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Um olhar da filosofia da ciência no ensino de física: a perspectiva feyerabendiana da astronomia de Galileu

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS EXATAS DA TERRA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO DE CIÊNCIAS E

MATEMÁTICA

UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO

DE FÍSICA:

A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA

ASTRONOMIA DE GALILEU

JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA

NATAL – RN 2020

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JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA

UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA: A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA ASTRONOMIA DE GALILEU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Ensino de Ciências e Matemática.

Orientador: Prof. Dr. André Ferrer Pinto Martins.

NATAL – RN 2020

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JOSÉ RICARDO PEREIRA DA SILVA

UM OLHAR DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA: A PERSPECTIVA FEYERABENDIANA DA ASTRONOMIA DE GALILEU

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do Título de Mestre em Ensino de Ciências e Matemática.

Aprovada em 29 de Setembro de 2020.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________ Prof. Dr. André Ferrer Pinto Martins – Orientador

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

___________________________________________________________________ Prof. Dr. José Claudio Reis – Examinador Externo (Titular)

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

___________________________________________________________________ Profa. Dra. Flávia Polati Ferreira – Examinadora Interna (Titular)

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

___________________________________________________________________ Profa. Dra. Cibelle Celestino Silva – Examinadora Externa (Suplente)

Universidade de São Paulo - São Carlos

___________________________________________________________________ Prof. Dr. Milton Thiago Schivani Alves – Examinador Interno (Suplente)

(4)

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e de pesquisa, desde que citada a fonte.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Central Zila Mamede Silva, José Ricardo Pereira da.

Um olhar da filosofia da ciência no ensino de física: a perspectiva feyerabendiana da astronomia de Galileu / José Ricardo Pereira da Silva. - 2020.

166f.: il.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Exatas da Terra, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática , Natal, 2020.

Orientador: Dr. André Ferrer Pinto Martins.

1. Ensino de Física - Dissertação. 2. Filosofia da Ciência - Dissertação. 3. Paul Feyerabend - Dissertação. 4. Astronomia - Dissertação. 5. Galileu Galilei -

Dissertação. I. Martins, André Ferrer Pinto. II. Título. RN/UF/BCZM CDU 51:37.016 Elaborado por Raimundo Muniz de Oliveira - CRB-15/429

(5)

Ao meu pai Severino Ramos, a minha mãe Maria Silvana, e a todos que caminharam comigo durante este tempo solitário. Espero eu que, assim como disse certo filósofo da ciência, vocês também possam dizer: Adeus à razão.

(6)

AGRADECIMENTOS

Ao professor André Ferrer Pinto Martins pela oportunidade e pela excelente orientação fornecida durante a elaboração deste trabalho;

A minha amiga e companheira de graduação, encontros de discussão, caronas e festas aleatórias Laura Dell Orto pelas sugestões, livros e desabafos;

Aos professores e colegas da pós-graduação pelos desafios, debates e conquistas;

A Escola Estadual Professor Pedro Alexandrino e ao Clube de Astronomia São Pedro pelos céus limpos e estrelados;

E por fim, mas não menos importante, a minha namorada e amigos “maravilhosos” pelo comprometimento.

(7)

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Foto de Paul Feyerabend 30

Figura 2 – Foto da Torre Inclinada de Pisa, na Itália, presente no catálogo da Detroit

Publishing Company de 1905

65

Figura 3 – O Julgamento de Galileu, Roma, 1633 67

Figura 4 – Galileu e o telescópio 68

Figura 5 – As luas de Júpiter no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos, Pádua, Itália, 1610

69

Figura 6 – Ilustração de Galileu Galilei publicada no livro Saggiatore (O Ensaísta), dedicado ao papa Urbano VIII, Roma, 1623

70

Figura 7 – O modelo geocêntrico de Ptolomeu 71

Figura 8 – Equante, epiciclos e excêntrico adotados pela astronomia grega 72

Figura 9 – Representação dos epiciclos de Copérnico, publicada em sua obra De

Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543

73

Figura 10 – Representação do sistema heliocêntrico de Copérnico, publicada em sua obra

De Revolutionibus Orbium Coelestium, Polônia, 1543

75

Figura 11 – Rascunhos do movimento circular no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos, Pádua, Itália, 1610

82

Figura 12 – Representação contendo a explicação do movimento aparente dos planetas a partir da perspectiva heliocêntrica, contida no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos, Pádua, Itália, 1610

(8)

Figura 13 – Retrato de São Roberto Bellarmino, óleo sobre tela, feita em 1923 por G. Francisi, Roma, Palácio do Santo Ofício, sala de recepção, lado norte

87

Figura 14 – Quadro de Galileu perante o Santo Ofício, pintado pelo francês Joseph Fleury no século XIX

91

Figura 15 – Galileu mostra o telescópio para o Senado veneziano do Campanário de São Marcos em 1609, quadro de Giuseppe Bertini, Varese, Itália, 1858

95

Figura 16 – Desenhos dos Planetas vistos por Galileu através do telescópio, publicado no livro Saggiatore (O Ensaísta), dedicado ao papa Urbano VIII, Roma, 1623

97

Figura 17 – Representação das fases de Vênus nos dois sistemas de mundo 99

Figura 18 – Desenho da Lua vista por Galileu através do telescópio, publicado no livro

Sidereus Nuncius (O Mensageiro das Estrelas), Veneza, 1610

100

Figura 19 – Desenho da Lua feito por Thomas Harriot em 1609 100

Figura 20 – Galileu apresenta o telescópio ao público 102

Figura 21 – Galileo, pintura a óleo de Jean-Leon Huens 103

Figura 22 – Rascunhos das distâncias dos planetas durante a revolução anual no manuscrito de Galileu sobre os Planetas Medicianos, Pádua, Itália, 1610

(9)

RESUMO

Este trabalho relaciona a área da História e Filosofia da Ciência às suas implicações para o ensino de ciências, evidenciando a importância e a potencialidade pedagógica dessa área. Partimos da análise da epistemologia do filósofo da ciência Paul Feyerabend para propormos a utilização da abordagem histórico-filosófica como estratégia didática para o ensino de física, especificamente, nos conteúdos de astronomia que envolvem o personagem histórico Galileu Galilei. Para isso, foram identificados três temas de astronomia que tradicionalmente são ensinados pelos professores de física do primeiro ano do Ensino Médio e que, de forma articulada, compõem um quadro dos trabalhos de Galileu e possuem grande relevância histórica para as críticas epistemológicas de Feyerabend. Fazemos, em seguida, uma releitura feyerabendiana da astronomia de Galileu com vistas à sua utilização no ensino de física. E, por fim, propomos uma unidade didática composta por três momentos – um encontro de observação astronômica, uma atividade de construção teórica e uma aula júri simulado – como subsídio para se trabalhar os sistemas de mundo de Galileu Galilei nas aulas de física do Ensino Médio.

Palavras-chave: ensino de física; Filosofia da Ciência; Paul Feyerabend; astronomia; Galileu Galilei.

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ABSTRACT

This paper connects the field of History and Philosophy of Science to its implications to the teaching of sciences, pointing the importance and pedagogical potentiality of this field. We base it on the analysis of the epistemology of the philosopher of science Paul Feyerabend to propose the historical-philosophical approach as a didactic strategy for the teaching of physics, specifically, astronomy topics involving the historic figure Galileo Galilei. In order to do that, we identified some astronomy topics traditionally taught by physics teachers on the first year of High School and, in an articulated fashion, compose a picture of Galileo’s works and hold great historic relevance to Feyerabend epistemological criticism. Afterwards, we have a feyerabendian reread of Galileo’s astronomy aiming for its use in the teaching of physics. At last, we propose a didactic unit composed of three moments – a meeting for astronomic observation, a theoretical construction activity and a mock trial class – as basis to the work with Galileo Galilei’s world systems in high school physics classes.

Key-words: physics teaching; philosophy of science; Paul Feyerabend; astronomy; Galileo Galilei.

