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JÚLIO, MEU AMOR! (A TRAGÉDIA DOS MORTOS)

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Academic year: 2021

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TEATRO

JÚLIO, MEU AMOR!

(A TRAGÉDIA DOS MORTOS)

Antônio Roberto Gerin

(25/11/2018)

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Personagens

HELENA (Esposa)

MÁRIO (Esposo)

ATO I

MÁRIO (Está agitado, impaciente, espera por alguém. Senta no sofá, tenta relaxar, ensaia vários movimentos, toma o último gole do uísque, levanta-se e sai com o copo vazio. Depois de certa demora, volta, trazendo à mão o copo de uísque, agora cheio, que deposita sobre a mesinha, antes de sentar. Vai criando várias impaciências, até a porta da sala se abrir. Nesse jogo de espera, tem que ter decorrido tempo suficiente, para criar a atmosfera de tensão.) - Estou aqui sentado, duas horas te esperando.

HELENA Você chega do trabalho por volta de seis e meia. Não são nem sete ainda.

MÁRIO E se eu disser que eu cheguei mais cedo?

HELENA Eu passei aqui era mais ou menos seis e vinte. Você ainda não tinha chegado.

MÁRIO Você não estava aqui nesse horário. HELENA Posso ter confundido a hora.

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HELENA Se é assim que você quer, cheguei agora. MÁRIO Por que é que você está mentindo pra mim? HELENA Por que é que você quer saber aonde eu fui? MÁRIO Não posso?

HELENA Pode.

MÁRIO Ótimo. Estou esperando. HELENA Nenhum lugar interessante. MÁRIO Eu não sou idiota!

HELENA Eu fui à costureira. MÁRIO Fazer o quê?

HELENA O que é que se faz numa costureira? MÁRIO Eu quero detalhes.

HELENA Levei uma saia pra apertar. MÁRIO Está emagrecendo, é isso? HELENA Dá pra perceber?

MÁRIO Está ficando magra pra quem? HELENA Pra você.

MÁRIO Não é pra mim! HELENA Pra quem mais?

MÁRIO (Ameaçador.) - É o que eu quero saber.

HELENA (Controla-se.) - Eu decidi emagrecer.

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HELENA Pra ninguém. MÁRIO Não era pra mim...?

HELENA Se você quiser, pode ser pra você. MÁRIO Não me responde nesse tom.

HELENA Olha a merda que você foi fazer lá na empresa! MÁRIO Fui conhecer o seu amante.

HELENA Meu chefe!

MÁRIO Amante! (Acalma-se.) Ele merecia um soco na cara. Só não dei porque eu fiquei com pena do covarde.

HELENA Você invade a sala do meu chefe, obriga ele a confessar que é meu amante, e o covarde é ele?

MÁRIO O covarde não confessou. HELENA E nem vai confessar.

MÁRIO (Aproxima-se. Está visivelmente alterado.) - Mas você

vai.

HELENA Vai me obrigar? Vamos lá, começa!

MÁRIO Você é minha mulher. Já é obrigação sua dizer a verdade.

(Pausa. Altera-se.) Desde quando você é amante daquele

bosta?

HELENA De onde foi que você tirou essa maluquice? MÁRIO Não disfarça.

HELENA Eu não vou responder. MÁRIO Ele é seu amante, não é? HELENA O que é que você acha?

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MÁRIO Eu tenho certeza.

HELENA Por que é que está me perguntando então?

MÁRIO Porque eu quero ouvir da sua boca. Porque eu quero que você me diga que é amante daquele bigodinho frouxo. Pra eu te arrebentar a cara. E o resto. Tudo! Te jogo janela abaixo, pra você espatifar seu traseiro na calçada.

(Mário tenta agarrá-la, ela foge.)

HELENA Você só pode estar maluco... MÁRIO Ahh! Agora o maluco sou eu! HELENA Essa obsessão não surgiu do nada.

MÁRIO Agora eu sou obsessivo...! Só porque eu quero saber a verdade. De fato, essa ideia maluca não surgiu do nada. HELENA Veio de onde, então?

MÁRIO Segredo.

HELENA Não é a primeira vez que você me arranja um amante. MÁRIO Quem arranja os seus amantes é você!

HELENA Pena que eles nunca aparecem.

MÁRIO Esse apareceu. Que azar! O seu chefinho. Eu te conheço, Helena, não é de hoje. Eu venho seguindo os seus passos. HELENA O que foi que você descobriu?

MÁRIO Muita coisa.

HELENA Ótimo.

MÁRIO Não está curiosa?

HELENA Não.

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HELENA Faz só dois anos que você me conhece. A minha vida se resume a ir pro trabalho e voltar pra casa.

MÁRIO Você queria ir pra onde mais? HELENA Pra lugar nenhum.

MÁRIO Tem certeza?

HELENA Tenho.

MÁRIO Você não está falando a verdade.

HELENA Eu não estou aqui? Você não está me vendo? Esta sou eu. O que mais você quer saber?

MÁRIO Jamais me passou pela cabeça me casar com uma mulher que pudesse me trair.

HELENA (Assusta-se.) - Para! Você está me empurrando!

MÁRIO (Agressivo.) - Júlio! Esse é o nome do seu chefe. Júlio!

Por que é que você nunca me disse que o seu chefe se chamava Júlio?

HELENA Você está com ciúmes do meu chefe...?

MÁRIO Que porra de ciúme! Eu nunca tive ciúmes de você. Ciúme é coisa de gente fraca. Quando você tem certeza, não é ciúme.

HELENA Se você tem tanta certeza, por que ainda não me jogou pela janela?

MÁRIO Eu vou jogar.

HELENA Está esperando o quê?

MÁRIO (Pausa. Inseguro. Aproxima-se.) - Eu te amo. Você é

tudo pra mim. Esse é o problema. Eu não conheço a mulher com quem eu me casei.

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MÁRIO Do Júlio! HELENA Meu chefe!

MÁRIO E depois do expediente, ele é o quê? HELENA Depois do trabalho, eu venho pra casa. MÁRIO E durante o trabalho?

HELENA Eu trabalho.

MÁRIO Que maravilha! Então, você trabalha. HELENA Pra sustentar essa casa.

MÁRIO Está me jogando o que na cara? Só porque ajuda nas despesas, pensa que pode fazer o que quer?

(Aproxima-se.) Quanto tempo faz que isso tudo começou...?

HELENA Me recuso a responder. MÁRIO Um mês? Um ano?

HELENA Não faz dois meses que ele chegou na empresa. MÁRIO Eu não sabia que você era tão veloz.

HELENA Você não devia ter ido lá na empresa. MÁRIO Mas eu fui.

HELENA Você tem noção do que você fez? MÁRIO Por que você acha que eu fui lá? HELENA O que é que eu tenho que achar?

MÁRIO Seu chefe teve muita sorte. Eu entrei naquela sala com a intenção de matar. Matar, entende? Essa é a minha vontade.

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MÁRIO Tenho!

HELENA Não tem.

MÁRIO Eu tenho as minhas fadinhas. Elas vêm buzinar no meu ouvido que minha mulher está de caso com o seu chefe.

(Agressivo.) Com a porra do Júlio! (Acalma-se.) Aí eu me

perguntei. Meu Deus, que Júlio? Onde encontrar neste mundo um homem chamado Júlio? E eis que não quando eu telefono pro seu trabalho, querendo falar com o meu amor pra irmos jantar no Flor Americana, dançar ao som de um bolero quentinho, quando então a pessoa que me atendeu, que é a Flávia, a Flavinha, a sua amiga, em tom muito insinuativo, me disse que você estava despachando com o... Júlio! Aí eu gritei para mim mesmo. Bingo! Encontrei o Júlio! O novo chefe da minha querida Helena. O novo amante!

