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A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM NO MANGÁ CAVALEIROS DO ZODÍACO

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Academic year: 2021

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A CONSTRUÇÃO DA LINGUAGEM NO MANGÁ CAVALEIROS DO ZODÍACO Pamella de Paula da Silva Santos (IC) e Aurora Gedra Ruiz Alvarez (Orientadora)

Apoio: PIVIC Mackenzie Resumo

A presente pesquisa de Iniciação Científica examina os elementos textuais pertencentes ao mangá Cavaleiros do Zodíaco, do quadrinísta japonês Masami Kurumada. A princípio, para dar forma a este trabalho, explana-se acerca da história dos quadrinhos e de como se deu o surgimento e a popularização do mangá no mundo. Assim, apresentam-se as particularidades do estilo dos quadrinhos japoneses em relação ao estilo dos quadrinhos ocidentais (comics). Neste sentido, buscou-se analisar a construção da linguagem da série Cavaleiros do Zodíaco. A seguir, passou-se a verificar e a pesquisar acerca das temáticas encontradas no enredo com o intuito de perceber as relações dialógicas que a história mantém com o contexto do qual se originou. Neste percurso, também analisou-se a dialogicidade que a obra em questão estabelece com diferentes discursos proeminentes do mundo ocidental.

Palavras-chave: dialogismo, linguagem, mangá

Abstract

This undergraduate research examines the textual elements in the Cavaleiros do Zodíaco manga, written and drawed by the renowned Japanese quadrinist Masami Kurumada. Enhancing the structure of this paper, there is an explanation about the history of comic books, its development and also, how manga has been spread all over the world. So, the Japanese comic style particularities are presented through its relation to the occidental comics. Thus, this research aimed to analyze the construction of the language in the referred series. The following analysis was focused on verifying and thoroughly researching the themes seen in the plot in order to discover the dialogical relation between the story and the context which it has come from. This study also examines the dialogistic relation established between the studied series and the main different discourses from occidental world.

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INTRODUÇÃO

O referente trabalho de Iniciação Científica tem como objetivo principal analisar a construção da linguagem no mangá japonês Saint Seiya, conhecido nos países lusófonos como Cavaleiros do Zodíaco, devido ao nome que recebeu na França, Les Chevaliers du Zodiaque.

Desenhada e roteirizada pelo japonês Masami Kurumada, a série Cavaleiros do Zodíaco é considerada pelos especialistas em quadrinhos japoneses como uma das melhores histórias do gênero mangá. A história tem como protagonista o jovem cavaleiro mitológico Seiya, que, assim como seus companheiros, foi treinado para proteger a reencarnação da deusa Atena, uma humana chamada Saori Kido. Eles formam um total de 88 cavaleiros, sendo que cada um representa uma constelação. Essa nova geração de guerreiros deve além de proteger a deusa grega da Sabedoria, também manter a Terra livre do mal. Com a ajuda dos seus cavaleiros Atena tem o dever de combater os inimigos que pretendam perturbar a paz dos seres humanos e do planeta.

No mangá, a série é dividida em três sagas: Santuário, Poseidon e Hades. Para a análise desta pesquisa, elegemos a primeira, na qual os cinco cavaleiros de bronze: Seiya de Pégaso, Shun de Andrômeda, Ikki de Fênix, Hioga de Cisne e Shyriu de Dragão devem passar pelas doze casas zodiacais para salvar Saori, que corre perigo. Em cada uma dessas casas há um cavaleiro de ouro que representa um signo do zodíaco. A partir das lutas travadas, os jovens heróis acabam aprendendo mais sobre si mesmos e sobre o universo dos cavaleiros de Atena.

Segundo a revista brasileira especializada Neo Tokyo, a série Os Cavaleiros do Zodíaco foi a maior responsável pelo significativo aumento do número de fãs de anime (desenho animado japonês) e mangá no país “[...] a história de Seiya e companhia é até hoje considerada um dos maiores fenômenos da televisão brasileira”(ARAMUK, 2007, p.40). No Brasil, até aquele momento, nunca uma série animada japonesa havia conquistado tantos fãs. A maneira de se contar histórias encontrada no mangá e no anime foi tão inovadora quanto os temas mitológicos e espirituais misturados com aventura e ação. Tais elementos acabaram causando uma empatia significante entre os jovens. Afinal, até então, tanto os quadrinhos publicados, quanto os desenhos animados transmitidos pelas emissoras brasileiras eram, em sua maioria, produzidos por países do ocidente, principalmente Estados Unidos. Vale lembrar que o estilo do mangá Cavaleiros do Zodíaco, em sua essência, foi reproduzido no anime, devido às características que marcam a obra.

A proposta de A construção da linguagem no mangá Cavaleiros do Zodíaco será, portanto, investigar a construção da linguagem através de diversos aspectos no mangá Cavaleiros do

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Zodíaco. Assim, pretendemos discutir algumas questões, como: Quais são os temas presentes no enredo?; como eles são abordados?; como os signos verbal e visual se articulam na construção de sentidos?; como as personagens se constroem na história e de que valores elas são portadoras?.

Tendo em vista que no corpus estudado há duas linguagens a serem consideradas, a verbal e a não-verbal, ambas serão examinadas a fim de apreendermos as recorreências em cada uma delas na narrativa em questão. Desse modo, conheceremos como elas estabelecem relações entre si (internas) e também com o contexto do qual surgiu (externas). Por isso, para a análise da obra, serão necessárias tanto obras que dizem respeito à arte dos quadrinhos (HQs e mangás), quanto às teorias que se referem ao estudo da linguagem e do dialogismo, estudo elaborado pelo filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin (1895 – 1975).

