• Nenhum resultado encontrado

O charme venusiano

No documento Pensando o Sexualidade Morte, Mundo (páginas 39-62)

O

charme venusiano

1 Sedução, amor, charme

Romper os laços entre o erotismo e o mal, entre a pulsão sexual e o negativo, entre a dinâmica do prazer e o pecado, que o mito de Don Juan instituiu e mantém há pelo menos três séculos, sem restaurar a ilusória positividade transfiguradora do amor, parece, à primeira vista, uma em- presa impossível. Os recentes esforços de reconsiderar a vida erótica através do conceito de sedução,1 ou através do concei-

to de amor,2 movem-se em direções opostas, mas convergem

pelo menos em um ponto: no desencorajar a busca de um caminho que seja independente da tradição libertina ou da tra- dição romântica. Ambos reagem energicamente à banalização e à perda de significado da sexualidade na sociedade contem- porânea, repensando de maneira original e aguda os dois con- ceitos fundamentais pelos quais o Ocidente deu um sentido à própria vida erótica. Exatamente por isso, permanecem, não obstante as modificações que trazem às noções de sedução e

de amor, no âmbito de uma tradição que a sociedade con- temporânea parece ter descartado: porque podemos tirar da sedução o seu aspecto subjetivo e submetê-la às regras do jogo, mas ela permanece sempre desafio e negação; pode-se tornar o amor mais anárquico e desordenado, multiplicando ao infi- nito as suas manifestações, porém, ainda assim, ele tende sem- pre à transcendência. Ora, é uma característica dos tempos em que vivemos que se esteja precisamente acima do bem e do mal, de apenas suportar um comportamento verdadeiramen- te imoral ou verdadeiramente moral, de torná-lo o seu con- trário e, enfim, de anular tanto um como outro, numa indiferenciação na qual tudo é reversível em tudo, tudo se con- fundindo com tudo.

De resto, na civilização erótica dos últimos dois sécu- los, sedução e amor são dimensões complementares que qua- lificam respectivamente o comportamento masculino e femi- nino mais comum: para cada Don Juan que seduz há uma Dona Ana (ou mais) que o ama. Certamente pode-se trazer a esse paradigma uma modificação muito significativa inver- tendo os papéis. Pode-se dizer que a sedução é, como estra- tégia das aparências, antes e sobretudo feminina — o femini- no não seria aquilo que se opõe ao masculino, mas aquilo que seduz o masculino. Igualmente, pode-se encontrar a solução da crise que atualmente atravessa a sexualidade masculina em uma desordem amorosa, na qual o erotismo masculino, ten- do abandonado o código da virilidade, possa abrir-se para uma intensidade emotiva até agora por ele desconhecida. Tanto a primeira orientação como a segunda tendem para uma supe- ração da distinção entre masculino e feminino, para a transe- xualidade; contudo ambas, exatamente porque permanecem prisioneiras das noções de sedução e de amor, podem no má-

ximo inverter as atribuições tradicionais, sem conseguir ir além da civilização erótica que criou o mito de Don Juan e que fez a apologia do poder redentor do amor feminino. O cen- tro do problema não é sexual, mas filosófico: o declínio da masculinidade e da feminilidade depende da dissolução dos conceitos de sedução e de amor e da busca de um erotismo independente da negação libertina tanto quanto da trans- cendência romântica.

Essa nova erótica deve, portanto, reger-se por noções independentes de uma prejudicial crítica ou metafísica. Entre estas, melhor que a noção de fascínio, muito ligada à magia sedutora do olhar e aos seus poderes maléficos, chama a aten- ção a palavra charme, suscetível de um uso muito variado e apta a designar tanto as emoções divinas3 como a atração se-

xual. Tal polivalência do termo encontra maior determinação se posta em relação com a noção impessoal de venus, assim como foi entendida na religião romana arcaica, antes que de- signasse a deusa homônima e se confundisse com a Afrodite grega. O interesse que a idéia arcaica de venus desperta hoje deriva não de uma atualidade genérica daquilo que parece mais inatual, mas de razões específicas ligadas à pesquisa histórica e à experiência contemporânea. A pesquisa histórica, de fato, pode mostrar que essa noção não se dissolveu com a helenização da religião romana, mas ficou viva e operante no Ocidente em formas mais ou menos subterrâneas. No final da civilização erótica dominada pela figura de Don Juan e do amor romântico, emerge de novo a idéia de um charme venusiano, livre de embaraçosas mitologias: ele é articulado mediante a análise das quatro palavras fundamentais deduzidas por Robert Schilling no estudo lingüístico do termo venus: veneratio, venia, venerium e venenum.4

