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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Henrique Garbellini Carnio

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Academic year: 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Henrique Garbellini Carnio

O direito e a política entre a obligatio e o bando

DOUTORADO EM DIREITO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Henrique Garbellini Carnio

O direito e a política entre a obligatio e o bando

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito na área de Filosofia do Direito e do Estado sob a orientação do Prof. Doutor Willis Santiago Guerra Filho

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

O processo de produção e de criação de um trabalho acadêmico que se prolonga por praticamente quatro anos não é algo que se concretiza sozinho. De forma direta e indireta algumas pessoas contribuem distintamente para seu acontecimento, razão pela qual gostaria de deixar registrado aqui meu agradecimento.

Com apreço, agradeço ao prof. Willis Santiago Guerra Filho que além de ter realmente me iniciado nos estudos sobre a teoria e filosofia do direito, me ensinou a pensar mundividência.

Agradeço também aos meus familiares pelo apoio zeloso e agradável que contribuíram para vários dias de escrita produtiva no aconchego familiar da residência de minha mãe e irmã no litoral de São Paulo.

De forma distinta, ao professor Oswaldo Giacoia Junior pelos vitais auxílios e interlocuções sobre o tema.

Ao professor Nelson Nery Junior pela disponibilização de sua insuperável biblioteca e por ter conseguido para meus estudos as obras de Albert Hermann Post, autor fundamental para o trabalho.

Ao professor Tércio Sampaio Ferraz Junior pela atenção pontual em momentos específicos da trajetória deste trabalho.

Ao professor Selvino Assman pelas reflexões propostas e magníficas traduções do italiano.

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Ao meu amigo, companheiro maior de jornada acadêmica, Rafael Tomaz de Oliveira, estudioso fenomenal do direito, de genialidade e autenticidade apreciáveis, pela agradável convivência em nossas viagens e encontros e pelas conversas sobre este trabalho.

A Henderson Fürst pelos diálogos, incentivos e confiança e a Edson Kyioshi Nacata Junior, pelo apontamentos e ajuda com os autores romanos e italianos. Aproveito a oportunidade para registrar minha admiração por ambos.

A Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, grande amigo que fiz no início do curso de doutoramento e que desde então revela seus atributos como uma pessoa franca e parceira na vida pessoal, acadêmica e profissional.

A Giovanna Naldi, Antonio Marcos Beretta e Joaquim Eduardo Pereira pela sincera amizade que se construiu no reconhecimento imediato como pessoas que reúnem predicados raramente encontrados, já que em sua vida fazem de seu discurso suas ações.

A Thaís Franzé, pelo seu companheirismo e dedicação em nossa afortunada convivência e, em especial, pela paciência contra esta inclemente concorrente.

Aos professores Marcio Pugliesi pelos valiosos apontamentos na banca de qualificação e por sempre se mostrar disposto em ajudar nos aprofundamentos de meus estudos, à professora Márcia Alvim pelas contribuições metodológicas indicadas e ao professor Carlos Eduardo de Abreu Boucault pela aceitação do convite para participar de minha banca.

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A Marcella Abboud pela cuidadosa revisão gramatical do texto e pelas valiosas contribuições.

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O direito e a política entre a obligatio e o bando

Henrique Garbellini Carnio

RESUMO

A presente tese objetiva abordar o problema da relação entre direito e poder em sua articulação com a política e a violência. Há no trabalho a pretensão de demonstrar que a problemática instaurada revela atualmente uma zona de indeterminação entre os meandros do direito e da política. Com isso, pretende-se lançar as bapretende-ses de uma introdução à teoria política do direito, ou pretende-seja, de propor as bases de uma teoria político-jurídica que contribua de maneira enfática e crítica na discussão dos atuais problemas jurídicos, em especial, das características situações que evidenciam um uso do direito enquanto força manipuladora de governabilidade que ocasiona desorientação da própria vida e revela uma dimensão em que o direito e as instituições que dele se utilizam voltam-se contra si mesmas gerando uma profunda banalização das noções de legalidade e legitimidade. A proposta tem um mote investigativo genealógico que entende, de modo relacional, o direito e a política enquanto fenômenos tipicamente humanos que encontram-se enraizados nas dimensões mais profundas do homem, desde as comunidades primitivas e de forma emblemática nos dias atuais.

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The law and the politics between the obligatio and the band

Henrique Garbellini Carnio

ABSTRACT

The present thesis aims to address the relationship between law and power in its relationship with politics and violence. The work claims to demonstrate that the problematization propose reveals a zone of indeterminacy between the intricacies of law and politics. With this, the thesis intends to lay the foundations for an introduction to a theory of politic-law, in other words, to propose the basis of a legal-politic theory that contributes in a emphatic and in critical way in the discussion of the current legal problems, in particular, the characteristics situations that show a use of law as manipulative governance force that causes disorientation of life itself and reveals a dimension in which the law and institutions who use it turn against themselves generating a profound trivialization of the concepts of legality and legitimacy. The proposal has a genealogical investigative method that understands, in a relational way relationally, law and politics as typically human phenomena that are rooted in deeper dimensions of man from primitive communities and in a emblematically form nowadays.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS...p. 13

CAPÍTULO I - O PODER NAS COMUNIDADES PRIMITIVAS

1.1 O Ponto de Partida da Investigação...p. 24

1.2 A Noção de Poder e a Homogeneidade dos Povos Primitivos...p. 28

1.3 O Medo como Elemento Motivacional da Organização Primitiva...p. 32

1.3.1 A lei dos três estados de Augusto Comte...p. 33

1.3.2 O medo e a alma: animismo e magia no pensamento de Sigmund Freud...p. 38

1.3.3 Medo, domínio, vontade de poder e repressão: a contribuição de Nietzsche e a ponte para os tempos atuais...p. 46

1.3.3.1 O medo, o humanismo e a época

moderna...p. 52 1.3.4 O avanço do deserto na modernidade e o medo no ambiente de uma

época técnico-científica pelos caminhos do esclarecimento (Aufklärung)...p. 58

CAPÍTULO II - OS PRIMITIVOS GRUPOS GENTÍLICOS E O CONCEITO DE BANDO COMO ELEMENTO ORIGINÁRIO DA POLÍTICA

2.1 Os Primitivos Grupos Gentílicos...p. 61

2.1.1 O totem como elemento comum nas organizações gentílicas...p. 61

2.1.2 A solidariedade gentílica e a ideia de vingança...p. 71

2.2 O Bando Como Elemento Originário da Política...p. 76

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2.2.2.2 O Homo sacer, o wargus e o Friedlos (Rudolf von Jhering)...p. 92 2.3 A Concepção de Sacrífico e sua Ligação com o Sacer...p. 97 2.3.1 O sacrifício e o paradoxo do soma...p. 101 2.4 A Crítica Genealógica das Teorias Contratuais como Abordagem Conclusiva Inicial do Bando (Nietzsche)...p. 113

CAPÍTULO III - DIREITO E VIOLÊNCIA NA ZONA DE INDETERMINAÇÃO DO BANDO NA CONTEMPORANEIDADE

3.1 Direito, Violência e Relações de Dominação e Poder...p. 120

3.2 Os Tempos Atuais e a Biopoder...p. 121

3.3 Do Bando ao Apátrida: O Estado-Nação e a Salvação Paradoxal como Criminoso ou Gênio...p. 125

3.4 Do Bando ao Muselman...p. 131 3.5 Direito e Violência / Violência a Política...p. 145

3.6 A Proposta de uma Teoria Político-Jurídica na Dimensão da Relação entre Direito, Política e Violência...p. 155

CONSIDERAÇÕES FINAIS...p. 168

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...p. 180

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Para o pessimismo da força. - Na economia interior da alma do homem primitivo prepondera o medo do mal. O que é o mal? Três coisas: o acaso, o incerto, o súbito. A História da civilização representa uma diminuição daquele medo do acaso, do incerto, do súbito. Como o homem primitivo combate o mal? - Concebe-o como razão, como potência, como pessoa mesmo. Com isso ganha a possibilidade de entrar com ele em uma espécie de pacto e, de modo geral, atuar previamente sobre ele - preveni-lo. […] Civilização significa justamente aprender a calcular, aprender a pensar casualmente, aprender a prevenir, aprender a acreditar em necessidade [...].