REFERENCIAL TEÓRICO

Para que pudéssemos comparar o estilo do desenhista e roteirista Masami Kurumada, criador da série Cavaleiros do Zodíaco, com os dos demais quadrinístas de mangá, utilizamos como base para nossas pesquisas o livro Mangá, como o Japão reinventou os quadrinhos, do pesquisador Paul Gravett. Na obra em questão, Gravett, ao mesmo tempo em que nos conta a história do mangá no Japão e no mundo, disserta acerca dos vários aspectos que podemos encontrar nessa arte. “A sobrevivência de qualquer mangá [...] depende de como ele diverte e se comunica com os seus leitores.”(GRAVETT, 2006, p. 19). Apesar de o estilo mangá diferenciar em determinados aspectos dos comics americanos, para nós foi de grande valia algumas teorias e estudos acerca da construção das HQs; afinal, os quadrinhos japoneses não fogem a esta categoria maior que é a arte sequencial. Assim sendo, a obra Quadrinhos e Arte Seqüencial do também quadrinísta Will Eisner (1917– 2005) contribuiu significativamente com a nossa pesquisa. Em seu texto, ele analisa as diferentes linguagens que podemos encontrar nas HQs. Eisner afirma que tudo nos quadrinhos possui uma significação e, por isso, é uma arte que deve ser analisada com cuidado e atenção:

A configuração geral da revista em quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavra e imagem, e, assim é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas visuais e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. A leitura da revista de quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual. (EISNER, 2001, p. 8)

Nossa intenção, como frisado, foi comparar e colocar em evidência as duas maneiras de se construir uma história em quadrinhos, isto é, de modo abrangente, o estilo oriental versus o

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estilo ocidental. Porém, para que isso ocorresse, trabalhamos com obras que tratam dos processos de produção e das características típicas da arte sequencial. Dentre a bibliografia utilizada, podemos citar o estudo presente no livro Como fazer histórias em quadrinhos, de Juan Acevedo, que colaborou com as nossas investigações em vários aspectos do texto quadrinizado, como, por exemplo, com relação à construção de personagens:

Existem ainda os personagens arquetípicos, que permitem outro tipo de histórias em quadrinhos [...] correspondem melhor a um símbolo, [...] que funciona como um molde [...] O modelo, neste caso, determina de antemão as características que o personagem vai apresentar. Assim, por exemplo, o “herói” costuma ter feições agradáveis, ser esbelto, inteligente, generoso e valente, enquanto que a “mulher fatal” tem uma beleza fria, é elegante, calculista e, freqüentemente, malvada (como se vê, este procedimento é muito diferente de estudar a vida real). (ACEVEDO, 1975, p.61)

Em se tratando da linguagem que podemos encontrar nos quadrinhos, algumas produções de um dos maiores especialistas brasileiro em quadrinhos, Moacy Cirne, contribuíram significativamente para com os exames acerca da narrativa estudada. Para exemplificar, podemos citar a obra A Linguagem dos Quadrinhos, que nos alertou quanto à ideologia presente nas HQs:

Assim sendo, o quadrinho – sistemas culturais (artísticos) veiculados pelos sistemas de informação – devem ser entendidos como representações de um determinado aparelho ideológico. E é nesta perspectiva – de onde surge a forma na qual a ideologia de uma dada classe social necessariamente deve se realizar (cf. Althusser). (ALTHUSSER, apud CIRNE, 1973, p. 17).

Com relação à arte do mangá, especificamente, utilizamos vastamente a obra Cultura pop japonesa: anime e mangá, organizada pela pesquisadora Sonia Bibe Luyten. A bibliografia referida nos auxiliou com relação tanto aos aspectos da linguagem (internos) dos quadrinhos japoneses, como às características contextuais (externos) nas quais estão inseridas as produções do gênero no oriente e no ocidente:

O poder visual da narrativa dos quadrinhos japoneses, bem como sua abordagem criativa (comum no melhor das artes seqüenciais do mundo), com a construção de seus personagens por meio de recursos literários, grafismo com as artes plásticas, composição e escolha de cenas das páginas com linguagem cinematográfica, faz das HQs uma das mídias mais completas [...] tem poder elucidativo, contestador e didático. (ROSA, 2005, p. 102).

Para a análise textual que fizemos por meio dos elementos linguísticos e imagéticos que encontramos no mangá Cavaleiros do Zodíaco, nos baseamos em estudos acerca do dialogismo elaborados por Mikhail Bakhtin.

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O conceito de dialogismo é o princípio unificador da obra do pesquisador e estudioso russo Mikhail Bakhtin. Tal conceito, segundo a concepção bakthiniana, diz respeito não só à linguagem, mas também estabelece relações com a filosofia de uma maneira abrangente. Assim, para Bakhtin, a língua em todos os seus aspectos está imbuída de diálogo; ou seja, todos os enunciados (produtos) produzidos no processo de comunicação – fala ou escrita – são diálogos. Isto se dá pelo fato de que, no processo de enunciação, o texto produzido passa indubitavelmente pela palavra do outro; isto é, o enunciador (produtor), ao constituir seu discurso, leva em conta o discurso do enunciatário (receptor) que, de certa forma, está incluso no seu. “Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem entre dois enunciados” (FIORIN, 2008, p. 19).

Desse modo, o enunciador, influenciado por outros enunciados com os quais teve contato, deverá produzir um texto levando em consideração tanto o contexto de produção, como os aspectos relacionados à cultura, à história e à ideologia do enunciatário (do outro). Para ilustrar, leiamos o seguinte fragmento:

Segundo essa concepção, a língua só existe em função do uso que locutores (quem fala ou escreve) e interlocutores (quem lê ou escuta) fazem dela em situações (prosaicas ou formais) de comunicação. [...] um enunciado sempre é modulado pelo falante para o contexto social, histórico, cultural e ideológico. Caso contrário, ele não será compreendido.

(PINHEIRO, Tatiana, 2009, on line)

Tendo em vista este conceito, podemos concluir que, se ao estabelecermos contato com a realidade não temos acesso direto a ela, pois somos mediados pela linguagem, esta também não se apresenta “pura” para nós. Isto porque todo e qualquer objeto do mundo interior ou exterior mostra-se perpassado por ideias e conceitos gerais; ou seja, pontos de vista de outros sujeitos que já estabeleceram juízos de valores sobre eles. Conclui-se, pois, que não há nenhum objeto do nosso universo que não seja carregado dos mais variados discursos.

Portanto, partindo do pressuposto de que todo enunciado produzido é uma espécie de réplica de um diálogo anterior com o qual tivemos contato, podemos considerar que o enunciador, ao construir o seu texto, acaba por confirmar, refutar, completar, discutir, ou contestar um enunciado anterior. Sendo assim, todo texto possui em sua constituição – material ou semântica – ecos de outros enunciados. “Portanto, nele ouvem-se sempre, ao menos, duas vozes.” (FIORIN, 2008, p. 24).

