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Entre a veste e o nu

No documento Pensando o Sexualidade Morte, Mundo (páginas 84-127)

Entre a veste e o nu

1 Magnificência da veste e verdade do nu

O erotismo se manifesta nas artes figurativas como re- lação entre o vestido e o nu. A sua condição é, portanto, a possibilidade de um movimento, de um trânsito de um para o outro: se a um dos dois termos for atribuído um significa- do primário e essencial em prejuízo do outro, faltará a pró- pria possibilidade do trânsito e, logo, do erotismo. Nesse caso, à veste ou ao nu é atribuída uma dimensão absoluta.

À veste é atribuída uma primazia onde quer que se considere a figura humana essencialmente vestida, onde quer que se pense que o homem se torna tal, distinguindo-se dos animais, exatamente graças ao fato de estar vestido: a veste é o que confere ao homem a sua identidade antropológica, social, religiosa — em uma palavra, o seu ser. Disso deriva o fato de a nudez ser tida como uma situação negativa, como privação, perda, espoliação: os adjetivos nu, despido, desnudo qualificam exatamente o estado de quem está privado de al-

guma coisa que deveria ter. No âmbito de tal concepção, que foi muito difundida entre os povos do Oriente Médio (egíp- cios, babilônios, hebreus), o estar despido significa achar-se em uma condição aviltante e vergonhosa, típica do cativei- ro, da escravidão, da prostituição, da demência, da maldi- ção, da impiedade.

No Antigo Testamento, a primazia da veste adquire um significado metafísico, indo ao encontro da noção de kãbôd, que quer dizer “magnificência”, “honra”, e que etimologica- mente se refere a algo pesado, grave, importante. A veste mag- nífica (bègèd kãbôd), da qual fala oSiracide, refere-se à veste sacerdotal de Aarão, a quem a tradição bíblica atribui a insti- tuição do sacerdócio (Si 45, 9), e aos paramentos solenes do sumo sacerdote Simão, que, “quando revestia os mais belos ornamentos, subindo os degraus do santo altar dos sacrifícios, enchia de glória todo o santuário” (Si 50, 11-2).1 A conexão

entre veste e sacerdócio, entre cobertura e serviço de Deus, baseia-se no fato de que o próprio Deus “vestiu” a terra com a obra da criação e ele mesmo se manifesta “revestido de ma- jestade e esplendor/ envolto em luz como em um manto” (Sal 104, 1-2). A magnificência da veste sacerdotal não é mais do que um reflexo da magnificência do kãbôt de Jeová:2 o seu

caráter só pode ser entendido com referência ao transcendente, que está essencialmente “vestido”, que em todas as relações com os homens vela, cobre, veste o seu poder, porque os ho- mens não podem suportar a visão direta de Deus. Diz o Se- nhor a Moisés: “Tu não poderás ver a minha face, porque ne- nhum homem pode ver-me e permanecer vivo” (Ex 33, 20). Estreitamente relacionada com a veste está a morada de Deus, o lugar coberto, a habitação, a Tenda de Reunião que Moisés institui junto com o sacerdócio de Araão — a Tenda é edi-

ficada ao mesmo tempo em que são feitas as vestes sacerdo- tais (Ex 39). A construção do Templo por obra de Salomão representa o coroamento dessa perspectiva — a casa estável de Deus está associada ao seu kãbôd, à sua glória.3

No pólo oposto dessa primazia metafísica da veste está a experiência grega da nudez, que, mesmo antes de mani- festar-se na arte, se expressa como ideal ético-estético da kalo- kagathía* nos jogos das festas pan-helênicas. Aqui a figura humana na sua dimensão ideal se apresenta essencialmente nua. Nessa celebração da nudez os gregos consideravam-se diferentes de todos os outros povos. Para eles, a nudez não é mais uma coisa vergonhosa, ridícula e desonrosa; ao con- trário, ela assume um significado paradigmático no qual se encontram uma experiência religiosa que atribui à clareza do ver um papel determinante e uma concepção agonística da vida, de origem aristocrática, que considera a vitória e a sua gloriosa celebração um fim a ser perseguido com a máxima energia.