2 O “venus” como veneração

Se a sedução é desafio, transgressão, negação, o charme venusiano implica uma atitude oposta: é acolhimento do dado, é afirmação do presente. Não é, porém, aceitação resignada e forçada, obtorto collo, como parece implícito no verbo colere,* nem o bondoso consentir, como em placare,** mas consen- so pleno, disposição da vontade para dizer sim, venerar, en- tregar-se sem reservas. Raymond Radiguet, que foi um dos maiores intérpretes do charme venusiano no século XX, cap- tou muito bem a essência da veneratio: “Significa depreciar as coisas e desconhecê-las, querê-las diferentes daquilo que são, até mesmo quando se quer que sejam mais belas”.5

A veneratio é um movimento silencioso porque suspen- de e faz calar os desejos subjetivos, as paixões individuais, as afeições desordenadas que pretendem impor-se rumorosamente contra o dado divino, mundano, humano, que exigem a sua realização sem ver e compreender a realidade, que correm em direção à utopia e à destruição, oscilando entre arrogância e desolação, entre exaltação e depressão. A deusa romana Angerona, deusa da vontade e da oportunidade, parece per- sonificar bem a premissa silenciosa de toda veneração: o seu simulacro com um dedo sobre os lábios ordenava o silêncio.6

Veneratio é dizer sim acima de tudo aos deuses, e, por- tanto, abandono total de todo prometeísmo, de toda hýbris, de toda presunção diante do divino. O homem deve agradar aos deuses; é necessário que fiquem encantados, seduzidos, fascinados por quem se dirige a eles. A captatio benevolen-

* Cultuar. (N. do T.) ** Acalmar. (N. do T.)

tiae* é o ponto de partida dessa erótica. Mas os deuses, para poderem ser venerados, devem calar.

Parece que os romanos, no mesmo momento em que introduzem a veneração, tiram a palavra dos deuses, privam- nos do mito, da narração de suas empresas. Georges Dumézil demonstrou que os deuses da religião romana são os mesmos do panteão indo-europeu, mas desmitificados, silenciosos. À diferença da religião etrusca, a romana não possui revelação: os livros sibilinos são uma simples compilação dos rituais de expiação do prodígio. A injunção favete linguis,** que con- vidava os participantes de uma cerimônia a favorecer com o silêncio o seu desenvolvimento, era, assim, dirigida aos pró- prios deuses.

Veneratio é dizer sim ao mundo, e, portanto, abandono de toda atitude de ressentimento, de crítica preconcebida ou de negação sistemática do presente. É impossível ser charmoso se não se estiver em paz com o mundo, com o espírito do pró- prio tempo, com aquilo que está à volta. Venerar Vênus no mundo quer dizer estar disposto a reconhecer a variedade das suas manifestações e a desejá-las conforme a ocasião: castida- de e orgia, matrimônio e prostituição, monogamia e poliga- mia, homossexualidade e heterossexualidade... não são rea- lidades incompatíveis entre as quais é obrigatório escolher de uma vez por todas, mas situações a ser apreciadas no momen- to oportuno. Entretanto, a condição da sua apreciação conti- nua sendo o seu silêncio, a sua discrição, a sua desmitificação — é charmoso não só quem está disposto, com a mesma in-

* Termo da retórica: “conquista”, aquisição do favor, da benevolência (do juiz, do público). (N. do T.)