Vale lembrar que, para Bakhtin, o conceito de dialogismo diz respeito tanto às relações contratuais como às polêmicas; isto é, as relações que divergem ou convergem entre si.

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Dessa forma, os significados presentes em determinados textos podem sofrer diferentes representações e interpretações.

Em se tratando das vozes dessemelhantes em um texto é importante lembrar que as relações dialógicas podem ser sociais ou individuais:

Os conceitos de individual e de social, em Bakhtin, não são, porém, simples nem estanques. Em primeiro lugar, o filósofo mostra que a maioria absoluta das opiniões dos indivíduos é social. Em segundo, explica que todo enunciado se dirige não somente a um destinatário imediato, cuja presença é percebida mais ou menos conscientemente, mas também a um superdestinatário, cuja compreensão responsiva, vista sempre como correta, é determinante da produção discursiva. (Ibidem, p. 27)

Percebe-se, então, que o sujeito, segundo o ponto de vista de Bakhtin, não está nem completamente alheio aos discursos sociais do meio e da época na qual vive, e nem totalmente preso aos enunciados com os quais teve contato. Sendo assim, o ser humano é, ao mesmo tempo, social e individual; ou seja, ainda que ele não esteja completamente submetido aos discursos sociais, seu discurso nunca será completamente “puro” devido às influências do outro no meio onde vive. “Essas formas de absorver o discurso alheio no próprio enunciado são a maneira de tornar visível esse princípio de funcionamento da linguagem na comunicação verbal. (FIORIN, 2008, p. 33).

Seguindo este percurso, devemos, então, distinguir as duas diferentes maneiras de inserir o discurso do outro em um determinado enunciado, segundo os estudos de Bakhtin.

Segundo Fiorin (2008), a primeira maneira é conhecida como discurso objetivado, pois é composta por um discurso alheio explicitamente citado no discurso citante. Já a segunda, constitui-se de um discurso interno, dialogizado, no qual, na maior parte das vezes, não conseguimos notar nitidamente a separação entre o enunciado citante e o citado.

MÉTODO

O processo de análise do trabalho de Iniciação Científica A construção da linguagem no mangá Cavaleiros do Zodíaco se deu por meio das seguintes etapas:

Inicialmente, elegemos os volumes do mangá Cavaleiros do Zodíaco (versão brasileira lançada pela Conrad Editora) que serviram de corpus para as investigações acerca da narrativa da obra. Logo após essa eleição, selecionamos os referenciais teóricos que nos auxiliaram nas pesquisas.

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Na segunda etapa, após parcial leitura das obras selecionadas para a bibliografia básica, pontuamos e estabelecemos as características que relacionam e, principalmente, diferenciam o estilo dos mangás do das HQs (comic books).

Assim, tendo em vista que nesta mídia há duas linguagens a serem consideradas, a verbal e a não-verbal, ambas foram examinadas a fim de apreendermos as recorrências e o modus operandi de cada uma. Dessa maneira, conhecemos como elas estabelecem relações de sentido entre si.

A partir da leitura crítica do corpus, acrescido do levantamento e da leitura das obras e pesquisas existentes a respeito das linguagens e dos temas encontrados no mangá em questão, traçamos as relações entre os dois tipos de texto de modo a investigar o dialogismo que a obra estabelece com discursos do mundo oriental e do mundo ocidental. Para tanto, consultamos os fundamentos teóricos sobre a linguagem dos quadrinhos, especificamente dos mangás, e princípios teóricos do dialogismo proposto por Bakhtin, conforme o referencial proposto.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da década de 1960, a tecnologia japonesa desenvolveu-se de uma maneira tão rápida e vertiginosa que o mercado global deixou de atribuir sentidos pejorativos aos produtos “Made in Japan"; pelo contrário, tecnologia japonesa virou sinônimo de inovação e qualidade. “[...] o Japão foi doutrinado nas regras do capitalismo americano de forma tão eficiente que em muitos aspectos os conquistados superaram o conquistador [...]” (GRAVETT, 2006, p. 14).

Podemos dizer que o Japão, nessa nova jornada que iniciava, se reinventou, provando que era capaz de absorver conceitos estrangeiros, adaptá-los, desenvolvê-los e, consequentemente, exportá-los para o mundo. Prova disto são os denominados mangás, isto é, os quadrinhos japoneses. Os chamados mangakás 1 transformaram o conceito que

se tinha das histórias em quadros. Além de absorverem os fundamentos e as relações entre imagem, cena e palavra dos quadrinhos americanos, trabalharam com uma nova linguagem, libertando-a de características que geralmente eram encontradas nos comic books.

Tendo em vista o modo como os mangás são traduzidos e publicados no Brasil, é notável que, além das variadas temáticas das histórias, o que marca claramente a diferença entre a narrativa dos quadrinhos orientais e dos ocidentais é o formato. Sejam a linguagem, os

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traços, ou, até mesmo o número de páginas de uma revista, o resultado final de um mangá destoa em vários aspectos de uma HQ ocidental.

Sendo assim, a primeira diferença que salta aos olhos do leitor ocidental ao entrar em contato com a narrativa típica do mangá é a configuração da própria revista. Seguindo a tradição da escrita japonesa, os quadrinhos orientais devem ser lidos de trás para frente; ou seja, o que para nós é a capa, para os orientais será a contracapa. O mesmo ocorre com a sequência da leitura dos quadros nas páginas (Figura 1):

Figura 1: Esquema para a leitura de um mangá.

A princípio, este esquema pode representar um ponto fraco dos mangás no que diz respeito à leitura deste gênero por ocidentais, pois, para que nos adaptemos à leitura dos quadrinhos, necessitamos de prática. No entanto, a partir de um segundo ou terceiro contato, começamos a nos acostumar com as diferenças percebidas.

Essa sensibilidade com relação ao aspecto material do mangá se deve ao fato de que a forma dos quadros japoneses distingue visivelmente do esquema geométrico com o qual estamos acostumados nas HQs ocidentais. Para nós, o desenho, em uma revista de quadrinhos, deve aparecer delimitado pelo quadro a qual pertence. Nos mangás, as linhas que margeiam as imagens nem sempre são respeitadas pelos criadores deste gênero. Tanto as personagens como os cenários, frequentemente, aparecem “soltos” nas páginas, sendo, muitas vezes, limitados pela própria margem da folha. Esta aparente liberdade faz com que a ação e a velocidade da narrativa tornem-se elementos concretos para o leitor. Devido a esta característica, uma cena de luta, por exemplo, pode percorrer de 10 a 15 páginas – muitas vezes o número total de páginas de um comic book. Lembremos que uma revista de mangá normalmente possui de 70 a 120 páginas por volume.

