasil. Para LÍVIA DE OLIVEIRA E LUCAS**

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abordar o tema da diacronia dos sistemas técnicos entre estes períodos, o sítio Toca do João Leite mostra-se particularmente interessante. A escavação desse sítio revelou um rico conjunto de artefatos líticos, associado a seis datações radiocarbônicas que vão de 12.790 anos cal AP a 1.250 anos cal AP11 (GUIDON et al., 2009).

Apresenta-se a seguir o resultado da análise tecno-funcional de dois distintos conjuntos líticos, presentes na sequência arqueológica da Toca do João Leite, e rela- cionados aos períodos em questão. A abordagem tecno-funcional dos artefatos líticos busca integrar a esfera de produção com a funcional dos objetos. Além das etapas ope- racionais que envolvem a produção de uma peça, ela integra uma análise dos potenciais funcionais de cada instrumento (LEPOT, 1993; BOËDA, 1997, 2001; SORIANO, 2000). A escolha desse tipo de abordagem para a análise dos artefatos líticos da Toca do João Leite justifica-se pela necessidade de ter uma visão global dos conjuntos, em seus objetivos de lascamento e modos de produção, possibilitando assim a definição de conjuntos culturais.

O SÍTIO TOCA DO JOÃO LEITE

A Toca do João Leite é um abrigo sob rocha, com pinturas rupestres, localiza- do no Parque Nacional Serra da Capivara, sudeste do Piauí, área denominada de Serra Branca (Figura 1). O abrigo situa-se no primeiro nível de erosão abaixo do planalto, a uma altitude de 486 m, e sua abertura possui orientação sudoeste/noroeste. A sua fren- te, orientada para o sul, uma área de suave declive estende-se até a descida para o fundo do vale chamado de Baixão do Caixa Prego (GUIDON et al., 2009).

Figura 1: Localização da Toca do João Leite – vista geral do abrigo e pinturas rupestres na parede do abrigo

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No ano de 2006 a equipe técnica da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), realizou uma escavação em partes do setor 3 e setor 4, subdividido em setor 4 oeste, 4 central e 4 leste. A escavação foi realizada por decapagens artificiais de 5 cm, seguindo um nível também arbitrário. As áreas escavadas chegaram até a rocha matriz, a uma profundidade de 1,80m na sua parte mais profunda. Foram coletados cerca de 11.700 vestígios históricos e pré-históricos, sendo 11.144 peças líticas e 572 fragmentos cerâmicos.

Apresenta-se aqui, o estudo de parte das peças provenientes do setor 4 central (Figura 2)

Figura 2: Delimitação dos setores da Toca do João Leite. Em vermelho, a área escolhida para o estudo.

Fonte: FUMDHAM (adaptado).

Estratigrafia

A área escavada do setor 4 central possui dimensões de 11 m x 4,5 m, o corte leste desse setor foi utilizado como referência para a leitura estratigráfica do sítio. Foram identificadas 5 camadas estratigráficas, distinguíveis entre si pela mudança da cor do sedimento arenoso, ocasionada principalmente pela presença de áreas de combustão e carvões dispersos, seixos e placas de arenito. As camadas são relativamente horizontais, apresentando leve declive da área abrigada em direção à descida para o vale (Figura 3).

Figura 3: Perfil estratigráfico leste do setor 4 central

Fonte: FUMDHAM (modificado).

Nota: as diferentes tonalidades do sedimento indicam camadas com ausência de carvões (amarelo) e com presença de carvões (tons de cinza).

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A leitura da distribuição vertical dos artefatos foi feita segundo eixos transver- sais e longitudinais, por faixas de 1 m de largura. Essas projeções, associadas ao dese- nho do corte estratigráfico, permitiram identificar 4 conjuntos arqueo-estratigráficos (Figura 4). Seis datações radiocarbônicas, realizadas com carvões associados à estrutura de fogueiras, indicam uma sequência arqueológica com ocupações do abrigo desde o período da transição Pleistoceno-Holoceno ao Holoceno recente (Tabela 1).

