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Pensando o Sexualidade Morte, Mundo

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Academic year: 2021

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Texto

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Pensando o ritual

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Coordenação Editorial Carla Milano

Edição de Texto

Martha Assis de Almeida Kuhl Tradução

Maria do Rosário Toschi Preparação

Carlos Alberto Inada Revisão

Cláudia Jorge Cantarin Domingues Revisão Técnica

Mariarosaria Fabris Agradecimento

Prof. João Angelo Oliva Neto (pela revisão dos termos em latim) Capa

João Baptista da Costa Aguiar Composição

CompLaser Studio Gráfico

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Perniola, Mario

Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo / Mario Perniola; tradução Maria do Rosário Toschi; (colaboração Mariarosaria Fabris). — São Paulo: Studio Nobel, 2000.

ISBN 85-85445-92-0

1. Filosofia italiana 2.Perniola, Mario I. Fabris, Mariarosaria. II. Título

CO-2675 CDD-295

Índices para catálogo sistemático:

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Apoio

“Obra publicada com a contribuição do

Ministério das Relações Exteriores da Itália”

Programa de Pós-graduação em

Língua e Literatura Italiana (USP)

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Pensando o ritual

sexualidade, morte, mundo

Tradução

Maria do Rosário Toschi

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© 2000 Livros Studio Nobel Ltda.

Livros Studio Nobel Ltda. Rua Maria Antônia, 108 01222-010 — São Paulo — SP Fone/Fax: (11) 257-7599

e-mail: studionobel@livrarianobel.com.br

Distribuição / Vendas Livraria Nobel S.A. Rua da Balsa, 559 02910-000 — São Paulo — SP Fone: (11) 3933-2822 Fax: (11) 3931-3988 e-mail: ednobel@livrarianobel.com.br É PROIBIDA A REPRODUÇÃO

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida sem a permissão por escrito dos editores por qualquer meio: xerox, fotocópia, foto-gráfico, fotomecânico. Tampouco poderá ser copiada ou transcrita, nem mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações. Os in-fratores serão punidos pela lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973, artigos 122-130.

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Sumário

Apresentação ... 9

Introdução ... 23

Capítulo I — O charme venusiano 1 Sedução, amor, charme ... 39

2 O “venus” como veneração... 42

3 O “venus” como “venia” ... 47

4 O “venus” como “venerium” ... 51

5 O “venus”como veneno... 54

Capítulo II — A erótica do trânsito 1 O “eros”como intermediário ... 62 2 O “carmen” erótico ... 65 3 A erótica do uso ... 68 4 A arte amatória ... 72 5 A provocação amatória ... 76 6 O emprego amatório ... 79

Capítulo III — Entre a veste e o nu 1 Magnificência da veste e verdade do nu ... 84

2 A erótica do despir: o nu e o véu ... 91

3 A erótica de revestir: veste e corpo... 97

4 O nu eletrônico e a veste de carne... 122

Capítulo IV — Ícones, visões e simulacros 1 Iconofilia e iconoclastia ... 127

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Capítulo V — Fenômeno e simulacro

1 A recusa do conceito metafísico de aparência ... 143

2 Fenômenos e simulacros ... 146

3 Lógos e eterno retorno ... 151

4 Fenomenologia hermenêutica e semiótica pulsional ... 154

5 A meditação reveladora e a operação simuladora ... 159

Capítulo VI — O ser-para-a-morte e o simulacro da morte 1 Diversão e recalque da morte... 164

2 O ser-para-a-morte ... 170

3 O simulacro da morte ... 176

4 Morte, tempo, história ... 183

5 A intratemporalidade e a economia política ... 190

Capítulo VII — O reino intermédio 1 Ser-para-a-morte ou renascer?... 198

2 Morte e renascimento no pensamento ritual ... 200

3 O “Troiae lusus” ... 207

4 O rito do rito ... 216

Capítulo VIII — A arte de Mamúrio 1 A arte como “opus” ... 221

2 A arte como “artus”... 226

3 A arte como “ritus” ... 230

4 A arte como “ops” ... 234

Capítulo IX — Decoro e cerimônia 1 O resplandecente ... 241

2 O conveniente ... 243

3 O decoro ... 252

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Apresentação

Na espiral do simulacro

Annateresa Fabris

No prefácio à edição francesa de L’ alienazione artistica (1977), P. Sansot destacava, como uma das características prin-cipais de Mario Perniola, sua qualidade de “maravilhoso genealogista”. Sansot referia-se à relação de Perniola com a história, guiada por um “materialismo fino”, longe tanto de reconstruções arriscadas quanto de esquemas simplistas. “Ma-terialismo fino” era sinônimo de uma análise histórica enun-ciada com cautela e fundamentada em bases precisas e sutis, atenta antes aos incidentes de percurso e às curvas mais sinu-osas da história do que às grandes reconstruções teóricas.

Uma outra característica destacada por Sansot dizia res-peito à relação do autor com seu objeto de estudo, marcada por uma mistura de elã juvenil e cultura ampla, crítica radi-cal e imaginação positiva.1

Por que evocar, mais de vinte anos depois, uma leitura do segundo livro de Perniola, publicado na Itália em 1971? Porque as hipóteses propostas por Sansot parecem estar na base do método do autor italiano, como poder perceber o lei-tor de Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo.2

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Se dúvidas houvesse sobre tal coerência de percurso, bastaria atentar para o interesse cada vez mais acentuado de Perniola pelo neo-antigo e pelo neobarroco, que reponta a cada página de Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. No caso do neo-antigo, trata-se de um longo percurso que vem da comunicação “Lógica da sedução”, publicada, em 1980, em La società dei simulacri, passa por boa parte de Transiti (1985) e Del sentire (1991), é um dos eixos de Piú-che sacro, piú-Piú-che profano (1992) e Enigmi (1994).3 Quanto ao

neobarroco, seus pontos fundamentais acompanham de per-to a teorização do neo-antigo — alguns capítulos de La società dei simulacri (“O ser-para-a-morte e o simulacro da morte”, “Simulacros do poder e poder dos simulacros” e “Lógica da sedução”), Transiti, Del sentire e Enigmi —, numa clara de-monstração daquela genealogia de que falava Sansot.

O que designa o conceito de neo-antigo? Partindo da constatação de que a arte, a literatura, a música e a filosofia contemporâneas desenvolveram uma dimensão meta-artísti-ca e metafilosófimeta-artísti-ca, que as levou a fechar-se num “microam-biente artificioso e asfixiante”, o autor propõe como saída para aquilo que denomina um “estado de mal-estar”, uma “situa-ção de angústia”, “um narcisismo cultural” a retomada do con-ceito hegeliano de “arte simbólica”, própria da Antiguidade pré-clássica e extra-européia. Uma vez que a arte contempo-rânea, acossada pelo avanço dos meios de comunicação de massa e da ciência, se retirou do mundo, dissolvendo o con-ceito que a regia, Perniola acredita ser possível reencontar esse conceito num caminho às avessas, que remonte aos primórdios da criação artística.

Propor a hipótese da existência de uma correspondên-cia entre o momento contemporâneo e o mundo pré-arcaico

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significa deixar de lado as noções de eu, sujeito, espírito (mun-do romântico) e os ideais de equilíbrio e sobriedade formal (mundo clássico) em favor da aceitação da confusão e inver-são entre vivo e morto, do choque com uma exterioridade di-fícil de ser dominada, do confronto com um enigma impos-sível de ser resolvido.

A hipótese de um “efeito egípcio” na sociedade contem-porânea, tal como apresentado na reflexão hegeliana — pro-cesso de osmose entre o ser e as coisas —, está na base da formulação neo-antiga de Perniola. O neo-antigo apresenta-se, finalmente, como um abandono de qualquer veleidade uni-versalista e metafísica por parte da cultura ocidental, em bus-ca daquela metodologia etnológibus-ca e etnofilosófibus-ca que havia sido aplicada até pouco tempo atrás ao estudo das culturas primárias e marginais.

Que tipo de Antiguidade desperta, então, o interesse de Perniola? A Antiguidade helenística, sobretudo em sua ver-são estóica, ancorada num conhecimento sensualista e mate-rialista, e a da Roma antiga, na qual são centrais as noções de simulacro e de mito sem rito.

