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O ser-para-a-morte e o simulacro da morte

No documento Pensando o Sexualidade Morte, Mundo (páginas 164-198)

O ser-para-a-morte e

o simulacro da morte

1 Diversão e recalque da morte

Uma das aquisições fundamentais de Ser e tempo con- siste em ter posto de lado a concepção metafísica da morte. Não se trata apenas da idéia teológica da morte, entendida como entrada em uma outra vida, mas também da idéia humanista, que considera a morte uma simples-presença es- tranha à vida humana ou extrinsecamente ligada a ela. Heidegger escreve: “A morte é um modo de ser que o ser-aí (Dasein) assume a partir do momento em que é”.1 Isso sig-

nifica que a definição naturalista, ao entendê-la como óbito, não é apenas extremamente redutora, como também solidá- ria com uma concepção da existência entendida ela mesma como simples-presença, excluindo todo ser-possível, e portan- to derivada da metafísica. A concepção teológica da morte como ingresso na eternidade fundamenta-se numa teoria metafísica do homem, entendido como imagem de Deus. Da mesma forma, a concepção humanista da morte, entendida

como óbito (antropológica, psicológica ou biologicamente considerada), fundamenta-se numa teoria também metafísica do homem enquanto constante permanência, enquanto cons- tante simples-presença.2 Poder-se-á subtrair a morte à meta-

física somente se o homem for subtraído à metafísica, isto é, se no conceito de ser-aí estiver implícito o poder-ser. Desse modo, segundo Heidegger, a morte torna-se o poder-ser mais peculiar e autêntico do ser-aí.

Assim como Heidegger, Baudrillard evidencia a substan- cial conexão existente entre o ponto de vista teológico e o hu- manístico. A preocupação de ambos consiste em manter a vi- da e a morte cuidadosamente separadas uma da outra: “A vida é vida, a morte é sempre morte”.3 Teologia e humanismo co-

incidem em pensar a vida como uma identidade que nada tem a ver com a morte, como uma positividade absoluta que se mantém rigorosamente diferente do nada. Ambos têm a pre- tensão de abolir a morte, a primeira pela eternidade do espí- rito, o segundo pelo desenvolvimento indefinido do proces- so científico. Na base de ambos encontra-se um conceito de tempo ligado à economia política e moldado na acumulação ilimitada.

A teologia e o humanismo podem ser considerados como a formulação teórica de uma atitude cotidiana extrema- mente difundida, que consiste em não pensar na morte, em fazer de conta que a morte não existe, em levar adiante um trabalho de “constante tranqüilização” (ständige Beruhigung) em relação à morte.4 A alienação (Entfremdung)5 consiste,

para Heidegger, exatamente numa fuga diante da morte que lança o Dasein num auto-emaranhamento capcioso que pode, ainda, ser interpretado de modo errôneo como “perfeição” ou “vida concreta”. A ostentação de uma tranqüilidade indiferente

diante da realidade (Tatsache) de que se morre é a “diversifi- cação encobridora” (verhüllendes Ausweichen) em relação ao ser-para-o-fim do ser-aí. Ela oculta o fato (Faktum) de que “o ser-aí próprio de cada um desde sempre, efetivamente, mor- re”. A fuga do ser-aí diante de si mesmo, diante de sua possi- bilidade mais peculiar, isto é, diante da morte, está estreita- mente ligada à situação afetiva da angústia. Esta, ao contrário do medo, não implica a ameaça de algum ente intramundano determinado, mas é totalmente indeterminada: “O que an- gustia a angústia é o próprio ser-no-mundo”,6 isto é, o nada

e o em-lugar-nenhum que a caracterizam fenomenologicamente. A angústia está ligada ao sentir-se “deslocado”, ao não “sen- tir-se em casa”. Esse sentir-se deslocado persegue o ser-aí e ameaça-o, mesmo que de modo implícito: a cotidianidade re- aliza uma constante ação diversiva na tentativa de eliminá-lo. Mas essa fuga é inútil: “A angústia pode surgir na mais tran- qüila das situações”, ela é a situação afetiva fundamental da cotidianidade.

