Patrimônio X Identidade: A Relação entre a População e o Museu Histórico de Acari/RN
Marília Medeiros Soares
1Pricylla Wanna Lopes
2Resumo
O presente artigo científico trata da relação de uma instituição museológica, Museu Histórico de Acari, localizado no sertão nordestino, com a comunidade da cidade onde este está inserido. Para a realização da pesquisa foi observado o acervo da instituição, para que se percebesse a relação deste com a cultura local; e aplicados questionários junto à população da cidade, com o interesse de observar se esta comunidade reconhece a instituição como representante de sua cultura. No que diz respeito ao referencial teórico procurou-se abordar a importância do patrimônio para uma comunidade, discutindo sua definição e sua relação com a identidade de uma população. São contemplados ainda no trabalho questões referentes à instituição museológica, um breve histórico sobre a difusão desse tipo de estabelecimento no mundo e a apresentação de aspectos da cultura regional nordestina que possuem relevância como representantes da economia, dos hábitos, costumes e história da região Seridó. Esse tipo de abordagem é utilizada por perceber-se a estreita relação entre patrimônio, identidade, e atratividade turística.
Palavras-chave: Patrimônio, Museu, Identidade
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UERN - Universidade Estadual do RN no curso de Turismo;
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Faculdade Câmara Cascudo
Introdução
Após anos de exploração no Nordeste brasileiro de um turismo voltado para o binômio sol e mar está sendo iniciado um trabalho que visa a interiorização da atividade. No estado do Rio Grande do Norte essa idéia surgiu com maior força a partir do Programa de Regionalização do Turismo, proposto pelo governo federal, sendo escolhido como primeiro pólo o Seridó.
Essa iniciativa foi ocasionada pela grande riqueza natural e principalmente cultural que essa região possui, pois por sofrer grandes influencias do regime de chuvas o homem sertanejo precisa encontrar as mais diversas alternativas de sobrevivência e trabalho, fazendo assim com que a luta diária construa uma cultura específica e muito rica.
Para analisar a importância do reconhecimento dessa cultura em uma comunidade e observar a relação que pode existir entre uma instituição cultural e a população da cidade onde esta está inserida foi escolhido como objeto de estudo o Museu Histórico de Acari. Para a realização da pesquisa foi feita uma observação do acervo da instituição, com o objetivo de analisar a sua ligação com a cultura local, e uma pesquisa junto à população local, com a intenção de perceber qual a relação existente entre ela e a instituição. Essa metodologia foi escolhida por acreditar-se na estreita ligação entre patrimônio e identidade e na percepção de que com a identificação de uma cultura pela população envolvida esta terá sua importância reconhecida pelo visitante.
Patrimônio X Identidade
Até a Segunda Guerra Mundial a ideia de patrimônio se restringia a obras de arte de grande valor ou a monumentos ligados às classes dominantes de uma sociedade. Entretanto, após esse importante momento histórico surgiu o conceito da nouvelle histoire, que passou a propor o estudo, pelas diversas áreas do conhecimento, não só dos grandes acontecimentos políticos, mas também do cotidiano das pessoas. Assim, passou-se a não valorizar apenas a
“história oficial”, obtendo cada vez mais espaço a “história social”. (BARRETO, 2000) Com essa nova tendência foi cada vez mais valorizada a petite histoire, ou história
das minorias. Assim o patrimônio, que antes era considerado como os prédios e utensílios
utilizados pelos nobres, passou a ser definido como “o conjunto de todos os utensílios,
hábitos, usos e costumes, crenças e forma de vida cotidiana de todos os segmentos que
compuseram e compõem a sociedade.” (BARRETO, 2000, P.11)
No Brasil a relação do conceito de patrimônio com o de reconhecimento e pertencimento ainda está em um processo de formação de uma realidade, pois é evidente a distância entre o patrimônio cultural e a maior parte da população do país. Esse fato se deve à história, que retratou até a década de 1980 as classes menos favorecidas como trabalhadores, mas não como construtores de cultura.
De acordo com o histórico retratado a ideia original de patrimônio é a de representação do passado das nações e sociedades, mas essa função tem a cada momento se expandido. Para o poder público seu papel atual é o de mercadoria cultural, enquanto para parte da sociedade é considerado um fator relevante para a manutenção da qualidade de vida.