Desse quadro de referências deriva um conjunto de pluralizações, que torna obsoleta qualquer estrutura mani-queísta e convida, entre outras operações, a reintroduzir a no-ção de sagrado na cultura contemporânea pela retomada das idéias de repetição e derivação, em detrimento daquelas de originariedade e pureza.4

Para definir o neobarroco, que deita raízes na década de 60, Perniola esposa a idéia de barroco proposta por José Antonio Maravall: coincidência entre racionalidade e irra-cionalidade, técnica e possessão, tonalidades emotivas muito frias e muito quentes. É a partir desses opostos não

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exclu-dentes que o autor italiano analisa o neobarroco social em manifestações como o moralismo religioso, o pacifismo, o ecologismo, a estratégia das aparências; o neobarroco artísti-co, estribado na perspectiva “inexpressionista” postulada por Germano Celant, da qual seriam representações emblemáticas o desaparecimento do sujeito, a importância crescente das coi-sas, a poética do enigma e da beleza estratégica, o luxo técni-co, o fascínio pela morte e pela oralidade; o neobarroco filo-sófico, que estabelece uma identificação entre o ponto de vista filosófico e o ponto de vista enciclopédico, na retomada de uma tradição que vai do século XVII a Hegel, e cujos eixos fundamentais são o estudo da relação entre filosofia e línguas e filosofia e instituições, numa abordagem extra-européia e anti-hierárquica.5

Simulacro, neo-antigo e neobarroco encontram-se lado a lado no ensaio Lógica da sedução (1979), no qual Perniola deixa de lado o conceito teológico-libertino para aderir à idéia sofística da apáte. Afirmando a existência de uma lógica da sedução, que se impõe ao seduzido e ao sedutor, alheia a qual-quer vontade subjetiva, por estar em estreita relação com o kairós, a ocasião, o autor traça sua genealogia, desde a sofística até o momento atual, dominado pela holografia social.

Passa, desse modo, pela seductio latina, subtração de algo do contexto originário, que, no plano político-militar, vem acompanhada pelo ritual religioso da evocatio. Nesse ri-tual, que consistia na acolhida, em Roma, das divindades dos inimigos, e cujo êxito dependia da designação da cidade e dos deuses com seu verdadeiro nome, Perniola detecta o ca-ráter essencial do simulacro como dissolução entre aparên-cia e realidade, em favor de uma terceira dimensão que se sobrepõe a ambas. Para compreender tal afirmação, é

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neces-sário lembrar que a evocatio romana era diferente daquela pra-ticada com os demais povos. Para evitar que Roma fosse ob-jeto do mesmo ritual, os romanos ocultavam o nome do deus protetor e a designação latina da cidade, evocando, desse modo, a lógica do sedutor: não ser um sujeito, e sim um puro espaço vazio ocupado pelos deuses e pelos nomes dos seduzidos.

Prossegue com Baltasar Gracián, que faz do sedutor uma figura sem identidade para poder estar aberta à ocasião, às determinações do seduzido, que é quem lhe atribui qua-lidades. Gracián confere uma dimensão política à sedução, transformando-a em condição essencial da arte de governar, por ser, como escreve Perniola “auto-supressão da identida-de do poidentida-der e repetição simulada das iidentida-dentidaidentida-des dos sedu-zidos. A lógica da sedução é solidária com o processo de des-realização e culturalização radical que investe o mundo bar-roco”. Outra imagem barroca da sedução é localizada no convidado de pedra do drama de Tirso de Molina, que consegue inverter a relação entre sedutor e seduzido. Don Juan é seduzido por um simulacro, que determina sua ruí-na, uma vez que a lógica da sedução se impõe acima das sub-jetividades individuais.

Detém-se, finalmente, no momento atual, que denomi-na sociedade dos simulacros, denomi-na qual se restabelece a relação entre poder e sedução. O poder político, que deixou de ser ide-ológico, é comparado com um holograma, cuja sedução deri-va do fato de ser deri-vazio, de não justificar nenhuma ilusão ou aparência e de ser, assim mesmo, passível de experiência e de apreciação por aquilo que mostra. A única alternativa que Perniola detecta para a sociedade hodierna não escapa da lógi-ca do holograma: só resta escolher entre considerá-lo um

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“ob-jeto real” ou vê-lo enquanto tal. O simulacro de sociedade que a holografia delineia seduz justamente por sua indeterminação, pela disponibilidade em assumir formas múltiplas de acordo com o ponto de vista do observador. Com ele caem por terra categorias velhas e novas: a estética, como teoria geral de uma sedução poderosa e de um poder sedutor, toma o lugar da po-lítica ideológica; a lógica da ocasião sucede à racionalidade dialética; o intelectual é substituído pelo operador cultural; a sociedade do espetáculo cede seu espaço à holografia social.6

Conceito fundamental na teorização de Perniola, o si-mulacro não pode ser dissociado da leitura que ele faz de Pierre Klossowski, releitor de Nietzsche desde a década de 50. Simulacro e eterno retorno possuem uma relação íntima no pensamento do filósofo francês, como demonstra um dos ca-pítulos de Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo:

“(...) O retorno às coisas mesmas é impossível porque, a par-tir do momento em que Deus está morto, nada mais existe de originário. A morte de Deus, que é definida por Klossowski como o ‘acontecimento dos acontecimentos’, está estritamen-te ligada à ‘necessidade circular do ser’, expressa na estritamen-teoria nietz-schiana do eterno retorno. As ‘coisas mesmas’ já são desde sem-pre cópias de um modelo que jamais existiu, ou melhor, que a morte de Deus dissolveu para sempre; trata-se de simulacros, não de fenômenos. (...) Os conceitos metafísicos de aparência e de realidade, portanto, são recusados (...) em nome de algo que anuncia e remete infinitamente a uma cópia.”7

Imagem sem identidade, o simulacro tem sua história retraçada pelo autor que, em Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, enfatiza os momentos romano e

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contra-refor-mista. O ferreiro Mamúrio Vetúrio, que forja onze escudos idênticos ao que havia caído do céu para salvar Roma de uma pestilência, é a própria encarnação da concepção romana de arte, alheia a qualquer distinção entre verdadeiro e falso, ori-ginal e cópia. Nem criação oriori-ginal, nem imitação falsifica-dora do modelo divino, a operação de Mamúrio Vetúrio cons-titui para Perniola “uma repetição tão exata que anula o pro-tótipo ao mesmo tempo que o preserva. A sua arte não se opõe ao que é dado pelos deuses, pela natureza, nem aceita um papel subordinado ou dependente, mas se põe ao lado de tudo o que é oferecido, multiplicando-o, deslocando-o, in-troduzindo-o num trânsito do mesmo para o mesmo. O triun-fo da cópia é também extrema fidelidade ao signo enviado pelos deuses, porque nenhuma variação é admitida; mas esta fidelidade elimina a excepcionalidade prodigiosa do exemplar único, o torna normal, regular, cultural. O sucesso da ativi-dade humana é por isso destituído de arrogância e de orgu-lho, é sem culpa, inocente”.8

Outro momento nuclear para a história do simulacro en-quanto imagem sem protótipo é situado pelo autor no século XVI. Roberto Bellarmino e santo Inácio de Loyola são os prin-cipais interlocutores de Perniola, pois em ambos estão presen-tes as condições fundamentais para a existência do simulacro: “renúncia à afirmação metafísica da identidade das coisas e do mundo” e “reconhecimento de seu valor histórico”.9

Em Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, Perniola propõe, embora rapidamente, outro momento para o simula-cro, que corresponde à presença dos meios de comunicação de massa. Não se trata de um salto histórico, e sim de uma evi-dente explicitação da idéia neobarroca: o autor estabelece uma continuidade lógica entre a concepção seiscentista do

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simula-cro como construção artificiosa, destituída de uma origem e incapaz de ser um original, com as técnicas industriais de re-produção da imagem e com os meios de comunicação de massa. Ao simulacro dos meios de comunicação de massa não parece aplicar-se, contudo, a idéia de negação aventada por Perniola. Eles parecem estar muito mais sob o signo do “puro simulacro de si”, proposto por Baudrillard, que assim analisa o realismo e o hiper-realismo de que são portadores:

“(...) Produção frenética de real e referente, paralela e superi-or ao frenesi da produção material: assim aparece a simula-ção na fase que nos diz respeito — uma estratégia do real, de neo-real e hiper-real, que duplica por toda parte uma es-tratégia de dissuasão.”10

O que Perniola detecta na sociedade contemporânea é o fenômeno da “socialização do imaginário”, conseqüência direta da reprodução técnica das imagens que dissolve qualquer aura, qualquer valor de culto, qualquer especificidade. A integração entre sociedade e cultura não se sustenta mais em princípios, idéias e representações emanadas de um sujeito, e sim em si-mulacros que se movem num espaço que anula toda originariedade, toda autenticidade e toda subjetividade. É a pas-sagem da aculturação à culturalização: se na primeira existia a mediação do jornalismo, da escola, da política, a segunda é pro-duto da duplicidade, da “repetitividade imediata” do simulacro. A estética assume um papel determinante nessa nova ordem. Mesmo tendo uma estruturação filosófica, independe da gnosiologia, da ética e da política. Seu novo objeto não consis-te mais na arconsis-te ou no prazer, mas na operação cultural e na so-cialização do imaginário, que transforma o “real” em simulacro.11