HELENA Você está bêbado!

MÁRIO Eu não estou bêbado! (Dá-lhe um tapa na cara. Recua.

Abalado.) Por que é que você me obriga a fazer isso...?

HELENA Você fez.

MÁRIO Mas eu não queria fazer! A culpa é sua. Você me obriga.

(Pausa.) Faz dias que eu sonho em te dar um tapa na

cara. Sim, é verdade. Cuidado, Helena! Cuidado...! Da próxima vez que você me chamar de bêbado, eu posso piorar as coisas. Você não pode brincar com os meus sentimentos dessa forma. Tão fria, tão calculada. Veja como você se comporta. Eu descubro que você tem um amante, e você não faz nada, não grita, não nega! Não se arrepende. Não me chama de mentiroso. Só me chama de maluco!

HELENA Com que cara eu vou voltar lá na empresa...? MÁRIO É com isso que você está preocupada? HELENA É meu emprego.

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MÁRIO Preocupada com o emprego ou com o amante? HELENA Aonde é que você quer chegar com isso tudo?

MÁRIO No Júlio! Eu queria chegar no Júlio. (Eufórico.) E eu cheguei!

HELENA Vai fazer o que agora? MÁRIO Você está me perguntando?

HELENA Sim.

MÁRIO Com essa frieza?

HELENA Quer o quê? Que eu grite por socorro?

MÁRIO Você nem nervosa está. Você faz isso de propósito. Pra me deixar nervoso. Sem saber o que fazer! (Ri.

Aproxima-se de Helena, que foge.) Mas eu sei o que eu

vou fazer. Quantas noites faz que eu planejo esse momento... Boa pergunta! Você quer saber o que eu vou fazer agora. E eu achando que minha mulher era uma funcionária exemplar. Pior que ela é! Agora tudo fica muito claro. Dá pra entender as mudanças. Nos últimos tempos... Depois que o Júlio chegou. Você nem conversa mais comigo. Sempre correndo de mim...

HELENA Quem disse que eu não converso.

MÁRIO Não conversa! Quase nada. Fala alguma coisa e foge. Não assiste mais à televisão comigo. Você não tem mais paciência. Você anda estranha. Você está emagrecendo. Hein? E aí? O que é que você tem pra me dizer? (Pausa.) Você precisa fazer um certo esforço pra responder, eu sei. Eu vou ter paciência... Prometi pra mim mesmo que eu ia ter muita paciência. Não se acerta uma vida de traição e desprezo com gritos. Com desespero. Se você me prometer se esforçar, me contar detalhes, porque a verdade, Helena, só existe de fato quando vem acompanhada de detalhes. Se é mentira, os detalhes vão dizer, vão mostrar a contradição, é assim que se pega o

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mentiroso...! Se você colaborar, confirmar que o Júlio é seu amante, eu até posso te contar o meu segredo.

HELENA O único Júlio que eu conheci é... MÁRIO (Interrompe.) - ... Seu chefe!

HELENA Não!

MÁRIO Tem outro? HELENA (Recua.) - Não.

MÁRIO Quer que eu te refresque a memória, porra!? Eu sei qual é o Júlio.

HELENA (Foge, assustada.) - Vamos parar com isso...!

MÁRIO Agora que nós começamos? Não. Nós vamos continuar. Faz mais de um mês que eu estava querendo começar essa conversa. E agora que nós começamos, não vamos mais parar. Vamos até o fim.

HELENA Você sabe que eu posso ser demitida? MÁRIO Sério?!

HELENA Por sua causa. MÁRIO O corno é o culpado. HELENA O Júlio é casado, sabia?

MÁRIO Sério!...? Então, tem a corna também! Isso é bom! Fica mais trágico. Ela já sabe? Já? Quem sabe nós dois, eu e ela, saímos pra jantar. No Flor Americana. Pra chorar nossas mágoas. Posso, em seguida, convidá-la pra ir ao motel... O que você acha? (Vendo que Helena está

saindo.) Vem cá? Aonde é que você pensa que vai?

HELENA Tomar banho.

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limpar das porras? HELENA Porco sujo!

MÁRIO (Segura Helena pelo braço, puxa-a e joga-a sobre o sofá.) - Você vai ficar aqui.

HELENA (Tenta se levantar.) - Por favor, vamos ser razoáveis...!

MÁRIO Está ficando com medo.

HELENA Me solta!

MÁRIO Eu sei de tudo. HELENA Sabe nada.

MÁRIO Você vai me ouvir!

HELENA Me solta, você está me machucando.

MÁRIO (Empurra Helena.) - Senta aí! (Grita.) Senta!

HELENA Você precisa se controlar...

MÁRIO Concordo! É muito sério o que está acontecendo aqui esta noite. Aliás, é muito sério o que vem acontecendo nesta casa no último mês, desde que você se tornou amante do Júlio. (Pausa. Posiciona-se.) Quem está brincando com os sentimentos dos outros é você. Quem está brincando com porrete, com bala na testa, é você! Vou te dizer o que está acontecendo. Está na hora. (Pausa.) Eu ouço você conversando com o Júlio. Júlio, meu amor...! Não é assim que você gosta de chamar o Júlio? Você sonha com o Júlio toda noite...! Eu fico ouvindo. Você faz amor com ele...! Na minha frente! Como é que você acha que eu me sinto? Isso é muito sério, Helena...!

HELENA Você está maluco.

MÁRIO Mas quem é que não fica maluco com uma coisa dessa!? Faz dias, muitos dias que eu venho te vigiando. Eu fico acordado, te vigiando. Olha pra minha cara... Olha, porra!

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HELENA Me larga!

MÁRIO Está vendo aqui? Isso é olheira. Eu não durmo. Eu fico vigiando os seus sonhos. Eu fico esperando pelo Júlio. Eu sei que a qualquer momento o Júlio vai aparecer. Depois, eu descobri que o Júlio gosta de aparecer bem de madrugada. Depois das quatro! Quando já vai amanhecer. Ele sobe na nossa cama e faz amor com você... Na minha frente! (Apressa-se.) Você acha que eu estou maluco. Pode ser mesmo que eu esteja maluco. Levanta! (Obriga

Helena a se levantar.) Às vezes eu me pergunto por que é

que me falta coragem pra te arrebentar a cara. (Toma-se

de angústia.) E eu que pensava que você era uma mulher

pura, sem histórias horripilantes, nada desses passados estranhos que as mulheres gostam de esconder... A sete chaves! Surubas, traições, drogas, não, a Helena é normal, ela é a mulher pra mim, pro meu sossego. Eu posso me casar com ela. Eu boto a mão no fogo por ela. Eu não vou ter que conviver com o passado dela. Ela não tem passado! Ela mesma me disse que o passado dela começou quando me conheceu. E eu fiquei tão feliz! Helena, eu fiquei tão feliz...! Me senti tão amado...! Você inteirinha pra mim...! Tudo vinha tão bem. Mas aí! Começaram os sonhos... Todas as noites ela recebe o Júlio em seus braços. Você abre as pernas pra ele, na minha frente! Eu vejo, eu não estou maluco! Sabe o que você diz? É uma coisa engraçada. Pra rir! (Imita, com

raiva.) Eu vou te acelerar, Júlio! Posso? Você acelera o

Júlio, não é engraçado? E você fica excitada e você acelera! E o maluco sou eu!?

HELENA Eu acelero... O Júlio?