Com Platão, a primazia da clareza da visão adquire um significado metafísico: no mito da caverna, o caminho que leva à verdade conduz progressivamente da visão de sombras e de imagens especulares à contemplação das idéias. Dessa concepção da verdade como exatidão do olhar e da substân- cia eterna como objeto de uma visão intelectual nasce a me- táfora da verdade “nua”: sobre a base dessa metáfora, todo o processo do conhecimento é considerado uma retirada dos véus do objeto, um despojá-lo totalmente, iluminando-o em todas as suas partes.4 Por isso, o próprio corpo é pensado

como um obstáculo, um túmulo da alma, a qual só quando

* O caráter de conduta de um homem, honestidade perfeita, probidade escrupulo- sa. (N. do T.)

está nua — psichè gumnè toû sómatos* (Crat. 403 b) — ad- quire total liberdade. Ligada a essa primazia do ver a olho nu está a própria noção de theoría, que tanta importância tem no pensamento grego — 5 segundo uma hipótese etimológica,

a palavra theoría, derivada da fusão de theá, “visão”, “olhar”, com ora, “desvelo”, “custódia”, “solicitude”, “cuidado”, im- plicaria o cuidado do ver, a potencialização metafísica de ver, para além de todas as vestes, trajes, invólucros, a coisa nos seus detalhes precisos.6 Em tais premissas metafísicas baseia-

se a representação do nu na estatuária grega clássica: ela é con- cebida como a forma ideal da figura humana, da qual os cor- pos fenomênicos são as réplicas.7

Tanto no judaísmo como no helenismo, portanto, pare- cem profundamente arraigadas concepções da figura humana que nada têm de erótico, exatamente porque não instauram entre ves- te e nu nenhum trânsito, mas tornam absoluto metafisicamente um dos dois termos, excluindo o outro. Metafísica da veste e metafísica do nu constituem perspectivas que têm exercido na cultura ocidental uma influência constante até os nossos dias. Elas retornam onde quer que o problema seja posto em termos ab- solutos, como conflito entre a dignidade e a liberdade do corpo. Todavia, nem o judaísmo no seu conjunto é redutível a uma metafísica da veste, nem o helenismo a uma metafísica do nu. Já na Antiguidade, pensadores de origem hebraica, como Fílon de Alexandria, lêem episódios do Antigo Testa- mento segundo uma mentalidade grega e atribuem ao nu pelo menos a possibilidade de um significado positivo. “O grande sacerdote”, escreve Fílon, “não entrará no Santo dos Santos com uma túnica; mas, depois de ter liberado a sua alma do

invólucro da opinião e da imaginação e depois de tê-la deixa- do aos que amam as coisas exteriores e estimam a aparência mais do que a verdade, entrará nu, sem cores, nem sons.”8*

De resto, o relato bíblico da nudez originária de Adão e Eva constituirá o ponto de referência dos que desejarem enxertar o platonismo na Bíblia, como os sete adamitas medievais, os Irmãos e as Irmãs do Livre Espírito, nos quais se inspirou Hieronimus Bosch.9 Esse enxerto, entretanto, permanece im-

plícito e não consegue ultrapassar os limites da metafísica da verdade nua.

Ao contrário, o hermetismo neopitagórico e gnóstico repensa a tradição cultural e a filosofia helênicas segundo uma concepção da verdade “vestida”, que se torna visível, na sua inefável magnificência, apenas a poucos iniciados. A verdade é vestida não só para os profanos que não têm acesso ao co- nhecimento, mas no fundo também para os eleitos. Ela se mostra aos eleitos na sua glória, na sua dóxa,** não na sua nudez teórica: “Quando não puderes dizer nada da beleza do Bem, só então o verás”, está escrito no Corpus hermeticum (X, 5-6), “porque o conhecimento supremo é silêncio divino e descanso de todas as sensações”. As almas, as idéias, os eones do pensamento gnóstico se liberam da nudez impura da car- ne e são pensados como dotados de uma veste espiritual: “Eles serão revestidos com vestes reais/ e serão envoltos em vesti- dos resplandecentes”, diz a propósito disso um hino gnóstico citado nos Atos de são Tomé.10*** Por mais que seja atribuí-

* Neste trecho, Fílon refere-se à nudez da alma que o oficiante deve ostentar diante de Jeová. (N. do T.)