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Outra noção central no pensamento de Perniola é a de trânsito, definido como passagem do presente para o presen-te, da presença para a presença, do mesmo para o mesmo. Pre-sente e presença são a condição própria do homem contem-porâneo, destituído de memória e de expectativas, o qual con-seguiu espacializar o tempo num movimento horizontal que confere historicidade a qualquer lugar do mundo.12

O trânsito, embora seja um conceito autônomo, pare-ce não poder prescindir da dimensão do simulacro. É o que demonstra Perniola quando, por intermédio de Klossowski, estabelece uma relação intrínseca entre erotismo e arte: am-bos “fornecem uma veste, um invólucro, um simulacro ao que é destituído de realidade”, propõem “uma imitação que nun-ca pode ser verifinun-cada porque o original, o fantasma, o de-mônio nunca aparecem como tais”.13

Trânsito e simulacro aparecem claramente relacionados em algumas das melhores páginas de Perniola, dedicadas à aná-lise da arte barroca e, mais particularmente, a duas de suas estratégias — o uso erótico do panejamento e a apresentação do corpo como despojo vivo. O encanto erótico apontado na dissolução do corpo da santa Teresa de Bernini no pane-jamento do hábito poderia ser multiplicado se se escolhesse como outro referencial uma das obras mais significativas do barroco napolitano, o Cristo velado, de Giuseppe Sammartino. Se o barroco é essencialmente corpo e forma, e, antes de mais nada, encarnação e dramaturgia corporal, o Cristo da Capela Sansevero de Nápoles é uma das representações mais signifi-cativas de uma teatralização, na qual o véu oculta e exibe uma “substantia indeterminata”, graças a um trompe-l’oeil luminoso e cambiante. O véu que exibe escondendo pode ser conside-rado uma cena, a evocação e a manifestação de uma presença

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que não pode ser afirmada e significada diretamente. É pró-prio da mentalidade barroca explorar a metáfora da máscara, pela qual uma coisa pode ser ao mesmo tempo coisa e signo — esconder como coisa aquilo que desvela como signo.14

Se tais considerações remetem àquela materialização do irreal de que fala Lacan, ao trompe-l’oeil levado a seu grau má-ximo enquanto fusão de artifício e natureza, é a isso que Perniola se refere quando propõe a idéia dos nus barrocos como “túnicas de pele”, do corpo como veste. O desenho anatômico barroco é analisado por esse mesmo prisma: não deixa de ser significativo que o tratado de Bidloo, ilustrado por De Lairasse, seja considerado “um dos vértices do erotis-mo barroco” e seja comparado com a santa Teresa de Bernini. Em ambos, o sujeito não existe mais, dissolvido no êxtase ou na morte: no conjunto escultórico, há “uma veste que é tão viva e vibrante quanto um corpo”; no tratado anatômico, há “um corpo que é tão externo e magnífico quanto uma ves-te”. Do corpo inteiro ao corpo dissecado há um trânsito do mesmo para o mesmo, há uma fusão completa entre artifício e natureza.

“(...) Os cachos dos cabelos, os pêlos do púbis, as asas da mosca que acidentalmente se demora no ventre, o mamilo túrgido, o pênis esfolado que se ergue majestoso, enquanto pequenos pregos prendem a pele do escroto na mesa... tudo é veste, pano, tecido. Os tendões assemelham-se às fibras da corda que segura o cadáver pela garganta ou ao laço que man-tém unidos os pulsos. Até mesmo os ossos são representa-dos como tecirepresenta-dos com a trama um tanto carcomida. Tudo agora está reduzido aos mínimos termos, feito em pedacinhos e desenhado de todos os lados, como os minúsculos ossos

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dos pés ilustrados na última lâmina: tudo permanece, até o fim, tecido, veste. Tudo se reduz a pó, mas o pó é ainda uma extrema cobertura, que tudo envolve.”15

Embora o autor trace um rápido paralelo com os dias de hoje através do nu eletrônico e do transe, a problemática da veste poderia ser evocada graças a um artista como Arnulf Rainer, que, num primeiro momento, sobrepõe à imagem fo-tográfica do próprio corpo intervenções pictóricas de caráter informal que transfiguram a aparência e criam uma inquie-tante contraposição entre autovisão e máscara social.

A estética neobarroca, que já se configurava no final dos anos 60, ganha contornos claros posteriormente, quando o artista passa a pintar para “recobrir a pintura”, acentua a con-cepção de auto-retrato como espelho sinistro, numa metamor-fose que leva o eu a despojar-se de si mesmo, demonstra um interesse cada vez maior por todas as linguagens do corpo (ca-dáver, múmia, máscara), transforma a própria atitude peran-te a arperan-te num “peran-teatro da paixão”.16

Se o presente é a dimensão efetiva do homem contem-porâneo, isso não significa que Perniola se torne um arauto do fim da história. A história pode ser explicitada naquele “rito sem mito”, que caracterizava a religião romana, que suprime toda relação com uma ação primigênia e se orienta para uma repeti-ção exteriormente perfeita dos textos sagrados, esvaziados de seu significado. A separação entre mito e rito está enraizada na di-ferença entre milagre e história. Se o mito remete ao originário, ao arquetípico, ao excepcional, o rito, ao contrário, designa a repetição, a continuidade. Trata-se, contudo, de uma continui-dade que é “diferente e outra em relação a si mesma”, para a qual só pode ser evocada a imagem da espiral: dependendo do ângulo de visão ela poder sugerir permanência ou diferença.

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A composição em mosaico, própria da sociedade roma-na, que despedaçava toda unidade para convertê-la em multi-plicidade, é parte integrante do afastamento do mito.

“... nenhuma ‘ordem’ política e civil, nenhuma ordenação ur-bana, nenhuma possibilidade de ação histórica é consentida aos homens até que o maravilhoso e o prodigioso irrompam e perturbem a trama, a rede que forma a sociedade.”17

Neo-antigo e momento contemporâneo encontram-se lado a lado. O cotidiano hodierno, marcado pela transmissão ritual de usos, sem identidade e sem origem, por ações exte-riores realizadas por atores opacos, é um dos aspectos daque-la “holografia social” proposta por Perniodaque-la. É, portanto, mais uma manifestação daquela vertigem simulatória, daquela re-petição diferente, próprias de uma sociedade que perdeu toda a noção originária (e original), que se espelha num sentir dis-tanciado e impessoal, mas nem por isso negativo. É a genea-logia de alguns aspectos dessa situação que Perniola analisa em Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo.

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Notas

1. P. Sansot, Préface, in Mario Perniola, L’ aliénation artistique. Paris, Union Générale d’Editions, 1977, p. 7, 12, 14.

2. Este livro é integrado por ensaios extraídos de La società dei simulacri e Transiti. 3. Para uma cronologia completa da questão neo-antiga, ver: Federico De Donato, Mario Perniola e il neo-antico, in Mario Perniola, (org.), Il pensiero neo-antico. Milão, Mimesis, 1995, pp. 119-22. Entre os títulos citados, dois foram traduzidos em Por-tugal — Do sentir (Lisboa, Presença, 1993) e Enigmas (Lisboa, Bertrand, 1994) —, e um no Brasil — Mais-que-sagrado mais-que-profano (in Maria Amélia Bulhões & Maria Lúcia Bastos Kern, org. As questões do sagrado na arte contemporânea da Amé-rica Latina. Porto Alegre, Editora da Universidade/UFRGS, 1997).

4. Perniola, Sul neo-antico, in Mario Perniola, (org.), Il pensiero neo-antico, op. cit., pp. 7-15. A problemática do momento egípcio é analisada em profundidade pelo autor em Enigmas.

5. Perniola, Barocco, espressionismo, inespressionismo, in Enigmi. Gênova, Costa & Nolan, 1990, pp. 103-23.

6. Perniola, “Logica della seduzione”, in La società dei simulacri. Bolonha, Cappelli, 1983, pp. 177-89.

7. Perniola, “Fenômeno e simulacro”, in Pensando o ritual: sexualidade, morte, mun-do. São Paulo, Studio Nobel, 2000, p. 143.

8. Perniola, “A arte de Mamúrio”, em: Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, op. cit., pp. 221.

9. Perniola, “Ícones, visões, simulacros”, in Pensando o ritual: sexualidade, morte, mun-do, op. cit., p. 109.

10. Baudrillard, La precessione dei simulacri, in Simulacri e impostura, op. cit., p. 52. 11. Perniola, Socializzazione del pensiero, socializzazione dell’immaginario, in La società dei simulacri, op. cit., pp. 51-6.

12. Perniola, Il transito, in Transiti. Bolonha, Cappelli, 1985, pp. 8-9.

13. Perniola, “A erótica do despir: o nu e o véu”, in Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo, op. cit., p. 89.

14. Sobre a dramaturgia corporal e o Cristo velado, ver Buci-Glucksmann, La folie du voir. Paris, Galilée, 1986, pp. 96-7; Marino Niola, Sui palchi delle stelle. Roma, Meltemi, 1995, pp. 46-7, 49 (nota 25).