MÁRIO É nojento! É estranho! Faz mais de um mês pra cá que eu não penso em outra coisa. Já imaginei tanta coisa, Helena... Tanta... desgraça... Por quê? É o que eu me pergunto. Por quê? (Pausa.) Tem dia que ele não vem. Eu fico esperando, mas ele não vem. Por que será? Aos domingos, o Júlio não vem. Nunca vem. Domingo não. Não é engraçado? Aos domingos, você chora. E sabe por que você chora? Por que o Júlio não vem... Você fica

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esperando e ele não vem. (Ri um sorriso doido.) Eu perguntei pra Flávia. Quanto tempo faz que o Júlio chegou na empresa? Eu perguntei pra ela. Eu sabia que não fazia dois meses. Então, é isso...! O Júlio divide a nossa cama. O seu chefe... O bigodinho frouxo... (Pausa.) Agora que você já sabe tudo, agora só falta você me confessar. Eu não jogaria você pela janela sem a sua confissão. Pensei muito sobre isso. Se eu jogar ela pela janela sem que ela me confesse, meu Deus, vai ficar um fiapinho de dúvida. Um fiapinho que pode me consumir pra vida toda! Aí eu falei. Vamos lá, vamos colher as provas, e aí fica tudo claro, sem a escuridão da dúvida... te deixando preso! Eu fiquei te vigiando esse tempo todo... Mas, não havia provas! Eu não sabia como é que o Júlio entrava nos seus sonhos... Que Júlio é esse que subia na nossa cama...?! Mas depois eu descobri...

(Pausa.) Sexta feira agora, quando eu liguei pra você pra

gente ir no Flor Americana... O Júlio estava lá, dentro da empresa. Você é esperta, Helena. Dentro da empresa. Nada de motel. Nada de nada! Basta despachar com o Júlio! Só que o Júlio vem visitar você à noite, na nossa cama. É ali que vocês fazem amor, não é? (Pausa.) Você não contava com essa... Com os seus sonhos. Agora entendo por que você mudou tanto de um tempo pra cá. Jamais eu imaginei que eu fosse dividir seu corpo com outro. Isso é mesmo pra deixar a gente maluco. Eu não estou preparado pra ser um maluco. Eu preferia te perdoar... Mas, como...? Eu me preparei tanto pra escolher a mulher da minha vida... (Helena começa a

caminhar nervosa, pela sala. Mário está desamparado.)

Caminha um pouco, faz bem. Por que você vai precisar me contar. Você tem que criar coragem. Vai ser a sua sentença de morte. Eu não posso te jogar pela janela sem antes você me confessar. (Desespera-se.) Sabe o que mais me perturba? Eu não ouço os gemidos do Júlio. Só os seus! E ele? Por que é que ele não geme? (Pausa.) Mas eu sei que ele está ali. (Grita. Insano.) Para! (Helena

para de caminhar.)

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MÁRIO Nos seus sonhos?

HELENA Sim.

MÁRIO Coisas maravilhosas. Que você não fala pra mim.

HELENA Um exemplo.

MÁRIO Você está duvidando de mim, não é? Você quer um exemplo pra testar a minha sanidade. Você não acredita em mim.

HELENA Eu só quero um exemplo.

MÁRIO Você acha que eu sou um louco. Você quer que eu seja um louco. Louco não pensa, não é isso? Não sente. Inventa que está passeando na lua. Inventa que a mulher dele tem um amante. Não precisamos acreditar nos loucos!

HELENA Quem está dizendo é você.

MÁRIO Eu sei que você não acredita em mim! HELENA Eu não me lembro de nada.

MÁRIO Aha! Eu te peguei! Eu tenho as gravações.

(Movimenta-se.) Ha! Ha! Te peguei. Posso mostrar pro juiz. Eu posso

te dar porrada e mostrar pro juiz por que é que eu te dei porrada. Por que é que eu te matei! Ele vai me dar razão. Por que juiz é sujeito honesto. Só ele, na face da terra, sabe onde está a verdade. (Aponta.) E ela está aqui, no meu celular. (Pausa.) Quer ouvir? (Pausa.) E aí? Não vai falar nada não? (Fica inseguro.) Parece que você não está com medo...? Por que é que você não está com medo? HELENA Se você tem as gravações, por que você quer a minha

confissão?

MÁRIO Porque o Júlio não fala nada! Você não deixa o Júlio falar nos seus sonhos. O juiz vai me perguntar. Cadê o Júlio? Você é esperta. Você anula o parceiro. Você anula as provas! (Aproxima-se.) Você ou ele. Um dos dois vai ter

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que confessar. Não me obrigue a voltar de novo lá na empresa. (Pausa.) Por que é que você não fala nada? Você acha que eu não sou capaz de ir lá e dar uma porrada no bigode frouxo? Ele nem vai precisar te despedir. Não se demite uma morta! (Silêncio.) Veja como eu falo sozinho... Como você não fala nada...! Porque você é covarde. Porque você adora brincar com os sentimentos dos outros. (Pega o copo de uísque e

constata que ele está vazio.)

HELENA Chega de beber.

MÁRIO (Sai e imediatamente retorna com a garrafa de uísque, cujo conteúdo está abaixo da metade.) - Tudo agora entre

nós será segredo. Quando eu te jogar pela janela, ninguém saberá que eu te joguei, porque vai ser segredo. E eu não estou bêbado. Só me preparei pra ter essa conversa com você. Não é fácil jogar a mulher pela janela sem uma bebida. Eu quero que você entenda que eu não consigo mais suportar os seus sonhos. Cheguei no meu limite! Eu preciso acabar com os seus sonhos. (Pausa.) Eu vou jogar os seus sonhos eróticos pela janela.

(Aproxima-se de Helena.) Ou você tem outra sugestão?

HELENA (Recua.) - Júlio é o nome de um carro que eu tive.

MÁRIO Carro?!

HELENA Você ouviu. Da Suzuki. Aqueles jipinhos fofinhos que a Suzuki produz, e que se chama Jimny. Eu tive um Jimny. MÁRIO O seu chefe é um Jimny?

HELENA Júlio era o meu Jimny!

MÁRIO Você abre as pernas pra um carro, é isso que você está querendo me dizer?

HELENA Eu abro as pernas pra um carro. MÁRIO Na nossa cama?

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HELENA Você tem as gravações, não tem? MÁRIO Então a maluca aqui é você. HELENA Eu acho que sim.

MÁRIO Acha ou tem certeza?! HELENA Não toca em mim!

MÁRIO (Agressivo.) - Eu não sou burro! Eu não sou idiota! Muito

menos cretino!

HELENA Eu posso provar que eu tive um Jimny chamado Júlio. Quatro anos atrás, mais ou menos.

MÁRIO E agora bateu a saudade dele. HELENA (Pausa.) - É.

MÁRIO Será que eu estou bêbado? Confesso que eu não estou bêbado. Só um pouquinho! Não pode ser. Eu estou com ciúmes de um carro! Um carro me corneia! Será que é porque nós estamos na modernidade?

HELENA Júlio era o nome do meu carro.

MÁRIO Então o seu chefinho também é corneado por um carro...? HELENA Eu quero ouvir essas gravações.

MÁRIO Pra quê?

HELENA Por que eu quero.

MÁRIO Só se você me prometer que vai confessar tudo. HELENA Quer mesmo saber de tudo?

MÁRIO Mas eu já sei de tudo. HELENA Você não sabe de nada.

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MÁRIO (Altera-se.) - Eu não preciso que você me diga!

HELENA Mas eu quero dizer.