Tabela 1: Toca do João Leite – datações radiocarbônicas

Data C14convencional DataC14calibrada Camada Laboratório

1.330 ± 40 anos AP 1.250 ± 40 anos cal AP 1 BETA – 218507

3190 ± 40 anos AP 3.420 ± 30 anos cal AP 2 BETA – 218506

4910 ± 50 anos AP 5.660 ± 45 anos cal AP 2 BETA – 220089

10.520 ± 80 anos AP 12.440 ± 190 anos cal AP 5 BETA – 219672

10.810 ± 70 anos AP 12.790 ± 80 anos cal AP 5 BETA – 220088

O conjunto 1 caracteriza-se pela presença de poucos materiais arqueológicos dispostos na superfície e camada 1. Os artefatos líticos e cerâmicos encontram-se dis- persos e em poucas concentrações. A datação associada a esse conjunto é de 1.250 ± 40 anos cal anos AP.

O conjunto 2 está associado a camada 2 e às datações de 3.420 ± 30 anos cal AP e 5.660 ± 45 anos cal AP. Caracteriza-se por grande quantidade de mate- rial arqueológico, com concentrações próximas a parede rochosa. Os artefatos líticos encontram-se em maior número, dispersos e em concentrações dentro dos limites de áreas de combustão. O material cerâmico é raro, com presença de poucos fragmentos dispersos e localizados somente no contato entre as camadas 1 e 2.

O conjunto 3 apresenta abundante material lítico e ausência de cerâmica.

Distingue-se claramente do conjunto 2, mas pode ser difícil de distingui-lo do conjun- to inferior em alguns locais. Está associado à camada 4.

O conjunto 4 está associado a camada 5 e às datações de 12.440 ± 190 anos cal AP e 12.790 ± 80 anos cal AP. Apresenta material lítico abundante. Há maior con- centração de material lítico próximo à parede rochosa.

Figura 4: Projeção longitudinal em uma faixa de 1m de largura contra o perfil leste. Em destaque, os conjuntos analisados.

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A presença de dois conjuntos arqueo-estratigráficos com datações que envol- vem os períodos da transição Pleistoceno-Holoceno e do Holoceno médio proporciona um quadro singular para abordar os conhecimentos técnicos desses períodos. Possibilita a compreensão da evolução técnica ocorrida em um mesmo local e concomitantemente as mudanças de comportamento que podem ser levadas não só para comparações em termos locais, mas também regionais. Portanto, apresenta-se aqui a análise dos conjuntos 4 e 2.

O CONJUNTO ARQUEO-ESTRATIGRÁFICO 4

No conjunto 4 soma-se um total de 783 peças lascadas, das quais 321 foram analisadas22. São 48 instrumentos, 12 núcleos e 261 lascas, realizados a partir de arenito silicificado, calcedônia, quartzo, quartzito e sílex. A indústria é caracterizada por quatro objetivos de lascamento ligados a quatro diferentes tipos de suporte:

• o primeiro objetivo é a produção de peças façonadas unifacialmente do tipo “Itapa- rica”, as chamadas lesmas (FOGAÇA; LOURDEAU, 2008; LOURDEAU, 2010) (Figura 5). Esses instrumentos foram realizados sobre uma lasca de grandes dimen- sões, que após o façonnage, o volume adquiriu característica espessa e alongada. Esses volumes foram utilizados principalmente para produzir partes transformativas33 na extremidade apical da peça, podendo se estender até a parte mesial. Essas peças são suportes de instrumentos, que podem apresentar potenciais funcionais variados. Va- riados de uma peça à outra, e também variados dentro de uma mesma peça (LOUR- DEAU, 2010).