15. Perniola, “A erótica do despir: o nu e o véu”, op. cit., p. 91.

16. Sobre Arnulf Rainer posterior à década de 60, ver Buci-Glucksmann, op. cit., pp. 217, 220, 222, 224. A problemática da veste, aliás, poderia ser aplicada a mui-tos praticantes da body-art e a várias experiências fotográficas contemporâneas, como as de Cindy Sherman e Andres Serrano, por exemplo.

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Introdução

“Pensamento mítico”, “pensamento pré-lógico”, “pen-samento simbólico”... com essas e outras expressões seme-lhantes foi definida a atividade intelectual dos membros das sociedades primárias, em oposição ao pensamento racional, lógico e discursivo das culturas históricas. A expressão “pen-samento ritual” parece somar-se ao primeiro conjunto com o intuito específico de chamar mais a atenção sobre a ação e os comportamentos do que sobre o conhecimento e as fun-ções mentais. Ao pensamento projetivo, instrumental e prag-mático da cultura ocidental se oporia o pensamento ritual, repetitivo e codificado das sociedades primárias. Entretan-to, não é esse o sentido que eu atribuo à expressão “pensa-mento ritual”: não se trata de modo algum de comparar o caráter tradicional e estático das sociedades primárias com o caráter inovador e progressivo da civilização ocidental, mas de apresentar uma mentalidade, uma forma de pensar, uma maneira de se comportar que ultrapassa a distinção entre tra-dição e inovação, entre sociedade primária e sociedade his-tórica, entre primitivismo e civilização.

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Não é necessário sermos grandes viajantes para perce-ber que o mundo contemporâneo oferece um panorama no qual está dissolvida a rígida contraposição entre sagrado e pro-fano, entre simbólico e pragmático, entre selvagem e racional. Assistimos, de um lado, ao surgimento de comportamentos tribais nas metrópoles e, de outro, ao profundo impactoda racionalidade tecnológica e econômica nas situações menos de-senvolvidas. Tudo isso dá lugar a misturas inéditas e surpre-endentes de arcaísmo e modernidade, de passado e futuro, para cuja compreensão as categorias habituais se mostram totalmen-te inadequadas. A minha reflexão está orientada exatamentotalmen-te para a localização e a determinação das noções que se situam além das dicotomias e das polaridades até o momento vigen-tes na maioria dos estudos antropológicos. Os conceitos de “trânsito”, “simulacro” e “rito sem mito”, que constituem a articulação do presente volume, satisfazem perfeitamente a essa exigência, que nasce tanto da observação da realidade sociocultural quanto da dinâmica interna da pesquisa teórica.

Assim, a noção de “trânsito” parece-me estar estritamente ligada com essa experiência de simultaneidade, de disponibili-dade e de dilatação do presente, que caracteriza a vida contem-porânea. Essa noção, de fato, parece manter-nos freqüentemente em um estado de provisoriedade e de indefinição, no qual o aspecto estático e o aspecto dinâmico da existência tendem pa-radoxalmente a coincidir. Mesmo sem ver no refugiado e no exilado a figura emblemática do nosso tempo, o afrouxamento dos laços com o lugar de origem já não é mais compensado pela busca de uma terra prometida. A ausência de um enraizamento que confira uma identidade não é mais percebi-da como uma falta a ser preenchipercebi-da: somos estrangeiros na nos-sa terra e, vice-vernos-sa, sentimo-nos em canos-sa em qualquer lugar.

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Ao mesmo tempo, a noção de “trânsito” responde a exi-gências que surgem do desenvolvimento da terminologia e do pensamento filosófico. Como é sabido, Hegel tinha visto na “superação” (Aufhebung) o movimento da realidade, a qual prossegue conservando e abolindo simultaneamente as suas determinações precedentes. A palavra-chave da obra de Nietzsche é, em contrapartida, “ultrapassagem” (Überwin-dung): ela rompe os laços com o passado, e é animada por uma irreprimível vontade de ir além do existente. Enfim, todo o pensamento de Heidegger pode ser considerado uma me-ditação sobre o empedimento da metafísica e do niilismo: para designar tal experiência — que é ao mesmo tempo apropria-ção, aceitação e aprofundamento do passado —, Heidegger criou o termo Verwindung, que contém simultaneamente as idéias opostas de vitória e de resignação. A noção de trânsito nasce da continuação por esse caminho e se diferencia das no-ções precedentes por dar maior destaque ao presente e à pre-sença. Sob esse aspecto, ela se insere no debate sobre a rela-ção entre tradirela-ção e inovarela-ção, encaminhado segundo perspec-tivas divergentes tanto por Hans Georg Gadamer como por Ernst Bloch: o primeiro, como é sabido, realiza uma reforma da noção de tradição que chega a um presente fora do tem-po, entendido como “classicismo”, enquanto o segundo leva a cabo uma reforma da noção de inovação que conduz à idéia de “uma utopia concreta”, entendida como vontade de pre-sente, antecipação e pré-aparição de uma pátria reencontra-da. O trânsito diverge dessas duas direções opostas não só porque mantém um caráter essencialmente dinâmico e iti-nerante, mas também porque implica um deslizamento para a dimensão espacial, para a experiência do deslocamento, da transferência, da descentralização.

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A segunda noção, a de “simulacro”, é alternativa em re-lação à tradicional oposição entre original e cópia. O simula-cro não é o resultado de uma reprodução mais ou menos fiel do original, mas o ponto de chegada de um processo de eman-cipação da cópia de sua dependência em relação a um origi-nal. Chega-se ao simulacro não por imitação, mas por um mimetismo vertiginoso graças ao qual o que é espúrio, deri-vado, replicado, se liberta do autêntico, do originário, do úni-co. Por isso, é sobretudo na sociedade contemporânea que o conceito de simulacro adquire relevância: nela, de fato, os pro-cessos de repetição, transmissão e mistura desempenham um papel essencial. O desenvolvimento dessa dimensão é parti-cularmente favorecido por dois fatores, um de caráter “tecnológico” e outro de caráter “antropológico”: são eles a informatização e o sincretismo, isto é, a disponibilidade ime-diata de acesso não só às notícias, como aos comportamen-tos, aos estilos de vida, às mentalidades do mundo inteiro, bem como a mistura desses comportamentos, estilos de vida e mentalidades em combinações surpreendentes e autônomas. A noção de “simulacro” também, assim como a de “trânsito”, não nasce apenas de uma consideração fenome-nológica do mundo contemporâneo — ela cria raízes nos acontecimentos do pensamento filosófico. Na filosofia moder-na, pelo menos a partir de Nietzsche, está ocorrendo uma ten-dência antiplatônica de revalorização da aparência ante a subs-tância metafísica. Por exemplo, Heidegger, na sua obra Nietzsche, sustenta que a mimese artística não é nada inferior nem à idéia nem ao objeto, mas se coloca ao lado deles sem inserir-se em uma hierarquia: a idéia do espelho, o próprio objeto espelho e a imagem do espelho são três maneiras de manifestação do ser não subordinadas umas às outras. Mais

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radical, Gilles Deleuze, no seu livro Logique du sens, conside-ra o simulacro o contrário do “fictício”, o propulsor de um movimento que vai contra a ordem estabelecida das represen-tações, dos modelos e das cópias.

A terceira noção, a do “rito sem mito”, também surge da sociedade em que os comportamentos não parecem mais orientados nem pelo costume nem pela consciência individual: tanto a ética — entendida como conjunto de hábitos que con-têm em si mesmos um significado — quanto a moral — en-tendida como vontade subjetiva e privada do bem e do útil —parecem impotentes para orientar a ação e a conduta do homem contemporâneo. Parece que os comportamentos não são escolhidos com base em um projeto de vida nem seguem um desenvolvimento coerente que se possa descrever, mas acontecem segundo dinâmicas que ficam na superfície e se de-senvolvem através de interações sociais imprevisíveis e opa-cas para os próprios atores nelas envolvidos. Dessa forma, o único elemento certo é o aspecto exterior das ações, o qual não é funcional em relação à vida social nem está ligado à vida íntima do sujeito. Em outras palavras, já não existem gestos nem comportamentos que sejam mais familiares, mais pró-prios, mais nossos do que outros. A ritualidade consiste no fato de que todos os gestos provenham do exterior, de fora, sejam aqueles que pertencem à nossa herança cultural, à nos-sa classe social, à nosnos-sa história pessoal, sejam aqueles que per-tenceram a outros povos, a outras classes e a outras pessoas. Assim, parece que, na ausência de qualquer critério e de qual-quer possibilidade de escolha racional, toda ação é imotivada; cai o fundamento metafísico das ações, que eram fixadas, imo-bilizadas pela identidade coletiva dos costumes ou pela iden-tidade pessoal da moralidade. A transmissão ritual dos usos

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já tende a caracterizar a cotidianidade: todos os gestos e to-dos os comportamentos estão implicato-dos numa circulação que os subtrai à identidade e à origem.