(11)

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 12

2. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA 18

3. O ANARQUISMO EPISTEMOLÓGICO DE PAUL FEYERABEND 30

4. O ENSINO DA ASTRONOMIA DE GALILEU NUMA PERSPECTIVA FEYERABENDIANA

57

5. GALILEU GALILEI: OS SISTEMAS DE MUNDO GEOCÊNTRICO E HELIOCÊNTRICO

106

CONSIDERAÇÕES FINAIS 124

REFERÊNCIAS 126

(12)

1. INTRODUÇÃO

A física, como área do conhecimento científico, é de crucial importância para os alunos da Educação Básica. O entendimento dos fenômenos físicos, tanto terrestres, quanto celestes1, o conhecimento por trás da utilização dos aparelhos eletroeletrônicos, a criticidade quanto ao uso das tecnologias, em suma, a formação científica proporcionada pela escola, faz parte dos conhecimentos necessários para o desenvolvimento integral do educando, incorporado à cultura da vida em sociedade. A julgar tal importância, acreditamos que esforços precisam ser realizados a fim de vencer os desafios da sua prática pedagógica. A partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN e PCN+)2 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 20 de dezembro de 1996,

espera-se que o ensino de Física, na escola média, contribua para a formação de uma cultura científica efetiva, que permita ao indivíduo a interpretação dos fatos, fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a interação do ser humano com a natureza como parte da própria natureza em transformação. Para tanto, é essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de expressão e produção humanas. É necessário também que essa cultura em Física inclua a compreensão do conjunto de equipamentos e procedimentos, técnicos ou tecnológicos, do cotidiano doméstico, social e profissional (BRASIL, 2000, p. 22).

Além disso, a astronomia, que comumente desperta fascínio e curiosidade em públicos de todas as idades (MARQUES, 2014, p. 83), tem um valor cultural importante em nosso cotidiano: o dia e a noite, os intervalos de tempo que duram as semanas, os meses e os anos, a cor do céu, o brilho das estrelas, o calor do Sol, as fases da Lua, a maré alta, a passagem de um cometa, o riscar de uma “estrela cadente”, a comunicação por satélite, as viagens espaciais, a possibilidade de vida extraterrestre... Entretanto, é comum em uma noite de Lua cheia, nos depararmos com pessoas encantadas com a beleza do luar. A maior parte delas não

1 Esses termos também são citados como uma analogia a dicotomia terrestre/celeste das físicas sublunar e

supralunar, que foram predominantes até o século XVII.

2 Esta é uma justificativa histórica importante para área de pesquisa em ensino de ciências. Apesar disso, a Base

Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) não dá destaque à importância dos processos históricos para o ensino de ciências, como veremos no próximo capítulo.

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acompanharam as fases da Lua (e nem a celebraram3 como o espírito sagrado da Avó Lua

Cheia), mas foram pegas de surpresa ao saírem de casa e perceberem aquele acontecimento

magnífico. Da mesma forma, estamos tão acostumados com a regularidade dos dias e das noites que, geralmente, não nos questionamos sobre como isso acontece e nem notamos como muda a posição do nascer e do pôr do Sol durante o ano.

É nesse sentido que os PCNs, ao apresentarem o desenvolvimento das competências e habilidades em física, apontando Universo, Terra e Vida como tema estruturador para o ensino de física, afirmam:

Será indispensável uma compreensão de natureza cosmológica, permitindo ao jovem refletir sobre sua presença e seu “lugar” na história do universo, tanto no tempo como no espaço, do ponto de vista da ciência. Espera-se que ele, ao final da educação básica, adquira uma compreensão atualizada das hipóteses, modelos e formas de investigação sobre a origem e evolução do Universo em que vive, com que sonha e que pretende transformar (BRASIL, 2002, p. 19).

Além do mais, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ao se referir à etapa do Ensino Fundamental, aponta, dentre outras coisas, na unidade temática Terra e Universo, a compreensão das características dos astros, suas dimensões, localizações e movimentos, além de “salientar que a construção dos conhecimentos sobre a Terra e o céu se deu de diferentes formas e em distintas culturas ao longo da história da humanidade”, de modo também a “fundamentar a compreensão da controvérsia histórica entre as visões geocêntrica e heliocêntrica”, de forma que os estudantes “possam refletir sobre a posição da Terra e da espécie humana no Universo” (BRASIL, 2018, p. 328). No que diz respeito à etapa do Ensino Médio, a segunda competência específica de Ciências da Natureza propõe

Analisar e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do Cosmo para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar e defender decisões éticas e responsáveis (ibidem, p. 553).

3 Em todas as noites de Lua Cheia as aldeias e as pequenas comunidades indígenas urbanas do Rio Grande do

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Afirma, ainda, que os estudantes devem ter a “oportunidade de elaborar reflexões que situem a humanidade e o planeta Terra na história do Universo, bem como inteirar-se da evolução histórica dos conceitos e das diferentes interpretações e controvérsias envolvidas nessa construção” (BRASIL, 2018, p. 556). Para isso, a Base indica a “história e a filosofia da ciência” como um dos conhecimentos conceituais que podem ser relacionados a essa competência específica.

Dessa maneira, o ensino de física (e de astronomia) pode: promover o melhor entendimento dos conceitos físicos envolvidos; apresentar o conteúdo de física de forma integrada com seu desenvolvimento histórico-filosófico (VALADARES, 2012, p. 33); e compreender a física como parte da cultura humana (ZANETIC, 1989).

Para isso, defendemos a utilização da abordagem da História e Filosofia da Ciência (HFC)4 no ensino de física. Utilizando essa estratégia, os processos pedagógicos possibilitarão que os estudantes não só aprendam algumas concepções científicas, mas, também, construam uma ideia menos caricata e a-histórica acerca do desenvolvimento científico (VALADARES, 2012, p. 92).

Ao discutir sobre as tentativas de aproximação das áreas da história e da filosofia da ciência com a área de Ensino de Ciências, Matthews (1995), ao se referir a outro trabalho de sua autoria, de 1988, afirma que essas iniciativas são essenciais, uma vez que consideramos a, já bem conhecida, crise na educação científica, acentuada pelo desinteresse de professores e alunos nas matérias científicas, e pelos altíssimos índices de analfabetismo em ciências no Brasil.

Nas últimas décadas, a pesquisa em ensino de ciências tem discutido sobre o papel pedagógico da HFC e recomendado sua utilização no ensino e aprendizagem das ciências (MARTINS, 2007, p. 114).

Há um número grande de artigos publicados em revistas especializadas da área que, nos eventos e congressos, destina espaços específicos para essa temática. (...) Do ponto de vista mais prático e aplicado, a HFC pode ser pensada tanto como conteúdo (em si) das disciplinas científicas quanto como estratégia didática facilitadora na compreensão de conceitos, modelos e teorias. Diversos autores convergem nessa direção, defendendo e expondo razões para a presença da HFC nas salas de aula dos diversos níveis de ensino (p. ex:

4 Por tradição na área, vamos utilizar o termo História e Filosofia da Ciência (HFC), entretanto, mais recentemente,

há um grande número de publicações que apresentam as discussões sociológicas da ciência. Assim, poderíamos utilizar também o termo História, Filosofia e Sociologia da Ciência (HFSC).

(15)

ZANETIC, 1989; GIL-PÉREZ, 1993; MATTHEWS, 1994; VANNUCCHI, 1996; PEDUZZI, 2001; EL-HANI, 2006; MARTINS, 2006) (MARTINS, 2007, p. 115, grifos do autor).

Entretanto, a importância do caráter histórico-filosófico da ciência na formação de professores, nos livros didáticos e nos documentos oficiais, não garante que ele será utilizado em sala de aula, e nem que as abordagens histórica e filosófica da ciência serão ensinadas com qualidade (MARTINS, 2007, p. 115).