Outro fator que pode causar certo estranhamento dos leitores ocidentais com relação à narrativa do mangá está ligado à questão da cor. Os quadrinhos japoneses são, em sua grande maioria, publicados em preto e branco. Esse aspecto justifica-se devido à tradição milenar japonesa no que diz respeito aos desenhos em nanquim. Nos mangás, esse estilo assume um tom muito mais artístico e fluído, pois o trabalho monocromático por parte do quadrinísta torna os desenhos mais expressivos, além de estimular a criatividade do leitor.

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Tendo em vista à linguagem, notamos que há uma característica comum aos mangás e às HQs ocidentais: o uso das onomatopeias. Como é sabido, esta figura de linguagem é encontrada com frequencia em quadrinhos, de um modo geral. Para tornar visíveis as manifestações sonoras provocadas ou não pelas personagens, usam-se signos representando sons que se aproximam do imaginário comum ao público-alvo.

Nos comics, as onomatopeias constantemente são utilizadas para exteriorizar o som sugerido na ação. O leitor acostumado muitas vezes nem percebe a presença desta figura de linguagem devido à apropriação que este gênero discursivo fez desta figura de linguagem. Nos mangás, essa apropriação pode ser notada em diversos pontos da narrativa, como nos relata o excerto a seguir:

A língua japonesa possui uma tradição antiga de usar muitas onomatopéias na fala. No mangá, para dar clima à cena e compensar a ausência de sons, a variedade cresce a níveis estratosféricos [...]. Além disso, no Japão existem onomatopéias que servem apenas para descrever uma situação, como, por exemplo, uma onomatopéia para representar a ausência de som e outra para indicar uma pessoa ficando vermelha de vergonha. (OKA, 2005, p. 90).

Por isso, quando os quadrinhos japoneses são traduzidos, normalmente as onomatopeias recebem legendas, ou notas de rodapé para que o leitor atribua sentido ao símbolo encontrado.

Em se tratando das falas das personagens, apesar de encontrarmos diálogos extensos e monólogos densos em algumas narrativas, na maioria dos casos, a informalidade é a variedade predominante nesse gênero discursivo. Por ser uma mídia popular, os mangás japoneses atingem os mais diferentes públicos e, por isso, não optam pela formalidade excessiva. Percebemos, pois, que na escrita, as regras gramaticais são respeitadas; no entanto, há certo tom coloquial nos diálogos. Afinal, por mais madura que seja a trama, é importante frisar que os quadrinhos, sejam eles ocidentais ou orientais, são meios de comunicação voltados para o lazer e o entretenimento.

Para finalizar esse levantamento acerca dos aspectos específicos da narrativa do gênero mangá, lembremos, então, das principais responsáveis pela empatia e identificação por parte dos leitores das HQs nipônicas: as personagens.

Com seus corpos delgados e cabelos rebeldes, estas carismáticas figuras conquistam diariamente legiões de fãs. Frequentemente se encontram personagens masculinas com caracteres femininos, sendo que o contrário raramente ocorre. Tal característica típica de uma história de mangá justifica-se segundo a tradição do teatro japonês do início do século XX, em que mulheres eram vistas representando papéis femininos e masculinos,

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influenciando de maneira decisiva na construção de personagens com olhos grandes e brilhantes da maioria dos mangás.

No mangá, não são raras as vezes em que encontramos personagens que a princípio eram boas e gentis, mas que com o decorrer da narrativa se transformam em vilãs. Essa quebra de paradigma foi uma novidade para o público ocidental, pois os comics, na maioria das vezes, apresentavam dois tipos de personagens: os bons e os maus. Sendo que a aparência bonita e saudável ficava para a personagem boa e vise-versa:

Por mais fantástica que seja a história, os roteiristas japoneses trabalham com muito mais competência o aspecto humano dos personagens, o que gera empatia dos leitores. Isso foi esquecido pelos norte-americanos, que transformaram seus personagens em semideuses quase onipotentes, muito distantes da realidade do leitor. (GUSMAN, 2005, p. 80).

De uma maneira ou de outra, temos como referência a realidade e, por isso, sabemos que não existem pessoas totalmente boas ou totalmente ruins. Boa parte do público procura na leitura uma forma de identificação, ou de reflexão. As personagens dos mangás, com formações psicológicas densas e complexas, oferecem esse tipo de sensação ao leitor. A princípio, tais diferenças entre os mangás e os comics não foram recebidas com bons olhos pelos ocidentais. Chegaram a nomear as imagens criadas pelos quadrinístas/ilustradores orientais de “irresponsáveis”, pois algumas obras traziam fortes cenas de sexo e violência. Ressaltemos, porém, que esses produtos eram frutos de incontidas mentes e, por isso, mereceram receber determinadas críticas.

Contudo, os mangás passaram a invadir cada vez mais o mercado editorial europeu e, principalmente, norte-americano. Foi ainda na década de 1960, que o estilo mangá passou a ser respeitado e admirado. O responsável por essa popularização chamava-se Osamu Tezuka.

[...] Tezuka era movido pela crença de que o mangá e o anime deveriam ser reconhecidos como parte integrante da cultura japonesa. Ele foi o principal agente da transformação da imagem do mangá, graças à abrangência de gêneros e temas que abordou, às nuances de suas caracterizações, aos seus planos ricos em movimento e, acima de tudo, à sua ênfase na necessidade de uma história envolvente, sem medo de confrontar as questões humanas mais básicas: identidade, perda, morte e injustiça. (GRAVETT, 2006, p. 28).

A partir de Tezuka, percebeu-se que o enredo, os desenhos, as distintas personalidades das personagens e suas respectivas características psicológicas eram muito bem marcadas, porque não caracterizavam somente um novo estilo, mas também uma maneira diferente de ver o mundo.