No plano filosófico foi Wittgenstein quem examinou o significado de uma palavra no seu uso (Gebrauch). Como se deduz do seu livro Notas sobre o “Ramo de Ouro” de Frazer, ele atesta a autonomia dos comportamentos, dos gestos e dos rituais em relação às crenças, às explicações, aos mitos: a sua definição do homem como “animal cerimonial” liberta a no-ção de “uso” de toda dimensão acanhadamente funcional e utilitária. As ações repetidas e institucionalizadas não são, em absoluto, tão óbvias e conhecidas como parecem à primeira vista; mesmo nelas está presente um elemento insuprimível de estranheza e de inaturalidade, que é bem difícil de ser de-tectado. O outro filósofo para quem a noção de “uso” (Brauch) desempenha um papel importante é Heidegger. Para ele também o termo perde completamente toda referência à utilidade e está próximo à palavra latina fruitio, “fruição”. Fa-zer uso de uma coisa quer diFa-zer, para Heidegger, não violentá-la e remetê-violentá-la à sua essência. O uso é um comportamento não direcionado para o alcance de um objetivo e, portanto, anco-rado na experiência do presente; ele implica um abandono, um estado de serenidade, que não é, entretanto, renúncia quietista, e sim abertura àquilo que vem ao nosso encontro e à riqueza das ocasiões.

“Trânsito”, “simulacro” e “rito sem mito” são concei-tos cujas definições parecem, à primeira vista, enigmáticas, quando não paradoxais. O trânsito é um “movimento do mes-mo para o mesmes-mo”, onde, porém, “mesmes-mo” não quer dizer “igual”, porque implica a introdução de uma diferença, de uma mudança, que é tanto mais profunda quanto menos

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cha-mativa. O simulacro é uma “copia qua copia”, uma cópia en-quanto cópia, que, exatamente em virtude dessa reivindica-ção de autonomia, deixa de depender do original e se liberta de toda imitação. Por fim, o rito sem mito é uma espécie de “rito do rito”, uma emancipação dos gestos e dos comporta-mentos em relação à sua funcionalidade e às suas motivações, o qual, no entanto, não é de forma alguma “irracional” nem “insensato”; ao contrário, pressupõe uma mentalidade, um modo de pensar, uma filosofia implícita. De um ponto de vista bastante genérico, aquilo que une essas três noções é uma es-pécie de intensificação pleonástica, de redundância, de mise en abîme, quase como se a experiência e o pensamento contemporâ-neos fossem arrastados em um vórtice paroxístico de dupli-cações e de auto-espelhamentos ao qual não conseguem se es-quivar. Provavelmente, não estão errados os que consideram a filosofia contemporânea uma “metafilosofia”, isto é, um dis-curso da filosofia sobre si mesma: sob esse aspecto, o “pen-samento ritual” representa um passo subseqüente nesse cami-nho. Todavia, a importância de tais processos de auto-refe-rência depende do fato de a auto-representação da sociedade ter se tornado parte essencial da sua realidade.

O pensamento ritual tem motivações profundas, de ou-tra espécie, que lançam as próprias raízes nos acontecimentos da filosofia contemporânea, na reflexão psicanalítica e na his-tória pessoal de quem escreve. No que diz respeito ao primei-ro aspecto, o ponto de partida pode ser considerado a experi-ência de uma “repetição diferente”, que se delineia na obra de Kierkegaard, de Nietzsche e de Heidegger. Em particular, é no texto Gientagelsen (A repetição), de 1843, que Kierkegaard ex-põe a intuição fundamental do pensamento ritual. A repetição se distingue da recordação e da esperança: na primeira, o

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cen-tro de gravidade encontra-se no passado, de forma que leva à infelicidade; na segunda, o centro de gravidade está no futuro e, portanto, gera o tédio da espera. Só a repetição possui a se-gurança serena do presente: com a repetição, a existência ante-rior passa a existir agora, mas, exatamente por isso, contém um elemento essencial de diferença que torna a experiência, ao mes-mo tempo, determinada e única. Repetição, portanto, não quer dizer de modo algum reiteração do idêntico. Em Kierkegaard, a repetição desempenha a mesma função que a “mediação” na filosofia de Hegel: se a novidade se apresentasse no seu espon-tâneo imediatismo, seria imóvel ou indeterminada. Pode-se al-cançar uma novidade efetiva só através do caminho indireto da repetição. Não obstante o apelo à experiência do indivíduo e o estilo narrativo de muitos dos seus textos, o pensamento de Kierkegaard não implica absolutamente o apelo aos dados ime-diatos da consciência: ao contrário, viver é um repetir, um re-tomar, um voltar a buscar algo que já tenha ocorrido.

Da mesma forma, pode provocar surpresa o fato de Nietzsche se encontrar entre os filósofos do pensamento ri-tual, pois a sua filosofia está eivada de uma ênfase vitalista que mal se concilia com a ritualidade. Entretanto, exatamente o destaque que ele confere à afirmação do presente o leva a atri-buir um significado essencial à repetição. O problema do qual ele parte é o da atitude diante do passado: na medida em que eu experimento em relação ao passado uma dolorosa aversão, um ressentimento, dependo dele, tenho para com ele uma dis-posição meramente reativa. Não há senão um modo de se li-bertar do passado, um modo paradoxal que aposta na sua apropriação e assimilação: o l’amor fati, ou seja, a escolha da repetição infinita, do eterno retorno. Contudo, isso não deve ser entendido como renúncia, nem mesmo como uma lei do

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tempo contra a qual é impossível rebelar-se, mas como um ato de vontade. O passado deixa de ser um obstáculo intrans-ponível diante do qual a vontade deve abaixar a cabeça a par-tir do momento em que eu desejo a sua repetição, que será obviamente diferente. A repetição em Nietzsche assume as-sim um valor fortemente propulsivo e energético: o l’amor fati é vontade de eterno retorno. Eu posso me apropriar do pas-sado apenas se o amo. A ultrapassagem não pode ser uma fuga ingênua para a frente: podemos ser fortes apenas se sempre o fomos, apesar das derrotas e das frustrações.

O terceiro pensador da “repetição diferente” é Heidegger. Como se sabe, a repetição (Wiederholung) é considerada, em Ser e tempo, uma característica da existência autêntica; entretanto, ela não deve ser entendida apenas como fidelidade a uma deci-são passada. A repetição não cai na armadilha do passado, re-produzindo-o tal e qual: não é restauração, nem reiteração do idêntico. O foco da repetição é o presente. Esse aspecto está ainda mais claro em Ser e tempo, no qual é dado particular des-taque à noção de presença (Anwesenheit). O passado não con-ta enquanto passado, nem o futuro enquanto futuro. Isso não exclui a recordação, nem a antecipação, mas a primeira deve ser entendida como recordar-se de algo que nunca foi pensa-do, e a segunda adianta-se à maneira do “passo atrás”.

É no entanto no pensamento de Freud que a “repeti-ção diferente” conquista um lugar de absoluto destaque, por-que está estritamente ligada com a terapia psicanalítica, base-ada na transferência (Übertragung). Ela consiste na transferên-cia de impulsos psíquicos, afetos, sentimentos, esquemas de comportamento, tipos de relações objetais, cargas libidinosas... de uma pessoa conhecida antes do médico: o paciente identi-fica no analista um retorno, quase uma reencarnação de uma

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pessoa importante do seu passado, e transfere para ele aque-les sentimentos e aquelas reações que estavam destinados ao modelo. Essa relação não é, entretanto, mediada pela recor-dação; o paciente não se lembra de nada daquilo que transfe-re para o analista, mas o exterioriza na ação. Ele transfe-realiza uma repetição, ignorando que seja assim. A transferência não é, portanto, um movimento do presente para o passado (como a recordação), e sim o movimento que se realiza inteiramen-te no preseninteiramen-te: a carga psíquica libidinosa que se transfere para o médico já está presente, está pronta, à espera, disponível. O paciente age, por assim dizer, teatralmente diante do mé-dico, sem perceber. Sua repetição é uma “repetição diferen-te”, porque não possui a imobilidade e o estatismo do instin-to, mas o dinamismo e a fluidez da pulsão (Trieb), e esta últi-ma não tem, por definição, uúlti-ma meta ou um objeto fixo. Ambos são variáveis, contingentes, e são escolhidos em fun-ção das vicissitudes da vida do indivíduo. O instaurar-se de fenômenos de repetição na vida do indivíduo é algo essenci-almente diferente da repetição instintiva: a transferência é o movimento de uma diferença, de algo diferente e indeter-minável, que todavia acontece, por assim dizer, “do mesmo para o mesmo”. A repetição é possível exatamente porque há uma liberdade de movimento, um deslocamento, um fluir da pulsão, porque esta pode se distanciar da representação ori-ginal e correr em direção a uma outra, análoga. Tal circula-ção é consentida exatamente pela plasticidade das pulsões que permanecem sempre capazes de mudar os seus objetos e as suas metas: para explicar a dinâmica das pulsões, Freud re-corre à imagem de uma rede de vasos comunicantes cheios de líquido. Quando o movimento, a livre mobilidade da libi-do é bloqueada, torna-se impossível a transferência, não é mais

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possível uma “repetição diferente”. Isso acontece, por exem-plo, nas psicoses e nas neuroses narcisistas; nestas, segundo Freud, a libido se retira dos objetos externos, não transita mais através deles e se volta exclusivamente para o Eu. Tal parali-sação obstrui a instituição da relação com o analista e torna tais doentes inacessíveis à cura. Dessa maneira, a “repetição diferente” é vista por Freud não só como benéfica, mas como condição de cura.