É nesse sentido que aponta esta pesquisa. Ao relacionar a área da Filosofia da Ciência às implicações didáticas no ensino, o nosso objetivo é analisar a epistemologia do filósofo da ciência Paul Feyerabend (1924-1994) para propor a utilização da abordagem histórico-filosófica no ensino de física a partir desse referencial. Para isso, foram identificados três temas de astronomia que, de forma articulada, compõem um quadro dos trabalhos de Galileu (que denominamos de astronomia de Galileu) e possuem grande relevância histórica para as críticas epistemológicas de Feyerabend. Assim, na busca por um recorte, propomos o seguinte problema de investigação: Como a abordagem da Filosofia da Ciência, numa perspectiva

feyerabendiana, pode contribuir para o ensino de física, ao ser utilizada como estratégia didática nas aulas de física do Ensino Médio, nos conteúdos que envolvem as discussões da astronomia de Galileu?

Somos convidados, então, a mergulhar no ensino de física sob o olhar da história e da filosofia. E, para irmos cada vez mais fundo, vamos refletir sobre a abordagem didática da HFC no ensino de ciências, dialogando, no capítulo 2, com diversos educadores, historiadores e filósofos da ciência. Vamos defender a utilização pedagógica da HFC, apontando suas potencialidades e limitações, com objetivo de construir uma base teórica para intervenções didáticas com seu uso nas aulas de física do Ensino Médio.

No capítulo 3, voltamos o nosso olhar à Filosofia da Ciência ao apresentarmos o filósofo da ciência Paul Feyerabend e as suas principais contribuições no que chamamos de uma

concepção anarquista do desenvolvimento científico, ideia esta, que também pode ser traduzida

pelo pluralismo metodológico com que o cientista deve proceder, ou seja, uma oposição radical a um princípio único, imutável e absolutamente obrigatório, capaz de envolver os eventos e processos científicos numa estrutura comum. A escolha desse autor não foi por um acaso – me identifiquei, particularmente, por sua defesa ao anarquismo científico e seu ataque à Razão e à

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Racionalidade, além de apreciar sua linguagem irônica e suas provocações, onde, por vezes, tenho alguns ataques momentâneos de risos, o que me levou, inevitavelmente, a sorrir bastante ao escrever minha pesquisa. Além disso, compartilho com Feyerabend o interesse no período histórico, entre o final do século XVI e início do século XVII, que representa um recorte da chamada Revolução Copernicana, onde o personagem Galileu Galilei aparece como um dos protagonistas desse processo. Discutimos, neste capítulo, alguns bordões que envolvem este autor: o anarquismo epistemológico, a afirmação de que tudo vale, a questão da

incomensurabilidade, a relação da ciência com a sociedade e com outras formas de conhecimento e os títulos das suas principais obras5: Contra o Método (FEYERABEND, 1977; 2011b), Adeus à razão (FEYERABEND, 2010) e A Ciência em uma sociedade livre (FEYERABEND, 2011a).

Já no capítulo 4, intitulado O ensino da astronomia de Galileu numa perspectiva

feyerabendiana, apresentamos as contribuições de Feyerabend para o ensino de ciências, e

utilizamos os seus escritos para inserir recortes da história da ciência que envolvem o personagem histórico Galileu Galilei, propondo subsídio teórico para que professores de física possam utilizar a Filosofia da Ciência como estratégia didática em situações reais de ensino. Tratamos, especificamente, de três temas de astronomia que são normalmente adotados pelos professores de física no primeiro ano do Ensino Médio e que, de forma articulada, compõem um quadro do trabalho de Galileu e que possuem grande relevância histórica para as críticas de Paul Feyerabend: i) Corpos em queda livre; ii) Geocentrismo x Heliocentrismo; e iii) O

telescópio como prova definitiva do céu. Juntos, esses temas formam a base para as discussões

feitas por Galileu Galilei, no início do século XVII, a respeito da relação entre sua física terrestre e celeste. Esses temas, entretanto, não foram escolhidos arbitrariamente – minha formação em Licenciatura em Física com foco em astronomia e minha prática como astrônomo amador na criação de Clubes de Astronomia Escolares e na promoção de eventos de divulgação científica em astronomia, me fizeram sustentar uma imagem caricata do desenvolvimento científico, sobretudo em astronomia, que foi sendo criticada durante minha formação acadêmica através das disciplinas específicas de HFC na graduação e no início da pós-graduação,

5 A primeira edição de Contra o Método foi publicada no ano de 1975 com o título original Against Method (com

versão traduzida para português em 1977). A Ciência em uma sociedade livre (Science in a Free Society) foi publicada em 1978 e a obra Adeus à razão teve sua primeira edição no ano de 1987 com o título original Farewell

to Reason e reúne diversos ensaios que tratam da diversidade e da mudança na cultura, incluindo o famoso

capítulo de Galileu e a tirania da verdade. Estas obras de Feyerabend, em suas traduções para o português e em suas versões mais recentes, serão as fontes primárias que utilizaremos em nossa pesquisa.

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principalmente pela apresentação de diversos filósofos da ciência, em especial, Paul Feyerabend. Em suas obras, esse autor apresenta uma visão, baseada na História e na Filosofia da Ciência, que permite a transmutação6 desses três temas já citados em: i) A interpretação

contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos corpos; ii) A Palavra de Deus como argumento contra a frágil teoria copernicana; e iii) O telescópio fornece um retrato verdadeiro do céu?

No capítulo 5, fazemos uma releitura feyerabendiana da astronomia de Galileu, com vistas a sua utilização no ensino de física. Após uma ampla pesquisa bibliográfica nos periódicos da área de Ensino de Ciências, constatamos que, apesar de haver muitos trabalhos referentes ao personagem histórico Galileu Galilei, outros com diversas contribuições pedagógicas para a educação em astronomia, e outros, ainda, discutindo a possível contribuição de Feyerabend para o ensino, poucos são os trabalhos da literatura que tratam, especificamente, das discussões da astronomia de Galileu usadas como estratégia didática a partir de uma leitura feyerabendiana. Assim, dentro dessa problemática, propomos uma unidade didática composta por três momentos – um encontro de observação astronômica, uma atividade de construção teórica e uma aula júri simulado – como subsídio para se trabalhar os sistemas de mundo de

Galileu Galilei nas aulas de física do Ensino Médio.

Após isso, chegamos às considerações finais de nossa dissertação, recomendando a utilização da abordagem histórico-filosófica da ciência e, em especial, a epistemologia feyerabendiana, como estratégia didática no ensino de física. Além disso, destacamos que essa proposta deve ser refinada e ampliada, objetivando uma educação de qualidade e uma construção crítica do saber científico por nossos estudantes. Finalmente, apresentamos o Apêndice como uma das etapas da unidade didática proposta na pesquisa. Trata-se de um texto didático a respeito das discussões feitas por Galileu sobre os sistemas de mundo, a partir da análise das obras de Feyerabend, e que tem por objetivo contribuir para aprendizagem do conteúdo curricular de mecânica, sendo dedicado, preferencialmente, aos alunos de física do 1° ano do Ensino Médio.

6 O termo transmutação não foi empregado casualmente. Esses temas sofrem uma mudança tão radical, após

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2. HISTÓRIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA NO ENSINO DE FÍSICA

No que diz respeito ao ensino de ciências, defendemos que o conhecimento a ser ensinado abranja não apenas os produtos científicos (como leis, teorias e aplicações), mas, também, os processos que envolvem a Ciência (seus métodos, estruturas e mecanismos de transformação), e a inclusão da HFC no ensino apresenta-se como um bom caminho a ser percorrido (VANNUCCHI, 1996, p. 14).

Segundo Matthews (1995, p. 165), a aproximação entre os campos da História e Filosofia da Ciência com o ensino de ciências se deve, principalmente, à inclusão dos elementos históricos e filosóficos nos currículos nacionais de vários países, como, por exemplo, na Inglaterra, no País de Gales e nos EUA, além de conferências europeias (Pávia – 1983; Murique – 1986; Paris – 1988; Cambridge – 1990), britânicas (Oxford – 1987) e internacionais (Flórida – 1989), sobre História, Filosofia, Sociologia e o Ensino de Ciências. O autor afirma que os episódios da história da ciência e os aspectos da filosofia da ciência devem ser parte integrante dos currículos escolares (MATTHEWS, 1995, p. 189).

