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A interpretação contra-indutiva de Galileu a respeito da queda dos corpos

Segundo Galileu,

os sentidos nos mostram que corpos pesados caem do alto para baixo por uma linha reta e perpendicular à superfície da Terra. Argumento considerado incontestável de que a Terra esteja imóvel: porque, se ela tivesse a rotação diurna, como proposto por Nicolau Copérnico, uma torre, sendo transportada pela rotação da Terra, que de cima deixasse cair uma pedra, afastar-se-ia muitas centenas de braças para o oriente no tempo em que a pedra gastaria para a sua descida, e por tanto espaço deveria a pedra afastar-se da base da torre [14].

De acordo com o pensamento da época, a imobilidade da Terra era provada principalmente por esta ideia, chamada de “argumento da torre”. Mas ela também conseguia corroboração pelo visível deslocamento do Sol, ou porque as pessoas não saíam por aí, voando em direção ao espaço, como consequência de um rodopio da Terra [16].

Galileu desarma esse argumento,

afirmando que os nossos sentidos isolados, sem o auxílio da razão, podem nos dar uma descrição falsa da natureza:

Salviati – Aquilo que é primeiramente representado pelos nossos sentidos pode facilmente nos enganar; esse movimento dos graves descendentes é reto e não de outro tipo. Porque, desse modo, dá sinal de acreditar que aqueles que dizem que tal movimento é circular, parecem ver sensivelmente aquela pedra mover-se em arco, já que ele convida mais seus sentidos que sua razão para elucidar esse efeito; o que não é verdade, Sr. Simplício, porque, assim como eu, jamais vi, nem espero ver, cair àquela pedra de outro modo que não reta. Será melhor, portanto, que, deixada de lado a aparência, com a qual todos estamos de acordo, esforcemo-nos com o raciocínio para confirmar a realidade [18].

Ou seja, a ideia de Galileu consiste em substituir a verdade apreciada pelos sentidos por uma nova linguagem observacional, altamente abstrata e contra-indutiva:

É também verdadeiro que estando em movimento a Terra, o movimento da pedra, ao cair, terá sido realmente um traço transversal compridíssimo com muitas centenas de braças; mas aquela parte de todo esse movimento, que é comum à pedra, à torre e a nós, fica para nós insensível e como se não existisse, e somente é observável aquela parte da qual nem a torre nem nós somos participantes, que é, afinal, aquele movimento com o qual a pedra, caindo, mede a torre [19].

Entretanto, a concepção copernicana defendida por Galileu não estava de acordo com os fatos:

Do ponto de vista desses “fatos”, a ideia do movimento da Terra é bizarra, absurda e obviamente falsa, para mencionar algumas das expressões que foram frequentemente usadas na época e as quais ainda são ouvidas sempre que cientistas retrógrados se defrontam com uma teoria nova e contrária aos fatos. A experiência na qual Galileu deseja fundamentar a concepção copernicana não passa do resultado de sua própria imaginação fértil: ela foi inventada! [20].

Uma vez que os argumentos de Galileu não são suficientes, ele faz uso da propaganda e de truques psicológicos (com sucesso!) para convencer a todos do movimento da Terra.

Outros podem facilmente enganar-se com a simples aparência ou representação dos sentidos. E o fenômeno é o de dar a impressão àqueles que de noite caminham por uma estrada de estarem sendo seguidos pela Lua com idêntico passo, enquanto a veem rasar as ponteiras dos telhados sobre os quais ela lhes aparece, exatamente da mesma maneira que faria uma gata que, realmente caminhando sobre as telhas, se mantivesse atrás deles: aparência de que, quando não interviesse o raciocínio, enganar-se-ia a visão.

Salviati – Imaginai agora estar num navio e ter fixado o olho na ponta do mastro: acreditais que, porque o navio se movesse velocissimamente, ser-vos-ia necessário mover o olho para manter a vista sempre na ponta do mastro e seguir o seu movimento?

Simplício – Tenho certeza de que não seria preciso fazer nenhuma mudança, e que não somente a vista, mas, quando eu tivesse ajustado a mira de um arcabuz, qualquer que fosse o movimento do navio, jamais seria preciso movê-la um só fio de cabelo para mantê-la ajustada.

Salviati – E isso acontece porque o movimento que o navio confere ao mastro confere-o também a vós e a vosso olho, de modo que não vos convém movê-lo para olhar a ponta do mastro; e, consequentemente, ela aparece-vos imóvel [21].

Fica claro que isso é, de fato, uma forte persuasão.

Galileu argumentava que, tanto do ponto de vista aristotélico quanto do copernicano, a pedra poderia ser vista cair ao pé da torre, de forma que a experiência observacional, confirmada pelos nossos sentidos por si só não demonstrava nada [22].

A essência do artifício de Galileu é o chamado princípio da relatividade do movimento. Essa explicação, a respeito da percepção do movimento, baseia-se na afirmação de que os nossos sentidos só notam o movimento relativo e são insensíveis a um movimento que os objetos tenham em comum [23]. Ou seja, nós não notamos o movimento circular da pedra, enquanto ela cai do alto da torre, porque tanto nós, quanto a torre e a pedra estamos girando juntamente com a Terra. Como todos esses movimentos são comuns, eles não são percebidos por nossos sentidos. O único movimento que percebemos é aquele movimento que não é comum a Terra, a torre e a nós mesmos – que é o movimento que a pedra mede a torre – caindo do alto até sua base.