MÁRIO Agora não adianta mais, eu já entendi tudo. HELENA (Desespera-se.) - Mas eu não!

MÁRIO Uáá! Está criando coragem...? HELENA Por favor...!

MÁRIO Não tem favor. Você não acredita em mim. Você acha que eu estou inventando, então você quer ouvir a gravação, mas você não vai ouvir, a não ser que o juiz queira ouvir, pra eu mostrar pra ele que meus atos, mesmo que algumas pessoas possam achar que não foram corretos, mas eles são verdadeiros! Por que tem o desespero, entendeu? Quando um homem está desesperado, ele pode fazer qualquer coisa. É álibi! Pra lei, o desespero é álibi, sabia? Se eu tenho um álibi, eu posso fazer o que eu quiser. Então, você não vai ouvir o Júlio. O Júlio, neste momento, é meu. E meu será, até ele morrer. Um homem não pode ser corneado por um carro.

(Pega o copo de uísque e bebe de uma vez.) Um brinde

ao Júlio!

HELENA Mas você é, sim, corneado por um carro!

MÁRIO Um carro chamado Júlio! Um Júlio chamado chefe! HELENA Cala essa boca e me ouve!

MÁRIO (Empurra Helena.) - Você está me mandando calar a

boca! Ficou maluca? Eu nunca que vou calar a boca. Eu só estou falando pra não ter que te bater, e você quer que eu cale a boca! Então, eu vou me calar. E vou contar até vinte e vou te matar. Por que o Júlio me disse uma coisa. Não é o chefe. É o Júlio dos sonhos. Ele diz. A Helena é muito cuidadosa! Você sabe o que ele quer dizer com isso? (Descontrola-se.) Está aqui, na gravação! Nos seus sonhos! O Júlio fala pela sua boca. Você é muito

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cuidadosa, é? O que é que ele quer dizer com isso? Está aqui. O Júlio fala pela sua boca! Ele é um covarde! Ele não tem boca! Quer ouvir as gravações? Vai lá pedir pro juiz.

HELENA Eu preciso ouvir. Não é por você, é por mim! MÁRIO Você que se foda!

HELENA (Vai para cima do Mário, querendo pegar o celular.) -

Me dá aqui essa merda! Eu não vou apagar.

MÁRIO Nem precisa. Está tudo dominado. Eu sou o dono da verdade. Só eu tenho as provas. Eu sou o centro. Por que as provas estão comigo, então eu domino tudo! Eu posso fazer o que eu quiser. Então você não vai ouvir nada. Se você apagar isso aqui, eu não vou poder te matar.

HELENA Você sabe que carro é esse? Um Jimny! Que eu usava pra viajar com o meu filho. Sim, Mário. Você não sabe, mas eu tive um filho. E eu matei o meu filho. O Júlio matou o meu filho!

MÁRIO Você está me dizendo que... que você teve um filho? HELENA Ele tinha oito anos.

MÁRIO Você então é mulher parida...?! HELENA Vai se foder!

MÁRIO Eu me casei com uma mulher parida, é isso? Sem saber! HELENA Eu posso falar.

MÁRIO Você já está falando, porra! (Mário entorna o uísque no

copo.)

HELENA O que é que você está fazendo? Mais bebida!

MÁRIO Eu estou enchendo o copo de xixi amarelo, não posso? HELENA Júlio é um nome afetivo. Que eu dei pro meu carro. Todo

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mundo que tem Jimny tem esse ritual afetivo. Há grupos que se reúnem por causa dos jipes. Você sabe muito bem disso. Eu participava de um deles. Eu andava com meu filho. Fazíamos trilhas. Trilhas!

MÁRIO (Bebe.) - Você então teve marido...

HELENA Nós fazíamos trilhas nos finais de semana. Pelo menos uma vez por mês. Nós nos sentíamos livres no meio do mato! Meu filho adorava. Nós ríamos muito.

MÁRIO (Grita.) - Você teve marido?

HELENA Eu também sou capaz de te arrebentar a cara. MÁRIO Está me ameaçando?

HELENA Eu não tenho mais nada a perder.

MÁRIO Nem eu.

HELENA Então me ouve. Pelo menos me ouve! MÁRIO Fala, vagabunda! (Brinda e bebe.)

HELENA (Pausa.) - Era um domingo à tarde... Tínhamos passado o

final de semana fazendo trilhas. Saímos de Alto Paraíso... MÁRIO Onde é que fica isso?

HELENA Perto de Brasília.

MÁRIO Você morou em Brasília?

HELENA Nós contornamos por Formosa, beirando o Rio Preto, até Palmital de Minas...

MÁRIO Responde!

HELENA Morei.

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HELENA Estou dizendo agora.

MÁRIO Você nunca me disse que tinha um filho. HELENA Ele está morto!

MÁRIO Você tinha que ter-me contado!

HELENA Será que você pode me ouvir? Ele morreu naquele domingo!

MÁRIO (Silêncio.) - Agora eu não quero mais ouvir. Mais nada.

Tudo isso aí agora é tudo mentira. A gente não pode ficar ouvindo mentiras...

HELENA Pra você é. Pra mim, não! E você tem que me ouvir! Pelo menos uma vez na vida. Só agora é que eu estou conseguindo falar.

MÁRIO Tinha que ter falado antes, quando me conheceu.

HELENA Mas eu não disse! Tudo bem, eu não disse. Mas agora eu estou dizendo. Eu matei o meu filho. Você acha que isso é coisa pra sair dizendo por aí?

MÁRIO Eu não sou qualquer um.

HELENA Você nunca me perguntou nada.

MÁRIO A gente só pergunta uma coisa quando quer saber a verdade.

HELENA Você tem medo de perguntar justamente porque você tem medo da verdade.

MÁRIO O Júlio é seu amante?

HELENA Para! Para, pelo amor de Deus!

MÁRIO Está vendo? Eu não tenho medo da verdade.

HELENA Você está me deixando maluca. Você me sufoca. Com esses seus ciúmes idiotas. Por que é que eu tenho que te

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dizer tudo? Nós estávamos chegando à Brasília. Era a última decida, uma descida longa pra chegar lá embaixo, no trevo que entra pra São Sebastião. Perto de Brasília. MÁRIO Você nunca me contou que tinha morado em Brasília. HELENA Mais vinte minutos e estaríamos em casa. Eu tinha

deixado o Ricardo viajar no banco da frente. Ele sempre viajava, em estradas de terra, ele já ia fazer nove anos. Eu vinha a cem por hora, mais ou menos a cem por hora. Descendo. Foi quando algo no carro estourou. Fez um barulho imenso. Um baque! Um estouro. Pensei que tinha sido o pneu. Foi a primeira coisa que eu pensei. Mas como estourar o pneu se era tudo novo? O carro era novo. Pouco mais de um ano que eu tinha comprado. Eu tentei controlar o carro, mas eu não consegui. Ficou tudo solto. Eu freei, mas o carro não parava. (Pausa.) Eu só consigo ouvir o grito do meu filho. O carro saiu rolando até bater contra o morro. E continuou rolando mais um pouco. Não vinha ninguém na contramão, subindo. O Ricardo desprendeu o cinto. Ele queria sair do carro, a reação dele foi desprender o cinto e abrir a porta. Ele queria fugir daquilo tudo, ele queria sair do carro. Por que é que ele foi fazer isso? Por que é que ele não ficou quieto?

(Silêncio.)

MÁRIO Não se sonha fazendo amor com um carro. HELENA Porra, não é o carro!

MÁRIO Não é o carro. Lógico que não é carro!