Aqui no Brasil, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Médio, desde o final da década de 90, indicam a inserção de elementos histórico-filosóficos no ensino das matérias científicas, contemplados através da categoria contextualização sócio-cultural da ciência e da tecnologia (BRASIL, 2000, p. 11), como uma dimensão das competências e habilidades a serem desenvolvidas no ensino-aprendizagem de ciências. Seguem alguns trechos deste documento oficial:

Reconhecer o sentido histórico da ciência e da tecnologia, percebendo seu papel na vida humana em diferentes épocas; (...) compreender as ciências como construções humanas, entendendo como elas se desenvolveram por acumulação, continuidade ou ruptura de paradigmas (ibidem, p. 13).

Reconhecer a Biologia como um fazer humano e, portanto, histórico, fruto da conjunção de fatores sociais, políticos, econômicos, culturais, religiosos e tecnológicos (ibidem, p. 21).

A Física percebida enquanto construção histórica, como atividade social humana, emerge da cultura e leva à compreensão de que modelos explicativos não são únicos nem finais. (...) O surgimento de teorias físicas mantém uma relação complexa com o contexto social em que ocorreram (ibidem, p. 27).

(19)

Reconhecer as relações entre o desenvolvimento científico e tecnológico da Química e aspectos sócio-político-culturais (ibidem, p. 39).

Nessa medida, a história das Ciências é um importante recurso (...) tem uma relevância para o aprendizado que transcende a relação social, pois ilustra também o desenvolvimento e a evolução dos conceitos a serem aprendidos (ibidem, p. 54).

Os PCN+ também reforçam essa dimensão sócio-cultural e histórica ao destacar como uma competência geral a compreensão do “conhecimento científico e o tecnológico como resultados de uma construção humana, inseridos em um processo histórico e social” (BRASIL, 2002, p. 32).

Entretanto, mais recentemente, o Brasil enfrenta um cenário de disputas político-econômicas que vem causando instabilidade institucional e influenciando diretamente alguns aspectos da educação nacional (MARTINS, 2019, p. 254). A chamada Base Nacional Comum Curricular7 (BNCC), ao organizar as matérias científicas de modo integrado (isto é, sem discriminar as disciplinas de química, física e biologia), introduz na Área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias que

a contextualização histórica não [deve] se ocupa[r] apenas da menção a nomes de cientistas e a datas da história da Ciência, mas de apresentar os conhecimentos científicos como construções socialmente produzidas, com seus impasses e contradições, influenciando e sendo influenciadas por condições políticas, econômicas, tecnológicas, ambientais e sociais de cada local, época e cultura. (...) Propõe-se, por exemplo, a comparação de distintas explicações científicas propostas em diferentes épocas e culturas e o reconhecimento dos limites explicativos das ciências, criando oportunidade para que os estudantes compreendam a dinâmica da construção do conhecimento científico (BRASIL, 2018, p. 550).

E aponta, na primeira habilidade da competência específica 2, que o ensino de ciências deve

analisar e discutir modelos, teorias e leis propostos em diferentes épocas e culturas para comparar distintas explicações sobre o surgimento e a evolução

7 Martins (2019, p. 256-261) constrói uma análise a respeito das mudanças nas versões da BNCC e desenvolve

(20)

da Vida, da Terra e do Universo com as teorias científicas aceitas atualmente (BRASIL, 2018, p. 557).

Apesar disso, a BNCC não apresenta a dimensão histórico-filosófica em suas competências específicas para o ensino médio, o que caracteriza, segundo Martins (2019, p. 260), uma diminuição da relevância da perspectiva histórico-filosófica na versão final deste documento.

Podemos, ainda, apontar diversos autores que defendem a utilização didática da HFC com base nos seguintes argumentos: ela humaniza o conhecimento científico evidenciando os interesses pessoais, além das questões éticas, culturais e políticas que o envolvem; motiva e atrai os estudantes, podendo construir o pensamento crítico a partir de aulas científicas mais desafiadoras e reflexivas; contribui para um melhor entendimento dos conceitos científicos, visto que, nas salas de aula de ciências, fórmulas, conceitos e equações são memorizadas mas geralmente não são compreendidas; auxilia na formação de professores8 ao construir um conteúdo científico baseado no seu desenvolvimento histórico e filosófico, evidenciando que a ciência é mutável e que, por isso, as teorias contemporâneas estão sujeitas a transformações; permite uma melhor compreensão dos métodos científicos e demonstra como ocorrem as mudanças na metodologia vigente (MATTHEWS, 1995, p. 165, 172); abraça não apenas as concepções científicas do mundo físico, mas também como elas surgiram, evoluíram e até onde são válidas, e como se relacionam com outras partes da cultura e da sociedade (VALADARES, 2012, p. 96); melhora a compreensão dos conteúdos científicos e favorece a apropriação de atitudes e valores que estão presentes na ciência, por parte dos educandos (BASTOS FILHO, 2012, p. 65); pode oferecer exemplos de casos históricos de investigação e experimentação científica, bem como de hipóteses inesperadas ou contra-indutivas, e como ocorreram a consolidação e a substituição de teorias e modelos na ciência (VANNUCCHI, 1996, p. 14); e

8 Matthews (1995), ao citar o trabalho de Harre (1983), afirma que “Michael Polanyi defendeu o ponto de vista

óbvio de que HFS deveria ser parte da educação em ciências tanto quanto a crítica literária e musical fazem parte da educação literária e musical. Seria, no mínimo, esquisito imaginar um bom professor de literatura que não tivesse conhecimento dos elementos da crítica literária: a tradição que discute o que tem, ou não, valor literário, como a literatura se relaciona com a sociedade, a história dos gêneros literários, etc. Da mesma forma, também deve ser estranho imaginar um bom professor de ciências que não tenha um conhecimento razoavelmente sólido da terminologia de sua própria disciplina (...) ou nenhum conhecimento dos objetivos muitas vezes conflitantes de sua própria disciplina” (MATTHEWS, 1995, p. 188).

(21)

promove uma compreensão da ciência como parte da cultura e da sociedade (ZANETIC, 1989, p. 24).

Martins (2019, p. 249-250), ao dialogar com Zanetic (1989, p. 126-127) e com Vannucchi (1996, p. 19-22), manifesta algumas razões para utilização da HFC no ensino: proporciona a interação entre tópicos e disciplinas, permitindo a construção de uma abordagem interdisciplinar; relaciona as dificuldades de aprendizagem dos estudantes a concepções científicas controversas que historicamente estiveram em confronto; possui uma importância em si mesmo, uma vez que a ciência é patrimônio cultural da humanidade; concede significado às fórmulas e equações científicas; auxilia na compreensão da natureza da atividade científica, evidenciando seu processo de construção; colabora com a formação integral do cidadão contemporâneo; promove uma visão da ciência que também traz os insucessos históricos e que desmistifica e humaniza a prática científica; dentre outras.

Delizoicov (1996, p. 182), ao discutir sobre o conhecimento científico e criticar o que chama de uma produção de conhecimento linear e cumulativa, que é obtido através de um método único e bem definido, afirma que, utilizando a Filosofia da Ciência, o “status do conhecimento científico passa a ser percebido como uma verdade histórica e não mais como a

verdade extraída dos fatos”, desmitificando, assim, a visão consolidada e imutável que a ciência

recebeu recentemente. Afirma ainda que, “a apropriação de conhecimentos científicos pelos alunos não ocorre por simples transmissão de conceitos, modelos e teorias”, mas a partir de uma construção alicerçada nas “interações não neutras com [os] objetos de conhecimento” (ibidem, p. 183, grifos do autor).