** “Calai”; literalmente, “sede favoráveis por meio de vossas línguas”, isto é, “sede favoráveis naquilo de ruim que iríeis falar”. (N. do T.)

diferença, para o contrário, mas quem na ação mais decisiva conserva uma distância que o torna capaz de respeitar-lhe a cadência e o ritmo. Vênus se apresentava à veneração dos ro- manos sob duas formas aparentemente incompatíveis: como Venere Verticordia* e como Venere Ericina.** O culto da pri- meira tinha a função de levar o ânimo das jovens e das mu- lheres à pudicícia; o culto da segunda, de origem siciliana, mas elevada à hierarquia de divindade romana e venerada com a edificação de um templo no capitólio, estava, ao contrário, es- tritamente ligado ao exercício da prostituição. A atribuição de qualidades tão diferentes à mesma deusa não deriva em ab- soluto de um comportamento niilista — que não quer com- prometer-se e por isso está ora de um lado ora de outro, fa- vorecendo ambos —, e sim de uma profunda intuição que se manifesta na qualidade do culto. Conta Diodoro Sículo que os magistrados romanos, cada vez que iam à Sicília, nunca deixavam de honrar o santuário de Érice com sacrifícios e ho- menagens, e, “para comprazer a deusa, esqueciam a gravida- de do seu compromisso para divertir-se alegremente em com- panhia de mulheres”.7 Esses magistrados eram, portanto, mais

charmosos aos olhos da deusa do que aos olhos das suas sa- cerdotisas, exatamente porque tinham em relação ao prazer um interesse distanciado, uma participação não participante. Giovan Battista Marini notou com perspicácia essa indistinção venusiana entre castidade e libidinagem quando mostrou, em Adone, “que as obras obscenas/ Vênus não mais que as con- trárias aplaude”.8

* A Vênus que abranda os corações. (N. do T.)

** A Vênus que era adorada no monte Érix ou Érice, na Sicília, onde atualmente há a cidade italiana de Érice. (N. do T.)

Veneratio, enfim, é dizer sim a si mesmo. Naturalmen- te, não aos próprios desejos, aos próprios sonhos e aos pró- prios ideais: todas essas coisas estão muito impregnadas de negação e de ausência, são muito abstratas e inconsistentes para poderem ser tomadas de verdade como elementos ou as- pectos de si mesmos. A sedução pode ser definida justamen- te como uma magia da ausência,9 mas o venus é, bem ao con-

trário, inseparável do presente, da própria situação, daquilo que nos é oferecido. Venerar quer dizer estar em paz consigo mesmo, saber exercer a vontade retroativamente, querer aquilo que aconteceu, transformar — como diz o Zaratustra nietzschiano — cada “foi assim” em um “assim quis que fos- se”. A veneração é amor fati,* vontade de querer aquilo que foi e aquilo que é, entretanto não mais para ficar fechado no círculo de um retorno infinito do igual, mas, ao contrário, para poder querer o presente sem estar condicionado pelo seu con- teúdo. Portanto, ao contrário do quietismo, que se abandona por completo ao destino, na veneração é a adesão humana que transforma qualquer acontecimento em destino, mesmo por- que todo o passado já foi marcado por ele.

Contudo, a repetição, a dedicação implícita na veneratio não é uma verdadeira fidelidade. Fazendo calar os deuses, o mundo e a nós mesmos, a veneração é a premissa de um mimetismo que, quanto mais altera, mais se torna formalmen- te idêntico ao modelo. “Nada se assemelha menos com as coi- sas em si”, diz Radiguet, “do que aquilo que lhes está muito próximo.”10 Isso é evidente sobretudo nas conseqüências que

o ritual romano da evocatio** implicava: por meio dele os ro-

* Amor ao destino. (N. do T.) ** Convocação. (N. do T.)

manos convidavam as divindades dos inimigos a deixar as ci- dades de origem e a vir a Roma; para “evocar” os deuses es- trangeiros usava-se justamente a fórmula “veneror veniamque peto”.* Ora, é evidente que a veneração dos deuses estran- geiros comportava a instauração de um rito romano a eles de- dicado, o qual era mais deslocamento e desvio, déplacement e détournement, do que respeitoso prosseguimento. Na raiz do sincretismo religioso romano e da sua extraordinária capaci- dade de assimilar os cultos mais diversos está exatamente uma atitude de veneração, de acolhimento, que não é mera bene- volência, mas esconde uma originalíssima estratégia erótica, um pensamento filosófico e político sutil. Seria um grave erro considerar a veneração fraqueza ou mansuetude; ela é, ao con- trá rio, a arma de um pium bellum,** de uma boa guerra conduzida sem ressentimento. A associação de Vênus com Marte, que os romanos provavelmente emprestaram do casal grego Afrodite-Ares, revela assim um significado mais pro- fundo, tipicamente romano. A ligação entre a veneração e a guerra resulta, por outro lado, da devotio,*** o rito com o qual, em situações particularmente difíceis, o comandante, para alcançar a vitória, recitava uma fórmula, um carmen,**** que o consagrava aos deuses Manes e à Terra: oferecendo-se ao além, ele revelava uma relação entre o charme venusiano e a morte, que é de tipo radicalmente diferente daquele que liga, na sedução, Don Juan à estátua do comendador ou, no amor, Tristão ao sofrimento e à catástrofe. Enquanto Don Juan é obrigado a aceitar o convite fatal da estátua11 e o amor de

* Venero e peço benevolência. (N. do T.) ** Guerra piedosa, justa. (N. do T.)

