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A imagem como simulacro

No documento Pensando o Sexualidade Morte, Mundo (páginas 134-164)

Capítulo IV — Ícones, visões e simulacros

2 A imagem como simulacro

O simulacro não é ícone nem visão; ele não mantém uma relação de identidade com o original, com o protótipo, nem implica a laceração de todas as aparências e a revelação de uma verdade pura, substancial. O simulacro é uma ima- gem que não possui protótipo, é a imagem de algo que não existe. Iconófilos e iconoclastas consideram-no sinônimo de ídolo e, como tal, prope nihil – quase nada. Essa avaliação de- preciativa depende inteiramente da pretensão metafísica de capturar uma realidade absoluta presente ou futura. Por essa razão, os iconófilos condenaram a idolatria tanto quanto os iconoclastas; para eles, fixar uma linha de demarcação precisa entre imagens verdadeiras e falsas, entre ícones e ídolos, cons- tituiu uma premissa essencial, uma garantia de identidade.

A avaliação positiva da imagem enquanto imagem é uma perspectiva moderna que implica o fim da metafísica e a

completa aceitação do mundo histórico. O conceito de simu- lacro só pode nascer num contexto que tenha superado defi- nitivamente tanto a teoria platônica da idéia e de sua cópia sensível (sobre a qual se fundamenta a iconofilia oriental) como o profetismo visionário da Bíblia (sobre o qual se fun- damenta a iconoclastia protestante). Tais condições existem na Itália do século XVI: a teoria das imagens de São Roberto Bellarmino, exposta em sua obra De controversiis christianae fidei, marca precisamente o surgimento de uma nova posição, irredutível à iconofilia ou à iconoclastia tradicionais.

Bellarmino opõe-se tanto àqueles que, como sãoTomás de Aquino, sustentavam que se devia a mesma veneração à ima- gem e ao exemplar (ao original, por causa dele próprio; à ima- gem, por causa do original) como àqueles que, como o teó- logo medieval Durando, afirmavam que a imagem não é pro- priamente objeto de culto, constituindo apenas uma ocasião, um convite à veneração do original. Ao contrário, Bellarmino de- fende um cultus imagini per se et proprie debitus, isto é, uma consideração positiva da imagem que não depende diretamen- te do protótipo, mas que é dotada de uma autonomia pró- pria (per se) e de uma especificidade própria (proprie). Enquan- to para são Tomás de Aquino se deve prestar à imagem de Cristo o mesmo culto de latria que é devido ao próprio Cris- to e às imagens dos santos, o mesmo culto de dulia devido aos próprios santos, para Bellarmino, as imagens sacras de- vem ser veneradas alio atque alio modo, de um modo diferen- te daquele como é venerado o original.5 Dessa forma, ele rom-

pe a relação direta entre imagem e original que constitui o fundamento da iconofilia sem, no entanto, cair na iconoclastia ou simplesmente numa desvalorização das imagens. O impor- tante é que o valor das imagens não mais depende da realida-

de e da dignidade do protótipo metafísico, e sim de sua di- mensão intrínseca, concreta, histórica.

Ao comparar as teses de Bellarmino sobre as imagens com aquelas sobre o mesmo assunto defendidas cinqüenta anos antes por Calvino, em seu Institutio christianae religionis, não se podem deixar de notar, por um lado, a grande hipote- ca metafísica que pesa sobre o texto iconoclasta do reformador e, por outro, a aberta aceitação da mundanalidade implícita nas palavras do cardeal jesuíta. Segundo Calvino, as imagens sacras são nocivas porque diminuem o temor a Deus e tor- nam mais familiar a sua presença,6 mas, nas páginas de Bellar-

mino, Deus está distante. A relação entre imagem e Deus, se- gundo ele, é tão indireta e mediata quanto a relação que existe entre o pobre a quem se dá esmola e Cristo, em cujo louvor a esmola é dada: “At quando imago honoratur per se et proprie, ita ut in ipsam vere terminetur honor, tunc honor eius transit ad exemplar non immediate, sed mediate, et quasi consequenter”.7 Em Calvino, a ligação entre Deus e o mun-

do é restabelecida mediante os conceitos de signo e de sacra- mento; toda a sociedade, portanto, é investida por uma in- tervenção constante, embora oculta e misteriosa, de Deus. Em Bellarmino, ao contrário, não há espaço para uma herme- nêutica sacra que distinga o signo do ídolo, porque o mundo das imagens em sua totalidade possui um valor próprio que não depende estritamente de Deus.