HELENA Pode fazer o que você quiser comigo. Nada mais me interessa. Está tudo perdido. Acabado. O Ricardo foi embora. Pra sempre. As pessoas sempre vão embora, não é assim? Elas morrem. E quando elas morrem, que importância tem a vida? Eu sei que a culpa não é minha.

(Pausa.) A culpa é da Suzuki. Ela não pode ser minha.

Eu sei que aquele parafuso da suspensão traseira não devia ter-se soltado. Nunca! Mas ele soltou. Eu não tenho culpa se o parafuso soltou! Você acha que eu tenho culpa? Você acha que eu devia ter dominado o carro?

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MÁRIO Você estava dirigindo.

HELENA O que é que você quer dizer com isso? Você acha que eu devia ter salvo o meu filho? E o parafuso?!

MÁRIO O Júlio que eu tenho nas gravações não é um carro. HELENA Como você acha que eu estou me sentindo?

MÁRIO É o seu chefe? HELENA Para de beber!

MÁRIO Vai tomar na porra, eu bebo quando eu quiser! Se você abre as pernas pra um carro, a doida aqui é você!

HELENA Eu sou doida.

MÁRIO Não é! Você não transa com um carro. Então você não é doida! Eu não quero jogar uma doida pela janela!

(Pausa.) Será que não dá pra você perceber que está tudo

errado? Que você teve um filho e não me contou? Que você morou em Brasília e não me contou?

HELENA Eu nasci em Brasília.

MÁRIO Você quer mesmo que eu acredite que você tem esses sonhos doidos com um carro? Que fode toda a noite com a merda desse jipe?

HELENA Idiota!

MÁRIO Maluca! (Empurra, tenta agredi-la.) Eu me casei com quem? Com uma maluca. Que mente. Cadê o seu marido? Ou também não teve marido? Deu pra qualquer um? Hein? Responde! Por que é que você me escondeu a verdade? Você sabe tudo sobre mim. Eu te contei tudo de mim. Nunca escondi nada. (Grita.) Não se faz isso com um homem!

HELENA Você está me machucando.

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marido. Como é que ele era? (Pausa.) Responde! HELENA O que isso importa?

MÁRIO Teve ou não teve?

HELENA Não!

MÁRIO Quem te embuchou, então? HELENA O Júlio!

MÁRIO (Pausa.) - Que Júlio...? Esse seu chefe?

HELENA Não.

MÁRIO Não minta pra mim.

HELENA Eu conheci meu chefe só agora. MÁRIO Ele se chama Júlio.

HELENA E daí?

MÁRIO Não fala assim comigo... HELENA Não é o Júlio. Esse Júlio. MÁRIO É outro Júlio!?

HELENA É.

MÁRIO Ele também era casado? HELENA Não. Lógico que não.

MÁRIO Por que lógico que não? Ele não podia ser casado? HELENA Era meu amigo de infância.

MÁRIO Então é isso...! Você deu pro seu amigo de infância. (Tom

de desespero.) Ele te amava?!

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MÁRIO E você?

HELENA Também.

MÁRIO Sim ou não?

HELENA Sim!

MÁRIO Responde direito.

HELENA Ele foi meu único namorado. MÁRIO Você amava muito ou pouco.

HELENA Muito

MÁRIO E ele? Te amava muito? Muito, porra! HELENA Nós nos amávamos.

MÁRIO E ele?

HELENA Eu já respondi.

MÁRIO Responde de novo! Eu quero ouvir! HELENA Ele me amava. Muito.

MÁRIO Tem certeza? (Pausa.) Responde!

HELENA Tenho!

MÁRIO Então, por que é que não responde? HELENA Eu respondi.

MÁRIO Como é que vocês se conheceram? HELENA Nós éramos vizinhos.

MÁRIO Em Brasília?

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MÁRIO Vocês moravam onde? HELENA Em Brasília.

MÁRIO Eu sei que é em Brasília, porra! Mas em que lugar? HELENA Por que é que você quer saber isso tudo?

MÁRIO Por que eu quero. Por que ele te comeu. Por que eu tenho esse direito. Eu sou o seu marido e ele te comeu! Ele te amava. Você amava! Onde é que vocês moravam? Eu quero o lugar.

HELENA Na trezentos e onze sul. MÁRIO O que é isso?

HELENA Um bairro de Brasília. MÁRIO Quantos anos ele tinha? HELENA A minha idade.

MÁRIO Quantos anos ele tinha quando ele te deu o primeiro beijo?

HELENA Não sei. MÁRIO Sabe sim. HELENA Não me lembro.

MÁRIO Eu sei que você se lembra. HELENA Talvez doze anos.

MÁRIO Doze?!

HELENA Ou treze. MÁRIO Doze ou treze? HELENA Tanto faz!

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MÁRIO Ele que te deu o beijo? Ou foi você que beijou. HELENA Não me lembro.

MÁRIO Você não quer me contar.

HELENA Doze!

MÁRIO Você que beijou ele, não foi? Eu estou perguntando, porra!

HELENA Por que é que você está querendo saber?

MÁRIO Por que ele vem toda noite te comer. Na nossa cama. Na minha frente. Quem beijou?

HELENA Eu.

MÁRIO Você tomou a iniciativa. HELENA Ele era muito tímido.

MÁRIO Fazia o tipo tímido e sensível. HELENA Éramos muito jovens...

MÁRIO Aí os dois estudavam na mesma escola. Na mesma sala. Iam juntinhos caminhando pra escola... Estou certo? HELENA (Pausa.) - Sim.

MÁRIO Meu Deus, quanta mentira...! E você não me contou nada...

HELENA Eu só não contei.

MÁRIO Quem não conta, mente! Quanto tempo vocês levavam caminhando até a escola?

HELENA Sei lá!

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HELENA O colégio ficava na novecentos e doze. Não sei. Meia hora.

MÁRIO O que vocês faziam no caminho. HELENA A gente conversava.

MÁRIO Só?

HELENA Ríamos.

MÁRIO De quê?

HELENA De qualquer coisa.

MÁRIO Você está mentindo pra mim. HELENA Tudo era motivo de risada. MÁRIO Você me disse que ele era tímido. HELENA Comigo ele se soltava.

MÁRIO E os beijos?

HELENA Normal.

MÁRIO Não era normal!

HELENA O que é que você quer que eu responda? MÁRIO Vocês se amavam!

HELENA E daí?

MÁRIO Não podia ser um beijo normal!

HELENA Um beijo é um beijo. O que mais você quer saber?

MÁRIO Eu quero saber se é esse o Júlio que frequenta a nossa cama. Como é que ele beijava?

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MÁRIO Eu não sou nada disso, não é? HELENA Você só é diferente.

MÁRIO Mas não igual a ele. HELENA Nem pode ser.

MÁRIO Você me acha um estúpido? HELENA Não, lógico que não.

MÁRIO Você está mentindo!

HELENA Você é diferente, e é isso que importa. MÁRIO Por que é que você não sonha comigo? HELENA Quem garante que eu não sonho? MÁRIO Nunca ouvi.

HELENA Deve ser por causa do carro. Da tragédia! MÁRIO Então, se eu me matar, você vai sonhar comigo? HELENA Pode ser.

MÁRIO Pode ser não é resposta! (Pausa.) Vai ou não vai?

HELENA Vou!

MÁRIO (Silêncio.) - Você não vai. Com o outro você vai sonhar,

comigo não. Eu sei. (Pausa.) Quando foi que vocês fizeram amor? (Agressivo.) Quando, porra!

HELENA (Pausa.) - Um dia. Quando os meus pais viajaram.