Figura 5: Toca do João Leite – Conjunto 4 – Peças façonadas unifacialmente do tipo Itaparica

• o segundo objetivo é a produção de peças façonadas unifacialmente utilizando como suporte inicial uma lasca mais larga que comprida e espessa. O façonnage realizado

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sempre na face superior da lasca suporte, por método centrípeto, dá a esse volume característica alongada e espessa. Essa estrutura é fechada, produzida para compor- tar uma parte transformativa específica na lateral da peça, com delineamento linear e com ângulos abruptos. Essa característica denota que a parte preensiva do instru- mento possui uma localização fixa (Figura 6).

Figura 6: Toca do João Leite – Conjunto 4 – Instrumentos façonados unifacialmente

• o terceiro objetivo é a produção de instrumentos sobre lasca, concebidos sobre um suporte fino e alongado. Essas lascas, produzidas preferencialmente por método uni- direcional, foram utilizadas para a confecção de uma parte transformativa linear com ângulo agudo (Figura 7). São estruturas bem normatizadas.

• o quarto objetivo é a produção de instrumentos sobre lasca, feitos a partir de lascas com pequenas dimensões e espessura considerável. São peças pouco modificadas e obtidas geralmente por método unidirecional, utilizadas para a produção de parte ativa com delineamento côncavo e linear com ângulos agudos (Figura 8).

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Figura 7: Toca do João Leite – Conjunto 4 – Instrumentos sobre lasca

Figura 8: Toca do João Leite – Conjunto 4 – Instrumentos sobre lasca

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Os núcleos presentes no conjunto estão inseridos dentro do sistema de debita- gem do tipo C, definido por Boëda (2013). São explorados a partir de suas convexida- des naturais sem preparação da superfície de debitagem. Os núcleos apresentam pouca exploração, com séries curtas e retiradas unidirecionais (Figura 9). Os produtos obtidos condizem com os suportes dos instrumentos do quarto objetivo da indústria.

Figura 9: Toca do João Leite – Conjunto 4 – Núcleo com três séries de retiradas unidirecionais (cada série representada por uma cor diferente)

SÍNTESE

Em termos gerais, a indústria do conjunto 4 caracteriza-se por instrumentos que possuem uma estrutura integrada para o seu funcionamento. Os grupos de ins- trumentos estão bem definidos por peças com mesma estrutura volumétrica e mesmo potencial funcional. As características funcionais de cada grupo permitem uma visão do grau de complementariedade dessa indústria: peças específicas com volumes norma- tizados, produzidas com o objetivo de abarcar, por um longo período, características funcionais variadas (as peças façonadas unifacialmente do tipo Itaparica). Essas peças estão associadas a um conjunto de outros instrumentos, que possuem estruturas tam- bém normatizadas, produzidas com potenciais funcionais definidos.

O CONJUNTO ARQUEO-ESTRATIGRÁFICO 2

O conjunto 2 é composto por 684 peças lascadas, das quais 564 peças foram analisadas4. São 41 instrumentos, 20 núcleos e 504 lascas. Foram produzidas a par- tir de arenito silicificado, de quartzo, de sílex, de quartzito e de arenito. A indústria é caracterizada por uma produção de instrumentos a partir de lascas, seixos e frag- mentos de morfologia variada, contendo geralmente partes abruptas e/ou oblíquas não transformativas.

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Há uma grande variedade de tecno-tipos de instrumentos. São 7 estruturas de peças para 3 tipos de partes ativas (linear, denticulada e côncava), confeccionadas por poucos retoques ou no momento da debitagem da lasca (sem necessidade de reto- ques posteriores). Os ângulos das partes ativas são variados, independente do tipo de estrutura e delineamento do gume. Devido à ausência de normatização volumétrica dos instrumentos deste conjunto, a variabilidade destes artefatos foi entendida baseando-se nas características das partes transformativas de cada instrumento.

Instrumentos com parte ativa linear são encontrados sobre suporte alongado com dorso cortical oposto a parte ativa (Figura 10 – A); sobre suporte não alongado com dois dorsos adjacentes (Figura 10 – B); sobre suporte quadrangular com três lados abruptos (Figura 10 – C); e sobre suporte triangular com um lado abrupto oposto a um lado oblíquo cortical ou semi-cortical (Figura 10 – D).