As premissas para uma avaliação das imagens como si- mulacros fundamentam-se na espiritualidade inaciana, na ex- periência vivida por santo Inácio de Loyola na primeira me- tade do século XVI e transmitida nos Exercícios espirituais. Tra- ta-se de uma experiência muito original que está afastada tanto da teologia visual quanto do profetismo visionário. O que pa-

rece caracterizá-la psicologicamente é, por um lado, a extre- ma pobreza das imagens que se apresentam espontaneamen- te à consciência e, por outro, a vivacidade das cenas históri- cas que ela consegue evocar.8 A posição de santo Inácio em

relação às imagens, na verdade, parece apoiar-se em duas ati- tudes aparentemente opostas e irreconciliáveis: a indiferença e a aplicação dos sentidos. Enquanto a iconofilia teológica fa- vorece o entusiasmo natural diante da beleza da Criação, santo Inácio prescreve, antes de mais nada, “tornar-se indiferente a respeito de todas as coisas criadas”,9 esforçando-se por estar

disposto a tomar ou deixar qualquer coisa. Ao mesmo tem- po, entretanto, ele se move em direção oposta à renúncia ao mundo e ao seu espetáculo, o que é típico da iconoclastia vi- sionária, porque prescreve expressamente “ver com os olhos da imaginação o lugar real onde está aquilo que se quer con- templar” (Ex., 47) e aplicar os sentidos com a finalidade de ter uma experiência o mais concreta possível, porque não há progresso espiritual se as coisas não forem sentidas e aprecia- das interiormente (Ex., 2).

Estão presentes, assim, as duas condições constitutivas do simulacro: por um lado, a renúncia à afirmação metafísica da identidade das coisas e do mundo; por outro, o reconhe- cimento de seu valor histórico. Nenhuma imagem é teofânica, muito embora todas as imagens possam ser condição neces- sária do exercício espiritual, isto é, da experiência. A esse pro- pósito concorrem tanto as imagens do inferno como as da his- tória de Cristo.

A concepção platônica da beleza como aspecto da ver- dade é alheia à espiritualidade da Companhia, assim como é alheio um êxtase místico que sublime a sensualidade natural. A aplicação jesuítica dos sentidos é inseparável da indiferen-

ça, e o significado de sua ligação paradoxal reside na disponi- bilidade para aceitar, para escolher e para querer qualquer for- ma histórica, sem atribuir-lhe um valor absoluto ou definiti- vo. O conceito de simulacro implica, assim, a presença con- junta de disposições opostas: ele é o resultado de uma expe- riência interior que aceita e mantém os opostos, recusando as soluções metafísicas de seu conflito.

É lugar-comum na história da arte estabelecer uma li- gação entre os jesuítas e o estilo barroco — por certo, a Com- panhia contribuiu direta e indiretamente para a formação e a difusão da arte barroca. No entanto, já se observou que não existe um “estilo dos jesuítas” e que eles construíram as suas igrejas por todo o mundo seguindo, em cada ocasião, cânones arquitetônicos, artísticos e decorativos extremamente diferen- tes.10 Isso confirma, porém, que o importante não é tanto o

estilo barroco, entendido como unidade formal, quanto o fim do valor metafísico do figurativismo e a inauguração da di- mensão histórica, isto é, a possibilidade de utilizar como si- mulacro qualquer imagem e qualquer estilo. É justo essa aber- tura o dado que emerge com clareza, tanto da experiência jesuítica como do mundo barroco. Em ambos, opera-se essa secularização sem resíduos, alheia a toda perspectiva escatológica, que Benjamin pôs em evidência.11

O emblema é a produção figurativa barroca que mais ostenta as características do simulacro. De fato, o emblema, que foi amplamente utilizado no decorrer do século XVII pe- los jesuítas para ilustrar os seus livros, é uma imagem acom- panhada de um mote ou de uma sentença, sem nenhuma preo- cupação realista ou visionária. Trata-se, ao contrário, de uma construção artificiosa que deixa à mostra o seu caráter con ceituoso, arguto, engenhoso. Além disso, a sua própria rea-

lização técnica por meio da impressão gráfica não permite o desenvolvimento de um interesse fetichista em relação a ele, similar àquele do qual são objeto as obras únicas, os quadros. O livro Imago primi saeculi Societatis Iesu, publicado pelos je- suítas em Antuérpia em 1640, por ocasião do primeiro cen- tenário da Companhia, não só oferece um exemplo esplêndido do uso jesuítico da imagem emblemática, como também cons- titui ele próprio um simulacro: expressamente comparada pe- los seus autores aos troféus, às estátuas, aos arcos de triunfo dos antigos romanos, a obra aspirava a ser apreciada indepen- dentemente do assunto tratado.