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Sendo os quadrinhos uma mídia atrativa, os jovens ocidentais – fãs de personagens como Superman e Batman – tornaram-se, aos poucos, otakus2 dos mangás; logo, passaram a

reconhecer a arte expressa por esses desenhos. Surgiam, então, desenhistas e roteiristas de mangás que ajudariam ainda mais na divulgação dessa “nova” tendência pelo mundo. Dentre eles podemos citar o criador da série Cavaleiros do Zodíaco, Masami Kurumada. Kurumada, ao criar a série Cavaleiros do Zodíaco, se valeu de elementos que atraíam o seu público-alvo que é, em sua maioria, constituído por adolescentes. Ao trazer personagens com idades relativas à dos leitores, ele estabeleceu, por assim dizer, uma relação entre ambos. Se considerarmos os aspectos que delimitam esse público, as personagens, sempre com psiques complexas e muito bem definidas, servem de referência para esses leitores. Entretanto, não podemos afirmar que só as personagens estabelecem “relações” com os leitores de Cavaleiros do Zodíaco, pois Masami Kurumada trouxe para o enredo temas interessantes e, até mesmo, fascinantes para muitos jovens.

Segundo o própio Masami, não houve por parte dele um estudo elaborado quanto à temática envolvendo mitologia, espiritualidade e astrologia. Na verdade, ocorreu o inverso disto. A partir do momento em que Kurumada começou a elaborar e desenhar a história dos cavaleiros de Atena é que se aprofundou nos estudos acerca desses assuntos. De maneira que, valendo-se sempre de uma linguagem popular, típica dos mangás, ele fez com que principalmente os jovens tivessem acesso a novos conhecimentos, ao mesmo tempo que interagiam com o enredo.

Em entrevista, Kuramada afirmou que, assim como a maioria dos quadrinistas de mangás, sempre se inspirou no mestre Osamu Tezuka para criar suas histórias. Notamos essa influência em Cavaleiros do Zodiaco principalmente em algumas personagens esteriotipadas como é o caso do menino peralta Kiki.

Este pequeno aprendiz surge na trama quando Shiryu visita o mestre Mu – cavaleiro de ouro de Áries – com o intuito de concertar as armaduras de Dragão e de Pégaso. Nessa passagem, Kiki tenta atrapalhar a visita do guerreiro de Atena brincando com truques de telecinese, até que o seu mestre (Mu) aparece e o impede de continuar atormentando o cavaleiro de Dragão.

Em diversas histórias de Tezuka encontramos uma personagem jovem que, ora se envolve em confusões, ora atrapalha a vida de outros personagens. Em Kimba, o leão (1965) – Jungle Taitei – , por exemplo, encontramos o desengonçado servo Tomy que para ajudar o leão Kimba, protagonista da série, a proteger a floresta, sempre cria momentos cômicos.

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No caso de Kiki, apesar das peraltices, logo ele se juntará aos cavaleiros e os auxiliará em diversos episódios. Percebemos, portanto, que ambas as personagens possuem relações entre si, pois estas representam a figura ingênua que ao tentar ajudar os companheiros, acaba se envolvendo em complicadas situações.

Por meio deste fato, podemos tirar exemplos de como os enunciados com os quais tivemos contato podem influenciar na construção da nossa visão de mundo. Kurumada, ao reproduzir em sua história o formato de um tipo de personagem, demonstrou o quanto a leitura dos mangás de Osamu Tezuka provocou influência no seu modo de produzir quadrinhos.

Ainda com relação aos enunciados com os quais Kurumada teve contato que se inserem no meio em que a série Cavaleiros do Zodíaco surgiu, ao observarmos as demais mídias japonesas, perceberemos que estas também influenciaram na construção da linguagem de obra em questão, como é o caso dos famosos seriados televisivos de ação.

Desde a década de 1960, com o surgimento do extraordinário herói National Kid – Nashônaru Kiddo –, personagens defendem o planeta do mal nas TVs japonesas a cada novo episódio. Este formato, com o tempo, foi aperfeiçoado em séries posteriores, tanto que o lugar de protagonista passou a ser ocupado por mais de um defensor; ou seja, uma equipe seria, então, a responsável pela defesa da Terra. Para exemplificar, citemos o seriado Changeman (1984) – Dengeki Sentai Changeman – que contava com a presença de cinco protagonistas heróis. Cada qual tinha um poder especial, característico de um animal, e podiam lutar tanto ao lado de seus parceiros como separadamente.

Em Cavaleiros do Zodíaco fica claro esse formato de grupo. Seiya, Shun, Shiryu, Hioga e Ikki formam o quinteto central da história e, por isso, a trama desenvolve-se com a participação efetiva destes. Porém, a ligação que há entre esses tipos de personagens, tanto no mangá em questão como nos seriados com tal enquadramento, diz respeito não só a questão da luta contra o mal, mas a valores como: fraternidade, amizade e lealdade. Com relação aos sentimentos de amizade e lealdade, podemos notar a presença de ambos em diversos instantes da narrativa do mangá Cavaleiros do Zodíaco. Ao passarem por diversas provações, os defensores de Atena acabam dependendo não só de seus poderes para sobreviverem, mas também do companheirismo dos demais parceiros.

As referidas características envolvendo as figuras heróicas do mangá estudado são frutos de uma forte influência do estilo do gênero em questão. Desde sua origem, como já ressaltamos, as personagens das HQs orientais são constituídas de aspectos marcantes que as distinguem entre si. Esses intensos traços humanos em seres que, teoricamente,

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deveriam ser completamente ficcionais, provocam nos leitores uma imediata identificação. Este fato explica-se devido à cultura do povo oriental, principalmente, japonês.

É sabido que desde meados da década de 1960 a população nipônica adquiriu a fama de ser aquela que mais se dedica ao trabalho e ao desenvolvimento nacional. Com cargas horárias extensas, poucos têm a oportunidade de lazer e entretenimento. Por isso, ao lerem uma revista em quadrinhos, buscam não só uma descontração, mas também uma espécie de fuga. Assim sendo, para que haja uma real aproximação entre leitor e texto, é necessário que o segundo seja carregado de verossimilhança e mimese com o espaço e o tempo desses possíveis leitores.

Em se tratando de Cavaleiros do Zodíaco, por se adequar a categoria shonen mangá 3, há

uma linguagem – verbal e não-verbal – própria; isto é, o público-alvo, em sua maioria, espera que os quadrinhos desta história sejam marcados pela ação, aventura, drama, comédia e, até mesmo, de romance. Todos esses aspectos são encontrados na obra em questão além, é claro, dos aspectos humanos das personagens que fazem com que esses jovens leitores se aproximarem ainda mais da leitura.