Figura 10: Toca do João Leite – Conjunto 2 – Instrumentos sobre lasca

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Instrumentos com parte ativa denticulada são encontrados sobre suporte não alongado com parte ativa adjacente a um dorso (Figura 11 – A); sobre suporte alongado com lados paralelos abruptos e parte ativa em uma extremidade (Figura 11– B); sobre suporte não alongado, com parte ativa oposta a um dorso (Figura 11 – C); e sobre su- porte quadrangular, com três lados abruptos (Figura 11 – D).

Figura 11: Toca do João Leite – Conjunto 2 – Instrumentos

Instrumentos com parte ativa côncava são encontrados sobre suporte alonga- do, com laterais abruptas (Figura 12 – A); e suporte de pequenas dimensões, com três superfícies abruptas (Figura 12 – B).

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Figura 12: Toca do João Leite – Conjunto 2 – Instrumentos

Os núcleos presentes no conjunto pertencem ao sistema de debitagem C (Figura 13). As peças apresentam exploração por séries curtas e retiradas paralelas por método geralmente unidirecional. Os produtos desses núcleos são lascas de mor- fologia variada, condizentes com as lascas utilizadas na produção dos instrumentos do conjunto.

Figura 13: Toca do João Leite – Conjunto 2. Núcleo.

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Síntese

A indústria do conjunto 2 possui características que a inclui dentro de um sistema adicional (BOËDA, 1997), regido por indústrias com elementos justapostos, independentes uns dos outros. Não é possível perceber a integração entre os diferentes elementos de cada instrumento do conjunto, eles possuem volumes e potenciais funcio- nais variados, sem relação evidente.

COMPARAÇÃO ENTRE AS INDÚSTRIAS DO CONJUNTO 4 E 2

A comparação entre as diferentes indústrias considerou as características téc- nicas de cada uma, em seus objetivos de lascamento e modos de produção. Apesar de pontos semelhantes entre as duas indústrias, como os modos de produção ligados a um sistema de debitagem do tipo C, e alguns instrumentos que podem se assemelhar, como os instrumentos relacionados ao quarto objetivo de lascamento do conjunto 4, com os instrumentos do conjunto 2, têm-se dois sistemas técnicos regidos por instrumentos completamente distintos.

No conjunto 4, o sistema técnico é caracterizado por instrumentos com estruturas normatizadas e integradas. Ele possui objetivos que seguem critérios es- pecíficos de produção e funcionamento dos objetos. No conjunto 2, o sistema segue uma lógica menos rígida. Ele é formado por instrumentos com estruturas menos nor- matizadas, adicionais. A concepção de instrumento não vem atrelada a uma estru- tura volumétrica específica e a diversidade de potenciais funcionais é compreendida dentro de uma lógica que não considera o instrumento total, mas somente uma parte dele – a parte ativa.

Os modos de produção seguem a mesma regra. Nos dois conjuntos, o método de debitagem unidirecional é o mais comum na obtenção dos suportes, assim como a técnica por uma percussão direta interna com pedra. No entanto, o modo de produção semelhante não indica a produção de suportes semelhantes: no conjunto 4 são suportes normatizados e no conjunto 2 são suportes com morfologia variada. Para o façonnage, vê-se que os instrumentos façonados unifacialmente aparecem de forma marcada e caracterizadora no conjunto 4, o que não ocorre no conjunto 2.

As diferentes concepções de instrumento são muito marcadas entre as duas indústrias. Trata-se de sistemas técnicos verdadeiramente distintos. Tem-se, portanto, uma ruptura técnica extremamente profunda entre a indústria relacionada ao período da transição Pleistoceno-Holoceno para a indústria ligada ao Holoceno médio. São duas maneiras distintas de se pensar os instrumentos.

COMPARAÇÕES COM INDÚSTRIAS CONTEMPORÂNEAS DO CENTRO E NORDESTE DO BRASIL

Em uma perspectiva regional ampla, podemos comparar esses resultados de análise dos dois conjuntos da Toca do João Leite com os dados de trabalhos publicados com mesma metodologia. Assim foi possível traçar uma homogeneidade técnica em termos regionais.

