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ENCONTROS COM MARCOS III Os de Dentro e os de Fora Mc 4,1-6,29

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Academic year: 2021

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Mc 4,1-6,29

1. Percurso Narrativo

No segundo “Encontro com Marcos”, acompanhámos o primeiro anúncio de Jesus na Galileia. Um percurso fulgurante, que atrai multidões sedentas de saúde, vida e esperança (1,14.45). Por outro lado, surge a suspeita, a crítica e a crescente oposição das autoridades que começam a tramar a morte de Jesus (Mc 2,1-3,6). Ele começa a formar uma comunidade própria, com sinais evidentes de futuro: infunde a ideia de um novo êxodo, conduzindo a multidão até ao lago/mar; demarca-se radicalmente das autoridades que o acusam de estar possesso do demónio e identifica uma nova família alargando os horizontes da família de origem. Traça assim uma demarcação entre aqueles que estão dentro, escutam a Sua Palavra e fazem a vontade de Deus e os que estão fora e o rejeitam ao ponto de preparar a sua morte (3,7-35).

Neste terceiro encontro, Marcos continua o tema da demarcação entre “os de dentro e os de fora”. Num discurso em parábolas (4,1-34), perante os discípulos abalados com a oposição crescente a Jesus, este expõe a lógica nova do Reino de Deus, como semente que tem em si própria o dinamismo necessário ao seu crescimento. Estamos no tempo da sementeira e há que dar tempo a que o projeto de Deus se desenvolva.

 Em seguida, atravessa o lago/mar da Galileia com os discípulos (4,35-41). Uma tempestade põe a claro a fragilidade e os medos profundos dos discípulos, ao mesmo tempo que revela a tranquilidade de Jesus e o seu domínio sobre os elementos da natureza e da vida. Os seus gestos e atitudes suscitam a pergunta sobre a Sua identidade:

Quem é este a quem até o vento e o mar obedecem?

 Chegado ao território pagão de Guerasa, Jesus é confrontado com um homem possesso de um espírito impuro e violento, imagem do mundo pagão (5,1-20). A libertação do homem e a purificação do território significam o alargamento da ação libertadora de Jesus para além do território de Israel.

 Voltando a Israel, dois episódios entrelaçados– uma mulher que perde sangue e a filha moribunda de um chefe de sinagoga (5,21-43) – mostram a situação de crise do povo eleito, à qual Jesus propõe a fé nele como manifestação do amor fiel de Deus que vem revivificar Israel.

 Numa viagem a Nazaré – a aldeia onde se criou – Jesus é admirado pelos Seus milagres,

mas claramente rejeitado pela Sua origem humilde e bem conhecida. É uma imagem que resume toda a oposição que se vai acumulando (6,1-6).

 Jesus intensifica o Seu projeto, enviando em missão os Doze discípulos que tinha escolhido, para continuarem a sua ação de anunciar a chegada do Reino de Deus e dar

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disso testemunho através dos sinais de libertação dos espíritos do mal e do cuidado dos que sofrem (6,7-13).

 Num “flashback”, Marcos fala da prisão e morte de João Batista, em fidelidade à sua missão profética (6,14-29). Deste modo, conclui-se uma etapa da sua narração e deixa-se intuir que o mesmo pode acontecer ao próprio Jesus. Daqui por diante, o tema da incompreensão e da morte de Jesus estará cada vez mais no horizonte do Evangelho.

2. Discurso em parábolas

 Depois das discussões com as autoridades (3,20-30) e de começar a formar a sua comunidade, com a constituição dos Doze (3,13-19) e a identificação da sua "família" (3,31-34), Jesus conduz os seus em direção ao mar, à semelhança de Moisés durante o êxodo e, antes da travessia (4,35) pronuncia um grande discurso em parábolas.