(RODRIGUES, 2003)
Mas o patrimônio, reconhecido como legado cultural de uma sociedade, tem uma função maior, ele tem o poder de trazer o conceito de identidade, o qual implica, segundo Barreto (2000, p.46) “o sentimento de pertença a uma comunidade imaginada, cujos membros não se conhecem, mas partilham importantes referencias comuns: uma mesma história, uma mesma tradição.” Essa identidade, mesmo que algumas vezes passe despercebida, tem a responsabilidade essencial de trazer segurança às pessoas. Elas se tornam unidas por laços como os antepassados, um lugar, um costume, ou hábitos. Esses referenciais são fundamentais para que os diversos tipos e estilos de mudanças e informações oferecidas a todo momento não façam com que as pessoas esqueçam quem são e de onde vêm.
O patrimônio significa a materialidade dos diversos aspectos que representam uma sociedade, estando estes ligados a formas peculiares de vida. Por estar ligado a essa peculiaridade o patrimônio possui uma grande importância para a comunidade que o detém, o que está evidente na definição de patrimônio realizada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) apud Vinhas (2006, p. 54) , para quem o patrimônio significa “o legado que recebemos do passado, vivemos no presente e transmitimos às futuras gerações. Nosso patrimônio cultural e natural é fonte insubstituível de vida e inspiração, nossa pedra de toque, nosso ponto de referência, nossa identidade”.
Tendo o patrimônio tal importância para a preservação da identidade de um povo sua
manutenção tem o poder de garantir a sobrevivência da memória social de uma localidade,
servindo assim como sua estrutura (Vinhas, 2005). Além do papel de testemunho do passado
e de remanescente concreto da memória, o patrimônio permite ainda ao homem a
oportunidade de partilhar uma cultura e perceber o sentimento de grupo e de identidade
coletiva. (RODRIGUES, 2003)
Dada a sua função, a preservação do legado de um povo se torna um fator de fundamental importância, já que a recuperação da memória coletiva ocasiona o reencontro com os símbolos e com o amor ao local, podendo ocasionar assim um ciclo onde esse sentimento seja sempre realimentado e leve ao conhecimento e à valorização de uma cultura.
Essa relação do homem com o patrimônio está explicitada em um documento divulgado pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos) quando se afirma:
Todo homem tem direito ao respeito aos testemunhos autênticos que expressam sua identidade cultural no conjunto da grande família humana; tem direito a conhecer seu patrimônio e o dos outros; tem direito a uma boa utilização do patrimônio; tem direito de participar das decisões que afetam o patrimônio e a valores culturais nele representados; e tem direito de se associar para a defesa e pela valorização do patrimônio. (RODRIGUES, 2003, P. 23)
Para que esses direitos sejam respeitados podem ser utilizadas as mais diversas alternativas. Uma das formas mais comuns de conservação de um legado cultural é a manutenção deste em instituições como o museu, que de acordo com o ICOM
3(apud BARRETTO, 2007, p. 144) é “ uma instituição sem finalidade lucrativa, permanente, a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, pesquisa, comunica e expõe, para fins de estudo, educação e fruição, a evidência material do homem e de seu ambiente”
O Museu como Representante da Cultura Local
Os museus são por excelência instituições detentoras do patrimônio cultural. Seu papel fundamental é de conservação, preservação e respeito às gerações futuras. De acordo com Nora apud Oliveira (1995, p. 06) esse tipo de instituição tem como razão fundamental de ser a de “fixar o tempo, bloquear o trabalho do esquecimento, imortalizar a morte, materializar o imaterial, agregando múltiplos sentidos em poucos signos; e o que torna apaixonante é sua aptidão para a metamorfose – a incessante renovação de sua significações”.
Os museus são provenientes do fenômeno social do colecionismo, que surgiu a partir da necessidade do homem de constituir coleções e protegê-las, atribuindo valores à realidade natural e cultural. As primeiras instituições surgiram no século III A.C., em Alexandria, destinadas às classes dominantes e preocupando-se, segundo Lopes (1998), em reunir todo o saber da época em todos os domínios do conhecimento.
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ICOM: International Council of Museuns ou Conselho Internacional de Museus, órgão ligado à
UNESCO que tem como função discutir os rumos da museologia mundial.