As considerações até agora expostas legitimam o pensa-mento ritual no plano da teoria. Existem, entretanto, motiva-ções de caráter mais pessoal e autobiográfico que, segundo al-guns, não deveriam entrar em um texto filosófico. Certamen-te a mudança liCertamen-terária impressa à linguagem filosóficaporDes-cartes, por Kierkegaard e, em tempos mais recentes, pelo cha-mado “pós-estruturalismo” poderia consentir algumas exce-ções. Todavia, se eu me arrisco nesse terreno escorregadio e tomo a liberdade de dizer alguma coisa a meu respeito, é por-que me sinto impelido, acima de tudo, pelo interesse objeti-vamente antropológico naquilo que estou por narrar. Émile Benveniste, no seu estudo sobre termos relativos ao substan-tivo neto, mostra que, em inúmeras sociedades indo-européias do passado mais remoto, o menino é visto como a encarnação de um antepassado: o “neto” seria, portanto, uma “repetição diferente” de alguém que viveu antes. Ora, a experiência in-fantil de quem escreve reproduz exatamente o modelo deline-ado por Benveniste. Por circunstâncias bastante singulares, eu tomei o nome, o lugar, as roupas e as brincadeiras de um fi-lho do meu avô, falecido tragicamente algum tempo antes, e fui morar com meu avô em vez de morar com meus pais. A idéia de que os recém-nascidos sejam cópias, simulacros de cri-anças desaparecidas, foi, por conseguinte determinante para a

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formação de minha identidade. Não se tratou de uma recarnação espiritual, mas de um processo ritual; ao nascer, en-contrei um relicário de exterioridades: trajes com iniciais, ta-lheres de prata com o meu nome gravado, soldadinhos e bali-zas de boliche um pouco amassados, modelos de comporta-mento que pediam para ser vestidos, animados, repetidos. Nada mais distante da chamada criatividade espontânea da in-fância: o novo não nasce senão através de imperceptíveis trans-formações do velho, mínimos desvios do conhecido, trânsitos “do mesmo para o mesmo”. Disso me ficou a impressão de que a vida é um tênue sopro que só pode existir se encontra e toma posse de algum espólio a ser animado, alguma veste a ser envergada, alguma conduta a ser assumida; quando não se depara com nada ou, então, rejeita tudo, talvez esteja con-denada a evaporar-se. Por isso, eu me senti sempre completa-mente estranho à idéia da vida como fonte inexaurível, como infinita força produtiva, como potência irresistível. Ao contrá-rio, pareceu-me que a vida fosse algo extremamente pobre, de-licado e frágil, que deve se alienar nas coisas, na realidade, no mundo, para se manter e se desenvolver. No âmbito de tal pers-pectiva, os ritos, as cerimônias, as instituições não constituem em absoluto um obstáculo à manifestação e ao crescimento da vida, mas, bem ao contrário, são uma condição da sua exis-tência. A revolta e a transgressão também são ritos que já se encontram prontos: um bisavô (herói da unificação da Itália, condenado a trinta anos de prisão pelos Bourbons) e um ou-tro bisavô (incitador de uma revolta popular contra a funda-ção do novo reino, em uma aldeia do sul da Itália) desempe-nharam na minha imaginação a função de um esquema ritual. O pensamento ritual pode ser considerado o desenvolvi-mento de problemáticas e de tendências presentes e ativas na

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fi-losofia e nas ciências humanas. Não é difícil, de resto, encontrar assonâncias entre a sua dinâmica teórica e alguns aspectos do pós-estruturalismo contemporâneo. O nomadismo de Gilles Deleuze, a crítica do platonismo realizada por Jacques Derrida, a recusa dos mitos teorizada por Jean-François Lyotard constituem um cenário no qual se situam os seus caminhos especulativos. De resto, as três noções sobre as quais se articula o presente volume — trânsito, simulacro e rito sem mito — aparecem à primeira vista como os respectivos desenvolvimentos do pensamento nô-made, pós-metafísico e pós-moderno dos autores acima citados. Entretanto, essa impressão de consonância se atenua assim que se contemplam as áreas culturais para as quais se volta a atenção do meu trabalho. Quais são essas áreas culturais? Não a Grécia antiga, que constitui o ponto de referência por excelência do pen-samento filosófico contemporâneo, mas a Roma antiga, que, na literatura filosófica do século XX, é objeto de uma arraigada hos-tilidade; não a Reforma, que freqüentemente é vista como o ber-ço da filosofia moderna, mas o Barroco, que só em tempos muito recentes foi merecedor de uma consideração filosófica; enfim, não a Europa mais genuína e secreta, mas a Europa mais híbrida e mais replicada, aquela Europa fora de si mesma, que já ocupa a maior parte do mundo e que, através dos enxertos mais ilegíti-mos e das combinações mais espúrias, é artífice de um cotidia-no carente de bases cotidia-nos mitos e nas tradições.

O segundo elemento que confere uma especificidade par-ticular à minha pesquisa é o interesse por aqueles “tempos for-tes” da existência, em torno dos quais desde sempre giram os ritos: a sexualidade, a morte e o mundo. Sexualidade e morte constituem o “cerne” da experiência, porque são realidades opa-cas e impenetráveis, indiferentes e estranhas às intenções sub-jetivas e aos bons propósitos. Elas aparecem-nos como “coisas”

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irredutíveis à vida do espírito e às suas aspirações ideais. Como pode a filosofia fazer frente a essas realidades? Na minha opi-nião, ela deveria pôr de lado não só toda espiritualidade desen-cantada, como também todo naturalismo organicista. De fato, a sexualidade com que se depara não é aquela orgânica, articu-lada sobre a polaridade do masculino e do feminino, e sim aque-la neutra e perversa, que prescinde de tal distinção. Nos ensai-os contidensai-os neste volume, sobre o venus, pensado como algo neutro, sobre eros, pensado como intermediário entre a paz e a guerra, e sobre o corpo, pensado como véu e veste, delineiam-se exatamente as premissas de um “delineiam-sex appeal do inorgânico”, do qual tratei recentemente de forma mais extensa e exaustiva.

Com a morte, a filosofia se confrontou desde sempre. No entanto, o aspecto inquietante da hodierna experiência da morte não consiste apenas na angústia da finitude e nas tenta-tivas de superá-la; no imaginário coletivo e na pesquisa cien-tífica, está cada vez mais presente a atenção dirigida aos esta-dos intermediários entre a vida e a morte, que se configuram já como formas de vida artificial (os replicantes da ficção ci-entífica ou os fenômenos de A Life), já como estados limítrofes entre uma e outra (os vampiros da literatura e dos filmes de horror ou os pacientes terminais mantidos vivos pela tecnologia médica). De uma forma mais geral, assiste-se em muitos âm-bitos a uma mistura entre o orgânico e o inorgânico, entre a corporeidade e as coisas, o que suscita perturbação e apreen-são. Os ensaios, contidos neste volume, sobre o simulacro da morte, sobre o “reino intermediário” e sobre o eterno retor-no do mesmo constituem uma introdução àquilo que antes chamei o “efeito egípcio”, para indicar exatamente o processo graças ao qual parece que as coisas adquirem faculdades hu-manas e, vice-versa, os homens são excluídos do sentir.

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Quanto ao terceiro objeto da minha reflexão — o mun-do —, este também, não menos mun-do que a sexualidade e a mor-te, é âmbito de inquietantes interrogações: de fato, dele depende o sucesso ou o fracasso dos nossos empreendimentos. É a par-tir do Renascimento que a noção de “mundo”adquire, na re-flexão teórica, um destaque sempre maior, tomando o lugar da “providência”, da “vontade de Deus”. No curso dos últimos trinta anos, esse processo de secularização, de desmitificação e de desencanto parece ter adquirido uma aceleração e uma radicalização que atingem não só as representações religiosas, como também as representações ideológicas consideradas uma continuação das primeiras. Nasce disso uma atenção totalmente profana e mundana no que se refere à imagem e à sua relação com a realidade — o ensaio sobre a iconofilia e a iconoclastia, aqui incluído, se insere exatamente nessa trama de reflexões. Na idéia de mundanalidade está implícita uma referência à obten-ção de um resultado; os ensaios sobre a arte como operaobten-ção mimética e sobre a cerimônia estudam precisamente a vinculação entre repetição e efetividade. Em um livro recente, defini com o neologismo sensologia, cunhado a partir do mo-delo de “ideologia”, a modalidade completamente distanciada, impessoal e mundanizada da experiência: ela caracteriza o sen-tir contemporâneo. Tudo isso, porém, não deve induzir a um estado depressivo ou prejudicialmente negativo. Como diz Quevedo: “Nada me desilude! O mundo me encantou!”.