O triunfalismo do simulacro é inseparável da experiên- cia do vazio. Benjamin atribuiu precisamente à emblemática seiscentista um enorme poder de “esvaziamento” (Entleerung): a partir do momento em que o objeto é incapaz de irradiar um significado ou um sentido unívoco, ou seja, é privado de sua identidade, “qualquer coisa pode significar qualquer ou- tra coisa”.12 Contudo, a procura diligente de uma intenção

oculta ou secreta por trás dessa emblemática, que jamais che- ga a manifestar-se, cega para aquilo que ele mostra; o essen- cial é a sua exterioridade vazia, que a procura de um signifi- cado oculto, ao contrário, esconde.

A acusação de idolatria lançada contra a Companhia, que constitui um lugar-comum da polêmica antijesuítica,13

revela a perturbação que a apreciação histórica da imagem pro- voca nos pensadores metafísicos: para estes, é inconcebível reconhecer à imagem e à criatura, pensada como “imagem de Deus”, uma validade imediatamente dependente do ser, da substância, do protótipo. Ora, o simulacro é justamente a afir- mação do valor da imagem enquanto imagem. O fato de que o próprio homem possa ser considerado simulacro demons-

tra a distância entre o chamado humanismo jesuítico e o humanismo clássico.

A independência do simulacro, no entanto, não guarda relação alguma com a autonomia da arte. Nesta, a imagem repudia um original externo para afirmar a si própria como ori- ginal, como entidade meta-histórica universalmente válida; a concepção da arte como criação não extingue a metafísica, apenas desloca o seu âmbito de aplicação do protótipo exter- no para a obra. A teoria da arte pela arte — como afirmava Benjamin — é uma “teologia artí stica”,14 e a atribuição do

ser à arte não indica em absoluto uma superação da metafísica; pelo contrário, na teoria da arte pela arte, a imagem justifica- se unicamente sob a condição de que seja ela própria o ser!

O conceito de simulacro, aliás, implica a negação tanto de um protótipo externo como da tentação de considerar a imagem um protótipo; ele está, por isso, relacionado com as técnicas de reprodução industrial da imagem, a começar pela impressão. O interesse jesuítico pela imagem jamais foi de na- tureza artística;15 o simulacro, porém, apresenta uma relação

de estreitíssima afinidade com a espiritualidade e até com a organização dos jesuítas.16

O conceito de simulacro, entendido como construção ar- tificiosa que não possui original e que é incapaz de ser, como a obra de arte, ela mesma um original, encontra as condições para uma plena realização nos meios de comunicação de massa con- temporâneos. Estes podem propor uma imagem que é enor- memente mais complexa e construída do que aquela oferecida por qualquer realidade e que, não obstante, não adquire — como a obra de arte — um caráter prototípico, uma originariedade própria. A televisão, por exemplo, pode oferecer uma varieda- de incomparavelmente maior de imagens de um dado aconte-

cimento do que aquela que o indivíduo poderia ver se estivesse presente no local, sem com isso adquirir um status artístico.

Os meios de comunicação de massa, até o momento, têm em geral negado o seu caráter de simulacro. Ao considerar a si próprios como “espelho da realidade” ou do futuro diante de um público ainda profundamente impregnado de nostalgias metafísicas, chegaram às aberrações hiper-realistas e hiper- futuristas. Mas o seu valor não consiste na satisfação de preten- sões metafísicas; ao contrário, ele implica precisamente o aban- dono de tais pretensões. Os meios de comunicação não podem ser a representação da realidade ou do futuro, porque são, an- tes de tudo, condições da experiência social presente e futura.