MÁRIO Vocês tinham quantos anos? Doze aninhos?

HELENA Quinze.

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HELENA Sim.

MÁRIO Não falaram nada.

HELENA Eles viajaram de propósito, pra deixar o apartamento livre pra gente.

MÁRIO Sério?!

HELENA Sério.

MÁRIO Mas que pais bonzinhos são esses...! HELENA Pra você ver.

MÁRIO E os pais dele?

HELENA Eram muito amigos, os meus pais e os dele. MÁRIO Então eles combinaram tudo.

HELENA Parece que tudo era feito de comum acordo.

MÁRIO Tudo muito combinado. Pra que nada desse errado. Só faltou a família ficar ali ao lado da cama. Isso é tudo muito nojento! Perverso! (Pausa.) Como é que foi?

HELENA Normal.

MÁRIO Porra! Pra você tudo é normal!

HELENA (Pausa.) - Nós nos amávamos. Nos conhecíamos desde

criança. Tudo era muito sintonizado. Havia um nervosismo... Afinal, foi um momento muito esperado. Mas o Júlio era cuidadoso. Romântico. Tudo fluía naturalmente. Às vezes, eu achava até um saco. Essa coisa de ser tudo muito certinho. Você entende? Tudo muito planejado. Sem dor. Sem sofrimentos.

MÁRIO Ninguém gosta de sofrer.

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MÁRIO Você não sabe do que está falando.

HELENA A vida tem que ter sofrimento, sim! Tem que ter angústia! Pra você se sentir vivo!

MÁRIO Você tinha angústia?

HELENA Às vezes.

MÁRIO Muita?

HELENA Acho que sim.

MÁRIO Você não gostava daquilo. HELENA Daquilo o quê?

MÁRIO Do que os seus pais faziam.

HELENA Não é que eu não gostasse. Mas eu me sentia como se eu não fosse eu mesma. Não sei... Sabe quando você se olha no espelho e vê uma outra pessoa? Eu amava o Júlio, éramos uma alma só. Ele era uma pessoa vibrante... Imagina que você tem uma luz forte, luminosa, mas que você não pode acender quando você quer? Quando você pensa em acender, vem logo alguém correndo e acende pra você? Tudo muito cômodo. Eu gostava, mas era tudo muito cômodo. Éramos vizinhos de apartamento, dividíamos a mesma entrada, as duas famílias, o mesmo elevador... Você sabe o que é isso? Um mundo encantado. Encantado demais pra mim! (Silêncio.) Depois terminamos o ensino fundamental. Nós dois conseguimos passar direto pra universidade. O Júlio passou pro curso de Direito, ele tinha jeito pra advogado, era muito persuasivo, apesar de falar pouco, ele dominava a escrita. Ele convencia. Era brilhante.

MÁRIO Você não era.

HELENA (Pausa.) - Insistiram pra que eu fizesse Direito também.

Íamos poder trabalhar juntos. Eu não queria. Eu gostava de política, de ciência política, me interessava o que

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acontecia pelo Brasil afora. Era excitante pra mim prever a lógica dos fatos. As tramoias políticas sempre me encantaram. Mas os fatos, eles são sempre imprevisíveis. Essa é a merda! E eu descobri isso tarde demais. (Pausa.) Me inscrevi pra Direito, achava que no fundo seria legal, eu confiava no Júlio, sei que íamos poder fazer muita coisa juntos. (Pausa.) E... Bem. É isso aí.

MÁRIO Vocês ainda se veem? Por que é que ainda não estão juntos.

HELENA A gente não se vê mais.

MÁRIO Olha pra mim! Você está mentindo. HELENA Ele está morto!

MÁRIO Mais uma morte. É pra me comover? HELENA Está duvidando?

MÁRIO Como é que foi? Quando? HELENA Nada disso interessa agora.

MÁRIO Você está mentindo. Você não está sonhando com um morto! Pensa que eu sou idiota?!

HELENA (Silêncio.) - Como prêmio por termos passado pra

Universidade de Brasília, a UNB, a principal universidade de Brasília, muito concorrida, nos deram uma viagem pra Sergipe, pra passarmos uma semana na praia. Nunca tínhamos viajado, assim, só nos dois. Fizemos a viagem em outubro do ano seguinte, que foi quando completaríamos dezoito anos. Ele, em agosto, depois eu, em outubro. Cinco de outubro. Meu pai é de Sergipe, Aracaju. Ele fez questão que conhecêssemos as praias de lá. Eu já tinha ido uma vez à Aracaju. Eu era muito pequena. Na viagem, eu e o Júlio combinamos uma coisa. Ia ser um segredo. Eu iria engravidar. Era loucura! Nós queríamos, o Júlio queria.

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MÁRIO Você ou o Júlio?

HELENA Nós. Sim... Nós. Eu também queria. Eu juro que eu queria! Era um pouco cedo. Tínhamos que fazer a faculdade. Era loucura! Mas pensamos. Os avós cuidam. Não ia alterar muita coisa. Gente pra cuidar não ia faltar. Íamos poder continuar nossa vida normal. Sair, os amigos, os bares. Enfim. Escolhemos até o nome. Ricardo. Era o nome do meu pai. Ou Júlio? O pai do Júlio também se chamava Júlio. Seria muito Júlio na família... (Ri. Pausa.) Ia ser uma alegria pra todo mundo.

(Silêncio.)

MÁRIO Por quê? Não foi?

HELENA No terceiro dia, nós descobrimos que tinha ali perto uma praia de nudismo. Fiquei doida pra ir, era uma coisa diferente, ousada, podia ser uma aventura pra gente. O Júlio não quis. Ele não achava certo. Eu insisti, mas ele recusava. Ficava inseguro. Tudo bem. Era só um desejo. Decidimos não ir. Mas um dia antes de irmos embora, eu disse pra ele que eu queria ir praquela praia. Ele não gostou, mas eu insisti. Se você não quiser ir, tudo bem, mas eu vou! Ele não falou nada. Ficou quieto. Sentado. Peguei o ônibus e fui sozinha. Tirei a roupa e tomei sol. Até começar a chover. (Pausa.) O Júlio nunca mais foi o mesmo.

MÁRIO Você disse até começar a chover.

HELENA É.

MÁRIO O que é que você fez?

HELENA Fui pra uma tenda. Um tipo de abrigo, pequeno, com folhas de coqueiro. Abandonada. A chuva era muito forte. Tinha muito vento. Fiquei com medo. Me senti sozinha. Profundamente sozinha.

MÁRIO Pelada, sozinha, no meio da chuva!

(33)

MÁRIO Merda! Imagina se não ia aparecer! Não precisa falar mais nada. (Coloca as mãos nos ouvidos.) Não quero ouvir! (Tira as mãos.) Eu já sei o que vai acontecer. HELENA A chuva parou logo, eu fui embora.

MÁRIO Não foi isso. HELENA Por que não? MÁRIO Por que é mentira!

HELENA (Angustia-se.) - O que é que eu podia fazer?

MÁRIO (Agressivo.) - Além de abrir as pernas pra ele?

HELENA (Muito angustiada, caminha. Para.) - Eu nunca tinha tido

uma sensação de liberdade tão grande. Juro! Era como se eu nunca tivesse existido até aquele momento. Você entende?

MÁRIO Não. Não entendo. E não quero entender! HELENA Eu senti uma profunda sensação de liberdade. MÁRIO Isso não é liberdade.

HELENA Sexo é liberdade! MÁRIO Traição é liberdade? HELENA Pense o que você quiser.

MÁRIO Meu Deus! O pobre coitado do Júlio...!