 Marcos reúne, neste capítulo, várias parábolas que são importantes para compreender quem é Jesus e o alcance da sua ação. Embora não se possa determinar com certeza o contexto em que foi pronunciada cada uma das parábolas, os três Evangelhos Sinópticos estão de acordo em colocá-las depois da primeira crise do ministério, que Marcos descreve nos capítulos anteriores. Elas surgem num contexto de contradição: ou se aceita Jesus como o Messias esperado e se O segue, a sua Palavra faz sentido; ou se O rejeita como impostor, como enviado de Belzebu, e os seus discursos são absurdos (3,20-30).

 Muitos são os que deixam de andar com Jesus, desencantados pelo rumo que as coisas estão a tomar. Entre os que O seguem, levantam-se também muitas interrogações acerca da validade da mensagem: Onde está o Reino de Deus que eles esperavam ver manifestar-se com todo o manifestar-seu poder? Jesus, depois das primeiras manifestações, parece não responder ao que se esperava e recusa tomar, efetivamente, a liderança da libertação, segundo o modelo que se esperava do Messias. Que é então o Reino de Deus?

 É neste contexto e para responder a estas questões, que se entendem as parábolas.

PARÁBOLA DO SEMEADOR (4,1-9)-MT 13,1-9;LC 8,4-8

1 De novo começou a ensinar à beira-mar. Uma enorme multidão vem agrupar-se junto dele e,

por isso, sobe para um barco e senta-se nele, no mar, ficando a multidão em terra, junto ao mar. 2 Ensinava-lhes muitas coisas em parábolas e dizia nos seus ensinamentos:

3 Escutai: o semeador saiu a semear. 4 Enquanto semeava, uma parte da semente caiu à beira

do caminho e vieram as aves e comeram-na. 5 Outra caiu em terreno pedregoso, onde não

havia muita terra e logo brotou, por não ter profundidade de terra; 6 mas, quando o sol se

ergueu, foi queimada e, por não ter raiz, secou. 7 Outra caiu entre espinhos, e os espinhos

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deu fruto e produziu a trinta, a sessenta e a cem por um. 9 E dizia: «Quem tem ouvidos para

ouvir, oiça.

3-8 Escutai: o semeador saiu a semear...

 A parábola reflete um grande optimismo: A semente é boa e a terra, embora diferenciada, dará um abundantíssimo fruto – trinta, quarenta, sessenta e cem por um, quando a média, na Palestina, não passava de vinte ou vinte e cinco. Há uma parte da semente que cai fora do bom terreno, como sempre acontece quando se semeia, mas isso não impede o agricultor de se alegrar pelos abundantes frutos do seu trabalho.

 A semente do Reino é proposta a todos com liberalidade. O Pai do Céu alegra-se com o

resultado, como um pai com muitos filhos ao receber as notas deles no fim do ano. Sabe que têm qualidades e resultados diferentes, mas ele não os olha só pelos resultados. A família vai crescendo com o contributo próprio de cada um.

 Aqueles que não acolhem a semente são esses terrenos problemáticos e não aptos à sementeira. E, mesmo assim, até alimentam as aves do céu! Além disso não impedem que o plano de Deus se cumpra, mesmo na dor de um labor nem sempre recompensado.

 Durante a vida pública de Jesus, a parábola pretende responder à questão crucial dos discípulos que, no meio da contradição, perguntam: quando aparecerá o Reino de Deus? Quando é que o Senhor surgirá em todo o Seu poder?

 A parábola é, antes de mais, o grito de júbilo de Jesus afirmando: o Reino de Deus está a ser semeado e vai dar os seus frutos, apesar daquilo que se vê nos contornos e que parece não prometer nada. É preciso olhar os acontecimentos em profundidade e à distância, para não perder a perspectiva diante das dificuldades presentes.

 Por outro lado, avisa igualmente que o Reino não é uma operação militar ou um toque de magia. O Reino, neste mundo, é obra de Deus, mas numa dimensão humana. Uma árvore precisa de tempo para crescer antes de dar fruto. Os pais plantam árvores para que os filhos deles se sentem à sombra e comam frutos. Jesus tem isso bem presente.