Hoje, o patrimônio estilístico, formal e cultural da hu- manidade pode ser objeto de uma simulação que se apresen- ta como tal, de uma ficção que oferece, além de si mesma, os sinais da própria irrealidade. Boorstin observa que, em toda a história do homem, se trata da primeira grande sedução na qual o fascínio do sedutor é reforçado pela revelação de seus artifícios.17 Isso depende do fato de que a escolha não se dá

— como nas idades metafísicas — entre verdade e mentira, mas entre uma imagem que se vende como realidade presen- te ou futura e uma imagem que é dada como imagem, entre a imagem hiper-realista—hiperfuturista e o simulacro.

O simulacro, portanto, é a imagem sem identidade: ele não é idêntico a nenhum original exterior e não possui uma originalidade autônoma própria. O seu valor não possui va- lor algum; o seu engano é patente; o seu caráter conflituoso é indolor. Ele marca o momento no qual a ficção deixa de ser niilista sem, no entanto, restaurar a metafísica, no qual o conflito deixa de ser dissolvente sem restabelecer a unidade.

Notas

1. D. J. Boorstin, The Image. Nova York, Harper, 1964.

2. P. Florenski, Ikonostas (1922), in Bogolovski Trudi (Moscou), 1972, IX.

3. T. Müntzer, Ausslegung des andern unterschyds Danielis dess propheten gepredigt auffm schlos zu Alstet vor den tetigen thewren Herzcogen und vorstehern zu Sachssen (1524). 4. J. Baudrillard, L’échange symbolique et la mort. Paris, Gallimard, 1976, p. 112. 5. R. Bellarmino, De controversiis christianae fidei (1586-93). Paris, 1608, t. II, Quarta Controversia, livro II, cap. XX e seguintes.

6. J. Calvino, Institution de la réligion chrétienne (1541). Paris, 1957-60, livro I, cap. XI. 7. R. Bellarmino, op. cit., cap. XXI.

8. J. De Guibert, La spiritualité de la Compagnie de Jésus. Roma, Institutum Historicum Societatis Iesu, 1953, p. 13 e pp. 43-4.

9. Inácio de Loyola, Exercícios espirituais (1548), 23.

10. C. Galassi Paluzzi, Storia segreta dello stile dei Gesuiti. Roma, Mondini, 1951. 11. W. Benjamin, Ursprung des deutschen Trauerspiels (1928), in op. cit., I, 1. 12. Ib., p. 259.

13. Repetido, por exemplo, por V. Gioberti, Il gesuita moderno. Lausanne, Bonamici, 1846-7, t. II, p. 509.

14. W. Benjamin, Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit (1939), op. cit.

15. E. Kirschbaum, La Compagnia di Gesù e l’arte, in Quarto centenario della costituzione della Compagnia di Gesù. Roma, Vita e Pensiero, 1941.

16. J. Baudrillard, op. cit., p. 80. 17. D.J. Boorstin, op. cit.

Capítulo V

Fenômeno e simulacro

1 A recusa do conceito metafísico de aparência

O primeiro capítulo de A vontade de poder — livro que Nietzsche não conseguiu terminar de escrever — devia tratar (como pode deduzir-se de alguns esboços bastante detalha- dos que ele redigiu nos primeiros meses de 1888) de uma crí- tica genealógica dos conceitos opostos e complementares de “mundo verdadeiro” e “mundo aparente”. A maioria dos nu- merosos fragmentos dedicados ao assunto propõe-se justa- mente a mostrar a gênese metafísico-moral dessa distinção que, por um lado, se baseia na negação sistemática do confli- to, do devenir, do múltiplo — numa palavra, do mundo —, por outro, na sub-reptícia e injustificada atribuição de reali- dade à identidade, ao eterno, ao uno, à idéia; por um lado, se baseia no descrédito, na condenação do que muda, por ou- tro, na apologia e na valorização do que é colocado acima de toda dimensão mundana. Essa reviravolta, da qual nasce a metafísica ocidental — pois o que é mundanamente real é con-

siderado “aparente” e, vice-versa, o que é pura e eticamente ideal torna-se “real” —, está ligada, segundo Nietzsche, ao nome e à obra de Platão, que mediu “o grau de realidade com base no grau de valor”, atendo-se ao princípio de que, quan- to mais “idéia”, tanto mais ser.1 O cristianismo teria herdado

tal hostilidade para com a aparência e o mundo, empurrando a verdade para um além inalcançável por definição. Ele seria, assim, uma espécie de platonismo para o povo, que envene- na toda a concepção do mundo, obstrui o caminho do co- nhecimento, dissolve e mina todos os instintos reais.2 Enfim,

Kant, ao reafirmar a distinção entre aparência e “coisa-em-si”, teria voltado a propor uma realidade que não pode ser alcan- çada, demonstrada, prometida, à qual é possível ter acesso só através da moral.