Baudrillard também revela que na raiz da cotidianidade ocidental existe uma rejeição da morte: “Pouco a pouco, os mortos deixam de existir. Eles são expulsos para fora da circu- lação simbólica do grupo”.7 A cotidianidade contemporânea

proscreve rigorosamente a morte; para ela, o fato de estar mor- to “não é normal”, é uma anomalia impensável. Distinguin- do-se das culturas primitivas, que se instituem com base em uma intensa relação de reversibilidade simbólica entre a vida e a morte, a civilização ocidental moderna lança um verda- deiro interdito contra a morte, excluindo-a da própria expe- riência. Essa pretensão de apagar a experiência da morte está ligada à ação de acumulação e de produção material da eco- nomia capitalista. É por essa razão que na sociedade moder-

na a morte se torna pulsão de morte, exatamente na medida em que é recalcada, repelida e mantida no inconsciente. Baudrillard oferece assim uma interpretação histórico-social do conceito freudiano de pulsão de morte, subtraindo-o à perspectiva metafísica na qual a psicanálise o insere. A mor- te, tornada pulsão recalcada, retorna a qualquer momento na vida cotidiana como angústia de morte, e a ausência de ca- nais que permitam o intercâmbio simbólico com a morte e o seu reconhecimento no seio da sociedade faz crescer enorme- mente a sua força e a transforma numa potência psicológica oculta e subterrânea, tanto mais obsessiva quanto menos evi- dente for. “Se o cemitério não existe mais, é porque as cida- des modernas assumem por inteiro a função deste: são cida- des mortas e cidades de morte”, porque nelas a morte está simbolicamente ausente, mas reina subterraneamente.

Daí conclui-se que as análises de Heidegger e de Bau- drillard, embora construídas a partir de referências conceituais diferentes,8 convergem na recusa tanto da consideração me-

tafísica da morte (teológica ou humanista) como da atitude cotidiana de tranqüilização, de diversão, de recalque, que é a premissa da metafísica. Ambas, além disso, estabelecem uma conexão entre a cotidianidade, secretamente oprimida ou ameaçada pela morte, a situação afetiva da angústia e a expe- riência do deslocamento. Elas, no entanto, divergem profun- damente quanto à solução que oferecem para o problema de quem efetivamente leva a cabo essa atividade de diversão e recalque da morte. Para Heidegger, é o Se (das Man), a coti- dianidade impessoal e inautêntica; para Baudrillard, é o eu que se constitui em sua identidade precisamente com base nesse recalque da morte. O itinerário traçado por Heidegger em Ser e tempo vai da inautenticidade, do Se impessoal do mundo ao

autêntico poder-ser da consciência (Gewissen), através do ser- para-a-morte.9 O itinerário delineado por Baudrillard, ao con-

trário, vai da identidade do sujeito e da consciência à dissolu- ção de ambos numa multiplicidade de dimensões sociais, atra- vés da experiência simbólica da morte. O ser-no-mundo, que para Heidegger está ligado ao esquecimento da possibilidade da morte e do poder ser si-mesmo, para Baudrillard, ao con- trário, é o ponto de chegada de uma reconquistada intimida- de com a morte; enquanto a evocação de si próprio implicada pelo ser-para-a-morte de Heidegger é, para Baudrillard, soli- dário com o recalque da morte.

Na realidade, trata-se de duas dimensões completa- mente diferentes da morte: o ser-para-a-morte e a morte como simulacro.

O ser-para-a-morte é antecipação (Vorlaufen) da morte: ser-aí (Dasein) significa para Heidegger “ser-para-o-fim”. A morte não é uma simples-presença que ainda não se tornou realidade, mas uma iminência sobranceira que constitui exis- tencialmente o ser-aí. Ela é o ser-possível mais próprio do ser- aí, irrestrita, insuperável, certa, indeterminada. É por essa ra- zão que a sua antecipação “o situa diante da possibilidade de ser ele mesmo, numa liberdade apaixonada, livre das ilusões do Se, efetiva, certa e cheia de angústia — a liberdade para a morte”.10 O ser-aí enquanto tal é chamado à sua autenticida-

de na decisão (Entschlossenheit) de ser culpado e de ser-para-o- fim. A idéia de culpa em Heidegger nada tem a ver com a violação de uma lei ou a fuga a um dever — ela designa a nu- lidade essencial do ser-aí. A decisão é, precisamente, “o tácito e angustioso autoprojetar-se no mais específico ser-culpado”;11