 A família, a Igreja, tem que acolher e anunciar o Reino deste modo. Até a semente levada por um pássaro pode dar uma espiga num recanto escondido da floresta, que só Deus conhece, e que não está nos mapas do nosso GPS. E até se pode lá multiplicar com outras cores e paladares.

9 Quem tem ouvidos para ouvir, que oiça!

 O convite final de Jesus é muito importante: Ouvir a Palavra não é somente um fenómeno auditivo. É um ato humano e vivo, atento e ativo. É preciso ouvir com o coração, como

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uma Palavra que transporta uma declaração de amor, um segredo precioso, uma notícia decisiva.

 Em hebraico, escutar é um verbo muito especial. Significa ouvir, mas igualmente dar ouvidos, assentir, obedecer. A oração principal de Israel começa precisamente com o imperativo: "Escuta Israel!" (cf. Dt 6,4). Toda a vida de fé começa e desenvolve-se pela escuta da Palavra. Daí o apelo de Jesus a ouvir, para discernir e crescer com a semente por Ele lançada.

OUVIR DE DENTRO E DE FORA (4,10-12)-(MT 13,10-17;LC 8,9-10)

10 Ao ficar só, os que o rodeavam, juntamente com os Doze, perguntaram-lhe o sentido da

parábola. 11 Respondeu: A vós é dado conhecer o mistério do Reino de Deus; mas, aos que

estão de fora, tudo se lhes propõe em parábolas, 12 para que ao olhar, olhem e não vejam, ao

ouvir, oiçam e não compreendam, não vão eles converter-se e ser perdoados.

11 A vós é dada a revelação do Reino de Deus...mas, aos de fora, tudo se passa em parábolas...  Encontramos aqui, como em 3,32, a oposição entre os que estão com Jesus e os de fora.

Para estes últimos, tudo é apenas uma parábola, um símbolo que deveria desvelar um sentido mais profundo, mas que eles não entendem. Mas para vós, para os de dentro, é a revelação do Reino de Deus.

 Não se trata de um segredo, como se se tratasse de uma sociedade secreta que não revela os seus mistérios. Trata-se é de estar em posição de entender a lógica nova das coisas. Isso só é possível implicando-se nelas. É assim que um ganancioso explorador de minas não entende as preocupações dos que querem um mundo ecologicamente sustentável; que o verdadeiro espírito de família só é verdadeiramente significativo a partir de dentro dela.

12 de tal modo que vendo, não vejam, ouvindo não compreendam, não se convertam e não sejam perdoados

 Parece uma expressão muito dura, como se as parábolas tivessem a função de encobrir a

mensagem, em vez de a revelar.

 Trata-se de uma citação literal de Isaías (6,10). O profeta, olhando retrospectivamente para o resultado da sua pregação, descobre que a Palavra teve efeitos contrários ao que se esperava. O povo não a escutou e isso representou mais uma ocasião de endurecimento. Deus passou e foi recusado. Trata-se, pois, de uma ironia amarga. Apesar da insistência de Deus através da palavra do profeta, Israel não viu, nem escutou, para ser salvo.

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 Esta é uma dimensão importante da Palavra. Ela não deixa as coisas como as encontra: ou se adere e se entra no Reino, ou se rejeita, optando, mais uma vez e talvez decisivamente, por perder a ocasião. E, de novo, a questão está em estar dentro ou estar fora.

 Jesus não profere as parábolas para que o "segredo" do reino não seja entendido, mas conforme a posição que cada um assume perante a sua pessoa, a parábola pode ser pedra

angular de construção ou pedra de tropeço (1Pedro,2,4-8). EXPLICAÇÃO DA PARÁBOLA (4,13-20) -MT 13,18-23;LC 8,11-15