Friedrich W. Nietzsche. A vontade de potência.

As folhas da escritura agem como um phármakon que expulsa ou atrai para fora da cidade aquele que dela nunca quis sair, mesmo no último momento, para escapar da cicuta.

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A discussão sobre a relação entre o direito e a política se apresenta como um tema polêmico nos dias atuais. Por um lado, a proposta de um pensamento político-jurídico seria redundante se sua análise ficasse pautada na verificação do pleno conteúdo social do direito, já, por outro, seria meramente histórico-cronológica se fosse pautada na linha de uma investigação cronológica, ou mesmo lógica, da história do pensamento político.1

Ambas vertentes mencionadas povoam a maioria dos estudos jurídicos sobre o tema e são evidenciadas, em especial, nas matérias propedêuticas do ensino jurídico, como, por exemplo: na introdução ao direito, ao se referir à origem e ao conceito de direito; na sociologia jurídica, ao se referir ao direito como fenômeno social; na teoria geral do estado, na relação da história do pensamento político e até mesmo na possível diferenciação entre ciência política e teoria geral do estado; na história do direito, certas vezes centrada na verificação do seu desenvolvimento científico; em outras, em análise temporal cronológica; e, por fim, nos estudos de antropologia jurídica no reporte ao desenvolvimento do direito no processo civilizatório.

Esta constatação revela que, se os estudos sobre o conteúdo político do direito mantiverem-se na zona de superficialidade das formas jurídicas – tal qual atualmente se encontram – os problemas centrais que, em

      

1 Ressalta-se, inicialmente, que a formatação do texto em seus aspectos estruturais seguiu as

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geral, envolvem a realidade do direito (em sua capacidade de dominação e exercício de violência) não serão devidamente enfrentados.

Diante desse fato, cabe, então, propor, a partir da reflexão crítica dessa insuficiência, uma depuração crítica orientada de forma adequada metodologicamente, isto é, uma investigação antropológica, de cariz etnológico2, sobre o direito em seu relacionamento embrionário com a noção

de poder.

O ambiente desse relacionamento – e os termos que aos poucos com ele vão se conjecturar, como os conceitos de violência, poder, força, dominação e exceção -, constituem a base de uma pesquisa que pretende ter fôlego para investigar o direito em seu dimensionamento político. Mais: pretende-se compreender como este fato, hodiernamente, determina a necessidade de se rever algumas das formas do próprio pensamento jurídico.

Interessante notar que, dependendo do prisma pelo qual se olha a questão das relações entre direito e poder, que estão plenamente coordenadas sobre as matrizes da política e da violência, diferentes enfoques podem ser dispostos.

Se a análise fosse pautada em termos pré-civilizatórios, como nas comunidades primitivas, encontrar-se-ia uma genealogia do próprio direito, do poder e da civilização. Nelas, verifica-se que as relações de débito e crédito (troca, escambo) e sua consequente projeção violenta em termos de medo e castigo dos ancestrais determinaram as relações humanas e propiciaram o terreno de todo o processo civilizatório.3

      

2 Albert Hermann Post foi um dos principais autores a se dedicar ao estudo etnológico do

direito, em seu Esboço de uma jurisprudência etnológica (Grundriss der ethnologischen jurisprudenz). Logo na Introdução (Einleitung), o autor oferece a importância do estudo etnológico do direito. Cf. POST, Albert Hermann. Grundriss der ethnologischen jurisprudenz, Oldenburg und Leipizig: A. Schwartz, 1984, n. 1, § 1°, p. 1.

3 A referência sobre a investigação das comunidades primitivas, aqui explorada, tem como base

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Poder-se-ia ainda, restringir essa relação no mencionado reducionismo, que limita o direito às relações de poder, causando sua politização absoluta com ramificações possíveis para o absolutismo, autoritarismo e mesmo totalitarismo.

Por fim, projetando de forma histórica a análise, chegar-se-ia à figura do Estado Moderno e toda sua configuração político-jurídica, o que ocasiona outro tipo de reducionismo, metodologicamente dizendo, pois torna a política e o próprio direito uma forma jurídica de exercício do poder.4

Em termos jurídicos, mais precisamente em termos de teoria do direito, a discussão aqui proposta - que interessantemente perpassa a matriz antropológica do processo civilizatório, perpassa, também, as teorias contratualistas e suas críticas em relação às teorias da dominação e poder como configuradoras do Estado, bem como o próprio positivismo jurídico normativista kelseneano e suas instâncias críticas atuais ( que tem sido retomado na mais variada gama dos estudos jurídicos do pós 2ª guerra mundial) - revela a questão de se caracterizar a legitimidade do emprego da violência pelo direito para regular as relações sociais.

Isto traz à tona a hipótese do estudo aqui empreendido, cuja orientação ocorre pela trama que envolve o direito, a relação entre poder e o direito, bem como a violência.

No desenvolvimento dessa hipótese, a pretensão é a de demonstrar que sua discussão instaura praticamente uma zona de indeterminação entre os meandros da filosofia política e da filosofia jurídica.

       Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, 2008, p. 19-48. Há de se ressaltar que o material da referida dissertação foi ampliado e complementado se transformando na obra

Direito e antropologia. Desse modo, cf. CARNIO, Henrique Garbellini. Direito e antropologia: reflexões sobre a origem do direito a partir de Kelsen e Nietzsche, São Paulo: Saraiva, 2013, p. 41-66.

4 GUERRA FILHO, Willis Santiago. (Anti-)Direito e força de lei/ lei in Panóptica, 2010, ano 1,

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Com isso, pretende-se lançar as bases de uma introdução à teoria política do direito, ou seja, de propor as bases de uma teoria político-jurídica que contribua de maneira enfática e crítica na discussão dos atuais problemas jurídicos, em especial, das características situações que evidenciam um uso do direito enquanto força manipuladora de governabilidade, o que ocasiona desorientação da própria vida.

A forma de acesso dessa proposta passa por três elementos fundamentais que conjugam todo trabalho, a saber: o conceito de teoria, de política e de direito.

O intuito de se apresentar algo em forma de teoria decorre da assunção de um compromisso com o estudo do direito atrelado à sua dinâmica científica5, tendo em vista as específicas particularidades com que o estudo científico do direito pode ser feito, haja vista, na atualidade, o modo especial como seus estudos hermenêuticos ganham espaço a partir de novas e profundas discussões.6

Fato é que a ciência jurídica é um elemento fundamental da tradição jurídica ocidental, pois, pelo menos, desde o século XII, os estudiosos do direito compuseram uma série de estudos dispostos a ordenar e sistematizar os conjuntos de textos normativos.

       5

Sobre essa orientação, esclarecedor o comentário de Willis Santiago Guerra Filho: O século XIX traz à baila a chamada Escola Histórica, a qual, conforme já aludimos, emprega pela primeira vez a expressão “ciência do direito” (Rechtswissenschaft, Jurisprudenz). Nesse momento, instaura-se o confronto que serve de orientação às mais diversas teorias jurídicas aparecidas desde então. Trata-se da oposição entre a concepção sistemática, de caráter formal-dedutivo, representada pelo jusnaturalismo racionalista, e aquela que acentua a inserção histórica e social do Direito, que determina a busca do jurídico onde ele se dê concretamente, ou seja, na experiência jurídica dos povos”. GUERRA FILHO, Willis Santiago; CARNIO, Henrique Garbellini (col.). Teoria da ciência jurídica, 2 ed., Saraiva: São Paulo, 2009, n. 1.3, p. 38.