Por isso, ao testemunharmos a aparição deste tipo de construção psicológica nas personagens do mangá Cavaleiros do Zodíaco, constatamos a presença de outra relação dialógica, mas, agora, com o enunciatário. Notamos, pois, que o texto interage com o leitor, estabelecendo uma relação na qual os sentidos do texto e a interpretação do receptor convergem para uma mesma direção, promovendo, desse modo, uma efetiva interação entre o autor, o texto e o leitor.

Ressaltemos, ainda nesta relação de dialogicidade, uma questão típica da sociedade japonesa: a educação. Na terra do sol nascente as crianças desde os primeiros anos escolares são estimuladas a pensar acerca de suas futuras carreiras de trabalho. Até aos quatorze anos meninos e meninas estudam em escolas separadas, entretanto, a partir do Ensino Médio passam a frequentar colégios mistos.

Esse marcante aspecto da escola tradicional japonesa é vastamente usado como tema em muitos quadrinhos orientais, como Sakura Card Captors (1996) –- Kādokyaputā Sakura – e Sailor Moon (1992) – Bishōjo Senshi Sērā Mūn . Nestes mangás, por exemplo, percebemos os medos e os temores de jovens que, pressionados pela família e pela sociedade, devem escolher uma carreira de trabalho e estudar muito para obter o sucesso almejado.

Com relação aos Cavaleiros do Zodíaco, a maioria dos protetores de Atena, por terem sido enviados muito jovens para os seus respectivos treinamentos, possui idades entre treze e quinze anos. A obrigação e a missão defender Atena, de certa forma, representam essa

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importante fase de transição na qual todos os jovens nipônicos se encontram em um determinado momento de suas vidas.

Seiya, Shun, Shiryu, Hioga e Ikki não foram transferidos para escolas mistas e nem devem escolher uma carreira de trabalho; porém, recebem a tarefa de proteger a deusa Atena e, consequentemente, a Terra. Notamos, pois, que ambas as obrigações requerem responsabilidade, coragem e determinação para que o objetivo pretendido seja alcançado. Neste caso, a relação dialógica se dá, ao mesmo tempo, com o público-alvo e com o meio onde o mangá Cavaleiros do Zodíaco foi produzido; isto é, trata-se de uma relação que provém da cultura e da sociedade japonesa. Kurumada, influenciado pelas tradições culturais de seu país, trouxe para sua obra temas que dizem respeito tanto a sua formação pessoal, como à formação coletiva do seu povo. Tal atitude diz respeito ao conceito de individual e de social, segundo Bakhtin, tratado no começo deste artigo.

Kurumada, ao criar cavaleiros que representam cada qual uma das 88 constelações segundo a astronomia, imediatamente criou uma ligação com o aspecto mítico e religioso por trás das possíveis representações das estrelas para os astrólogos. Prova disto são os doze cavaleiros de ouro que, além de vestirem uma armadura que simboliza um signo, também apresentam as características psicológicas relacionadas a este.

Tomemos como exemplo o cavaleiro de ouro de touro, Adebaran. Na sequencia do horóscopo astrológico, o signo de Touro aparece como o segundo no sentido horário, após o signo de Áries. Para os astrólogos, as pessoas que nasceram no período de 20 de abril a 20 de maio são taurinas e, por isso, possuem um caráter forte e enérgico, lutam até o final para alcançar os seus objetivos. São também orgulhosos e voluntariosos, não admitem ser derrotados.

Assim, tendo em vista esses aspectos relacionados ao caráter típico de um taurino segundo a astrologia, não nos estranha o fato de que quando Seiya enfrenta Aldebaran é posto a prova a determinação e a coragem do jovem cavaleiro de bronze. Também iludido a respeito da verdadeira existência da deusa Atena, o cavaleiro de ouro não acredita nas palavras de Seiya com relação à identidade humana da deusa, por isso, desafia Pégaso em uma tarefa: se o jovem conseguir retirar um pedaço do chifre presente em seu elmo, ele poderá passar pela casa de Touro e seguir com a sua missão.

Após muitas tentativas, o jovem consegue finalmente retirar um pedaço do elmo do cavaleiro de ouro, provocando no adversário não só o sentimento de derrota, mas uma crescente admiração pelo bravo e corajoso Seiya de Pégaso.

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entanto, apesar de existir um vasto acervo de ideias e conceitos acerca desse estudo, em todas essas civilizações encontramos um ponto focal que estabelece relação entre essas teorias envolvendo a astrologia: para essas sociedades as diferentes posições dos astros celestiais indicavam não só os períodos de colheita e plantio do arado, mas também a crença de que se uma pessoa nascesse em determinada época do ano, seu destino seria traçado conforme a posição dos elementos celestes naquela data 4.

Baseados no conceito do astrônomo grego Ptolomeu (II a.C) – responsável por nomear as doze constelações da faixa imaginária denominada zodíaco –, os astrólogos além de elaborarem os mapas astrais e os horóscopos também dividiram o firmamento em casas celestiais com o intuito de determinar as características psicológicas do indivíduo que nascesse no período vigente a cada uma dessas casas.

Percebemos, então, que as relações dialógicas aqui encontradas têm suas origens tanto na cultura oriental como ocidental, pois em ambas verificamos a presença dos conceitos envolvendo astrologia. Neste caso, a obra Cavaleiros do Zodíaco estabelece relação com um meio, no caso, ocidente, que assim como influenciou outras culturas, também recebeu influências destas.

Lembrando que a astrologia é um estudo que, na maioria das vezes, encontra-se desvinculada de qualquer prática religiosa. Porém, em se tratando do mangá estudado, notamos conceitos envolvendo a astrologia ligados a preceitos de determinadas religiões orientais, como o Xintoísmo e o Budismo.

Com relação ao Xintoísmo, percebemos uma forte influência desta religião nos momentos em que a natureza mostra-se intensamente ligada à existência humana. Para ilustrar, podemos citar o caso do cavaleiro Shiryu de Dragão que, para obter a armadura de Dragão, precisou inverter o fluxo natural de uma cachoeira no seu local de treinamento, Rosan. Assim, seguindo os conselhos do seu mestre, ele se une espiritualmente à cachoeira e consegue invertê-la, executando um dos seus golpes mais poderosos: o “Cólera do Dragão”. Para um xintoísta, a natureza não possui leis e nem regras que a faça ser de determinada maneira. Pelo contrário, ela age segundo sua própria sensibilidade, sua espiritualidade. Sendo assim, o ser humano (ser natural) e a natureza são praticamente parentes, e é por isso que possuem características que os aproximam. Devido a este conceito, geralmente os praticantes xintoístas retiram-se para ambientes nos quais eles possam promover de maneira mais intensa essa integração com a natureza. .