é, portanto, decisão antecipadora da morte, que faz desta se- nhora da existência. Só mediante tal decisão antecipadora da

morte, o ser-aí assume a dimensão da totalidade, ou, como diz Heidegger, de um autêntico poder-ser-um-todo.12

A concepção da morte como simulacro é diametralmente oposta àquela heideggeriana. Ela implica uma simulação da morte, uma “morte simbólica” que ocorre no rito da inicia- ção. Essa prática, extremamente difundida nas sociedades pri- mitivas, consiste “na instauração de uma troca lá onde havia apenas o fato bruto: da morte natural, aleatória e irreversível, passa-se a uma morte dada e recebida, portanto reversível na troca social.13 A iniciação é justamente uma morte simulada

que assinala o ingresso da criança na sociedade, que o trans- forma em um verdadeiro ser social. Distinguindo-se, portan- to, da sociedade contemporânea, que se baseia no recalque da morte, é justamente nela que as culturas primitivas fundam a própria sociabilidade, no estabelecimento de uma troca simbó- lica entre a vida e a morte. A conseqüência mais importante dessa perspectiva consiste em considerar a morte um ponto de partida: ela não constitui o poder-ser iminente do ser-aí, mas o seu passado, o seu fundamento, a sua realidade transcorri- da. A existência social, portanto, é inocente em sua nulidade essencial. De fato, a função da iniciação consiste na expiação do crime original, o do nascimento: ela apaga “o acontecimen- to separado do nascimento”, a pretensão de ter uma identida- de autônoma, independente, subjetiva. Portanto, a sociabili- dade que a simulação da morte institui é irresponsável; ela se situa no extremo oposto da iniciativa individual e da ética pro- fissional, bases do nascimento e desenvolvimento do capita- lismo moderno. O ser nada, o ser ninguém que a morte iniciatória realiza, permite a seu modo uma estranha experi- ência da totalidade, que consiste no poder ser tudo, em uma disponibilidade aberta a todos os papéis da vida social.

Concordes na recusa da metafísica, do humanismo e da cotidianidade banal, Heidegger e Baudrillard propõem a se- guir duas dimensões da morte opostas entre si, que se enraí- zam em contextos culturais antitéticos. O ser-para-a-morte heideggeriano pode ser considerado um repensar, em nível ontológico, da experiência ôntica da morte, típica da espiri- tualidade luterana e jansenista. O próprio Heidegger remete explicitamente a Lutero e à tradição que sempre considerou a vida uma meditação sob re a morte.14 Inversamente, o si-

mulacro da morte de que Baudrillard fala remete não só às sociedades primitivas, como à tradição jesuítico-barroca que fez da experiência simulada da morte e da visão da morte a condição de ingresso no grande teatro da vida. Baudrillard evoca a respeito disso a solidez da sociedade barroca, “capaz de exumar os seus mortos, de conviver com eles a meio ca- minho entre a intimidade e o espetáculo, de suportar sem pa- vor nem curiosidade obscena [...] o teatro da morte”.15 Tra-

ta-se de duas grandes tradições que devem ser examinadas detalhadamente.

2 O ser-para-a-morte

É no final da Idade Média que vamos encontrar a ex- periência ôntica que está na origem do ser-para-a-morte. O seu nascimento corresponde à passagem de uma concepção mais antiga, segundo a qual todos os mortos pertencentes à Igreja ressuscitariam juntos no final dos tempos, para a con- cepção do juízo particular imediatamente posterior à morte do indivíduo.16 A nova concepção está amplamente documen-

culos dedicados à arte de bem morrer, constituídos de medi- tações e orações acompanhadas por gravuras que representam, na maioria das vezes, a cena da agonia e a luta entre anjos e demônios pela posse da alma do moribundo.17 O verdadeiro