6 Cf. sobre o tema: ABBOUD, Georges; CARNIO, Henrique Garbellini; OLIVEIRA, Rafael

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Dessa forma, assume-se aqui a constatação da ciência do direito como uma base mesmo das ciências sociais modernas. Isto é muito pouco evidenciado nos escritos científicos sobre o direito, muito provavelmente, pelo ranço da noção de “rigor” causado na tentativa de acesso “científico” das formas jurídicas e, também, pela forma como seu estudo se comprometeu com a analogia das pesquisas com as ciências da natureza, em especial da matemática, o que gerou a construção dos grandes modelos sistemáticos de conhecimento do direito, que teve como apogeu o século XVIII e cuja depuração máxima foi sentida com a doutrina (Lehre) kelseniana no ambiente dos séculos XIX e XX.

De modo condizente com o exposto, Harold Berman afirma que, na verdade, a ciência jurídica é que representa uma espécie de “protótipo” das ciências ocidentais (modernas) e não o contrário, como comumente se identifica. Nas palavras do autor: “uma ciência, no sentido ocidental moderno, pode ser definida por três conjuntos de critérios: o critério metodológico, o da validade e o sociológico. Por qualquer um dos três, a ciência dos juristas do século XII foi a progenitora das ciências ocidentais modernas.”7

A introdução à teoria aqui defendida pretende, como todo acesso teórico inicial, delimitar um ambiente relacional do direito com a política, informando, fundamentalmente, que direito e política são indissociáveis.

Nesse sentido, a afirmação da própria ciência do direito como modelo de ciência social moderna afasta o problema de uma investigação científica despregada de critérios metodológicos, evitando fórmulas que esvaziam a importância de um estudo científico do direito ao mesmo tempo em que critica o excesso de formalismo proposto no estudo do direito, cujo ápice pôde ser sentido na manifestação desmesurada do positivismo jurídico.

De modo relacional, direito e política, enquanto fenômenos tipicamente humanos, encontram-se enraizados nas dimensões mais

      

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profundas do homem, até mesmo em seu próprio corpo8, que se apresenta como um sustentáculo de ambos, seja nas comunidades primitivas bem como na sociedade moderna – ainda que de forma mais sutil.

Nesta linha de raciocínio, o compromisso de uma investigação política é própria do direito, do mesmo modo que é próprio a este uma investigação política. Enquanto se propõe uma teoria política do direito está, ao mesmo tempo, propondo-se uma introdução à política pelo direito, pois enquanto a política está relacionada com as atividades das relações humanas, desde sua manutenção, reprodução, procriação, organização, fim, dentre outras, o Direito estipula o regramento de todas essas atividades, possibilitando-as.

O esforço dessa conjunção tem como objetivo realizar um estudo do direito de caráter fundamental e introdutório, em conexão com a política - ou seja, com o poder - e as implicações dessa relação para a organização em sociedade dos homens, em especial com o fito de revisitar formas jurídicas e refletir sobre atuais problemas que se vivencia na vida em sociedade, mormente, pela atual fase de predomínio técnico-científico em que vivemos, com inúmeros problemas para os quais não se encontram respostas e, aparentemente, mesmo as têm sido dadas não oferecem nenhuma efetividade.

Metodologicamente, então, para cumprir com o intuito lançado, não é possível propor uma análise que aposte numa abordagem histórica

       8

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meramente lógica, histórico-cronológica, ou mesmo histórico-monumental9. O estudo se guiará na linha de um estudo antropológico - genealógico10,

       9

A referência ao tema de uma história monumental aqui feita tem como base o pensamento de Friedrich W. Nietzsche na interessante passagem de sua segunda Consideração extemporânea: “Somente se a Terra iniciasse sempre de novo sua peça de teatro depois do quinto ato, se estivesse firmemente estabelecido que o mesmo nó de motivos, o mesmo deus ex machina, a mesma catástrofe, retornassem a intervalos determinados, poderia o forte desejar a história monumental em toda sua veracidade icônica, isto é, cada fato precisamente descrito em sua especificidade e singularidade: provavelmente, portanto, não antes que os astrônomos se tenham tornado outra vez astrólogos. Até então, a história monumental não poderá usar daquela veracidade total: sempre aproximará, universalizará e por fim igualará o desigual; sempre depreciará a diferença dos motivos e das ocasiões, para, à custa das causas, monumentalizar os

effectus, ou seja, apresentá-los como modelares e dignos de imitação: de tal modo que, porque ela prescinde o mais possível das causas, poderíamos denominá-las, com pouco exagero, uma coletânea de ‘efeitos em si’, de acontecimentos que em todos os tempos farão efeito. Aquilo que é celebrado nas festas populares, nos dias comemorativos religiosos ou guerreiros, é propriamente um tal ‘efeito em si’: é ele que não deixa dormir os ambiciosos, que está guardado como um amuleto no coração dos empreendedores, e não a conexão verdadeiramente histórica de causas e efeitos que, completamente conhecida, só provaria que nunca sairá de novo um resultado exatamente igual no jogo de dados do futuro e do acaso”. Cf. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Considerações extemporâneas in Os Pensadores (col.), 1974, vol. XXXII, p. 69.

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arqueológico - que terá como fundo de análise primeira o conceito de bando (Bann) nas comunidades primitivas, desenvolvido sobremaneira no arcaico direito germânico como uma transposição posterior da matriz de direito obrigacional de débito e crédito para o plano das comunidades primitivas e nas relações entres seus indivíduos.

O ponto de partida se justifica, pois entendemos que as primeiras manifestações jurídicas surgem nas comunidades primitivas e ordinariamente costuma-se considerá-las como revestidas de caráter religioso, levando em conta principalmente que as instituições religiosas eram as dotadas de maior autoridade nos grupos sociais nos quais as funções de trabalho individuais e o sentido de vida coletivo ainda não haviam ensejado algo como o Estado.

Nessa ordem, o estudo trata da conexão entre os fenômenos jurídicos e religiosos a um momento anterior ao da formação da civilização moderna, a um momento em que se projeta o início do processo civilizatório, no qual, inclusive, os indivíduos prescindiam da crença abstrata de um ente superior, transcendente. Nesse momento, contudo, nutriam um sentimento diferente acerca do divino e sobrenatural, reconhecidamente um sentimento mágico e não autenticamente religioso. Era justamente nesse processo primitivo de humanização que havia a predominância da ancestral de direito pessoal obligatio que vigia nos atos de troca, de escambo, de débito e de        que compreendem o modo de dizer, que traduzem a maneira de viver e de considerar as coisas. Em sua Arqueologia dos Saberes ele não vai descrever a história das ciências, pois fazer arqueologia é procurar os princípios, arché, a fonte de onde procede o saber. Revelando importantes aproximações de seu pensamento com Nietzsche e sob sua influência, na temática do direito: cf. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, Trad.: Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, Rio de Janeiro: Nau, 1999 e também a importante obra de Márcio Alves da Fonseca, Michel Foucault e o direito, cujo primeiro capítulo trata justamente sobre uma genealogia da norma e revela importantes traços do pensamento foucaultiano ao tratar sobre a “imanência da norma”, revelando o entendimento de que não há uma norma em si. Cf. FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito, São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 37-91. Por fim, desenvolvendo a temática seria interessante entender como Roberto Esposito analisa o tema “El primero es Nietzsche, y en particular el Niezsche <<genealogista>> interpretado por Foucault como aquel que primero, y mejor que nadie, desconstruyó la concepción sagrada del origem [...]”. ESPOSITO, Roberto. El orgien de la política, ¿Hannah Arendt o Simone Weil?, Barcelona: Paidós, 1999, cap. IV, p. 27-36.

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crédito, atos que determinam a forma mais antiga das relações humanas nos primórdios dos patamares civilizatórios.

A transposição dessa matriz originária do processo civilizatório, que indica os pontos iniciais não só da religião e do direito no processo civilizatório, encontra no conceito de bando a procedência – pudenda origo – da política, que nesse processo está plenamente imbricada na matriz antropológica do processo civilizatório.