Segundo Fonseca (2015, p. 7, 11), o ensino de ciências deve ser apresentado como um processo de construção histórica e não como o resultado acabado de anos de desenvolvimento, ou ainda, reproduções matemáticas e resoluções algébricas de problemas que não se articulam com a conjuntura do estudante. Ele deve, então, proporcionar uma formação que correlacione o conhecimento às especificidades sociais, culturais, políticas, econômicas, etc., em que se inserem, evidenciando os processos complexos do qual surge e se desenvolve a ciência.

Forato et al. (2012, p. 126) afirmam que

um olhar atento pode identificar discrepâncias entre uma concepção de ciência como uma construção humana, social, influenciada por fatores culturais, e um relato histórico que traz, implicitamente, uma ciência puramente empírica e neutra, produtora de verdades absolutas que desconsidera debates, controvérsias e rupturas em sua história. Desse modo, é importante confrontar

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os objetivos formativos e epistemológicos que se buscam, com as visões transmitidas pelas narrativas históricas utilizadas (grifo do autor).

Bastos Filho (2012, p. 65) afirma, ainda, que a incorporação e o entrelaçamento da história e da filosofia com o Ensino de Ciências há algumas décadas é recomendado, dado seu rico potencial, pela maioria dos educadores e professores das disciplinas científicas. Fazemos, então, o seguinte questionamento: se o emprego da HFC como estratégia didática / metodológica é amplamente recomendado pelos especialistas da área, por que, geralmente, não a vemos sendo utilizada em salas de aula? “A resposta é, certamente, simples: não é fácil fazer. (...) Dados reforçam a ideia de que há um abismo entre o valor atribuído à História e Filosofia da Ciência e a sua utilização com qualidade como conteúdo e estratégia didática nas salas de aula do nível médio”(MARTINS, 2007, p. 127).

Segundo Valadares (2012, p. 18),

são vários os argumentos em favor do uso da HFC no ensino. (...) Por outro lado, há poucos trabalhos que fornecem corroboração empírica para esses argumentos. (...) Portanto, essa área de pesquisa deve estar alerta para a necessidade de que sejam feitos maiores esforços para a realização de intervenções didáticas com uso de HFC no Ensino de Ciências e que tais intervenções sejam objetos de investigação, a fim de que se possa compreender melhor em situações reais de sala de aula qual a real contribuição que a HFC pode oferecer ao ensino e aprendizagem das ciências.

Entretanto, Teixeira et al. (2012, p. 9) realizam uma revisão das pesquisas publicadas no Brasil desde a década de 1980 a meados de 2011 que fazem uso da HFC no ensino, e apontam que ainda há poucos trabalhos que analisam o uso da HFC como estratégia didática. Fonseca (2015), ao se referir a este mesmo trabalho, afirma que “apesar de haverem currículos que já contemplam elementos de HFC e [um] aumento significativo de publicações sobre o uso dessa abordagem, poucas são as revisões sobre a potencialidade de seu uso” (FONSECA, 2015, p. 2484). Assim, em meio às dificuldades no ensino-aprendizagem de ciências, e em especial o de física, “é bastante relevante a preocupação voltada para as narrativas históricas, presentes no ambiente escolar, e as visões que elas podem promover sobre os processos de construção da ciência” (VALADARES, 2012, p. 47).

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Além disso, no ponto de vista didático, a HFC geralmente é apresentada como algo periférico e ilustrativo, que é mostrado nos livros e citado no início das aulas como uma

introdução aos conteúdos que realmente importam, limitando-se ao aspecto motivacional, que

visa despertar o interesse dos alunos e contextualizar o conteúdo que será ensinado. Mas, dessa forma, “sabemos que ela dificilmente cumpre o seu papel” (MARTINS, 2007, p. 128).

Vannucchi (1996, p.19) disserta a respeito das contribuições da HFC para a educação científica. A autora afirma que essa aproximação apresenta contribuições significativas para o ensino e aprendizado de ciências, apontando diversos autores da área que defendem essa aproximação e outros, inclusive, que fazem oposição. A partir da década de 1970, muitos debates foram travados na área a respeito dos problemas nas reconstruções históricas. É nesse sentido que Rozentalski (2018, p. 38-39) nos questiona sobre qual perspectiva historiográfica da ciência deve ser levada ao ensino. Ele cita a necessidade da formação histórica/filosófica dos professores que desejam levar essas abordagens para a sala de aulae aponta razões contrárias à utilização da história da ciência: de maneira anacrônica, da quasi-história9 (apresentação da

história em termos lógicos e ordenados) e da pseudo-história10 (uma reconstrução parcial

negligenciando aspectos importantes, romantizando o cientista e apresentando-o como um herói, ao enfatizar suas virtudes e ocultar seus erros). Assim, ele defende o que chama de interpretação do passado em termos diacrônicos, de forma que tais eventos sejam avaliados de acordo com o contexto de sua própria época.

É isso que já defendia Lilian Martins (2005), ao discutir sobre os objetos, métodos e

problemas da área da historiografia da ciência, apontando alguns questionamentos ao se

trabalhar narrativas históricas. Segundo ela, “a história da ciência é feita por seres humanos e se constitui em uma reconstrução de fatos e contribuições científicas que ocorreram, muitas vezes, em épocas distantes da nossa, [por isso,] é comum encontrarmos alguns problemas nessas reconstruções” (ibidem, p. 314). Um deles é uma história puramente descritiva, caracterizada por datas e acontecimentos que não tem relevância e que, geralmente, apresenta a figura de um grande cientista (homem, velho e, por vezes, louco), estereotipado como um gênio isolado, que foi responsável por uma grande descoberta que mudou o mundo em sua época ao concluir algo que ninguém havia tido capacidade de pensar – Galileu, Newton, Darwin, Lavoisier, Einstein, são alguns desses exemplos. Outro problema é a interpretação whig da história – ou seja, uma

9 Rozentalski (2018, p. 39) faz referência aos trabalhos de Whitaker (1979a, 1979b). 10 Citando o trabalho de Allchin (2004).

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história da ciência anacrônica. O anacronismo consiste em “procurar no passado somente o que se aceita atualmente, ignorando completamente o contexto da época” (ibidem, p. 314), buscando precursores de uma determinada teoria ou conceito que só foram desenvolvidos posteriormente. A autora defende a importância de familiarizar-se com o que chama de

atmosfera da época em que se está estudando, mantendo sempre a atenção ao que se produziu

posteriormente, tentando entender quais foram os motivos11 que levaram determinadas teorias a ascensão e outras a serem descartadas. Um terceiro problema é a utilização da história da ciência de forma ideológica, privilegiando um determinado grupo social (de forma nacionalista, étnica, política, religiosa, etc.) em detrimento de outros, cujo conhecimento, valores ou ações seriam inferiores. A autora ainda chama atenção para que os recortes da história sejam feitos de forma fiel, sem omitir aspectos importantes ou ideias e fatos que entrem em conflito com o ponto de vista do historiador, gerando assim uma narração falsa da história da ciência (MARTINS, L., 2005, p. 314-315).

Roberto Martins (2006, p. xxxi) chama a atenção para alguns equívocos a respeito do uso didático da história da ciência: a redução a nomes, datas e anedotas, baseado em concepções falsas a respeito da história da ciência (a ciência é feita por grandes personagens, que de forma isolada realizam “descobertas” numa determinada data); concepções errôneas sobre o método científico (a crença de que os cientistas usaram o método indutivista de investigação para “provar” as descobertas científicas); e o uso de argumentos de autoridade para justificar a aceitação dos conhecimentos científicos (ao afirmar que a ciência provou a teoria e, por isso, ela não pode ser questionada – o que, obviamente, não é verdade – gerando assim uma crença na ciência, um tipo de superstição moderna).