ingresso na dimensão do ser-para-a-morte ocorre, porém, nas Artes moriendi de finais desse século (1488-1500), que se pro- põem não tanto a garantir a salvação ultraterrena, mas a di- tar normas de vida. De fato, nestas, a atenção desloca-se do momento privilegiado e altamente dramático da agonia e da prova extrema à qual o moribundo é submetido para a vida cotidiana, entendida como contemplação e preparação da morte. Aquele que deseja bem viver deve aprender a bem morrer. A boa morte é apenas conseqüência de uma boa vida, passada na constante espera da morte ou, como dizia Savonarola, “vivida com os óculos da morte”. O Tractatus de arte bene moriendi, de Jacob de Jüterbogk, apresenta a morte como inspiradora direta de toda uma série de regras que de- vem ser observadas no dia-a-dia: quem vive com o pensamen- to constantemente voltado para a morte nunca está seguro da própria sorte, e por essa razão permanecerá incansavelmente a serviço de Deus. Nessas Artes moriendi aparecem todos os aspectos fundamentais do ser-para-a-morte heideggeriano: o privilégio conferido à angústia entendida como abertura da existência autêntica, a meditação sobre a morte considerada o momento no qual o homem adquire consciência de si mes- mo, a certeza de que o homem não é mais que “un mort en sursis” (Ariès), um morto diferido, remetido a outro tempo, bem como a aceitação da própria culpabilidade radical.

Contudo, é com Lutero que todos esses temas encon- tram uma síntese extremamente vigorosa e fecunda. A angús- tia (angustia), considerada por ele o estado afetivo fundamen-

tal da vida cristã, constitui a premissa imprescindível do pro- cesso de salvação.18 De fato, ela está estreitamente ligada à

condição humana, a qual se encontra essencialmente viciada pelo pecado original. A angústia, portanto, não é um senti- mento acidental, mas deriva da perda irremediável e definiti- va da integridade original.

A teologia de Lutero foi definida como uma “teologia da cruz”,19 em contraposição à “teologia da glória”, caracte-

rística de Loyola e do jesuitismo, justamente por causa do pa- pel fundamental que nela têm os estados de desesperança. O reformador “ensina que as penas, as cruzes e a morte são o tesouro mais precioso dentre todos”20 e considera a medita-

ção sobre elas o único modo de subtrair-se à soberba e à con- cupiscência que derivam do amor e da afirmação de si. A vida do cristão — escreve Lutero —, nada mais é do que um mor- rer do batismo ao túmulo, um estar preparado a qualquer hora para a morte, um ir ao encontro da morte.21 Esses mesmos

conceitos encontram-se no sermão expressamente dedicado a esse tema em 1519, Da preparação para morrer, no qual des- taca a extrema importância de preparar-se para a morte atra- vés da constante e cotidiana reflexão sobre ela.

A liberdade para a morte de que fala Heidegger tem as suas raízes existenciais na desvalorização das ações, típica da prédica de Lutero. De fato, enquanto possibilidade, ela não oferece ao homem nada “para realizar”, nada que ele possa ser como realidade atual, mas implica o abandono da dimen- são da “utilização” e da “satisfação”. Ora, ninguém mais do que Lutero deplorou a orientação que subordina cada coisa à utilidade e que liga o mérito às ações. Ninguém mais do que ele fez da renúncia de si mesmo a condição imprescindível da vida cristã. Em Lutero como em Heidegger, essa renúncia ja-

mais possui o aspecto de uma adquisição, de uma conquista, de uma vitória — revela apenas o nada da possível impossi- bilidade da existência. Para Lutero, quem faz da humildade (humilitas) um mérito cai profundamente na auto-idolatria. Humilhar-se não quer dizer ser humilde, mas tão-somente “re- baixar-se” e “anular-se”,22 ou, melhor ainda, saber ficar na nu-

lidade da própria condição.

Por mais que Heidegger queira diferençar o seu con- ceito de consciência (Gewissen) daquele proposto pela teolo- gia, as afinidades que ele apresenta com o que Lutero de- signa com a mesma palavra são profundas. Em primeiro lu- gar, para ambos, ela nada tem a ver com o simples conheci- mento, nem com a acepção que entende a consciência como auto-evidência do sujeito. Lutero condena expressamente esse significado em seu comentário ao Magnificat — para ele, a humildade é ótima só se não for sabedora de si. Os verdadeiramente humildes nunca vêem a si próprios como tais. O conhecimento da própria humildade transforma-a em soberba, em fruição, em auto-afirmação. A vida cristã não é autoconsciência da própria nulidade, e sim mera nulidade, cuja consideração cabe eventualmente apenas a Deus. “A cog- nição”, diz Lutero, “não é uma força, nem proporciona for- ça, mas ensina e mostra a nulidade da força e a extensão da debilidade do homem.”23 Analogamente, a consciência hei-