*** Oferecimento, entrega da própria vida. (N. do T.) **** Canto solene e mágico. (N. do T.)

Tristão é, por definição, oposto à realidade mundana,12 o co-

mandante romano se consagra espontaneamente à morte para vencer — para ele, estar do lado dos Manes é mais uma vez uma maneira de dizer sim ao presente.

3 O “venus” como “venia”

Se a hýbris, a arrogância implícita na sedução, suscita a áte, a punição, se o sofrimento amoroso é resgatado por uma redenção moral, por uma salvação espiritual, a veneratio do charme venusiano pede, ao contrário, a venia, a benevo- lência, a graça dos deuses, do mundo, do homem. Ora, a venia não é propriamente perdão, porque nenhum pecado foi cometido, nem mesmo indulgência, um dar tempo e lu- gar ao arrependimento, porque não aconteceu nenhum des- vio ou erro: na dimensão venusiana, o homem é inocente. Certamente a sua inocência não é ingênua, espontânea, na- tural — é uma inocência que se coloca além, não aquém, do bem e do mal, porque a veneratio instaura um novo iní- cio. Tito Lívio conta que, depois da devotio do cônsul Dé- cio Mure, os romanos “retomaram o combate como se o si- nal fosse dado pela primeira vez”.13

Grande parte do charme que a perspectiva venusiana exerceu sobretudo nos poetas deriva exatamente do caráter de uma repetição que se apresenta como diferente, outra, não idêntica ao que a precede, ao modelo, ao original. Não é ba- nal a explicação que encontra aqui a ligação entre Vênus e a primavera, que é freqüentemente explicada como uma refe- rência genérica ao “encanto e florescimento na natureza”.14

trânsito, uma passagem do mesmo para o mesmo. O refrão do poema Pervigilium Veneris* põe em evidência exatamente a anulação da experiência, a indiferença diante da experiência erótica passada: “Cras amet qui numquam amavit quique amavit cras amet” (“Amanhã ame quem nunca amou, quem amou ame amanhã”).

Venia é a resposta condescendente da divindade que foi objeto de veneração. Na mútua relação veneratio- venia** que se estabelece entre o homem e a divindade, Vênus reúne em si os dois pólos da relação: ela responde sim a quem, inspirado por ela, já disse sim. Portanto, é propiciadora por excelência, sugere o obsequium*** e é obsequens, é favorável e complacente com quem já se move em um horizonte de propiciação e de condescendência. As divindades romanas são dotadas de venia e Vênus é por de- finição obsequens porque o consentimento e a afirmação es- tão implícitos na própria noção de numen, de poder divi- no. Numen vem de nuo, que quer dizer “fazer sim com a cabeça”. O que, naturalmente, não exclue que os deuses possam às vezes estar irados ou ser hostis, mas existe sem- pre um rito expiatório ou propiciatório que restabelece a pax deorum.**** É essa fé na natureza substancialmente fa- vorável do divino e do presente que permite aos romanos divinizar, para grande escândalo de santo Agostinho e de Hegel, até as forças mais prejudiciais, como a febre, mais secundárias e risíveis, como aquelas indicadas nos Indigita-

* “Vigília de Vênus”, poema anônimo, atribuído na Antiguidade a Virgílio. (N. do T.) ** Veneração, graça. (N. do T.)

*** Obséquio, favor. (N. do T.)

menta,* mais nocivas, como a deusa Lua,** símbolo da desordem e da destruição. Porque todas elas existem de al- guma maneira, participam de algum modo da presença. Nessa confiança se alicerça a possibilidade de assimilar as religiões mais diversas em um sincretismo tolerante com os cultos mais estranhos, característica do desenvolvimen- to da religião romana: a única coisa que é mesmo inassimilável ao panteão romano é o radicalismo moral, exa- tamente porque nega o presente em nome do dever-ser, do Sollen,*** da utopia.