** Opinião, julgamento. Na linguagem bíblica significa “manifestação da glória e poder de Deus”. (N. do T.)

da às seitas gnósticas a prática de uma licenciosidade sexual ilimitada, na qual encontraram objeto de inspiração escrito- res do nosso século indubitavelmente eróticos, como Law- rence Durrell, a dimensão erótica parece, entretanto, excluída da Gnose exatamente pelo dualismo rigoroso entre um cor- po nu, destinado à perdição, e um espírito vestido, destinado à salvação; esse dualismo impede a possibilidade de pensar em um estado intermédio, em um trânsito.

A descoberta da possibilidade desse trânsito no interior da cultura judaica e da cultura helênica pertence ao pensamen- to contemporâneo e é obra de Hans Uns von Balthasar e de Martin Heidegger, respectivamente. Metafísica da veste e metafísica do nu concordam em atribuir à visibilidade — em- bora pensada e experimentada de maneiras opostas — uma di- mensão absoluta. De fato, Balthasar mostra precisamente como na noção hebraica de kãbôd está implícita não só a magnificência visível, mas, além disso, a referência a algo de diferente, de in- visível. Segundo a sua interpretação, o kãbôd não é uma noção estática, e sim dinâmica, que se apóia na tensão entre uma gló- ria “informe” e uma imagem revestida de forma.11 Ela implica

um ver-não-ver, uma imagem-não-imagem; é ao mesmo tem- po luz ofuscante e treva profunda. O kãbôd, portanto, ultrapas- sa o contexto litúrgico-cultual e estende-se a toda a criação, en- volvendo, antes de mais nada, o homem, que foi criado à ima- gem e semelhança de Deus. Existe, pois, um trânsito entre o visível e o invisível, entre a veste e aquilo que ela cobre. Balthasar defende a possibilidade de uma erótica bíblica independente do platonismo; ele sustenta uma interpretação literal e profana do Cântico dos Cânticos — aqui, o eros não é um símbolo, nem uma alegoria. Ele apresenta só a si próprio e se manifesta “no travestimento do jovem e da jovem em rei e rainha”, no “jogo

de designar veladamente aquilo que não deve ser mencionado e que, entretanto, deve ser absolutamente indicado”.12

Igualmente, Heidegger mostra como a noção grega de alétheia* tem um significado originário que ultrapassa a no- ção teórica de exatidão do olhar. Segundo Heidegger, a pa- lavra alétheia implica tanto uma ocultação como um desve- lamento, e, de fato, ela é caracterizada por um a privativo, que exprime privação diante de qualquer coisa que esteja oculta, isto é, encerrada, posta em custódia, mascarada, en- coberta, velada, falsificada... Heidegger propõe traduzi-la com o termo Unverbogenheit, não-ocultação, exatamente por- que a dimensão do ocultar é essencial: este, “entendido como um esconder-se, domina a essência do Ser e determina des- se modo até o ente na sua presença e no seu ser acessível”.13

A alétheia grega não implicaria de modo algum a primazia da nudez, mas um trânsito entre esconder e desvelar, irredutível à concepção platônica de um esclarecer e de um iluminar puros e completos. Da mesma forma, Marcel Detienne sustenta que, na era arcaica, as noções religiosas de Alétheia e Léthe formam uma dupla de compostos antitéticos e complementares.14 De fato, as Kórai, as jovens

da escultura grega arcaica, com sua draperie mouillée** e seu sorriso ambíguo e indecifrável, abrem um espaço erótico in- comparavelmente mais amplo e profundo do que a nudez calipígia das Afrodites clássicas. O déhanchement,*** o me- neio do quadril no qual se baseia o sex-appeal do nu femini-

* Verdadeiro, verídico, dito de coisas e acontecimentos que não estão ocultos. (N. do T.)