A indústria do conjunto 4, relacionada à transição Pleistoceno-Holoceno, foi comparada ao estudo de sítios dos estados de Goiás e Piauí feito por Lourdeau (2010).

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Os conjuntos, com presença marcante de peças façonadas unifacialmente do tipo Ita- parica, analisados pelo autor, estão associados a datas que vão dos 10.580 a 7.400 anos AP. Essas indústrias estão inseridas dentro do Tecno-complexo Itaparica e caracteriza- das por Lourdeau como pertencentes a um “conjunto técnico original”, composto de peças façonadas unifacialmente com uma face plana, associadas a outros instrumentos sobre lasca. Esses instrumentos respeitam critérios técnicos específicos e possuem uma relação de complementaridade funcional dentro do conjunto.

A presença de instrumentos unifaciais do tipo “Itaparica”, produzidas por um conceito original engloba: um princípio volumétrico (volume alongado com espessura considerável oposto a uma face plana); um princípio producional (o suporte inicial sen- do uma lasca de grandes dimensões façonada unifacialmente na face superior, conser- vando uma superfície plana na face inferior); um princípio funcional (um volume capaz de suportar uma ou mais partes transformativas); e um princípio de longevidade (volu- me com reserva de matéria-prima suficiente para tolerar sucessivas fases de reavivagem).

Os instrumentos sobre lasca, por sua vez, possuem suporte alongado produzido por um sistema de debitagem do tipo C por método unidirecional, apresentando geralmente uma estrutura homogênea. As características tecno-funcionais dessas peças são dadas por meio de retoques comumente em um dos lados da peça e as partes ativas podem ser variadas (LOURDEAU, 2010, p. 363-365).

Observa-se os mesmos critérios no sistema técnico do conjunto 4 da Toca do João Leite, o que permite associá-lo ao “Tecno-complexo Itaparica”. Cabe res- saltar que diferenças são também verificadas entre as indústrias descritas por Lour- deau e a aqui apresentada. A presença de outros instrumentos façonados, além das peças façonadas unifacialmente do tipo Itaparica, não foi verificada nas indústrias estudadas pelo autor e o conjunto de instrumentos sobre lasca da Toca do João Leite parece apresentar maior variabilidade. Sobre os instrumentos sobre lascas que acompanham as peças façonadas unifacialmente, Lourdeau ressalta que a va- riabilidade dos potenciais funcionais ligadas a estruturas que pouco se distinguem, leva a uma provável similaridade no modo de utilização dos instrumentos, ou seja, modo de preensão específico. No conjunto da Toca do João Leite os instrumentos apresentam uma variabilidade dos potenciais funcionais, mas apresentam também de estruturas. No entanto, como ressaltado por Lourdeau na sua comparação entre os sítios, das regiões Nordeste e Centro, existe variabilidade interna no Tecno-complexo Itaparica. Portanto, as diferenças existentes entre a indústria do Tecno-complexo Itaparica da Toca do João Leite, com relação a outros sítios, podem ser assim explicadas.

O conjunto 2, por sua vez foi comparado às indústrias líticas de cinco sítios a céu aberto do vale do Rio Manso em Mato Grosso, associados ao Holoceno médio com datas de até 6.000 anos AP, trabalhadas por Mello (2005). Essas indústrias foram ca- racterizadas pelo autor a partir de elementos recorrentes encontrados nos conjuntos dos sítios estudados. Encontra-se os mesmos elementos no conjunto 2 da Toca do João Lei- te: núcleos poucos explorados, geralmente por retiradas sem recorrência, pertencentes ao sistema de debitagem do tipo C; instrumentos produzidos majoritariamente sobre lasca, com a utilização de fragmentos como suporte de forma incipiente. As estruturas dos instrumentos comumente apresentam partes abruptas formando dorso, em maioria oposto e adjacente à parte ativa. As partes transformativas com delineamento mais fre- quente são a linear e côncava (MELLO, 2005).