Na venia está implícito o conceito de ajuda. É curioso que o verbo nuo (consinto) se confunda com um nuo arcai- co, que quer dizer “aleito” (de onde, justamente, nutrix****). A idéia de benevolência e de vênia aparece assim ligada com a idéia da ajuda prestada à primeira infância, ao estado de ex- trema necessidade. Por mais que isso possa induzir à tenta- ção de considerar Vênus uma das tantas manifestações do ar- quétipo mediterrâneo da Grande Mãe, tal identificação dei- xaria escapar o essencial. Certamente os leitores da Eneida re- cordam o episódio descrito por Virgílio no livro XII, no qual Venus Genitrix corre em ajuda de seu filho Enéias, que ficou ferido na batalha contra Turno. Da mesma forma, a literatu- ra venusiana é rica em exemplos que entendem a ajuda de Vênus no sentido erótico, de Camões de Os lusíadas (para os quais ela faz surgir do mar uma deliciosa ilha habitada por

* Conjuntos de formas religiosas romanas que permitiam invocar os deuses com ri- tos e orações apropriadas às diversas circunstâncias da vida. (N. do T.)

** Divindade itálica que presidia às expiações e à qual se consagravam as armas to- madas do inimigo. (N. do T.)

*** Dever. (N. do T.) **** Ama-de-leite. (N. do T.)

ninfas muito complacentes que se entregam a eles do modo mais voluptuoso) a Radiguet, para quem ironicamente Vênus “nous livre ses secrets, ses fruits”,* de forma inconsciente, du- rante o sono.15 Mas a noção de ajuda, implícita em venia, é

muito mais ampla do que a implícita na maternidade ou na rendição sexual: ela deve ser entendida em toda a sua latitu- de material e espiritual. Venus é obsequens não apenas como mãe que aleita ou como as matronas que, multadas pelos seus adultérios, financiaram a edificação de seu primeiro templo em Roma, em 295 a. C. A caraterística da sua venia é de or- dem filosófica, e isso implica sobretudo uma disponibilidade mais ampla e geral.

Se a veneratio é dizer sim aos deuses, ao mundo, a si próprio, primeiro silenciosamente e, depois, segundo os car- mina rituais, a venia é receber um sim dos deuses, do mun- do e de si mesmo, primeiro mediante um anuir tácito, um sinal de aprovação, um consenso íntimo, e depois mediante uma palavra que é quase “independente de quem a profe- re”, que interessa “não pelo que significa, mas porque exis- te”. É esse o significado que Émile Benveniste atribui à raiz *bha — da qual provêm for (falar) e seus derivados fas,** fama*** e fabula.16 **** Certamente, a idéia de um fas en-

tendido como palavra divina, num panteão mudo como o romano, levanta algumas dificuldades;17 o importante, po-

rém, consiste em pôr em evidência o caráter afirmativo im- plícito na palavra fas e o seu aspecto ritual, desmitificado.

* Entrega-nos seus segredos, seus frutos (N. do T.)

** Aquilo que é justo, segundo a lei dos deuses, ou seja, o que, por revelação, é declarado ser justo. (N. do T.)

*** O que se diz, o que se fala; a fama, a reputação. (N. do T.) **** O que se fala como boato ou fabulação. (N. do T.)

Assim, o termo fama parece ter originariamente, acima de tudo, uma intenção afirmativa. Enfim, fabula, isto é, a fabulação de si mesmo, pode criar uma persona (no sentido romano de máscara), mas não um sujeito: a dúvida sobre sua credibilidade impede desde o início que ao indivíduo fal- te pietas* e se torne arrogante.

Assim como a veneratio, o dar aprovação, se resolve em um mimetismo que dissolve o significado daquilo que apro- va, também a venia, o receber aprovação, no fundo anula o conteúdo daquilo que é aprovado.Faz parte, por exemplo, do charme venusiano a facilidade com a qual, na vida contempo- rânea, somos aceitos como parceiros sexuais. Isso, no entan- to, não justifica nenhuma autocomplacência especial e não au-

No documento Pensando o Sexualidade Morte, Mundo (páginas 39-62)

Documentos relacionados