Estas discussões a respeito das áreas da História e da Filosofia da Ciência são de crucial importância para o ensino, mesmo que nem sempre (quase nunca!) os filósofos e historiadores da ciência estejam diretamente preocupados com o ensino de ciências. Segundo Martins (2012, p. 261), a relação entre concepção epistemológica e processo de ensino-aprendizagem não é trivial e requer um olhar especial sobre como ensinar ciências, cabendo, então, aos professores

11 Nem sempre esses motivos são racionais ou objetivos. Há diversos exemplos na História da Ciência (como

veremos nos próximos capítulos) que teorias melhor formuladas e consensualmente comprovadas foram abandonadas porque suas rivais (novas teorias) estavam melhor adaptadas ao contexto da época (influências religiosas, sociais, políticas, econômicas, propaganda, etc.) ou porque estavam de acordo com novas observações empíricas, mesmo baseando-se em suposições contra indutivas ou em afirmações refutadas.

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de ciências construírem essa ponte com a área da HFC, edificando, assim, novas metodologias educacionais.

Isso se dá não apenas por uma questão de conteúdo (...) mas também, principalmente, porque existem paralelos entre a evolução das ideias científicas e o desenvolvimento cognitivo dos alunos. Dessa forma, o aprender e ensinar ciência tem muito a ganhar com a epistemologia, que não precisa fornecer o modelo ou paradigma a partir do qual o processo de ensino-aprendizagem deva ser pensado, mas pode, sem dúvida, informar esse processo, dialogar com ele (MARTINS, 2012, p. 261, grifo do autor).

Diante disso, a aproximação entre epistemologia12 e o ensino de ciências poderia desenvolver nos professores e alunos uma reflexão mais profunda sobre os conteúdos científicos que estão estudando. Dessa forma, o conteúdo da disciplina não seria mostrado,

exibido, mas, surgiria como uma resposta a uma determinada situação-problema, que fora

discutida em uma determinada época, evidenciando os métodos utilizados pelos cientistas, que foram influenciados por fatores sociais, econômicos, políticos e até religiosos, dentre outros. Assim, os estudantes se deparariam com uma ciência mais humana e mais real (no sentido de uma visão menos distorcida dos procedimentos científicos), levando-os, inclusive, a se perceberem como agentes participantes desse processo, com capacidade efetiva (e afetiva) de ser tornarem grandes cientistas, construindo, assim, um novo sentido ao processo de ensino-aprendizagem.

A vasta literatura da área apresenta uma grande discussão a respeito da Natureza da

Ciência13, que tem sobreposição com o que aqui discutimos. Entretanto, não temos por intenção

desenvolver essa discussão, visto que esta é uma subárea de pesquisa bastante ampla e consolidada e, por razões de tempo e espaço, o nosso objetivo não é discutir esse tema com

12 “O termo epistemologia abrange discussões em torno de teorias do conhecimento [não necessariamente

científicas] e sua justificação, de modo que o conhecimento científico é um de seus objetos – o que muitas vezes é especificado pelo termo epistemologia da ciência [ou Filosofia da Ciência, como, particularmente, preferimos]. (...) Assim, a epistemologia distingue-se da Filosofia da Ciência por sua amplitude. Contudo, na França, [por exemplo,] o termo epistémologie tradicionalmente se referiu ao que compreendemos como Filosofia da Ciência. Assim, dependendo de sua formação, um autor pode estar se referindo às discussões da Filosofia da Ciência quando emprega o termo epistemologia” (DUTRA, 2010 apud ROZENTALSKI, 2018, p. 59, grifos do autor).

13 Não há consenso na tentativa de estabelecer (por definitivo) uma caracterização da ciência e do desenvolvimento

científico. Moura & Guerra (2016, p. 726) apresentam uma discussão sobre os que defendem e os que criticam esse modelo. Rozentalski (2018, p. 129-152) tece críticas à abordagem consensual, contra-argumentos, e ainda apresenta algumas abordagens alternativas.

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profundidade, mas apenas relacioná-lo com o Ensino de Ciências, a fim de propor uma mudança na imagem empírico-indutivista, carregada de linguagem matemática e caracterizada por um método bem estabelecido, ainda predominante no âmbito escolar.

Mas qual Filosofia da Ciência ensinar?

Uma ciência neutra, linear e progressiva, feita por grandes gênios isolados, através de um método bem definido, é a visão de senso comum da ciência. Rozentalski (2018, p. 54), ao citar Hodson (1985), afirma que a ausência de uma Filosofia da Ciência evidente e respaldada nos currículos, na formação de professores e nas aulas de ciências do ensino médio, podem resultar nas seguintes compreensões sobre a ciência: (i) a prática científica permite uma compreensão da Verdade e da Realidade; (ii) o conhecimento científico é derivado de observações imparciais dos fenômenos da natureza; (iii) os experimentos desenvolvidos pelos cientistas são confiáveis e tem finalidade de testar racionalmente suas teorias; e (iv) a ciência é um conhecimento objetivo, livre de valores e preconceitos, e não é (e nem deve ser) influenciada por fatores subjetivos como questões sociais, históricas, religiosas ou econômicas. Essas características da ciência, por vezes chamada de ideologia cientificista, estão, geralmente14, presentes em diversas partes da sociedade: na mídia, no comércio, nas praças, nos

livros didáticos e nas aulas de ciências do Ensino Médio e até mesmo no Ensino Superior, gerando uma visão distorcida dos processos que envolvem a ciência.

De maneira oposta, Silveira (1992), afirma que

a observação e a experimentação por si sós não produzem conhecimento. O “método indutivo” é um mito; o conhecimento científico é uma construção humana que tem como objetivo compreender, explicar e também agir sobre a realidade. Não podendo ser dado como indubitavelmente verdadeiro, é provisório e sujeito a reconstruções; na construção de novos conhecimentos participam a imaginação, a intuição, a criação e a razão. A inspiração para produzir um novo conhecimento pode vir inclusive da metafísica; a aquisição de um novo conhecimento é sempre difícil e problemática. Os cientistas são relutantes em abandonar as teorias de suas preferências mesmo quando parecem conflitar com a realidade. O abandono de uma teoria implica em reconhecer outra como melhor (SILVEIRA, 1992, p. 38).

Assim, analisando esses temas, notamos uma discrepância entre os elementos da ciência

do senso comum e a Ciência que é legitimada pela HFC.

14 Apesar de não ser habitual, hoje já é possível encontrar diversas sequências didáticas, artigos e até mesmo livros

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Segundo Roberto Martins (2006), estudar de maneira adequada os episódios históricos pode contribuir para que os alunos percebam

o processo social (coletivo) e gradativo de construção do conhecimento, permitindo formar uma visão mais concreta e correta da real natureza da ciência, seus procedimentos e suas limitações – o que contribui para a formação de um espírito crítico e desmitificação do conhecimento científico, sem no entanto negar seu valor. A ciência não brota pronta, na cabeça de “grandes gênios”. Muitas vezes, as teorias que aceitamos hoje foram propostas de forma confusa, com muitas falhas, sem possuir uma base observacional e experimental. Apenas gradualmente as ideias vão sendo aperfeiçoadas, através de debates e críticas, que muitas vezes transformam totalmente os conceitos iniciais (MARTINS, R., 2006, p. xxii).

Além disso, esse estudo evidencia que a ciência não surge de um método científico que leva a um acesso à verdade por trás da natureza, mas que os cientistas trazem consigo ideias pré-concebidas, que muitas vezes formulam hipóteses sem fundamento ou análise experimental, explicações contraditórias ou consideradas irracionais, fazendo da ciência uma construção extremamente complexa que não possui nenhuma fórmula infalível (MARTINS, R., 2006, p. xxiii).