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Em recente trabalho, Lourdeau e Pagli (2014) apresentaram as grandes li- nhas da sequência técnica da região da Serra da Capivara. A análise tecno-funcional dos conjuntos líticos, de quatro sítios arqueológicos da região com datações que vão de 12.060 ± 170 anos cal AP até 2.930 ± 80 anos cal AP, mostra que as indústrias líticas relacionadas à transição Pleistoceno-Holoceno e Holoceno antigo, e as indús- trias do Holoceno médio também apresentam os mesmos elementos técnicos encon- trados nas indústrias contemporâneas da Toca do João Leite. As mesmas mudanças técnicas, de um período a outro, foram também verificadas pelos autores.

DISCUSSÃO

Mudanças dos comportamentos técnicos estão relacionadas a pressões internas ou externas ao grupo. Uma ruptura técnica tão profunda, como a verificada nesse estudo não pode ser atrelada somente a mudanças internas, que geralmente ocorrem com altera- ções menos profundas. Mas sim a fatores externos, principalmente quando se considera a amplitude geográfica desse fenômeno. Algumas reflexões sobre esses fatores podem ser feitas considerando mudanças climáticas, difusões de ideias e/ou pessoas e substituição da população. Algumas dessas hipóteses são criticadas, principalmente por ausência de dados obtidos por estudos mais amplos e não só locais, como por exemplo, os estudos paleoambientais. Essas dificuldades não permitem que inferências relacionando dados ex- ternos e mudanças no comportamento técnico seja uma questão respondida e finalizada.

O que pode ser inferido se relaciona a questões no âmbito da técnica e as implicações que a observação da existência de mudanças tão bruscas acarreta para a pré-história regional.

A homogeneidade das indústrias em um espaço geográfico extenso implica em uma relação cultural entre os grupos dessa região. Eles compartilham compor- tamentos técnicos semelhantes, o que inclui não só a utilizar técnicas iguais, mas a compreender os objetos de forma similar. Esses grupos possuem, de maneira geral, uma mesma história técnica. São portadores de uma identidade técnica comum, que pode ter sido criada por meio de difusão e migração de ideias e pessoas.

Para entender mais sobre a sequência técnica e mudanças ocorridas no com- portamento é necessário que mais estudos detalhados sejam realizados, utilizando mes- ma metodologia. A região da Serra da Capivara possui um enorme potencial arqueo- lógico para fornecer maiores informações sobre esse tema. É necessário, portanto que novos estudos continuem sendo realizados, adicionando e confrontando dados, com os resultados já encontrados.

TECHNICAL CHANGES BETWEEN THE INITIAL AND MIDDLE HOLOCENE: THE CASE OF TOCA DO JOÃOLEITE - PI

Abstract: this article presents the techno-functional analysis of two lithic groups associated to the Pleistocene-Holocene transition and Middle Holocene, respectively, and present in the archaeological sequence of Toca do João Leite, in southeastern Piauí. The results of this analysis allows you to verify a deep technical change between these two periods, thus en- abling the emphasis of this break as a regional phenomenon, which occurred in the Central and Northeast Brazil.

Keywords: Pleistocene-Holocene Transition. Middle Holocene. Lithic Technology, Serra da Capivara.

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Notas

1 As datas radiocarbônicas aqui apresentadas foram calibradas a partir da curva de calibração Cal Pal 2007_HULU, disponível em www.calpal-online.de.

2 As 464 estilhas que compõem o conjunto de peças lascadas não foram incorporadas na análise, mas consideradas para corroborar ou refutar as informações obtidas pelos artefatos analisados.

3 Em todos os desenhos apresentados neste artigo, a linha vermelha indica a parte transformativa das peças.

4 Assim como na análise do conjunto 4, as 120 estilhas que compõem o conjunto 2 não foram anali- sadas, mas incorporadas dentro das interpretações do conjunto.

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