deggeriana é justo o contrário de uma simples presença do eu para si próprio: a recusa da res cogitans cartesiana consti- tui uma das premissas fundamentais sobre as quais se cons- truiu Ser e tempo. Para Heidegger, não se trata de fundamen- tar a ontologia no cogito: a consciência não fundamenta nada, porém evoca a possibilidade mais própria do ser-aí, isto é, a morte. O caráter de chamamento (Ruf ) que Heidegger atri-

bui à consciência não deixa de ter afinidade com a vocatio* luterana; em ambos os casos, primeiramente se é chamado a uma condição comum a todos, que em Lutero constitui a premissa do sacerdócio universal e, em Heidegger, implica a referência ao ser-aí. Não se trata, de modo algum, de esta- belecer uma relação íntima consigo mesmo. Em Lutero, a profissão (Beruf) à qual se é chamado independe de uma es- colha individual.24 Em Heidegger, o chamamento não é pro-

jetado, nem preparado, nem voluntariamente realizado por nós mesmos.

É, enfim, na culpabilidade essencial da existência que o ser-para-a-morte heideggeriano encontra o seu antecedente mais profundo em Lutero. Essa culpabilidade é completamen- te independente da referência a um dever moral ou a uma lei: o ser-aí é culpado pelo simples fato de existir. A justiça de Lutero não é retributiva, mas “passiva”. Ela não consiste em dar segundo os méritos e as culpas, e sim em atribuir aquilo que não se tem direito algum de pedir, identificando-se, por- tanto, com a graça. Conseqüentemente, o princípio de toda justiça é, para Lutero, a acusação de si próprio, a culpabilida- de radical do homem ou, como diz Heidegger, o ser funda- mento nulo de uma nulidade. Embora Heidegger se preocu- pe em diferençar o ser-culpado do ser-aí do conceito teológi- co de pecado,25 a concepção luterana de pecado é tão inde-

pendente de uma culpabilidade moral ou legal que constitui, quando menos, a premissa ôntica e existencial da considera- ção ontológico-existencial de Heidegger.

No âmbito do catolicismo, pode-se encontrar um modo de ser próximo ao ser-para-a-morte no jansenismo, que é afim

com o luteranismo não só pela teoria da graça, do pecado ori- ginal e da culpabilidade humana, pela experiência da vocação, do chamado, da escuta, mas também pela importância que essa doutrina atribui ao “sentir”, ao “coração”, todos eles temas cujas origens podem ser buscadas, provavelmente, na inspiração agostiniana comum a ambos os movimentos. O jansenismo está em total oposição à concepção humanista, segundo a qual a morte é meramente um deixar de viver, cinicamente resumível no “vixit”*dos romanos. Para Pierre Nicole, a morte deve ser o objeto de meditações mais importante para um cristão. “Nun- ca é cedo demais para dedicar-se a ela. Mesmo que não fizés- semos outra coisa durante todo o resto de nossa vida [...]. É loucura deixar esse pensamento para mais tarde.”26 O proble-

ma da morte está estritamente ligado ao do tempo: tempo al- gum parece-lhe longo demais para preparar-se para a morte; ela dissolve o conceito vulgar de tempo. Esse viver para a morte não deixava de propiciar uma satisfação análoga à “laetitia in tristitia”** luterana. “É mais fácil, para um verdadeiro cristão”, escreve Quesnel, “amar a morte e fazer dela a sua delícia do que amar a vida e nela encontrar prazer e alegria. Posto que, para os homens carnais [...], o simples pensamento da morte é [...] um suplício [...]. Mas aquele que compreender o que deve à justiça de Deus como pecador e o que deve odiar em si pró- prio como filho de Adão [...], este não terá dificuldade em di- zer como são Paulo: Et mori lucrum.*** A morte é o meu bem, a minha vantagem e a minha delícia.”27 Da mesma forma,

Heidegger escreve que a decisão antecipadora não é nunca um estratagema para derrotar a morte; ao contrário, se trata da-

* Vive. (N. do T.)

** Alegria na tristeza. (N. do T.) *** Morrer é lucro. (N. do T.)

quela compreensão que provém do chamado da consciência, o qual oferece à morte a possibilidade de apoderar-se da existên- cia do ser-aí e destruir até a raiz toda ocultação evasiva de si.

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