A partir do conceito de bando, chega-se ao conceito de banimento, isto é, a expulsão – a ex-clusão – do integrante para fora do laço social. “O banimento corresponderia, então, a um desligamento subsequente ao

rompimento da obligatio, que vincula os membros de uma sociedade à obediência a

seus usos e costumes; ele tem, portanto, o sentido de uma expulsão da comunidade, onde reinam a paz e a lei [Friedlosigkeit], expondo o infrator desprotegido à violência e ao arbítrio de forças naturais ou humanas.11

No revolvimento deste solo antropológico, encontra-se um conceito originário de política não tradicionalmente estudado e que contribui na compreensão da indissociável ligação entre política e direito e no reconhecimento de que tanto o direito quanto a política se enraízam na força e na violência.

A tese, utilizando como ponto de partida o conceito de bando como a relação política originária, permite, também, por em questão toda teoria da origem contratual do poder estatal12, fator fundamental para os desígnios do

trabalho, que constatará, no processo constitutivo da figura do Estado, as vias orientadas primordialmente por relações de dominação e poder, força e

       11

GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. A autossupressão como catástrofe da consciência moral in

Estudos Nietzsche, Jan/Jun 2010, vol. 1, n. 1, p. 97.

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violência, evidenciando como a política ocidental moderna se forma como uma biopolítica.13

A questão do sentido de bio na biopolítica centra-se na revelação de como, em nossa época, o corpo biológico do cidadão ocupa um lugar central nos cálculos e estratégias do poder. Na realidade, o corpo sempre foi um lugar privilegiado na demonstração e revelação do poder social vigente14.

Desde o início, as relações humanas são tomadas por relações de dominação e poder e é justamente esse fato, na matriz do processo antropológico, que envolve as bases da política, do direito, da religião e até mesmo do processo de desenvolvimento intelectual-psicológico dos homens.

Os indícios da investigação fornecem possibilidade de se deslocar interpretações de conceitos fundamentais político-jurídicos permitindo uma reflexão diferenciada sobre o relacionamento do direito com o poder – em especial, na faceta da violência – e com a política, o que evidencia a necessidade de renovação de conceitos e formas jurídicas.

O interessante é que esses indícios também revelam que as questões postas como pontos de interlocução de nossa hipótese não são normalmente consideradas como aptas a um tratamento científico-jurídico, pois       

13 A significação do termo biopolítica fica clara no momento em que se instaura um novo

modelo – de relacionamento humano – que ressalta a tomada do poder sobre o homem enquanto ser vivo e que tem no Estado do século XIX sua força catalisadora. Segundo Foucault: [...] uma das mais maciças transformações do direito político do século XIX consistiu, não digo exatamente em substituir, mas em completar esse velho direito de soberania – fazer morrer ou deixar viver – com outro direito novo, que não vai apagar o primeiro, mas vai penetrá- lo, perpassá-lo, modificá-lo, e que vai ser um direito, ou melhor, um poder exatamente inverso: poder de ‘fazer’ viver e de ‘deixar’ morrer [...]. FOUCAULT, Michel. Aula de 17 de março de 1976 in Em defesa da sociedade, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 287. Sobre o contexto do conceito de biopolítica e suas formas atualmente, cf. ESPOSITO, Roberto. Bíos: biopolitics and philosophy, Minneapolis: University of Minnesota press, 2008, p. 13-44.

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não estão de acordo com o padrão ou paradigma predominante na modernidade, o positivista. O positivismo foi a base na qual se desenvolveu uma crença na possibilidade de se atingir uma verdade definitiva, desde que abdicando de certa dimensão dos problemas que enfrentamos enquanto sujeitos humanos.

Ocorre que, exatamente nessa dimensão subjetiva, é que acabamos sendo atingidos e questionados sobre o valor e sentido de nossa própria existência.

Nos entremeios apresentados, o escopo não é de um texto que faça uma apresentação perfunctória de temas e teorias, mas, antes de tudo, de um texto que transmita uma provocação ao despertar de uma consciência da situação do homem moderno, que vive um mundo marcado por constantes apelos à violência e ao arbítrio, problemas de direito e da política.15

      

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CAPÍTULO I - O PODER NAS COMUNIDADES PRIMITIVAS

1.1 O Ponto de Partida da Investigação

Os estudos etnológicos nos últimos tempos ganharam novas perspectivas a ponto, de hoje, o estudo das ditas sociedades primitivas16 não

estar mais tão relegado a um plano de exotismo.

Este fato fez retomar o interesse para os estudos das sociedades consideradas como primitivas, eximindo, em parte, seu exílio e projetando novas possibilidades de investigação para os estudos sociais.

No campo jurídico, apesar de muito pouco desenvolvido no Brasil, os estudos etnológicos relacionados ao direito apareceram com maior especificidade nos séculos XIX e XX, cabendo destacar em especial o esforço dos franceses em suas investigações antropológicas por parte de sociólogos e antropólogos que se dedicaram sobre o tema, servindo muito bem de exemplo Émile Durkheim e seu sobrinho Marcel Mauss na segunda quadra do séc. XIX e, mais recentemente, autores como Levi-Strauss, Pierre Clastres, René Girard, Roger Bastide, dentre outros. Por outro lado, na Alemanha, cabe registrar, também, desde as preocupações sociológicas de Max Weber sobre o assunto até a dedicação especial de Albert Hermann Post e Joseph Kholer que chegaram a fundar uma revista sobre etnologia jurídica, enfatizando estes estudos na área do Direito.

A proposta de um regresso investigativo das comunidades primitivas tem o condão de servir como base metodológica deste trabalho. Com isso, além de se estipular um caminho, também se está apresentando uma

      

16 Para um conceito de sociedade em antropologia, cf. CASTRO, Eduardo Viveiros. A

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forma de se (re)criar o estudo do direito por uma perspectiva diferenciada que leva em conta seu reconhecimento enquanto linguagem.

A questão é que tal regresso indica a verdadeira polêmica sobre o sentido originário do direito, e, nessa medida, do próprio processo de formação da religião e do Estado.

Nas comunidades primitivas, ocorria o conhecido fenômeno do “sincretismo normativo”. As normas que regulavam a vida social eram agregadas num conjunto indiviso, de maneira que não era possível discriminar quais teriam natureza moral, jurídica, religiosa ou social. Este sincretismo também era acompanhado do fenômeno do “animismo”; a interpretação primitiva considerava a natureza habitada por espíritos e sua falta de consciência do “eu” tomava os animais, plantas e objetos inanimados por essencialmente similares aos homens. Não havia, portanto, uma diferença essencial entre o homem, animal, plantas e demais objetos inanimados da natureza.17

As primeiras manifestações jurídicas surgem nas comunidades primitivas, e, ordinariamente, costuma-se considerá-las como revestidas de caráter religioso, levando em conta principalmente que as instituições religiosas eram as dotadas de maior autoridade nos grupos sociais nos quais as funções de trabalho individuais e o sentido de vida coletivo ainda não haviam ensejado algo como o Estado. A constatação dessa ocorrência se nota em obras clássicas como em A cidade antiga de Fustel de Coulanges. Nela, há a descrição de como entre os gregos, os romanos e até mesmo entre os hindus a lei surgiu, a princípio, como uma parte da religião; e de como os códigos eram um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, orações, ao mesmo tempo em que eram disposições legislativas. Isso antevia a explicação de que os mesmos

      

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homens que eram pontífices eram jurisconsultos, o que resultava na confusão de direito e religião como um todo.18

Predominavam nas comunidades primitivas as relações de troca, de escambo, que num primeiro momento, pela falta de psiquê do homem primitivo, ou seja, pela sua não capacidade de auto reconhecimento, implicavam, inicialmente, numa relação que buscava suprir as necessidades dos membros, inexistindo qualquer ideia de proporcionalidade.19

O apanágio da sociabilidade surge na matriz das relações de troca, em especial, no surgimento das relações entre credor e devedor, que determinam a forma mais antiga das relações humanas nos primórdios dos patamares civilizatórios.