Efetivamente, embora possa censurar-se a Nietzsche o fato de ele ter considerado, na sua análise da aparência, ape- nas a concepção moral que contrapõe a aparência à realida- de — sem levar em consideração nem a tradição neopla- tônica, que considera a aparência uma manifestação do mun- do inteligível, nem a tradição empírico-científica, que esta- belece uma relação de semelhança ou de identidade entre aparência e realidade, nem, enfim, a teoria hegeliana que identifica aparência e essência —, tem-se, no entanto, que todas essas diversas reavaliações da aparência, as quais reve- lam a preocupação de “salvar os fenômenos” de uma con- denação radical, são remissíveis ao horizonte conceitual aber- to por Platão, seja porque formuladas por ele próprio, seja porque somente podem ser pensadas no âmbito de uma metafísica idealista.

Num trecho de Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche recapi- tula as várias fases através das quais o chamado “mundo ver-

dadeiro” instituído por Platão acabou por transformar-se em fábula (Fabel). Depois de ter acenado à sua completa desmis- tificação por parte dos espíritos livres, ele conclui que junto com o mundo verdadeiro se expulsou (abgeschafft) também o apa- rente (scheinbar).3 Essa afirmação constitui o ponto de che-

gada de sua reflexão sobre o aparecer, uma vez que as notas posteriores não trazem nenhuma contribuição nova nem es- clarecem as conseqüências da sua recusa dos conceitos metafísicos de realidade e aparência.

Neste século, Heidegger e Klossowski realizaram a ta- refa de repensar o problema do aparecer, movendo-se por caminhos completamente diferentes daqueles indicados por Platão. Ambos recusam o conceito metafísico de aparência e opõem-lhe uma nova problemática, que, no caso de Hei- degger, gira em torno de uma nova interpretação da pala- vra fenômeno e, no caso de Klossowski, em torno do con- ceito de simulacro. O pensamento heideggeriano mantém re- lação muito complexa com Nietzsche, fazendo questão de apresentar-se, em geral, como alternativo relativamente a ele.4 A reflexão klossowskiana a respeito do simulacro nas-

ce, por sua vez, de uma leitura de Nietzsche que mantém com o texto uma relação de consonância e de afinidade.5

Entretanto, apesar desses posicionamentos conceituais dife- rentes com relação a Nietzsche, ambos abrem horizontes conceituais nos quais a eliminação simultânea dos conceitos metafísicos reciprocamente complementares de mundo ver- dadeiro e de mundo aparente é inteiramente assumida e pen- sada muito além de Nietzsche, em dois sentidos diferentes e até mesmo opostos.

2 Fenômenos e simulacros

Já em Ser e tempo, Heidegger situa-se além dos concei- tos metafísicos de “mundo verdadeiro” e “mundo aparente”, mediante a adoção do método fenomenológico que se pro- põe a restituir a palavra às coisas mesmas (zu den Sachen selbst). Divide a seguir a palavra fenomenologia nos dois termos gre- gos que a compõem (fainómenon e lógos) e considera-os sepa- radamente.6 A referência “às coisas mesmas” leva Heidegger

à procura do significado originário de aparência (Erscheinung). Ele distingue, assim, três conceitos: 1. o fenômeno (Phäno- menon), definido como aquilo que se mostra em si próprio (das Sich-am-ihm-selbst zeigende); 2. o parecer (Scheinen), en- tendido como aquilo que tem a aparência de..., mas que, “na realidade”, não é o que aparenta ser; 3. a aparência ou pura aparência (Erscheinung ou blosse Erscheinung), que designa o anunciar-se de algo que não se mostra através de algo que se mostra (Sichmelden von etwas, das sich nicht zeigt, durch etwas, was sich zeigt). Heidegger privilegia o fenômeno e acredita que o segundo termo deva estar compreendido no primeiro. De fato, o parecer é apenas a modificação privativa do fenôme- no. Quanto à pura aparência, ela designa precisamente o ve- lho conceito metafísico segundo o qual a aparência oculta o ser e este nunca pode nem sequer aparecer. A tal estatuto per- tencem indícios, representações, sintomas e símbolos. A pura

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