13 Não compreendeis esta parábola? Como compreendereis então todas as outras parábolas? 14 O semeador semeia a palavra. 15 Os que estão ao longo do caminho são aqueles em quem a

palavra é semeada; e, mal a ouvem, chega Satanás e tira a palavra semeada neles. 16 Do

mesmo modo, os que recebem a semente em terreno pedregoso, são aqueles que, ao ouvirem a palavra, logo a recebem com alegria, 17 mas não têm raiz em si próprios, são

inconstantes e, quando surge a tribulação ou a perseguição por causa da palavra, logo desfalecem. 18 Outros há que recebem a semente entre espinhos. Esses ouvem a palavra, 19

mas os cuidados do mundo, a sedução das riquezas e as restantes ambições entram neles e sufocam a palavra, que fica infrutífera. 20 Aqueles que recebem a semente em boa terra são os

que ouvem a palavra, a recebem, dão fruto e produzem a trinta, a sessenta e a cem por um.

13 Não compreendeis esta parábola?

 Provavelmente, na sua origem, a parábola não continha a explicação que, hoje, aparece nos versículos 13-20. Normalmente, as parábolas não eram explicadas por aquele que as propunha, pois eram compreensíveis por si próprias. Eram deixadas à consideração dos ouvintes, para que fossem considerando calmamente o seu sentido. Além disso, habitualmente, cada parábola tem apenas um sentido e não costuma decompor-se em partes como acontece na explicação desta.

 A explicação é, provavelmente, obra da comunidade de Marcos, que adapta o sentido da

parábola para a sua catequese, interrogando-se porque é que a Palavra não dá fruto e aplicando-a às dificuldades com que se depara no acolhimento do Evangelho.

15 ...à beira do caminho...vem Satanás

 Satanás significa acusador/tentador. No Evangelho de Marcos fala-se duas vezes dele: nas tentações (1,13), como aquele que apresenta um falso ideal messiânico de estilo judaico baseado na força e na violência. É também em relação a esta ideia messiânica que Pedro é

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chamado Satanás em 8,33, por não aceitar que, ao contrário da mentalidade judaica corrente, o Messias tenha de sofrer e morrer.

 Ainda ligada com esta ideia está a atitude dos fariseus para com Jesus que O colocam à prova pedindo um sinal (8,11; 12,15). Trata-se sempre da tentativa de apresentar um Messias e um Deus que se impõe pela força e rejeitar o Deus do amor que, em Jesus, ama até dar a vida pelos homens.

 A tentação do poder e da violência, a recusa em fazer da vida um dom é o primeiro obstáculo à aceitação do Reino. Neste caso, porém, Satanás representa tudo aquilo que impede liminarmente a aceitação da Palavra; um modo de viver e de estar que não deixa espaço nenhum para escutar.

16-17...entre as pedras...não têm raízes...chegada a perseguição, tropeçam

 Aceitar o Evangelho, aderir ao Reino, significa aceitar um género de vida que nem sempre é cómoda, pois esta atitude suscita a oposição e a perseguição. Tenha-se em conta que, na comunidade cristã do tempo de Marcos, a perseguição era uma probabilidade muito próxima e concreta.

 Sem um enraizamento profundo na Palavra, não é possível resistir à perseguição, às acusações de ridículo, às investidas da dúvida. Esta é a razão pela qual muitos sucumbem, mas é também a segunda vitória daqueles que permanecem fiéis. Eles vencem, apesar dos obstáculos, afirmando a validade e a força do Evangelho.

18-19 ...entre os espinhos... Recebem com alegria, mas as seduções do mundo, a atração das riquezas ... sufocam a palavra …

É a superficialidade na adesão ao Evangelho. A adesão não pode ser apenas um lobby entre muitos. Como numa relação de amor, quando não se investe e não se se implica totalmente, as coisas acabam por não assumir a importância e o gosto de viver, enquanto outras vão aparecer mais brilhantes e atrativas. Em breve, o Reino torna-se uma questão perfeitamente secundária, a ter em conta só depois de todas as outras.

20 ... os que foram semeados na terra boa... ouvem a palavra, guardam-na e dão fruto.