A proliferação e diversificação desse tipo de instituição ocorreram no período do renascimento, quando houve a expansão do mundo ocidental e o grande desenvolvimento das artes, da história e do estudo da natureza. Mas os museus não foram criadas para abrigar todos os públicos, sendo essa visão modificada a partir da Revolução Francesa. Nesse período, com o surgimento dos pensamentos democráticos essas instituições aos poucos foram sendo abertas para o público em geral. Um exemplo dessa mudança de pensamento foi a reformulação do estatuto do Museu Britânico, em 1810, que passou a permitir a entrada de
“qualquer pessoa de aspecto decente”
4no museu.
A partir do século XIX surgiu a preocupação de que os museus assumissem um caráter educativo, então houve uma profunda modificação na configuração desses estabelecimentos, tornando-se assim instituições com caráter científico.
Nesse contexto os museus continuaram sua proliferação e diversificação por todo o mundo, sendo criadas assim as primeiras intituições latino-americanas. Como tudo na época, e principalmente em relação à cultura, o Brasil seguia os passos dos países mais desenvolvidos. Como afirma Lopes (1998, p. 21)
Reflexos da situação pela qual passavam os museus europeus, os latino- americanos foram criados pelos poderes públicos como instituições de pesquisa, como recintos abertos à população culta da época, incentivando por vezes os cursos de nível superior e contituindo-se, com algum atraso, nos primeiros guardiões dos restos da espoliação
No início do séc. XX esse tipo de instituição sofreu com a falta de incentivo, pois as modificações ocasionadas pelas duas guerras mundiais, as transformações sócio-econômicas e a disseminação dos meios de comunicação de massa ocasionaram o esquecimento dessas instituições na Europa.
Na América Latina os museus acompanhavam ao europeus, sobrevivendo com poucas visitações e sem o incentivo necessário da iniciativa privada ou estatal. Essa situação só mudou a partir das décadas de 1940 e 1950, quando sob a influencia de instituições americanas tiveram um período de remodelação e modernização.
Nos anos de 1960 Europa, Estados Unidos e alguns países do terceiro mundo colocaram em discussão questões referentes ao papel desse tipo de instituição na conjuntura da época, o que acarretou em uma reestruturação de políticas culturais que atingiram as áreas de educação e cultura, e consequentemente os museus.
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Herreman apud Lopes, 1998, p. 19
A partir de 1970 “educação popular”, “desenvolvimento global” e “democracia cultural” tornaram-se palavras comuns no campo da museologia, o que acarretou no lançamento de novas bases e novos movimentos nessa área.
O Museu Histórico de Acari em seu Contexto
Para analisar a ocorrência das funções devidas a uma organização com fins museológicos foi observado o Museu Histórico de Acari, conhecido como Museu do Sertanejo. Essa instituição funciona no município de Acari, na região Seridó do estado do Rio Grande do Norte. A região tem como vegetação predominante a caatinga, com cactos, arbustos e pouca vegetação de grande porte. O clima é quente, sendo a média pluviométrica de 550 mm/ano, com chuvas concentradas nos primeiros meses do ano e insolação média de 3.000 horas de luz solar ao ano. Pelas características descritas é possível perceber que o Seridó encontra-se no conhecido perímetro das secas do Nordeste brasileiro. No estado do RN é a região que sofre maior influência do processo de desertificação. (SEBRAE, 2006)
O Museu Histórico de Acari foi fundado no ano de 1990 com a finalidade de recolher, inventariar, expor e desenvolver estudos dos bens culturais e naturais do Município e de toda a região Seridó. A instituição segue uma temática bem definida, retratando a história do homem sertanejo, tendo como enfoque sua economia e seus costumes. Funciona em um prédio cuja construção data 1878 e que teve como primeira função a de abrigar a Intendência Municipal no pavimento superior e o Quartel de Polícia e cadeia no térreo. Por sua imponência e beleza é considerado monumento nacional, tombado pelo IPHAN
5, em 1964.
No pavimento térreo é retratada a história da fundação do município e a economia da região, sendo as temáticas divididas por salas. Os primeiros cômodos representam a origem e fundação da cidade de Acari, e as principais culturas representativas da economia da região, como o algodão, a pesca, a mineração e a pecuária, sendo esta última uma atividade de grande influência nos hábitos e costumes do homem sertanejo. Esta atividade tem grande importância histórica para a região, pois a sua colonização foi conseqüência da braveza daqueles que ousaram ocupar aquele espaço, sendo o primeiro objetivo do desbravamento dos sertões a criação do gado, para servir como fonte de alimentação e força motriz para os engenhos litorâneos.
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