       18

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudos sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma, Trad.: Edson Bini, 2 ed., São Paulo: Edipro, 1999, p. 154-165.

19 Dois importantes autores que refletem sobre o tema proposto são Marcel Mauss e James

(28)

Explicando de forma mais detalhada, a ideia é a de que o estabelecimento organizacional das sociedades primitivas se dava pelas trocas entre os homens e as autoridades sobre-humanas, que, por assim ser, eram representadas na forma de um fenômeno jurídico que identificava um vínculo jurídico originário expresso na mesma noção de obligatio cunhada pelo direito privado romano.20

De forma sintética, o conceito de obligatio romana a que se está referindo aqui é definido por Paul Jörs e Wolfgang Kunkel a partir do entendimento segundo o qual os romanos definiam obrigação (obligatio), ou seja, o direito de obrigação correspondente à ideia de que o devedor estava ligado ao credor. Tal ideia era percebida por um critério de responsabilidade (responsabilização), que, na época do direito romano clássico, já havia cedido consideravelmente, tanto que os juristas da época a empregavam com a       

20

(29)

mesma significação que obligatio o termo debitum, que designava o dever de realizar a prestação21.

Seguindo as trilhas do pensamento nietzscheano, é na relação entre obligatio de direito pessoal e na rudeza e crueldade dos castigos primitivos que se revolve o solo antropológico do surgimento de conceitos “que serão, mais tarde, o apanágio da sociabilidade e da moralidade, tais as categorias fundamentais do imaginário religioso, como também a noção moral de culpa, o sentimento de dever, a consciência da responsabilidade e da autonomia”.22

Portanto, indicado o ponto de partida, cabe agora explorar a questão do exercício do poder nos povos primitivos para que se possa compreender a noção da imediata transposição da matriz de débito e crédito dos primitivos para o conceito de bando.

1.2 A Noção de Poder e a Homogeneidade dos Povos Primitivos

A pista inicial sobre a exploração do conceito de poder nos povos primitivos, aparentemente, pode ser apresentada na seguinte pergunta: o que se entende exatamente por sociedade primitiva?

       21

Na indicação original: “Los romanos llamaban obligation al derecho de obligación, que responde a la idea de que el deudor se halla ligado al acreedor, idea en que se deja sentir el influjo del criterio de la responsabilidad, que ya en la época del derecho clásico había cedido bastante (supra, § 35, 2), tanto que los juristas de la época emplean com la misma significación que obligatio el término debitum, que equivale a ‘débito’ o ‘deuta, y qye designaba el deber de realizar la prestación, no la responsabilidad. Históricamente, considerados estos términos se ha de señalar que el genuíno y más antiguo de los dos, obligatio, debío circunscribirse, al principio, en su significado a lãs obligaciones del derecho civil; más tarde, en el curso de la época clásica, se empleó para designar lãs obligaciones de derecho honorário, adquiriendo entonces la misma, amplia, significación que hoy tiene”. JÖRS, Paul; KUNKEL, Wolfgang. Derecho Privado Romano, Barcelona: Editorial Labor S. A., 1937, § 100, p. 234.

22 GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche e a genealogia do direito in Crítica da

(30)

Pierre Clastres desenvolve uma interessante abordagem ao colocar essa pergunta e indicar que sua resposta pode ser fornecida pela mais clássica antropologia, quando esta pretende determinar o ser específico dessas sociedades e quando se quer indicar o que a faz constituída de formações sociais irredutíveis.

Na realidade, as sociedades primitivas são as sociedades sem Estado, são as sociedades cujo corpo não possui órgão separado do poder político. É conforme a presença – ou a ausência – do Estado que se opera uma primeira classificação das sociedades, originando conceitos para aquelas que seriam com Estado e para as que não o possuem.23

A diferenciação entre elas, para evitar qualquer confusão, permite o compreender que as sociedades com Estado são divididas, em seu ser, em dominantes e dominadas – como evidenciam Maquiavel no cap. XVIII de O príncipe24 e Hobbes no seu mitologema do pacto social25 -, enquanto as sociedades sem Estado ignoram essa divisão, apesar de serem reguladas, também, por relações de força e dominação.

Essa interpretação - por mais passível de crítica que seja -, nos ajuda a refletir sobre a noção de que as sociedades primitivas como “sociedades sem Estado” são, em seu ser, homogêneas porque indivisas,

“reconhecemos aqui a definição etnológica dessas sociedades: elas não têm órgão separado do poder, o poder não está separado da sociedade”.26

O sincretismo normativo e o animismo das sociedades primitivas evidencia a homogeneidade dessas sociedades. Esta homogeneidade permite

      

23 CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência: pesquisas de antropologia política, São

Paulo: Cosac & Naify, 2004, cap. VI, p. 158-187.

24 Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe, 4 ed., São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

25

Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, 3ed., São Paulo: Ícone, 2009, Partes I e II.

(31)

a constatação do que as define precisamente: nelas não se pode isolar uma esfera política distinta da esfera social.

Em interessantíssima investigação, Hans Kelsen, demonstrando uma das facetas de sua genialidade, comenta sobre a interpretação homogênea das sociedades primitivas, afirmando que o homem primitivo apreende a realidade abaixo da categoria pessoal27, utilizando-se de um

pensamento personalista.

O homem primitivo considerava todas as coisas que despertassem sua atenção como homogêneas, algo diferente do que ocorre com o homem moderno. Para ele, os animais, plantas e objetos inanimados eram, em certas situações, identificados como essencialmente similares aos homens com que se convivia em sociedade, ou seja, não havia uma diferença essencial entre o homem, o animal, as plantas e os demais objetos inanimados da natureza.

A consideração de que animais, plantas e objetos inanimados são homogêneos com os membros da tribo, do grupo, acabava determinando o comportamento social do grupo.

       27

(32)

Essa situação era mantida pelo tratamento a todos e tudo que lhes chamava a atenção, sempre com respeito e medo, conforme a prescrição das regras que conduziam sua conduta social. Fato é que as sociedades primitivas assumiam de tal maneira sua atitude de submissão aos animais, vegetais – e até aos utensílios que havia produzido com grande destreza e cuidado – que chegavam a oferecer-lhes rezas e oferendas.

Diante disso, entre os elementos mais significativos que permeiam esta análise, e que também caracterizam as ditas sociedades primitivas, está a falta de consciência do “eu” como base para uma interpretação animista, homogênea e mágica do mundo e da sociedade28. Isto

também explica a maneira pela qual se dava a comunicação29, pois as comunidades não utilizavam a primeira pessoa, o que caracterizava sua carência de desenvolvimento e promovia uma identificação completa do indivíduo com o grupo.

O próprio corpo não era distinguido de suas condições, pois suas qualidades, forças, etc., eram imaginadas todas como substâncias, o que explicava o fato da crença de que algumas qualidades corporais eram transmitidas mediante o toque e de que a enfermidade, por exemplo, era considerada como um mal coletivo.

Com isso, realmente, pode-se expressar que na consciência primitiva não há nenhuma possibilidade de distinção entre indivíduo e

      

28 Interessante pontualmente notar, como bem observa Peter Sloterdjk, que o próprio

conhecimento da gramática equivalia antigamente, em muitos lugares, à mais pura feitiçaria, e, de fato, já no inglês medieval, a palavra glamour desenvolve-se a partir de grammar. Segundo a indicação, fica claro que a palavra magia emerge da palavra gramática. Cf. SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, Trad.: José Oscar de Almeida, São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 11 e ainda a abordagem de Ginzburg no relacionamento entre feitiçaria e piedade popular, Cf. GINZBURG, Carlo.

Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história, São Paulo: Cia das Letras, 2011, p. 15-40.

29 Nesse sentido, é relevante o estudo de Wundt sobre o dualismo originário da linguagem e seu

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comunidade, e assim a ideia de um indivíduo sem comunidade não poderia existir.