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Vale lembrar que a ciência astronomia também estuda os fenômenos dos corpos celestes, no entanto, não inclui em seus altos os preceitos da astrologia. São, portanto, duas disciplinas distintas, sendo que a primeira possui um caráter mais científico e a outra, influenciada pela primeira, possui uma face mais mística.

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Notamos uma forte presença do Budismo no mangá de Kurumada em momentos nos quais as personagens demonstram um grande respeito pelos familiares e por conhecidos já falecidos. No caso do cavaleiro de bronze Hioga de Cisne, verificamos este respeito à memória de um ente querido, quando ele mergulha nas profundezas do mar Ártico para visitar o corpo de sua falecida mãe – vítima de um naufrágio quando Hioga ainda era pequeno.

Por ser um cavaleiro que tem o poder de dominar o elemento gelo, Hioga não mede esforços para levar uma rosa vermelha ao túmulo gelado da mãe nos aniversários de sua morte; sendo esta a principal característica da tradição dos funerais budistas: a visita aos mortos em datas especiais. Vale lembrar que, na história, Hioga demonstra ser cristão, pois carrega em seu peito um crucifixo. Neste caso, vemos o quanto essas duas práticas religiosas dialogam harmoniosamente na narrativa do mangá Cavaleiros do Zodíaco. Apesar da série de Masami Kurumada apresentar textos que estabelecem uma intenção relação de dialogicidade com universo oriental, mais especificamente, com os aspectos culturais e sociais do Japão, também encontramos ligações importantes entre o corpus examinado e o mundo ocidental, de um modo geral.

Na literatura greco-latina, encontramos duas concepções de heróis: o clássico e o trágico. O primeiro é construído linguisticamente por meio de seus grandes e lendários feitos. Estes que, apesar de envolverem na maior parte das vezes assassinatos, mentiras e “baixezas”, elevam a figura que os pratica, como é ocaso da personagem Aquiles em A Ilíada: “Ela [A Ilíada] não mostra o herói apenas como grandioso. Mostra a dor que decorre desses grandiosos gestos. Mostra também seus “defeitos”, até mesmo a sua grandeza enquanto baixeza [...]”. (KOTHE, 1987, p. 23).

Por outro lado, o herói trágico possui um percurso de queda, no qual sofre terríveis provações, mostrando sempre o seu lado mais humano e sensível. Isto faz com que ele, ao final, resplandeça em sua grandeza não física, mas espiritual, assim como Édipo, de Sófocles (a. C. 496 - 406 a.C).

Concluímos, então, que o percurso do herói clássico é alto, pois ele tende a crescer com decorrer da narrativa; ao contrário do herói trágico, que possui um percurso baixo. No entanto, é na queda que ele redescobre a grandeza, provando que apesar da sua desgraça, aprendeu com os percalços com os quais teve que lidar.

Vale lembrar que um herói clássico pode ter sua trajetória alterada tragicamente, como é o caso de Agamêmnon, outro importante personagem da obra de Homero: “[...] glorioso e exitoso chefe de uma longa e perigosa expedição militar, é morto tragicamente ao voltar

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para a casa [...]; ele, que antes comandara uma epopéia, torna-se protagonista de uma tragédia.” (Ibidem, p.23).

Em Cavaleiros do Zodíaco notamos que as figuras heróicas são um misto de épico e trágico. Os guerreiros da história aparentam ser, ao mesmo tempo, humanos semideuses. Citemos, pois, o episódio final da saga Santuário, quando Seiya vence o Mestre do Santuário, o cavaleiro de ouro Saga de Gêmeos. Este que, em seus últimos momentos de vida, reconhece seus erros e perde perdão à Saori e aos outros cavaleiros.

Neste caso, a personagem Saga, apesar ter deixado transparecer durante toda a narrativa o seu lado de vilão cruel e imbatível, ao final, quando percebe o quanto foi errado, renasce da “baixeza” e resplandece sua grandeza interior, cativando, assim, o leitor. “Todo grande personagem é uma união de contrários: ele é o alto cuja grandeza está na baixeza, ou é o alto que cai e readquire grandeza na queda, ou então é o baixo que se eleva e se mostra grandioso apesar dos pesares”. (KOTHE, 1987, p. 13).

Constatamos, neste caso, uma clara relação dialógica entre as características dos heróis trágicos e clássicos e o percurso narrativo de algumas personagens do mangá de Masami Kurumada. Novamente, testemunhamos a aproximação entre discursos da cultura ocidental e a cultura oriental por meio de uma coerente construção linguística.

Vejamos, então, a questão dos temas mitológicos ocidentais que são recorrentes no mangá estudado. Para exemplificar, analisemos os aspectos que marcam a personagem Shun de Andrômeda. Segundo a mitologia grega, Andrômeda, filha da rainha Cassiopéia, é acorrentada a uma rocha devido à raiva de Posêidon para com sua mãe. Resignada, aceita seu fardo e os maus tratos de um monstro marinho até o dia em que é resgatada pelo destemido Perseu, que após matar o inimigo, pede a mão da prisioneira em casamento. Na trama, Shun é o mais sensível de todos os cavaleiros. Na maior parte das vezes luta contra sua vontade, pois crê que o combate nunca leva a nada. Por isso, ao cumprir sua missão como defensor de Atena, nunca consegue enfrentar o seu adversário de igual para igual, porque aceita o desafio contra o seu querer. Nestes momentos, geralmente, aparece algum companheiro para ajudar, tomando, assim, seu lugar na luta.

Observamos, então, como há uma aproximação dialógica entre a construção da personagem citada e o mito grego. Em ambos os casos, a característica principal da figura (Andrômeda) que, no caso, é a fragilidade, e o percurso narrativo do herói Shun convergem para um mesmo plano semântico.