** Panejamento molhado que, portanto, mostra o tecido pregado ao corpo, denun- ciando-lhe as formas. (N. do T.)

*** Posição de figura na qual o peso do corpo é transferido para uma das pernas, acentuando e destacando a curva do quadril. (N. do T.)

no clássico, e a cuirasse esthétique,* na qual se funda o sex- appeal do nu masculino do período, são tão evidentes quan- to as idéias platônicas. “Evidência”, em grego — afirma Heidegger —, diz-se eîdos ou idéa.15 Contudo, é exatamen-

te essa evidência, isto é, o fato de o olhar estar livre para enxergar a nudez masculina e feminina no seu aspecto ideal e eterno, que torna a experiência estática e para sempre fe- chada ao trânsito erótico.

2 A erótica do despir: o nu e o véu

Nas artes figurativas, foi o cristianismo que tornou pos- sível uma completa representação do erotismo, porque intro- duziu uma dinâmica não suficientemente desenvolvida pela Antiguidade judaica e clássica. A direção de tal movimento pode ser orientada para o despir ou para o revestir. De fato, diz São Paulo: “Vós vos despistes do homem velho com as suas ações e vos vestistes do novo, que se renova para um ple- no conhecimento à imagem do seu criador” (Col. 3, 9-10). Da primeira ação, o despir-se, nasce a erótica da Reforma e do Maneirismo; da segunda ação, o revestir-se, nasce a eróti- ca da Contra-Reforma e do Barroco. O mais agudo intérpre- te contemporâneo da erótica do despir foi Georges Bataille, que une de modo inseparável o desejo erótico com a pulsão para despir-se e despir, para transgredir o tabu da nudez. “A ação decisiva”, escreve, “é o desnudamento. A nudez é a ne- gação do ser fechado em si, a nudez é um estado de comuni- cação [...]. Obscenidade quer dizer desequilíbrio, que desor-

ganiza um estado dos corpos correspondente à posse de si mesmo, ao domínio do próprio eu entendido como indivi- dualidade durável e afirmada.”16 Bataille movimenta-se den-

tro de uma tradição que atribui ao desnudamento um gran- de valor espiritual; este, depois de Paulo, encontrou uma ma- nifestação importante no propósito expresso por São Jerônimo, de nudus nudum Christum sequi,*e teve um enor- me desenvolvimento na Idade Média. Com a Reforma ele é entendido em uma acepção ainda mais radical: a cruz, o su- plício, a agonia de Cristo são considerados o ponto mais alto e importante da experiência cristã. Daí deriva que a perdição, a dilaceração, o aniquilamento, o abismo, a confusão, a de- sordem, o estupor, o tremor, a vertigem, a morte se impo- nham também como modelo de experiência erótica.17

A afinidade fundamental entre a pulsão sexual e a mor- te reside para Bataille no movimento iconoclasta que as ani- ma. Ambas dissolvem a forma, destroem a imagem, violam a bela aparência, à procura de uma verdade mais essencial, de uma pureza mais radical, de um absoluto. Por isso, esse mo- vimento não se detém no nu, mas vai além — as superfícies nuas dos corpos ainda são apenas a aparência, a imagem, a máscara. A sexualidade e a morte, para Bataille, levam o mo- vimento de desnudamento a uma conseqüência extrema: ser traspassado, exposto, aberto, esfolado, ou trespassar, expor, abrir, esfolar significa perder-se em um abismo que despeda- ça a redondeza enganosa dos corpos.

O ponto de chegada dessa experiência, entretanto, não é mais o trânsito; no fundo, é muito duvidoso que ela possa ser verdadeiramente definida como erótica. O desnudamento

até as últimas conseqüências, descrito por Bataille, não volta atrás em direção à veste, mantendo-a na sua oposição ao nu; ele almeja encontrar descanso, paz, repouso, na comunhão com a totalidade do ser, na fusão ilimitada da orgia, em uma nova unidade metafísica. Falta a própria possibilidade da re- presentação, porque o iconoclasmo se dirige acima de tudo contra a imagem, contra qualquer representação do nu. O pró- prio Bataille, todavia, não se ateve a esse extremismo meta- físico: no volume As lágrimas de Eros, ele reproduz e comen- ta de maneira extraordinariamente eficaz as obras-primas da pintura erótica de todos os tempos.18 Como resolver esse pa-

radoxo?