Conclusivamente, a característica principal que motiva e projeta desde o início essa postura dos homens primitivos e que por todo o tempo na história da humanidade dá sentido às relações sociais é a noção do medo, o primeiro sentimento – ou o sentimento fundamental – juntamente com o desejo dos homens em suas relações sociais.

Certamente que, de plano, isto tudo causa uma reviravolta nos estudos sobre as origens da sociedade e da própria formação do Estado. O estudo do medo nas comunidades primitivas e sua trajetória na história da humanidade é o primeiro ponto de interlocução a ser explorado na construção do presente texto.

1.3 O Medo como Elemento Motivacional da Organização Primitiva

Explorar a noção do medo e como a interpretação de mundo primitiva tinha nele seu norteador é fundamental, pois defendemos que a partir dele é que sempre se coloca a questão indagativa sobre a nossa existência diante do mundo, fato que determina a nossa dimensão enquanto seres políticos.30

Ademais, é na determinação dos homens como seres políticos que se encontra o direito com sua capacidade de promover o regramento das relações sociais.

      

30 A forma como relacionamos aqui o pensamento do medo a partir de Augusto Comte,

(34)

A condução desta investigação baseia-se em recursos encontrados na história do pensamento e o pensador que parece dar a maior pista inicial é Augusto Comte.

1.3.1 A lei dos três estados de Augusto Comte

O fundador do positivismo clássico, na tentativa de explicar a verdadeira natureza e o caráter próprio da sua filosofia positiva - em sua obra Curso de filosofia positiva31-, aposta na possibilidade de ter encontrado uma

grande lei fundamental que pode, inclusive, ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas é resultante de um atento exame do passado.

A referida lei consiste no fato de que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; e o estado científico ou positivo. Tal lei fundamental, então, é concebida como Lei dos três estados.32

Respectivamente, estes três grandes métodos (filosofias) do pensamento, correspondem a estágios do desenvolvimento humano. A infância, enquanto o estado teológico; a juventude, enquanto o estado metafísico e a maturidade, enquanto o estado científico.

Na realidade, tais leis representam sistemas globais de interpretação do universo que determinam uma perfeita isonomia entre o

      

31 O obra utilizada foi a editada pela editora Abril Cultural e se refere a conhecida coleção “Os

Pensadores”, cuja tradução ficou a cargo de José Arthur Gianotti e Miguel Lemos. Para tanto, Cf. COMTE, Augusto. Curso de filosofia positiva; discurso sobre o espírito positivo; discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; catecismo positivista in Os pensadores (col.), São Paulo: Abril cultural, 1978, p. 3-20.

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desenvolvimento intelectual do indivíduo (ontogênese) com o desenvolvimento intelectual do gênero humano (filogênese).

No balanço desse desenvolvimento, pode-se encontrar a pista que funda todo o processo de desenvolvimento civilizatório, a primeira forma de explicação global e sua identificação com a causalidade da própria vontade humana: o medo.

No estado teológico, o espírito humano, na investigação da natureza íntima dos seres, as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, apresenta a ocorrência de fenômenos como produzidos pela ação direta e contínua de agentes supernaturais, cuja intervenção arbitrária, como já se demonstrou de alguma forma anteriormente, explica todas as anomalias aparentes do universo.

No estado metafísico, que representa nada mais do que a simples modificação geral do primeiro, os agentes supernaturais acabam sendo substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades inerentes aos diversos seres do mundo e são concebidas como capazes de engendrar por elas próprias todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste na determinação para cada um de uma entidade correspondente.

Por fim, no estado positivo ou científico, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia procurar a origem e o destino do universo, passando, diferentemente do início, em fazer uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas. Nessa dimensão, a explicação dos fatos, reduzida então, a seus termos reais, se resume, de agora em diante, na ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais.

(36)

O homem, no primeiro passo de seu conhecimento sobre o mundo – e mesmo de si –, encontra-se na situação originária de que sua única forma de causalidade é a de sua própria vontade.

As diversas formas de magia e a primitiva prece representam as maneiras de explicar a existência e o seu modo de vida, no fundo, tudo se passa no ambiente de se fazer contrato com os deuses ou deus.

Este contrato, no ambiente da magia, gera as formas mais primitivas de sacralidade, sacrifício, castigo, dádivas33, dentre outras, e servem

como ponto fulcral para esta análise, pois direcionam ao seguinte questionamento: por que se entendia como a maior vantagem existente o fato do homem - em que sua única forma de causalidade é a de sua própria vontade -, se empreender em fazer estes tipos de contratos com os deuses?

De toda sorte de especulações possíveis, a mais certeira – e por isso aqui defendida – é a pista de que seja pelo sentimento mais primitivo também aparecido no homem: o medo.

O homem não é um animal naturalmente especulativo, o homem é um animal com medo, carências, indigências e angústias ancoradas tanto na sua condição fisiológica quanto psicológica. Em seu estado primitivo, à mercê de sua vontade e no ambiente de suas necessidades, sejam físicas, fisiológicas ou psicológicas, vive em estado de premente ambivalência ocasionada pelo medo.

O medo gera, originariamente, um sentimento de mal-estar provocado por um sentimento de opressão, isto é, de inquietude relativa a um futuro incerto ou à iminência de um perigo indeterminado e ameaçador. Tal inquietude também aparece em relação ao medo de morte34 e às incertezas de

       33

Sobre o tema de forma detalhada, Cf. AMBERTÍN, Marta Gerez. Entre dívidas e culpas: sacrifícios – crítica da razão sacrificial, Rio de Janeiro: Cia Freud, 2009, p. 25-64.

34 Em relação ao medo da morte, Eduardo Viveiros de Castro é preciso ao relatar como os índios

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um presente ambíguo, seja sem objeto claramente definido ou determinado e que frequentemente é acompanhando de alterações fisiológicas.

Não é à toa que se pode, na modernidade, considerar a angústia como neurose caracterizada por ansiedade, agitação, fantasia, fobias e até mesmo um sentimento confuso de impotência diante de perigo eventual, real ou imaginário.35

Esta definição de medo é identificada no volume II da Retórica aristotélica, na qual este defende, em uma das análises mais interessantes da história, que o medo é uma dor ou uma agitação produzida pela perspectiva de um mal futuro, que seja capaz de produzir morte ou dor.36 Isto revela a face

angustiante do sentimento do medo que, justamente nesse sentido, pode ser sensibilizado a partir de um opressivo sentimento de ansiedade não ligado a um objeto determinado, de uma fundamental e permanente inquietação do indivíduo humano, originada tanto pelo caráter absoluto e sofredor da existência quanto pela consciência de sua própria liberdade, isto é, de sua absoluta responsabilidade pela própria existência.37

No estado primitivo de nossos conhecimentos, não existe nenhuma divisão regular em nossos trabalhos intelectuais e esse modo de organização dos estudos humanos é entendido como inevitável e até mesmo

       CASTRO, Eduardo Viveiros. A morte como quase acontecimento. Disponível em http://www.cpflcultura.com.br/2009/10/16integra-a-morte-como-quase-esquecimento-eduardo-viveiros-de-castro. Acesso em 15.8.2012.

35

JAPIASSU, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2001, p. 13 e 14.

36 ARISTÓTELES. Retórica, livro II, Lisboa: imprensa nacional, 2005, p. 41 e segs.

37 Sobre o tema da angústia, com cuidado, assevera Giacoia, que esta seria um “opressivo

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indispensável, alterando-se pouco a pouco, na medida em que diversas ordens de concepções se desenvolvem.

O medo é o elemento fundamental psicológico que determina a origem de uma legalidade do desenvolvimento espiritual humano.

Assim, o homem com medo, em situação de abandono e desassossego perante forças maiores que as dele, como as da natureza, dos outros homens e animais, acaba criando um esquema de explicação do mundo como uma necessidade prática de fuga do próprio medo e da dor.38

Na concepção do sistema global das ciências, Comte acabou demonstrando que o medo também está por trás da religião e da ciência. O temor do desamparo e a necessidade de exercer controle e dominação sobre as hostilidades da natureza os justificam.