HELENA (Pausa.) - Eu voltei pro hotel, já estava escurecendo. Foi

horrível. Horrível! (Começa a chorar.) Ele continuava ali, sentado. No mesmo lugar. Não dizia nada. Eu estava confusa. Extremamente confusa. Eu não sentia o chão onde eu pisava. Como se eu não estivesse mais ali. O meu ser, o que eu era de verdade, eu tinha deixado naquela praia. Sentir isso foi terrível. Eu queria morrer.

(34)

MÁRIO Como é que foi com esse cara?

HELENA Foi.

MÁRIO Eu quero saber!

HELENA Quem tinha que ter-me feito essa pergunta era o Júlio, e ele não fez.

MÁRIO Você deu pro cara a tarde toda e não tem nada pra dizer? HELENA É só isso que você quer saber?

MÁRIO E você acha pouco?

HELENA Há coisas que não se dizem. Que não se precisa saber. Por que elas não vão mudar nada. Não foram combinadas. Nada foi combinado. Então, não tem o que saber. A gente tem que passar a vida atentos, sabia? Vigiando! Pra que nada saia do lugar. Pra que nada aconteça. Por que nada pode acontecer. Pra você não ter que viver. (Pausa.) É muito mais fácil não acontecer nada. Pra não ter que viver, porra! A pior coisa é ter que viver! E eu não quero viver!

MÁRIO Está querendo se matar? HELENA Tem outro caminho?

MÁRIO A janela está ali. O que é que você está esperando? Você me faria um favor. Quer que eu te ajude? Quem, afinal, é você?

HELENA Isso aqui que você está vendo. MÁRIO Uma máscara?

HELENA Uma merda!

MÁRIO Está se fazendo de coitadinha pra quê?

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MÁRIO Então, eu me casei com quem? HELENA Não sei.

MÁRIO Como não sabe?

HELENA Por que é que eu tenho que saber? MÁRIO O que é que você está me escondendo?

HELENA Por que essa mania de achar que eu estou te escondendo alguma coisa. Eu não preciso entregar pra você tudo o que eu sou, muito menos o que eu fui.

MÁRIO Vai me entregar o quê? HELENA O que eu sinto por você. MÁRIO Sente?!

HELENA Eu sinto.

MÁRIO Sonhando com outro? HELENA Não é sonho, é pesadelo! MÁRIO Na nossa cama?

HELENA Eu vivo com você.

MÁRIO Uma estranha, é isso que você é. Eu vivo com uma estranha!

HELENA Eu não escondo nada. Nada! Nada! Eu só não digo. MÁRIO E não é a mesma coisa?

HELENA Lógico que não.

MÁRIO Você não fez outra coisa senão me enganar esse tempo todo. Eu bem que desconfiava. Uma mulher interessante, bonita, como assim, nunca aconteceu nada de interessante na vida dela, nunca se apaixonou...

(36)

HELENA Alguma vez você me perguntou seu eu tinha filho? MÁRIO Não vi filho nenhum! Você nunca me falou de filho. HELENA Você não me perguntou.

MÁRIO Por que é que eu tinha que perguntar? HELENA E por que é que eu tinha que dizer? MÁRIO E se eu perguntasse?

HELENA Eu responderia. MÁRIO Tem certeza?

HELENA Dizer a verdade tem o seu preço. Eu aprendi. MÁRIO Então é melhor mentir.

HELENA Eu não menti. MÁRIO Pra quem? HELENA Pro Júlio. MÁRIO Sobre a praia?

HELENA (Pausa.) - Eu contei tudo o que tinha acontecido. Tudo.

Que eu deixaria ele decidir. Que pra mim nada tinha mudado. Mas eu sabia que tinha mudado. E ele também sabia. Aquela noite ele passou mal. (Pausa.) Vomitava. E chorava. O que é que eu podia fazer? Nada! Eu não podia fazer nada. Eu não podia estancar aquele vômito!

(Pausa.) Tudo havia se perdido. Tudo, tudo, tudo! Não

existia mais o encantamento. Tínhamos dado um passo à frente, só não sabíamos em que direção. (Pausa.) Duas semanas depois, ele se jogou do alto do Shopping. Morreu lá embaixo, estatelado no chão. Sem ter dito uma palavra.

(37)

HELENA Tudo acabou ali, naquele chão ensanguentado. Não restou sequer uma fotografia.

MÁRIO Só falta você.

HELENA (Em tom triste.) - Cabe a você, meu homem corajoso,

finalizar a tragédia.

MÁRIO Você nasceu em Brasília. Não foi? Eu não sabia. Você teve um filho. Eu não sabia! Você matou o seu namorado...

HELENA Eu não matei!

MÁRIO (Agarra Helena. Grita.) - E eu não sabia!

HELENA Me solta!

MÁRIO O que é que eu faço com você? HELENA Me atira pela janela!

MÁRIO (Empurrando Helena em direção à janela.) - O seu

namorado se chamava Júlio. (Grita.) E eu não sabia! O seu carro se chamava Júlio. (Grita. Pendendo Helena no

batente da janela.) E eu não sabia! Você matou o seu

filho... E eu... HELENA Foi o carro!

MÁRIO Não foi o carro. Não foi o maldito parafuso. (Grita.) Seu filho não estava usando o cinto de segurança, não é essa a verdade? (Pressiona Helena contra a janela.) O que mais que eu não sei? Vamos! Chegou a hora de você me falar tudo. (Pausa.) Eu posso te matar. Você não serve pra mais nada. Você não serve pra mais ninguém. Você é uma fumaça negra. (Grita.) Podre! Você nunca que podia ter-me enganado desse jeito!

HELENA Você está me estrangulando!

MÁRIO Eu quero que você sinta o peso das minhas mãos. (Por

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recua. O que dá tempo para Helena fugir.) Você que está

me obrigando a te matar. (Está visivelmente bêbado.) Acho que agora chegamos ao fim. O último amante!

(Gargalha, nervoso.) Você vai me contar. Eu juro. Eu

não vou te matar enquanto você não me contar. Eu sou daquelas pessoas que precisa saber de tudo. Só assim eu vou me acalmar. E pode ser que quando eu me acalmar, eu nem mais tenha tanta necessidade de te matar. Mas enquanto eu não souber de nada, essa vontade de te estrangular vai ficar aqui dentro de mim, gritando. Lembra que quando eu te conheci, eu me apaixonei por você? Parece que eu tinha sofrido um curto-circuito. Pum! Fiquei bobo. Ria à toa pelas ruas. Lembra? A primeira coisa que eu quis saber foi se você tinha tido algum namorado. Eu não precisava ser o primeiro. Eu só não queria ser mais um, entendeu? O décimo. E nesse momento eu me sinto o décimo! O que é que eu faço com esse buraco negro? Um buraco negro aqui dentro, como se não fizesse sentido pra mim. Esse buraco me deixa doido! Ele é insuportável! O que me resta é jogar você dentro desse buraco... Pra ver se eu acabo com ele!

(Grita.) Está me ouvindo? (Bebe. Helena recua.) Cala

essa boca, não fala nada! Chega de mentiras! (Pausa.