Mario Perniola

Os textos reunidos neste livro foram extraídos de La società dei simulacri (Bolonha, Cappelli, 1980) e de Transiti (Bolonha, Cappelli, 1985). Os capítulos “Ícones, vi-sões e simulacros”, “Fenômeno e simulacro” e “O ser-para-a-morte e o simulacro da morte” integram o primeiro volume; os demais, o segundo.

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Capítulo I

O

charme venusiano

1 Sedução, amor, charme

Romper os laços entre o erotismo e o mal, entre a pulsão sexual e o negativo, entre a dinâmica do prazer e o pecado, que o mito de Don Juan instituiu e mantém há pelo menos três séculos, sem restaurar a ilusória positividade transfiguradora do amor, parece, à primeira vista, uma em-presa impossível. Os recentes esforços de reconsiderar a vida erótica através do conceito de sedução,1 ou através do

concei-to de amor,2 movem-se em direções opostas, mas convergem

pelo menos em um ponto: no desencorajar a busca de um caminho que seja independente da tradição libertina ou da tra-dição romântica. Ambos reagem energicamente à banalização e à perda de significado da sexualidade na sociedade contem-porânea, repensando de maneira original e aguda os dois con-ceitos fundamentais pelos quais o Ocidente deu um sentido à própria vida erótica. Exatamente por isso, permanecem, não obstante as modificações que trazem às noções de sedução e

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de amor, no âmbito de uma tradição que a sociedade con-temporânea parece ter descartado: porque podemos tirar da sedução o seu aspecto subjetivo e submetê-la às regras do jogo, mas ela permanece sempre desafio e negação; pode-se tornar o amor mais anárquico e desordenado, multiplicando ao infi-nito as suas manifestações, porém, ainda assim, ele tende sem-pre à transcendência. Ora, é uma característica dos tempos em que vivemos que se esteja precisamente acima do bem e do mal, de apenas suportar um comportamento verdadeiramen-te imoral ou verdadeiramenverdadeiramen-te moral, de torná-lo o seu con-trário e, enfim, de anular tanto um como outro, numa indiferenciação na qual tudo é reversível em tudo, tudo se con-fundindo com tudo.

De resto, na civilização erótica dos últimos dois sécu-los, sedução e amor são dimensões complementares que qua-lificam respectivamente o comportamento masculino e femi-nino mais comum: para cada Don Juan que seduz há uma Dona Ana (ou mais) que o ama. Certamente pode-se trazer a esse paradigma uma modificação muito significativa inver-tendo os papéis. Pode-se dizer que a sedução é, como estra-tégia das aparências, antes e sobretudo feminina — o femini-no não seria aquilo que se opõe ao masculifemini-no, mas aquilo que seduz o masculino. Igualmente, pode-se encontrar a solução da crise que atualmente atravessa a sexualidade masculina em uma desordem amorosa, na qual o erotismo masculino, ten-do abanten-donaten-do o código da virilidade, possa abrir-se para uma intensidade emotiva até agora por ele desconhecida. Tanto a primeira orientação como a segunda tendem para uma supe-ração da distinção entre masculino e feminino, para a transe-xualidade; contudo ambas, exatamente porque permanecem prisioneiras das noções de sedução e de amor, podem no

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má-ximo inverter as atribuições tradicionais, sem conseguir ir além da civilização erótica que criou o mito de Don Juan e que fez a apologia do poder redentor do amor feminino. O cen-tro do problema não é sexual, mas filosófico: o declínio da masculinidade e da feminilidade depende da dissolução dos conceitos de sedução e de amor e da busca de um erotismo independente da negação libertina tanto quanto da trans-cendência romântica.

Essa nova erótica deve, portanto, reger-se por noções independentes de uma prejudicial crítica ou metafísica. Entre estas, melhor que a noção de fascínio, muito ligada à magia sedutora do olhar e aos seus poderes maléficos, chama a aten-ção a palavra charme, suscetível de um uso muito variado e apta a designar tanto as emoções divinas3 como a atração

se-xual. Tal polivalência do termo encontra maior determinação se posta em relação com a noção impessoal de venus, assim como foi entendida na religião romana arcaica, antes que de-signasse a deusa homônima e se confundisse com a Afrodite grega. O interesse que a idéia arcaica de venus desperta hoje deriva não de uma atualidade genérica daquilo que parece mais inatual, mas de razões específicas ligadas à pesquisa histórica e à experiência contemporânea. A pesquisa histórica, de fato, pode mostrar que essa noção não se dissolveu com a helenização da religião romana, mas ficou viva e operante no Ocidente em formas mais ou menos subterrâneas. No final da civilização erótica dominada pela figura de Don Juan e do amor romântico, emerge de novo a idéia de um charme venusiano, livre de embaraçosas mitologias: ele é articulado mediante a análise das quatro palavras fundamentais deduzidas por Robert Schilling no estudo lingüístico do termo venus: veneratio, venia, venerium e venenum.4

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2 O “venus” como veneração

Se a sedução é desafio, transgressão, negação, o charme venusiano implica uma atitude oposta: é acolhimento do dado, é afirmação do presente. Não é, porém, aceitação resignada e forçada, obtorto collo, como parece implícito no verbo colere,* nem o bondoso consentir, como em placare,** mas consso pleno, disposição da vontade para dizer sim, venerar, en-tregar-se sem reservas. Raymond Radiguet, que foi um dos maiores intérpretes do charme venusiano no século XX, cap-tou muito bem a essência da veneratio: “Significa depreciar as coisas e desconhecê-las, querê-las diferentes daquilo que são, até mesmo quando se quer que sejam mais belas”.5

A veneratio é um movimento silencioso porque suspen-de e faz calar os suspen-desejos subjetivos, as paixões individuais, as afeições desordenadas que pretendem impor-se rumorosamente contra o dado divino, mundano, humano, que exigem a sua realização sem ver e compreender a realidade, que correm em direção à utopia e à destruição, oscilando entre arrogância e desolação, entre exaltação e depressão. A deusa romana Angerona, deusa da vontade e da oportunidade, parece per-sonificar bem a premissa silenciosa de toda veneração: o seu simulacro com um dedo sobre os lábios ordenava o silêncio.6

Veneratio é dizer sim acima de tudo aos deuses, e, por-tanto, abandono total de todo prometeísmo, de toda hýbris, de toda presunção diante do divino. O homem deve agradar aos deuses; é necessário que fiquem encantados, seduzidos, fascinados por quem se dirige a eles. A captatio

benevolen-* Cultuar. (N. do T.) ** Acalmar. (N. do T.)

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tiae* é o ponto de partida dessa erótica. Mas os deuses, para poderem ser venerados, devem calar.

Parece que os romanos, no mesmo momento em que introduzem a veneração, tiram a palavra dos deuses, privam-nos do mito, da narração de suas empresas. Georges Dumézil demonstrou que os deuses da religião romana são os mesmos do panteão indo-europeu, mas desmitificados, silenciosos. À diferença da religião etrusca, a romana não possui revelação: os livros sibilinos são uma simples compilação dos rituais de expiação do prodígio. A injunção favete linguis,** que con-vidava os participantes de uma cerimônia a favorecer com o silêncio o seu desenvolvimento, era, assim, dirigida aos pró-prios deuses.

Veneratio é dizer sim ao mundo, e, portanto, abandono de toda atitude de ressentimento, de crítica preconcebida ou de negação sistemática do presente. É impossível ser charmoso se não se estiver em paz com o mundo, com o espírito do pró-prio tempo, com aquilo que está à volta. Venerar Vênus no mundo quer dizer estar disposto a reconhecer a variedade das suas manifestações e a desejá-las conforme a ocasião: castida-de e orgia, matrimônio e prostituição, monogamia e poliga-mia, homossexualidade e heterossexualidade... não são rea-lidades incompatíveis entre as quais é obrigatório escolher de uma vez por todas, mas situações a ser apreciadas no momen-to oportuno. Entretanmomen-to, a condição da sua apreciação conti-nua sendo o seu silêncio, a sua discrição, a sua desmitificação — é charmoso não só quem está disposto, com a mesma

in-* Termo da retórica: “conquista”, aquisição do favor, da benevolência (do juiz, do público). (N. do T.)