Na realidade, o movimento de pôr a nu tem limites além dos quais perde toda a tensão erótica e cai em uma imo- bilidade metafísica. Constituem as provas mais eloqüentes dis- so aqueles quadros do século XVI, de Cranach, o Velho, de Hans Baldung Grien e dos maneiristas, aos quais Bataille dá tanto destaque na sua história do erotismo. Estes são eróti- cos não só porque tornam própria a tendência iconoclasta, mas também porque põem um limite à iconoclastia.

Observou-se que a partir do fim da Idade Média se di- funde nos países nórdicos a imagem de um novo tipo de nu feminino que apresenta características profundamente diferen- tes do nu grego: enquanto no nu clássico o ritmo dominante é dado pela curva do quadril, no nu nórdico o ritmo funda- mental é dado pela curva do ventre.19 Foi dito também que

esse nu nórdico deve ser ligado à tendência do cristianismo de recuperar o significado espiritual da feiúra, representando os corpos na sua realidade “despida”, mais do que na sua idealidade nua. Todavia, a verdadeira inovação do cristianis- mo não consiste tanto em ter revalorizado o feio e muito me-

nos em ter introduzido como modelo exemplar um nu traspas- sado, o crucificado, e sim em ter mantido a possibilidade da imagem depois de ter posto em jogo a sua possibilidade. A pintura levou muitos séculos para chegar a representar o Cris- to nu, traspassado, morto na cruz; somente com Grünewald e Holbein, praticamente na véspera da Reforma, ela ousa representar Cristo como um cadáver em putrefação.20 O fato

é que só com a Reforma o problema da imagem da morte de Cristo se apresenta como solução do problema da morte da imagem. Cristo, entretanto, pode ser representado nu, cruci- ficado, morto e putrefato, na medida em que essa imagem é só um véu sob o qual transparece a sua natureza divina, irrepresentável. Representar Cristo como um Apolo, segun- do a proposta renascentista, significa cair na idolatria, no pa- ganismo. Não representá-lo de modo algum quer dizer, po- rém, supor que a figura humana assumida por Cristo pode, através da ascese iconoclasta, identificar-se metafisicamente com aquele Deus que, ao contrário, permanece — como en- sina Lutero — essencialmente diferente; significa, em suma, aspirar a uma santidade que é por definição vedada ao ho- mem.21 Os pintores da Reforma resolvem esses problemas

atribuindo ao véu uma importância semelhante à atribuída ao nu e instaurando entre véu e nu um trânsito de enorme rele- vância erótica. O véu não é mero obstáculo à visão a olho nu, mas, justamente ao contrário, condição de toda visão possí- vel. A expressão típica da teologia luterana da cruz, Deus obsconditus, quer dizer que Deus se manifesta, se revela sob formas veladas, e tirar esses véus quer dizer impedir a possi- bilidade da própria revelação.

Para a pintura da Reforma existem dois perigos, a iconofilia e a iconoclastia, o nu clássico e o misticismo meta-

físico.22 Trata-se de criar um espaço intermediário. No inte-

rior desse espaço nascem, na primeira metade do século XVI, algumas dezenas de quadros que são as obras-primas da eró- tica ocidental do despir. As numerosas Lucrécias de Cranach, de Dürer (que Melacton considera, junto com Grünewald, os pintores da Reforma), de Baldung Grien têm um duplo sig- nificado: colhidas no ato de lacerar ao mesmo tempo o pró- prio nu e a tela, a carne e o quadro, salvam ambos da des- truição, preservam-nos como véus indispensáveis de uma ver- dade que permanece diferente e irrepresentável na sua nudez. O seu erotismo consiste em se terem despido, em não opo- rem obstáculos ao deixar-se despir, em se autocontestarem como imagens, em não oporem obstáculos à própria destrui- ção e em apresentarem ao mesmo tempo, entretanto, a pró- pria nudez como um véu que não pode ser tirado, em repre- sentarem o iconoclasmo como uma ação que não pode ser completada. A pulsão que leva ao desnudamento e à verdade deve ser assumida sem reservas porque só assim se pode des- cobrir o elo íntimo que une o nu com o véu, a verdade com a sua ocultação. No quadro Vênus e Amor, de Cranach, o Ve- lho, guardado na Galeria Borghese de Roma, a erótica do des- pir alcança seu ápice. Essa Vênus institui e acompanha com

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