Aproxima-se de Helena, que se encolhe para se proteger.) Quem é o Júlio?! O décimo quinto? Então

vamos falar do décimo quinto. (Afasta-se, com o copo.) Fica aí! Se você se mexer, eu te mato! (Pega a garrafa de

uísque, praticamente vazia, e entorna o líquido no copo. Derrama parte da bebida. Limpa-se.) Você sabia que eu

tenho todos os seus sonhos gravados? Ééé! Eu sou esperto. Todos! Toda noite. Depois das quatro. Eu não te contei. (Ri, nervoso.) Eu estou de férias. Eu finjo que eu vou trabalhar todo dia. Visto o terno, a gravata, mas eu não vou trabalhar. Faz duas semanas que eu montei um quartel general em frente ao seu trabalho. Eu menti pra você. Não foi na sexta-feira que eu liguei pra Flávia e descobri que seu chefe se chamava Júlio. Faz duas semanas. Duas! O Júlio dos sonhos! O Júlio, meu amor! Duas semanas que eu estou te vigiando. No meu quartel general. Do outro lado da rua. Você e o Júlio, hein? Vocês são espertos. Como é que vocês transam? Vocês

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nunca saem pela porta da empresa. Pelo menos você, não! Onde é que vocês transam? Não é no motel. Não é na casa dele. No banheiro da empresa? Não! Pra casa dele vocês não podem ir. Ele é casado. Eu sei que ele é casado. Depois do seu enterro, eu vou convidar a mulher do Júlio pra jantar. Quem sabe, né? (Sinais visíveis de

que está bêbado.) Não... Não sei... Se ela topar uma

vingancinha... Não sei não...

HELENA Você quer que eu te sirva mais bebida?

MÁRIO Fica aí sentada! Eu estou bêbado, mas eu consigo te matar! (Pausa.) Dava seis horas, eu te seguia até aqui, em casa. Você chega às seis e vinte. Você trabalha aqui perto. Eu chego mais tarde. Mas hoje eu não te segui. Você foi à costureira. Eu não te segui. (Grita.) Que porra de costureira é essa? (Pausa.) Como é que ele te come? No banheiro? Helena... Eu pensei que ele fosse um cara alto, forte, um touro... Mas ele é tão frágil, dá vontade de pegar ele no colo, sabia? Me deu vontade. Pegar ele no colo e esmurrar a cabecinha dele, até ela ficar grande. Uma bola! (Pausa.) A única coisa imponente nele é aquele bigodinho... Aquele bigodinho dá medo, sabia?

(Pausa. Grita.) Eu perdi a paciência! De ficar no meu

quartel general esperando vocês saírem! Eu queria que vocês fossem pro motel. Era isso que eu imaginava pra mim. Matar vocês dois na cama do motel! Mas vocês não saíam...! Eu tive que entrar.

HELENA Por que é que você não para de falar? E me joga logo pela janela? São vinte e um andares. Eu vou levar um bom tempo pra chegar lá embaixo.

MÁRIO Por que é que eu não dei um murro naquele covarde...? Será que é porque ele me olhava com aqueles olhos de cachorrinho assustado? Você quer que eu te jogue pela janela, não quer? Eu preciso de um motivo pra te matar. Olha as minhas mãos. Por que é que elas estão tremendo? Eu estou com medo delas... (Caminha em direção de

Helena.) Eu sei que você me trai com o seu chefe. (Pega Helena pelo pescoço e tenta esganá-la. Helena se debate.) Eu só preciso que você me diga. (Empurra

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Helena, que cai e se sente mal. Parece asfixiada. Debate-se no chão. Assusta-Debate-se.) Eu não fiz nada...! Eu só apertei

o seu pescoço. Você está fazendo teatro...! Para com isso, Helena! (Observa de perto. Está nervoso.) Vai, respirando fundo...! Isso...! (Afasta-se.) É só uma manchinha roxa na garganta. (Helena continua estirada

no chão, imóvel. Mário se aproxima e empurra-a com o pé.) Helena! (Pausa.) Está bem. Pode ficar aí deitada...

Eu não consigo carregar você até a janela... (Senta-se.) HELENA (Silêncio.) - Eu via você sentado na farmácia. Eu sabia

que você estava lá me vigiando. Você parecia tão indefeso... Eu sentia tanta pena de você...! Eu dizia pra mim. Oh, meu amor, porque é que eu te faço tão infeliz...? Sabe. Me vinha um desespero no peito... Uma falta de sentido, como se aquela visão fosse um delírio. Você era uma criança...

MÁRIO (Pausa.) - Como é que você sabia que era eu? Eu estava

disfarçado.

HELENA Eu conheço os seus gestos. MÁRIO Você sabia por que eu estava lá?

HELENA Sabia.

MÁRIO Então você sabia!

HELENA Sabia.

MÁRIO (Decidido.) - Levanta.

HELENA Eu não consigo.

MÁRIO Consegue. (Aproxima-se, pega um dos braços de Helena

e com gesto firme e grosseiro, obriga-a a se levantar.)

Por que é você não atravessou a rua?

HELENA Pra quê?

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HELENA Não precisava. MÁRIO Então eu estou certo.

HELENA Está.

MÁRIO Como?

HELENA Como o quê?

MÁRIO Como é que vocês faziam?

HELENA Você não precisa saber. (Vai-se afastando em direção à

janela.) Pra quê? Pra você se jogar lá embaixo? É melhor

não saber o que eu faço, Mário...

MÁRIO Espera! Eu não estou fazendo nada. Eu estou aqui parado. Não precisa ficar assustada. Eu só quero ouvir você. HELENA (Grita.) - Fica aí parado! Você não vai me matar. Eu não

quero que você me mate. Não você!

MÁRIO Pelo menos me conta. Como é que é isso tudo. Tudo! Eu não sei! Tudo, entendeu!?

HELENA Se eu te contar, que graça vai ter? Você não vai mais se lembrar de mim. Vai me odiar. A última coisa que eu quero é que você me odeie... Se você não sabe nada a meu respeito, eu ainda terei uma chance. Eu preciso do seu carinho... Eu preciso da sua memória... Eu só quis estar com você esse tempo todo, mesmo sem te amar. Quando eu descobri que você queria uma mulher sem história, eu me candidatei. Eu entendo você. Você queria ter um começo, e eu queria ser um começo pra você... Ah! Mas não é isso que eu quero dizer. Você é o oposto do Júlio, mas é tão parecido com ele, tão frágil...! Como o Júlio, você tem uma bondade tão rara, uma disposição pra amar... (Ri.) Parecem duas crianças... Só que você é uma criança birrenta! (Altera-se.) Ah, vocês me deixam assustada! Isso não é justo...! Me fazem sentir tão inferior, tão vazia...! Por que eu sou um ser inferior, sem nenhuma espiritualidade. Manter um homem como você

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é tão difícil...! O seu ciúme é tão ingênuo, tão desprotegido! Você e o Júlio não tinham o direito de me deixar presa... Tudo é uma ilusão... Você me entende? Eu me uni a homens com os quais eu não dei conta de ser eu mesma. O sexo é liberdade, sim. Mas é tão difícil ser livre...! Tão difícil, que a morte é preferível...! Pensei muito sobre isso. O sexo é energia, ele explode dentro de você, e você não pode fazer nada! O divino não precisa dessa explosão. Você e o Júlio são divindades, vivem num mundo do qual eu não faço parte. (Pausa.) Fica aí! Deixa eu falar! Você jamais me jogaria por essa janela. Muito mais fácil você se jogar depois que eu te contar a minha história. Eu tenho histórias, meu querido...! Mas de que adianta agora? Elas irão comigo e eu te libertarei. Pra que você pense de mim apenas como uma mulher que não te mereceu. Uma mulher que nasceu pra não ser livre. Sem liberdade, de que adianta viver...? Não! Não se aproxime, por favor! Não faça parte desta tragédia. O Júlio foi meu primeiro homem. Você... Você tinha que ter sido o último! (Atira-se pela janela. Blecaute.)

FIM

Referências

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