Na história da sociedade ocidental, o período entre os séculos XI e XIV é frequentemente denominado “A Era da Cavalaria”. Bem treinados e exímios combatentes, os cavaleiros, sempre protegidos por resplandecentes armaduras, adquiriram um papel de grande

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importância. Na maioria das vezes, estas respeitadas figuras lutavam em prol da justiça e em nome de senhores feudais. Por isso, para que pudessem receber destaque entre os outros cavaleiros, criou-se heráldica – brasão exclusivo que os distinguia entre si. Tal símbolo que permanecia na família do cavaleiro por várias gerações.

Estes cavaleiros históricos serviram de inspiração para as conhecidas “Novelas de Cavalaria”. Em produções deste gênero, os cavaleiros medievais das narrativas lutavam, acima de tudo, em nome da Igreja e do Cristianismo. Dessa maneira, além de protegerem os fracos e salvarem donzelas em perigo, também tinham missão de espalhar o evangelho de Cristo pelos lugares por onde passavam.

Dentre essas obras do trovadorismo europeu, podemos citar a que é considerada pelos estudiosos como a mais significativa: A Demanda do Santo Graal (1220 d.C). Apesar de possuir autoria desconhecida, sabe-se que essa novela de cavalaria surgiu na França e acredita-se que tenha sido composta por Gautier Map.

A trama desenvolve-se após o misterioso sumiço do Santo Graal – cálice que, segundo o mito, foi usado por José de Arimatéia para recolher o sangue de Cristo durante a crucificação. A partir de então, inicia-se uma “demanda” na qual os cavaleiros deverão sair em busca deste objeto sagrado. Durante esta incessante procura, eles protagonizarão diversas aventuras e batalhas, até o momento em que o cavaleiro Galaaz, conhecido como “o escolhido”, é honrado com a aparição do Graal:

Galaaz, tanto quanto os demais companheiros de jornada, não só procurava aperfeiçoar-se física e moralmente na defesa de donzelas e cavaleiros desprotegidos ou injustiçados, como fazia disso sua própria razão de viver. [...] percebe-se que o cavaleiro simboliza Cristo em sua peregrinação entre os homens, a fim de pacificá-los e defender os pobres contra os ricos, os fracos contras os fortes etc. (MOISÉS, 1997, p. 41).

Haja visto que o mangá Cavaleiros do Zodíaco possui uma história que apresenta ligações com dois aspectos da literatura trovadoresca européia, em meados do século XIII, que são os cavaleiros e as suas armaduras, podemos estabelecer algumas relações dialógicas entre os discursos vigentes nesses dois gêneros, mangá e novelas de cavalaria.

Verifiquemos, primeiramente, a questão das armaduras e de seus respectivos senhores. Na tradição europeia, a armadura, para um cavaleiro, era o seu bem mais precioso, porque além de ser sua principal proteção, também simbolizava o nome de sua família. A heráldica era mais do que um símbolo, era a junção de tudo aquilo que o cavaleiro representava. No mangá estudado, a armadura, independentemente da categoria (bronze, prata, ou ouro), é um bem precioso para o cavaleiro que a utiliza. No entanto, diferentemente dos cavaleiros

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suas habilidades e forças dependem, além do domínio do cosmo interior por parte de cada cavaleiro, também do significado de cada constelação; ou seja, se um cavaleiro tem o dom de dominar o fogo, é porque sua constelação lhe permite tal manifestação.

Ainda com relação à força e às diferentes habilidades dos referidos tipos de cavaleiros, notamos que as personagens das novelas de cavalaria utilizam sua fé como fonte de proteção e coragem. Isto porque estes cavaleiros acreditam na existência de uma força muito superior a deles, que, neste caso, provém do Espírito Santo. Já os cavaleiros de Atena, possuem uma força que pode aumentar conforme o domínio que a pessoa tem sobre o seu cosmo. Verificamos, então, que em ambas as personagens, as diferentes forças não são oriundas das armaduras que vestem, mas de uma energia interior e própria de cada indivíduo.

Há, portanto, uma perceptível relação dialógica entre esses dois tipos de cavaleiros heróis. Tanto os cavaleiros retratados em A Demanda do Santo Graal, quanto as figuras do mangá Cavaleiros do Zodíaco, possuem aspectos em comum quando se trata da imagem estatutária do cavaleiro. Observamos, dessa forma, discursos que interagem em harmonia, pois convergem semanticamente para um plano equilibrado.

Outro importante fator que aproxima dialogicamente esses dois discursos – do cavaleiro medieval e do cavaleiro de Atena – está relacionado com as respectivas missões que foram designadas para essas personagens. Em se tratando do cavaleiro trovadoresco, notamos que a sua tarefa maior, dentre todas, é a de evangelizar os povos com os quais tem contato por meio da palavra de Jesus Cristo. Em contrapartida, o cavaleiro defensor de Atena tem como missão proteger a reencarnação da deusa e defender a Terra do mal. Em ambos os casos, verificamos a presença de uma busca por um bem coletivo.

Para o cavaleiro medieval, a honra, a justiça e a glória de um povo provêm da fé que este possui em Deus. Já para os cavaleiros do mangá de Masami Kurumada, tanto a fé na justiça representada pela figura da deusa Atena, quanto a crença de que os seres humanos são capazes de feitos impensáveis, move as atitudes e ações tomadas por eles.

CONCLUSÃO

Como pudemos notar, a arte dos quadrinhos, nos seus mais variados aspectos, é rica em linguagem, seja ela verbal ou não. Tanto no ocidente, com no oriente, esse gênero textual representa maneiras distintas a visão de mundo de uma determinada comunidade lingüística.

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Notamos, então, que a história do mangá Cavaleiros do Zodíaco está repleta de características próprias das tradições culturais e sociais do Japão, sejam relacionadas ao estilo do gênero discursivo na qual foi publicada, seja no típico formato midiático japonês. Pudemos perceber o quanto há uma relação dialógica entre o mangá Cavaleiros do Zodíaco, de Masami Kurumada, com o meio do qual se originou, provando, dessa maneira, como os discursos alheios de um determinado espaço podem influenciar no modo de ver e de reproduzir o mundo de um determinado sujeito.

Ao mesmo tempo, foi possível verificar que um determinado texto pode receber influência de discursos que não estejam diretamente relacionados ao meio no qual está inscrito. Prova disto são os aspectos do universo ocidental que aparecem dialogizados no enredo do mangá estudado.

REFERÊNCIAS

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