De forma que, considerando a epistemologia fundamental para a formação científica dos estudantes, Forato et al. (2012, p. 123-124) chamam atenção para as dificuldades existentes ao tentar produzir materiais didáticos e metodologias educacionais adequadas que fazem uso da HFC, uma vez que os professores das ciências (química, física, biologia) já enfrentam os desafios específicos de suas disciplinas científicas. Como estes poderiam fazer uso, com qualidade, da HFC em sua prática pedagógica, sem comprometer os conteúdos científicos? Eles, então, discutem sobre “o enfrentamento de dificuldades e obstáculos para a inserção de conteúdos selecionados de HFC na escola básica” (ibidem, p. 124). Segundo os autores, não basta inserir esses conteúdos, é necessário perceber que as concepções que os professores15 têm

a respeito da ciência refletem na sua prática educativa em sala de aula. Além do mais, a

15 “Gil Perez e colaboradores (2001) analisaram as visões sobre a natureza da ciência em um grande grupo de

professores e encontraram concepções dissonantes com essas recomendadas pela literatura. (...) Eles relatam concepções empírico-indutivistas e ateóricas, a-históricas, dogmáticas, elitistas, exclusivamente analíticas, acumulativas e lineares dos processos de construção do conhecimento científico, em geral protagonizadas por

insights individuais de grandes pensadores. Os autores discutem como o Ensino de Ciências vem reforçando e

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transformação das narrativas históricas em conteúdos adequados à escola básica requer uma mudança de nicho epistemológico (ibidem, p. 125, 127). Assim,

tais obras devem ser interpretadas à luz de seu tempo, (...) mediante um olhar contextualizado para os conteúdos científicos. Desse modo, é importante entender tais conceitos a partir de sua formulação original (fontes primárias), confrontando-as com narrativas especializadas (fontes secundárias), e considerando perspectivas sociais e culturais na construção da ciência. É necessário, portanto, transitar em diferentes campos do saber. Mais do que isso, é necessário construir conhecimentos que inscrevem em si próprios aspectos de diversas especialidades (FORATO et al., 2012, p.127).

Os autores desenvolveram uma pesquisa empírica e analisaram dezessete obstáculos (propostos), objetivando a construção dos saberes da HFC no ensino-aprendizagem de ciências. Dentre eles, destacamos a seleção dos aspectos histórico-filosóficos a serem enfatizados em cada episódio; o nível de detalhamento/aprofundamento; quando e como se utilizar trechos de

fontes primárias; a superação de concepções ingênuas sobre história e epistemologia da ciência; a falta de preparo do professor, de textos especializados e pré-requisitos dos alunos

(em relação ao conhecimento matemático, físico, histórico, filosófico); e a quantidade de

informações na forma de textos que são apresentados.

Monteiro (2014), por sua vez, ao realizar uma pesquisa que analisa os obstáculos enfrentados por professores de ciências na elaboração e aplicação de materiais didáticos que fazem uso da HFC no ensino de física, a fim de propor uma mudança em sua forma já consolidada, em que “prevalece o formalismo geométrico, a matematização, a ausência de significado e, consequentemente, os índices de baixo desempenho” (ibidem, p. 46), apresenta as estratégias didáticas que mais foram utilizadas a fim de evitar a mera transmissão oral de conteúdos (ver gráfico 1). Além disso, o autor salienta a importância da utilização de fontes primárias e secundárias na elaboração de textos e materiais didáticos com enfoques histórico-filosóficos.

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Fonte: MONTEIRO, 2014, p. 46.

Para estendermos a discussão do que compete à Filosofia da Ciência em estabelecer um olhar a respeito do empreendimento humano chamado ciência, procurando entender a natureza desse conhecimento e sua contribuição para o ensino, vamos, no próximo capítulo, discutir sobre o desenvolvimento científico na perspectiva do filósofo da ciência Paul Feyerabend e as suas consequências na sociedade. Mais adiante, iremos apresentar o caso histórico da astronomia de Galileu à luz da perspectiva feyerabendiana. Tal perspectiva pode servir como subsídio teórico para que professores das matérias científicas possam fazer uso da HFC, a fim de que reflitam sobre o desenvolvimento científico e as características que são próprias do fazer ciência, promovendo, assim, a inserção de conteúdos do campo do saber da Filosofia e da História da Ciência para o ensino.

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3. O ANARQUISMO EPISTEMOLÓGICODE PAUL FEYERABEND

A área da Filosofia da Ciência é construída por diversos autores que discutem acerca desse empreendimento humano chamado ciência, tentando estabelecer suas fronteiras, metodologias, práticas cotidianas, limites e valores intrínsecos e fundamentais do desenvolvimento científico. As ideias de um deles, em especial, nos chamam a atenção.

Figura 1 – Foto de Paul Feyerabend.

Fonte: Medium Brasil. Disponível em: <medium.com/brasil/carta-a-paul-feyerabend-18f8da84eb76>. Acesso em: 29 out. 2019.

O austríaco Paul Karl Feyerabend nasceu em Viena em 13 de janeiro de 1924 e faleceu em sua casa em Zurique, em 11 de fevereiro de 1994, vítima de um tumor cerebral. Filósofo, com doutorado em física pela Universidade de Viena, especialização em teatro e doutor honoris

causa em letras e humanidades pela Universidade de Chicago, Feyerabend desenvolveu uma

filosofia da ciência bastante peculiar. Em suas reflexões epistemológicas, sempre deixou evidente sua postura radical a respeito da natureza da ciência e foi julgado como terrorista

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pareceram se ofender com suas críticas e provocações. Ele participou de diversos debates na área, como o grupo da London School of Economics, liderado por Karl Popper nos anos 50; o

wittgensteineanos; o grupo de Herbert Feigl nos EUA; e de discussões com Imre Lakatos e

Thomas Kuhn, dentre outros, além de ter lecionado na Universidade da Califórnia e no Instituto Federal de Tecnologia de Zurich (REGNER, 1996, p. 231-232).

Chalmers (1993, p. 173) cita que um dos relatos do desenvolvimento científico “mais estimulantes e provocadores é aquele que foi pitorescamente apresentado e defendido por Paul Feyerabend; nenhuma avaliação da natureza e do status da ciência estaria completa sem alguma tentativa de entrar em acordo com ele” (grifo do autor).

Neste capítulo, fazemos uso de suas principais obras: a primeira e a segunda edição de

Contra o método (FEYERABEND, 1977; 2011b) – que se diferenciam nos prefácios,

introduções e em alguns de seus últimos capítulos – onde Feyerabend desenvolve suas principais ideias a respeito do anarquismo científico e sua crítica à Razão e à Racionalidade; sua obra Adeus à razão (FEYERABEND, 2010), onde focaremos nas discussões a respeito da expansão do “progresso científico” e do desenvolvimento tecnológico no Ocidente, em que Feyerabend critica a premissa de que existe uma maneira certa de se viver que requer

intervenção; e A Ciência em uma sociedade livre (FEYERABEND, 2011a), onde o status da

superioridade científica é questionado e a ciência é colocada lado a lado com outras formas de conhecimento, inclusive os mitos, a feitiçaria e o vodu. Além disso, reunimos no próximo capítulo as discussões feitas por Feyerabend nessas obras, para tratarmos de Galileu Galilei no recorte histórico de um amplo período que ficou conhecido como Revolução Copernicana.

Feyerabend apresenta uma epistemologia anárquica, em contraste com os procedimentos racionalistas: “a ciência é um empreendimento essencialmente anárquico: o anarquismo teórico é mais humanitário e mais apto a estimular o progresso do que suas alternativas que apregoam lei e ordem” (FEYERABEND, 2011b, p. 31). Ele critica o empirismo16 e o racionalismo17 por serem inadequados para elucidar o desenvolvimento

16 Feyerabend (1977, p. 39) afirma que a essência do empirismo é a regra segundo a qual o êxito das teorias

científicas se deve aos fatos ou resultados experimentais estarem de acordo com o conhecimento teórico.

17 “Feyerabend (2010) identifica o racionalismo com uma tradição que nasceu na Grécia e inicialmente ‘substituiu

os conceitos ricos e dependentes da situação (...) por umas poucas ideias abstratas e independentes da situação’, gerando, numa segunda etapa, ‘estórias especiais, logo chamadas de provas ou argumentos’. (...) Desenvolveu-se, assim, igualmente, a ideia de que ‘são as próprias coisas que produzem a estória e a dizem objetivamente, isto é, independentemente das opiniões e das compulsões históricas’” (REGNER, 1996, p. 234, grifo nosso). Surgindo, assim, o critério de que o conhecimento científico é único, verdadeiro e objetivo.