Neste ponto é que entra a máxima comteana “saber para prever, prever para prover”. Na realidade, desde o primeiro sistema - o teológico - até o último - o científico - uma mesma lógica é obedecida. É possível prever, tanto na natureza, quanto na ciência; é possível antecipar os fenômenos e exercer um controle técnico sobre a natureza para que ela possa suprir as fragilidades humanas.

A temática proposta por Comte, indiferentemente de sua metodologia, revela-nos o medo como o elemento fundamental que nos liga até hoje ao questionamento de nossa contingência e forma de vida.

Na balada da discussão sobre o medo, nos séculos XIX e XX surge, de forma análoga, a tese de Freud, que também discute a oposição entre a situação inicial de uma humanidade frágil e a pretensão dessa mesma humanidade de dispor das forças da natureza a seu favor.

       38

(39)

A aproximação do pensamento de Freud a partir da abordagem comteana a seguir empreendida reforça a proposta metodológica do presente trabalho e revela o fecundo campo de exploração das pulsões e instintos humanos como determinantes de todo o processo civilizatório da humanidade.

1.3.2 O medo e a alma: animismo e magia no pensamento de Sigmund Freud

Freud não se expressa nos mesmos moldes da Lei do três estados de Comte, mas de forma muito próxima encampa também um sistema em que há o predomínio de três leis que orientam o desenvolvimento humano do indivíduo, a saber: o animismo, a religião e a ciência.39

A ordem é praticamente a mesma de Comte e, como ele, a explicação parte exatamente do mesmo medo e necessidade de domínio das forças naturais, dos homens e animais.

Na perspectiva crítica de resolver o fato de que a maioria dos trabalhos que procuravam aplicar as descobertas da psicanálise a temas do campo das ciências mentais ofereciam muito pouco aos autores de ambas as áreas, Freud propõe - não se imiscuindo da possibilidade do próprio defeito -, num ensaio a discussão sobre o imenso domínio daquilo que é conhecido como animismo.

Baseando-se em autores como Herbert Spencer, James Georges Frazer, Andrew Lang, E. B. Taylor e Wilhelm Wundt, Freud constrói uma análise interessante sobre o animismo, a magia e a onipotência de pensamento que permeavam a mentalidade do homem primitivo.

       39

(40)

A explicação da temática do animismo e da magia nos arcabouços da psicologia tem o interesse papel, neste trabalho, de dar continuidade sobre a questão do medo como fator motivacional preponderante para as atitudes humanas em relação a sua contingência.40

Segundo as pistas de Freud, temos que o animismo representaria de forma estrita a doutrina das almas e, num sentido mais amplo, a doutrina dos seres espirituais em geral.

Além do conceito de animismo, com apoio em Reinach41, o

renomado psicanalista indica ainda que o termo animatismo também foi usado para indicar a teoria do caráter vivo das coisas que nos parecem ser objetos inanimados, de modo que as expressões “animalismo” e “hominismo” também são empregadas em relação a isto.42

Estes termos foram introduzidos por uma compreensão da visão da natureza e do universo adotada pelos povos primitivos, indiferentemente da época, seja no passado, seja atualmente.43

Segundo Freud - se referindo à Schelling e não à Comte, apesar de que este último também se utilizava da mesma expressão -, o animismo constitui a primitiva “filosofia da natureza”, pois cria um povoamento do mundo com inumeráveis seres espirituais, benevolentes e malignos e tais espíritos e demônios passam a ser considerados como as causas dos fenômenos naturais, acreditando-se que não apenas os animais e os vegetais, mas todos os objetos inanimados do mundo são animados por eles.

      

40 Em outra oportunidade, em especial na obra Direito e antropologia, nossas reflexões tiveram

a pretensão de ser descritivas e explicativas da gênese do processo de civilização e não especificamente se dedicarem a partir do estudo da alma na proposta animista, como aqui se pretende.

41

Cf. REINACH, Salomón. Orfeo: historia general de las religiones, Buenos Aires: Biblioteca Nueva, 1944, p. 15-34.

42 FREUD, Sigmund. Totem e tabu, cit., p. 91.

43 Sobre a forma como Freud trabalha a ideia de um vincula social em Totem e Tabu, cf.

(41)

Freud aqui inova em sua contribuição, já propondo o elemento de ligação a que estamos nos referindo, indicando-o não muito distante ou diferente de nós.

Por mais que tenhamos mantido uma crença limitada na existência de espíritos e expliquemos os fenômenos naturais pela influência de forças físicas impessoais, reconhece-se que os povos primitivos acreditam que os seres humanos são habitados por espíritos semelhantes a si.

De forma originária, as almas eram representadas como muitos semelhantes às pessoas, e foi somente ao decorrer de um longo processo que perderam suas características materiais e se tornaram espiritualizadas em alto grau.44

A aposta freudiana acerca do modo como os homens primitivos chegaram até as específicas visões dualistas sobre as quais o sistema animista se baseia é a de que eles assim o fizeram observando os fenômenos do sono, inclusive os sonhos e a morte, que tanto se lhe assemelham45.

Não é à toa que o centro gravitacional da análise do medo nos levará ao problema do reconhecimento da morte na atualidade, primordial para a hipótese aqui defendida.

Em outras palavras, o principal ponto de partida desta teorização é, sem dúvida, o problema da morte. O homem primitivo encarava como coisa natural o prolongamento indefinido da vida, a imortalidade, somente depois é que a ideia de morte é aceita e ainda com certa hesitação.

O animismo é um sistema de pensamento. Ele não fornece simplesmente uma explicação de um fenômeno específico, mas permite-me apreender todo o universo como uma unidade isolada, de um ponto de vista único. A razão humana, se seguirmos as autoridades no assunto, desenvolveu, no decurso

       44

FREUD, Sigmund. Totem e tabu, cit., p. 92.

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das eras, três desses sistemas de pensamento – três grandes representações do universo: animista (ou mitológica), religiosa e científica. Destas, o animismo, o primeiro a ser criado, é talvez o mais coerente e completo e o que dá uma explicação verdadeiramente total da natureza do universo.46

A citação claramente refere-se à proposta da aproximação, aqui sugerida, feita com base no pensamento de Comte. Para Freud, também há três sistemas de pensamento que se configuram como três grandes representações do universo, ou seja, como explicativas do mundo, e a fundamental, mais coerente e completa, e que dá a explicação verdadeiramente total da natureza do universo é o animismo.

Freud propõe que este primeira Weltanschauung humana é uma teoria psicológica, persistindo em grande parte na vida moderna, seja sob a forma de superstição, seja como a base viva de nossas crenças, filosofias e fala.47

Na proposta de uma abordagem psicanalítica, portanto, feita sobre outro ângulo, Freud não supõe que os homens foram inspirados a criar seu primeiro sistema do universo por pura especulação, por pura curiosidade especulativa, mas a partir de uma necessidade prática de controlar o mundo que os rodeava.

Por essa razão é que faz sentido a construção, por parte do homem primitivo, de todo um conjunto de instruções a respeito de como obter domínio sobre os homens, animais e coisas, ou seja, sobre seus espíritos.

      

46 FREUD, Sigmund. Totem e tabu, cit., p. 93.

47 Para uma crítica dos princípios da interpretação psicanalítica em Totem e Tabu por meio da

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Tais instruções têm o nome de magia ou feitiçaria, sendo especificamente as técnicas do animismo.48

De forma acurada, Freud propõe com certa indagação especulativa - ele mesmo reconhece certo desprezo arbitrário pelo uso linguístico - a possibilidade de separação entre os conceitos de feitiçaria e magia.

A feitiçaria seria a arte de influenciar espíritos, tratando-os da mesma maneira como se tratariam seres humanos em circunstâncias semelhantes, qual seja: apaziguando-os, corrigindo-os, tornando-os propícios, intimidando-os, roubando-lhes o poder e submetendo-os a nossa vontade.