Explicado o porquê de não percebemos o movimento circular da pedra, resta a Galileu explicar por que a pedra acompanha a torre e não é deixada para trás.

Desde a época de Aristóteles, acreditava-se que os corpos que não sofriam interação física permaneceriam em repouso, isto é, manteriam sua posição. Assim, seria necessário empurrar um objeto para que ele pudesse se mover. Dessa forma, o fato da pedra tocar o solo na base da torre significava/provava que a Terra não estava em movimento [24].

Então era necessário supor algo contra-indutivo que não se baseasse exclusivamente em nossos sentidos, mas também, e principalmente, na razão, de maneira tal que o movimento da Terra possa continuar a ser afirmado.

Para explicar o motivo da pedra acompanhar a torre, Galileu cria (inventa!) o chamado princípio na inércia circular:

Um objeto que se move ao redor do centro da Terra com certa velocidade angular, em uma esfera livre de atrito, continuará a mover-se para sempre com essa mesma velocidade angular [24].

Argumente...

5 – Pelo que estudamos até aqui, quais são os principais argumentos em favor do modelo geocêntrico e da imobilidade da Terra? Você concorda com eles? Comente.

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Logo, tanto a pedra quanto a torre estão se movendo junto com a Terra, e ela, a pedra, chegará ao solo sem se deslocar da torre. Ou seja, o movimento aparente da pedra em queda-livre, combinado com o princípio da relatividade e com o princípio da inércia circular transforma o argumento que contradiz Copérnico em argumento que o confirma!

Assim, Galileu substitui a complexa e sofisticada teoria do movimento de Aristóteles por sua própria lei da inércia, à qual faltava apenas corroboração [26]. Sua principal alegação consiste na defesa de Salviati do argumento pelo qual uma pedra abandonada do alto do mastro de um navio, que move-se com velocidade constante, não ficaria para trás (como acreditara Simplício), mas tocaria o chão do barco junto ao pé do mastro, da mesma forma que o faria, caso o navio estivesse parado:

Salviati – Afirma, portanto, Aristóteles, que um argumento certíssimo da imobilidade da Terra é vermos os projéteis subirem e retornarem, pela mesma linha, ao mesmo lugar de onde foram atirados, e isso, ainda que o movimento fosse altíssimo; o que não poderia acontecer quando a Terra se movesse, porque no tempo em que o projétil se movesse para cima e para baixo, separado da Terra, o lugar onde teve início o movimento do projétil afastar-se-ia, devido à rotação da Terra.

Indução & Contra-Indução Para a filosofia, indução é o raciocínio lógico que, após considerar um número suficiente de casos particulares da experiência percebida por nossos sentidos, conclui-se uma verdade geral. A contra-indução é, portanto, o oposto: considerar poucas ou nenhuma experiência sensível, e contradizer hipóteses ou experimentos bem estabelecidas.

Apesar de aparentar, não criticamos Galileu por usar a contra-indução. Criticamos por considerar suas concepções como verdade absoluta, mesmo tendo escolhido tal procedimento contra-indutivo [27].

Simplício – Assim, existe a experiência tão apropriada da pedra que se deixa cair do alto do mastro do navio, a qual, quando o navio está parado, cai ao pé do mastro, mas, quando o navio se move, cai tão longe quanto o espaço que o navio percorreu durante o tempo da queda da pedra; o que não são poucas braças, se o movimento do navio é veloz.

Salviati – Pois é evidentíssimo que o movimento do navio é acidental, bem como para todas as coisas que estão nele, pelo que não causa espanto que aquela pedra, que era mantida no cimo do mastro, deixada em liberdade, caia para baixo junto ao pé do mastro115. Além do mais, a rotação diurna é posta como movimento próprio e natural

do globo terrestre e, consequentemente, de todas as suas partes; e, por isso, aquela pedra que está no alto da torre tem, como um instinto primário, de girar em torno do centro da Terra em vinte e quatro horas, e este talento natural ela o exercita eternamente, em qualquer estado em que esteja posta [30].

Galileu generaliza suas ideias contra- indutivas, a respeito da queda dos corpos, tanto para assuntos terrestres quanto para os celestes, a fim de confirmar o movimento da Terra.

Simplício – Então, não fizestes cem provas e nem mesmo uma, e afirmais tão francamente que ela é certa?

Salviati – Eu, sem experiência, estou certo de que o efeito seguir-se-á como vos digo, porque assim é necessário que siga; e acrescento que vós mesmos sabeis muito bem que não pode acontecer diferentemente, ainda que finjais, ou simuleis fingir não o saber [32].

115 A inspiração de Galileu para o que hoje chamamos de argumento da torre provavelmente surgiu da

observação do mastro dos navios. Entretanto, acredita-se que esses experimentos (tanto o do navio, quanto o da Torre de Pisa) não foram, de fato, realizados por Galileu ou seus contemporâneos, uma vez que se tratava apenas de um “argumento” teórico [33].

Figura 7 – Rascunhos do movimento circular no manuscrito de Galileu, Itália, 1610 [31].

Assim, Galileu introduz o princípio da inércia circular não por referência a um experimento ou uma observação, mas por uma afirmação muito mais especulativa, e é por meio disso que é alcançada a transição de uma cosmologia geostática para o ponto de vista copernicano [34].