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científico e, destaca ainda, que não há fatos experimentais neutros e que as observações dos fenômenos naturais dependem de nossas pré-concepções.

De maneira geral, ele afirma que nenhuma das explicações propostas até agora pelos epistemólogos são totalmente bem-sucedidas em fornecer regras adequadas para orientar as atividades dos cientistas, e que todas as regras apresentadas até agora foram violadas em algum momento da história:

A ideia de um método que contenha princípios firmes, imutáveis e absolutamente obrigatórios para conduzir os negócios da ciência depara com consideráveis dificuldades quando confrontada com os resultados da pesquisa histórica. Descobrimos, então, que não há uma regra única, ainda que plausível e solidamente fundada na epistemologia, que não seja violada em algum momento. (...) A invenção do atomismo na Antiguidade, a Revolução Copernicana, o surgimento do atomismo moderno [e] a emergência gradual da teoria ondulatória da luz, ocorreram apenas porque alguns pensadores decidiram não se deixar limitar por certas regras metodológicas “óbvias”, ou porque as violaram inadvertidamente. (...) Dada qualquer regra, não importa quão “fundamental” ou “racional”, sempre há circunstância em que é aconselhável não apenas ignorá-la, mas adotar a regra oposta. Por exemplo, há circunstâncias em que é aconselhável introduzir, elaborar e defender hipóteses ad hoc, ou hipóteses que contradizem resultados experimentais bem estabelecidos e em geral aceitos, ou hipóteses inconsistentes. (...) Há mesmos circunstâncias em que a argumentação perde seu aspecto antecipador e torna-se um obstáculo ao progresso (FEYERABEND, 2011b, p. 37-38, grifo do autor).

Feyerabend construiu suas “ideias estranhas” dialogando com diversos filósofos da ciência, dentre eles, seu amigo e companheiro anarquista, Imre Lakatos18. Este desenvolveu uma epistemologia que situava a prática científica dentro de um programa de pesquisa, o que foi chamado por Feyerabend de anarquismo disfarçado, pois serviria de “Cavalo de Tróia, capaz de infiltrar o anarquismo real, direto, ‘honesto’ nos espíritos de nossos mais encarniçados racionalistas” (FEYERABEND, 1977, p. 305). Eles concordam que a metodologia científica deve permitir um espaço livre para que as ideias dos cientistas possam ser exploradas sem impedimentos. E, também, que os padrões das metodologias não são permanentes, mas podem, a partir de um exame de dados históricos, serem substituídos por padrões melhores (ibidem, p.

18 Cita Feyerabend (2011b, p. 7): “Em 1970, durante uma festa, Imre Lakatos, um dos melhores amigos que já

tive, colocou-me contra a parede. ‘Paul’, disse ele, ‘você tem umas ideias tão estranhas. Por que não as põe por escrito? Eu escrevo uma réplica, publicamos a coisa toda, e eu prometo a você – vamos nos divertir muito’”.

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287). Dessa forma, “a metodologia dos programas de pesquisa fornecem padrões que ajudam o cientista a avaliar a situação histórica em que ele toma suas decisões; não contém regras que lhe digam o que fazer” diferindo radicalmente de outras filosofias, como o indutivismo e o falseamentismo científico (ibidem, p. 289).

Ele ataca, sobretudo, a ideia de que a ciência possui um Método (com “M” maiúsculo) único capaz de envolver os eventos e processos científicos numa estrutura comum; e que há elementos intrínsecos às investigações científicas que estão ausentes em outros lugares:

o sucesso científico não pode ser explicado de maneira simples. Não podemos dizer: “a estrutura do núcleo atômico foi descoberta porque as pessoas fizeram A, B, C ...”, em que A, B e C são procedimentos que podem ser compreendidos independentemente de seu uso na física nuclear. Tudo o que podemos fazer é dar uma explicação histórica dos detalhes, incluindo circunstâncias sociais, acidentes e idiossincrasias pessoais. (...) A pesquisa bem-sucedida não obedece a padrões gerais; depende, em um momento, de certo truque e, em outro, de outro; os procedimentos que a fazem progredir e os padrões que definem o que conta como progresso nem sempre são conhecidos por aqueles que aplicam tais procedimentos. Mudanças de perspectiva de longo alcance, como assim chamadas “Revolução Copernicana” ou “Revolução Darwiniana”, afetam diferentes áreas de pesquisa de maneiras distintas e recebem delas impulsos diferentes. Uma teoria da ciência que delineia padrões e elementos estruturais para todas as atividades científicas e os autoriza por referência à “Razão” ou “Racionalidade” pode impressionar os observadores externos – mas é um instrumento grosseiro demais para as pessoas envolvidas, isto é, para os cientistas enfrentando algum problema de pesquisa concreto (FEYERABEND, 2011b, p. 19-20, grifo do autor).

Para Feyerabend, a pesquisa científica não deve ser limitada por regras metodológicas. Ele não nega que haja rigor científico, mas afirma que não há nenhuma regra que tenha sido sempre seguida historicamente. Além disso, a atribuição das regras, por si só, para consolidar o status científico se depara com problemas, quando comparada com o rico e complexo conjunto de regras que os pajés utilizam para desenvolver seus rituais de cura e de orientação e com os padrões rígidos e os juízos de valor empregados pela medicina astrológica – o que seria rapidamente descartado por qualquer racionalista sério (FEYERABEND, 1977, p. 310). De forma que, segundo o autor, a única regra que pode ser defendida é o princípio de que tudo

vale, uma vez que a ciência é muito complexa para ser explicada com base em um conjunto de

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pluralismo metodológico (ou talvez pela liberdade metodológica) em que o cientista pode

proceder.

Etimologicamente, anarquismo tem raiz na palavra grega anarkhia, (sem topo, sem poder) e representa uma filosofia política que defende os elementos da inexistência de qualquer forma de hierarquia e dominação, seja ela política de governo, econômica, social ou cultural, tendo como princípios a liberdade individual e coletiva, a igualdade e a solidariedade. Para nós, utilizada em seu termo epistemológico,

significa, antes, oposição a um princípio único, absoluto, imutável de ordem, do que oposição a toda e qualquer organização. (...) Não significa, portanto, ser contra todo e qualquer procedimento metodológico, mas contra a instituição de um conjunto único, fixo, restrito de regras que se pretenda universalmente válido, para toda e qualquer situação – ou seja, contra algo que se pretenda erigir como “o” método, como “a” característica distintiva, demarcadora do que seja ciência (REGNER, 1996, p. 233).

Na introdução de sua obra Contra o método, Feyerabend (2011b, p. 31) afirma estar convicto “de que o anarquismo, ainda que talvez não seja a mais atraente filosofia política, é, com certeza, um excelente remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência” (grifos do autor). Para ele, a história da ciência está cheia de interações complexas de eventos – acidentes, interesses, etc. – e tentar explicar essas circunstâncias peculiares por meio de regras metodológicas ingênuas e simplórias só seria conveniente para um oportunista impiedoso. Assim, ainda segundo Feyerabend, a história da ciência não se fundamenta somente em fatos e conclusões extraída de fatos, mas também está sujeita a “ideias, interpretações de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, erros e assim por diante” (ibidem, p 33). Pode-se dizer então que, em nenhuma circunstância, a ciência conhece fatos nus ou fatos

objetivos, mas que todos os dados, percepções sensoriais e resultados, que são extraídos de uma

observação científica, são essencialmente ideacionais. Feyerabend (ibidem, p. 13-14) cita que

termos como “experimentação” e “observação” abrangem complexos processos contendo muitos elementos. “Fatos” surgem de negociações entre grupos diferentes, e o produto final – o relatório publicado – é influenciado por eventos físicos, processadores de dados, soluções conciliatórias, exaustão, falta de dinheiro, orgulho nacional e assim por diante. (...) Estamos bem longe da velha ideia (platônica) de ciência como um sistema de enunciados desenvolvendo-se por meio de experimentação e observação e mantido em ordem por padrões racionais duradouros.

Referências

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