** “Calai”; literalmente, “sede favoráveis por meio de vossas línguas”, isto é, “sede favoráveis naquilo de ruim que iríeis falar”. (N. do T.)

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diferença, para o contrário, mas quem na ação mais decisiva conserva uma distância que o torna capaz de respeitar-lhe a cadência e o ritmo. Vênus se apresentava à veneração dos ro-manos sob duas formas aparentemente incompatíveis: como Venere Verticordia* e como Venere Ericina.** O culto da pri-meira tinha a função de levar o ânimo das jovens e das mu-lheres à pudicícia; o culto da segunda, de origem siciliana, mas elevada à hierarquia de divindade romana e venerada com a edificação de um templo no capitólio, estava, ao contrário, es-tritamente ligado ao exercício da prostituição. A atribuição de qualidades tão diferentes à mesma deusa não deriva em ab-soluto de um comportamento niilista — que não quer com-prometer-se e por isso está ora de um lado ora de outro, fa-vorecendo ambos —, e sim de uma profunda intuição que se manifesta na qualidade do culto. Conta Diodoro Sículo que os magistrados romanos, cada vez que iam à Sicília, nunca deixavam de honrar o santuário de Érice com sacrifícios e ho-menagens, e, “para comprazer a deusa, esqueciam a gravida-de do seu compromisso para divertir-se alegremente em com-panhia de mulheres”.7 Esses magistrados eram, portanto, mais

charmosos aos olhos da deusa do que aos olhos das suas sa-cerdotisas, exatamente porque tinham em relação ao prazer um interesse distanciado, uma participação não participante. Giovan Battista Marini notou com perspicácia essa indistinção venusiana entre castidade e libidinagem quando mostrou, em Adone, “que as obras obscenas/ Vênus não mais que as con-trárias aplaude”.8

* A Vênus que abranda os corações. (N. do T.)

** A Vênus que era adorada no monte Érix ou Érice, na Sicília, onde atualmente há a cidade italiana de Érice. (N. do T.)

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Veneratio, enfim, é dizer sim a si mesmo. Naturalmen-te, não aos próprios desejos, aos próprios sonhos e aos pró-prios ideais: todas essas coisas estão muito impregnadas de negação e de ausência, são muito abstratas e inconsistentes para poderem ser tomadas de verdade como elementos ou as-pectos de si mesmos. A sedução pode ser definida justamen-te como uma magia da ausência,9 mas o venus é, bem ao

con-trário, inseparável do presente, da própria situação, daquilo que nos é oferecido. Venerar quer dizer estar em paz consigo mesmo, saber exercer a vontade retroativamente, querer aquilo que aconteceu, transformar — como diz o Zaratustra nietzschiano — cada “foi assim” em um “assim quis que fos-se”. A veneração é amor fati,* vontade de querer aquilo que foi e aquilo que é, entretanto não mais para ficar fechado no círculo de um retorno infinito do igual, mas, ao contrário, para poder querer o presente sem estar condicionado pelo seu con-teúdo. Portanto, ao contrário do quietismo, que se abandona por completo ao destino, na veneração é a adesão humana que transforma qualquer acontecimento em destino, mesmo por-que todo o passado já foi marcado por ele.

Contudo, a repetição, a dedicação implícita na veneratio não é uma verdadeira fidelidade. Fazendo calar os deuses, o mundo e a nós mesmos, a veneração é a premissa de um mimetismo que, quanto mais altera, mais se torna formalmen-te idêntico ao modelo. “Nada se assemelha menos com as coi-sas em si”, diz Radiguet, “do que aquilo que lhes está muito próximo.”10 Isso é evidente sobretudo nas conseqüências que

o ritual romano da evocatio** implicava: por meio dele os

ro-* Amor ao destino. (N. do T.) ** Convocação. (N. do T.)

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manos convidavam as divindades dos inimigos a deixar as ci-dades de origem e a vir a Roma; para “evocar” os deuses es-trangeiros usava-se justamente a fórmula “veneror veniamque peto”.* Ora, é evidente que a veneração dos deuses estran-geiros comportava a instauração de um rito romano a eles de-dicado, o qual era mais deslocamento e desvio, déplacement e détournement, do que respeitoso prosseguimento. Na raiz do sincretismo religioso romano e da sua extraordinária capaci-dade de assimilar os cultos mais diversos está exatamente uma atitude de veneração, de acolhimento, que não é mera bene-volência, mas esconde uma originalíssima estratégia erótica, um pensamento filosófico e político sutil. Seria um grave erro considerar a veneração fraqueza ou mansuetude; ela é, ao con-trá rio, a arma de um pium bellum,** de uma boa guerra conduzida sem ressentimento. A associação de Vênus com Marte, que os romanos provavelmente emprestaram do casal grego Afrodite-Ares, revela assim um significado mais pro-fundo, tipicamente romano. A ligação entre a veneração e a guerra resulta, por outro lado, da devotio,*** o rito com o qual, em situações particularmente difíceis, o comandante, para alcançar a vitória, recitava uma fórmula, um carmen,**** que o consagrava aos deuses Manes e à Terra: oferecendo-se ao além, ele revelava uma relação entre o charme venusiano e a morte, que é de tipo radicalmente diferente daquele que liga, na sedução, Don Juan à estátua do comendador ou, no amor, Tristão ao sofrimento e à catástrofe. Enquanto Don Juan é obrigado a aceitar o convite fatal da estátua11 e o amor de

* Venero e peço benevolência. (N. do T.) ** Guerra piedosa, justa. (N. do T.)

*** Oferecimento, entrega da própria vida. (N. do T.) **** Canto solene e mágico. (N. do T.)

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Tristão é, por definição, oposto à realidade mundana,12 o

co-mandante romano se consagra espontaneamente à morte para vencer — para ele, estar do lado dos Manes é mais uma vez uma maneira de dizer sim ao presente.

3 O “venus” como “venia”

Se a hýbris, a arrogância implícita na sedução, suscita a áte, a punição, se o sofrimento amoroso é resgatado por uma redenção moral, por uma salvação espiritual, a veneratio do charme venusiano pede, ao contrário, a venia, a benevo-lência, a graça dos deuses, do mundo, do homem. Ora, a venia não é propriamente perdão, porque nenhum pecado foi cometido, nem mesmo indulgência, um dar tempo e lu-gar ao arrependimento, porque não aconteceu nenhum des-vio ou erro: na dimensão venusiana, o homem é inocente. Certamente a sua inocência não é ingênua, espontânea, na-tural — é uma inocência que se coloca além, não aquém, do bem e do mal, porque a veneratio instaura um novo iní-cio. Tito Lívio conta que, depois da devotio do cônsul Dé-cio Mure, os romanos “retomaram o combate como se o si-nal fosse dado pela primeira vez”.13

Grande parte do charme que a perspectiva venusiana exerceu sobretudo nos poetas deriva exatamente do caráter de uma repetição que se apresenta como diferente, outra, não idêntica ao que a precede, ao modelo, ao original. Não é ba-nal a explicação que encontra aqui a ligação entre Vênus e a primavera, que é freqüentemente explicada como uma refe-rência genérica ao “encanto e florescimento na natureza”.14

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trânsito, uma passagem do mesmo para o mesmo. O refrão do poema Pervigilium Veneris* põe em evidência exatamente a anulação da experiência, a indiferença diante da experiência erótica passada: “Cras amet qui numquam amavit quique amavit cras amet” (“Amanhã ame quem nunca amou, quem amou ame amanhã”).

Venia é a resposta condescendente da divindade que foi objeto de veneração. Na mútua relação veneratio-venia** que se estabelece entre o homem e a divindade, Vênus reúne em si os dois pólos da relação: ela responde sim a quem, inspirado por ela, já disse sim. Portanto, é propiciadora por excelência, sugere o obsequium*** e é obsequens, é favorável e complacente com quem já se move em um horizonte de propiciação e de condescendência. As divindades romanas são dotadas de venia e Vênus é por de-finição obsequens porque o consentimento e a afirmação es-tão implícitos na própria noção de numen, de poder divi-no. Numen vem de nuo, que quer dizer “fazer sim com a cabeça”. O que, naturalmente, não exclue que os deuses possam às vezes estar irados ou ser hostis, mas existe sem-pre um rito expiatório ou propiciatório que restabelece a pax deorum.**** É essa fé na natureza substancialmente fa-vorável do divino e do presente que permite aos romanos divinizar, para grande escândalo de santo Agostinho e de Hegel, até as forças mais prejudiciais, como a febre, mais secundárias e risíveis, como aquelas indicadas nos

Indigita-* “Vigília de Vênus”, poema anônimo, atribuído na Antiguidade a Virgílio. (N. do T.) ** Veneração, graça. (N. do T.)

*** Obséquio, favor. (N. do T.)

Referências

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