Já a magia seria algo diferente. Fundamentalmente, ela despreza os espíritos e faz uso de procedimentos especiais e não dos métodos psicológicos do dia-a-dia. Ela constitui o ramo mais primitivo e mais importante de técnica animista, porque, entre outros, os métodos mágicos podem ser usados para tratar com os espíritos e a magia pode ser aplicada também em casos nos quais o processo de espiritualização da natureza ainda não foi

      

48 Freud indica Marcel Mauss e Henri Hubert como os indicadores da magia como técnica.

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realizado. Na verdade, a magia deve submeter os fenômenos naturais à vontade do homem.49

No ambiente destas investigações, Freud indica o princípio da magia, que seria, basicamente, tomar equivocadamente uma conexão ideal por real.

Para tanto, indica alguns exemplos, como a técnica de se fazer uma efígie de um inimigo para prejudicá-lo. O que se fizer à efígie acontecerá também ao original detestado. Tal técnica também pode ser utilizada com fins piedosos e para auxiliar os deuses contra os demônios malignos. Talvez a proibição bíblica contra a feitura de imagem de qualquer coisa viva tenha-se originado, não de alguma objeção às artes plásticas, mas do desejo de privar a magia que era abominada pela religião hebraica.

Outros exemplos que permanecem em certo grau nos mitos e cultos de fases mais elevadas da civilização são os rituais de chuva ou fertilidade, nos quais se encontra a ideia de uma magia imitativa em que há semelhança entre o ato executado e o resultado esperado.

Isto evidencia que os motivos iniciais que conduziram os homens a praticar a magia são os desejos humanos. Em outros palavras, o homem primitivo tinha uma crença imensa no poder de seus desejos, tal qual, analogamente, as crianças apresentam na primeira infância.

Todo o princípio que dirige a Magia – técnica e modalidade animista, bem como o pensamento -, segundo Freud é o princípio da “onipotência de pensamentos”, expressão que o autor indica ter adotado de um dos seus pacientes, conhecido como “Homem-Rato”.50

       49

FREUD, Sigmund. Totem e tabu, cit., p. 94 e 95.

50 FREUD, Sigmund. Totem e tabu, cit., p 102. Sobre o a análise do “homem-rato” cf. FREUD,

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A expressão teria sido criada como explicação para todos os estranhos e misteriosos acontecimentos pelos quais, como outras vítimas da mesma doença, parecia ser perseguido. Caso pensasse em alguém, tinha certeza de encontrar essa pessoa logo em seguida, como num processo de mágica. Se a pessoa perguntasse pela saúde de um conhecido que há muito não via, escutava que este havia acabado de morrer, de maneira que parecia existir uma linguagem telepática que permitisse ao interlocutor esse poder, dentre outros fatos.

Freud explica que, no decurso do tratamento do “homem-rato”, ele próprio contou de como uma aparência enganadora surgia na maioria dos casos e por meio de que artifícios ele mesmo ajudara a fornecer suas próprias crenças supersticiosas.

Na análise entre os neuróticos - homens modernos - e os animistas/mágicos - homens primitivos - Freud revela a força do fio condutor que estamos seguindo.

Em sua análise, nota que os atos obsessivos primários dos neuróticos são de um caráter intimamente mágico e, se não são encantamentos, são, no mínimo, contra-encantamentos, destinados a manter afastadas as expectativas da desgraça com que a neurose geralmente começa, afirmando, ainda, que todas as vezes que conseguia adentrar ao mistério dessas ocorrências descobria que a desgraça esperada era a morte.51

Retomando, então, a aposta da lei das três fases em seu pensamento - animista, religiosa e científica - Freud indica que nas três é        como o “Homem-Rato”. Os principais sintomas que este paciente apresenta são relativos à obsessividade. Ele é obcecado pelo pensamento de que acontecerá alguma coisa desagradável, dolorosa a duas pessoas que ama: seu pai e uma dama. Aparentemente, um caso clássico de obsessão, há de se ressaltar que o argumento imaginário que levou o paciente a procurar análise foi o impacto causado pela narração de um tipo de tortura provocado pela penetração de ratos no reto de um indivíduo. Apesar deste argumento imaginário não desencadear a neurose em si, ele suscita o tema da angústia que está em grau máximo no paciente quando se dirige ao consultório.

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plenamente possível se acompanhar as vicissitudes da “onipotência de pensamentos”.

Na fase animista, os homens atribuem a onipotência a si mesmos. Na fase religiosa, transferem-na para os deuses, mas eles próprios não desistem dela totalmente, porque se reservam o poder de influenciar os deuses por meio de uma variedade de maneiras, de acordo com seus desejos. Na visão científica, já não há lugar para a onipotência humana, os homens reconheceram a sua pequenez e se submeteram resignadamente à morte e às outras necessidades da natureza. Não obstante, um pouco de crença primitiva na onipotência ainda sobrevive na fé dos homens, no poder da mente humana, que entra sempre em luta com as leis da realidade.52

A primeira imagem que o homem formou do mundo - o animismo - é completamente psicológica. A técnica do animismo e da magia revela a intenção de impor leis que regem a vida mental às coisas reais, podendo-se até mesmo reconhecer uma fase pré-animista53 que indica uma doutrina da universalidade da vida, pois se verifica que as suposições da magia são mais fundamentais e mais antigas que a doutrina dos espíritos, que constitui o centro do animismo.54

Na realidade, a primeira realização teórica do homem - a criação dos espíritos - parece vir da mesma fonte que as primeiras restrições morais a que se achava sujeito, os tabus.

       52

Freud leva a cabo sua ideia fazendo paralelamente uma comparação entre as fases do desenvolvimento da visão humana do universo e as fases do desenvolvimento libidinal do indivíduo. A fase animista corresponderia à fase narcisista, tanto cronologicamente quanto em seu conteúdo; a fase religiosa corresponderia à fase da escolha do objeto, cuja característica é a ligação da criança com os pais; enquanto a fase científica encontraria uma contrapartida exata na fase em que o indivíduo alcança a maturidade, renuncia aos princípios de prazer, ajusta-se à realidade e volta-se para o mundo externo em busca do objeto de seus desejos. FREUD, Sigmund. Totem e tabu, cit., p. 105-107.

53

Contextualizando o tema, cf. MARRET, Robert Ranulp. Antropología, Barcelona: Editorial Labor, cap. VI, p. 122-143.

(47)

Se a posição dos sobreviventes em relação aos mortos foi realmente o que primeiro levou o home primitivo a refletir e compeliu-o a abrir mão de um pouco de sua onipotência em favor dos espíritos e a sacrificar um pouco de sua liberdade de ação, então esses produtos culturais constituíram um primeiro reconhecimento da Ανάγκη [Necessidade], que se opõe ao narcisismo humano. O homem primitivo estaria assim submetendo-se à supremacia da morte pelo mesmo gesto com que pareceria estar negando-a.55

Conclusivamente, pode-se afirmar que, também no homem primitivo, a superstição não é necessariamente a razão única ou real para um costume ou observância em particular e não nos dispensa do dever de procurar os motivos ocultos deles.

Dessa forma e diante do exposto, a tese freudiana toma sagazmente a repressão dos instintos como medida do nível de civilização que foi alcançado e deve se admitir que, mesmo sob o sistema animista, existem progressos que são injustamente desprezados em razão de sua supersticiosidade.56

Inegável, portanto, que a mais remota origem das formas de espiritualidade humana e seu condicionamento social foi o medo e o domínio, o exercício de poder sobre si e o mundo.

1.3.3 Medo, domínio, vontade de poder e repressão: a contribuição de Nietzsche e a ponte para os tempos atuais

Outro pensador que cabe aqui e serve de ponto final para a ligação proposta na discussão da estrutura fundamental do medo e de sua configuração motivacional e repressora do homem é Nietzsche, que configura

       55

FREUD, Sigmund. Totem e tabu, cit., p. 109.

Referências

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