 É o grosso da semente que vai dando frutos abundantes e diversificados que só Deus conhece. A diferença do produto em relação à semente não é uma questão de mais ou menos. Se cada terreno dá o que pode (parábola dos talentos) é sempre a realização plena da semente.

 Mas, neste momento, o Reino não se vê ainda como uma colheita, mas sim como uma sementeira. Isto é verdade no tempo de Jesus, como no da comunidade de Marcos e no

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nosso tempo. A Igreja e a vida de cada um de nós é sempre um semear e um acolher. Na realidade, nesta terra, o Reino estará sempre no tempo da sementeira. O fruto da semente só maturará plenamente na plenitude da vida em Deus. Mesmo as mais fulgurantes manifestações de sucesso, ao longo da história, são passageiras. Para ter uma noção de boa colheita, os horizontes têm de ser alargados. De outro modo seria brincar ao Evangelho.

 Estes tipos de comportamento perante a Palavra de Deus são exemplificativos e não exclusivos. Cada comunidade e cada cristão é chamado a perguntar qual o tipo de resposta e de adesão que dá ao Evangelho, a descobrir, com alegria e esperança, em si e no mundo, os sinais da presença transformadora e vivificante de Deus.

A LUZ E A MEDIDA (4,21-25) -MT 5,15;7,2;10,26;13,12;LC 8,16-18

21 Disse-lhes ainda: Acaso vem a luz para se colocar debaixo do alqueire ou debaixo da cama?

Não é para ser colocada no candelabro? 22 Porque não há nada escondido que não venha a

descobrir-se, nem há nada oculto que não venha à luz. 23 Se alguém tem ouvidos para ouvir,

oiça.

24 E prosseguiu: «Tomai sentido no que ouvis. Com a medida que empregardes para medir é

que sereis medidos, e ainda vos será acrescentado. 25 Pois àquele que tem, será dado; e ao

que não tem, mesmo aquilo que tem lhe será tirado.

21 Acaso vem a luz para se colocar debaixo do alqueire?

 Esta parábola aparece com uma forma e um sentido algo diferentes nos outros Evangelhos Sinópticos. Aqui é necessário ter em conta o verbo vir: Vem a luz. A luz que vem é Jesus: a Sua palavra e os Seus gestos.

 A parábola refere-se à questão fundamental da revelação de Jesus. Ele está no mundo para brilhar e iluminar. Para muitos, porém, dá a impressão de que Ele se esconde, porque não são capazes de descobrir nele a luz do amor de Deus. Esperavam algo bem diferente do modo como age Jesus. Mas essa luz acabará por se tornar patente, porque não há nada encoberto senão para se tornar evidente.

24 Vede como é que escutais ... ao que tem dar-se-á, mas ao que não tem, ser-lhe-á tirado até mesmo aquilo que tem.

 Não se trata de uma atitude punitiva de Deus para com aqueles que O recusam, mas da

constatação das consequências da atitude assumida perante a pessoa de Jesus: Quem se aproxima na atitude correta para escutar, tem pouco, mas receberá em abundância; mas quem não tem essa atitude e se aproxima de Jesus com atitude diferente (Cf. explicação da parábola do semeador), até a curiosidade inicial desaparecerá.

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 Por isso, é importante a atitude de ver e de escutar. Estamos na mesma lógica de "os de dentro e os de fora” (4,10-12) e da diferença entre o círculo de discípulos à volta de Jesus em contraste com os fariseus "de fora" que julgam e condenam.

 Jesus não pede uma fé ingénua e sem inteligência. Pelo contrário, está sempre a insistir na compreensão das coisas e esse é o objetivo das parábolas. O que pede é precisamente um coração inteligente, livre e sem preconceitos de nenhum género.

A VITALIDADE DA SEMENTE (4,26-29)

26 Dizia ainda: O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra. 27 Quer

esteja a dormir, quer se levante, de noite e de dia, a semente germina e cresce, sem ele saber como. 28 A terra produz por si, primeiro o caule, depois a espiga e, finalmente, o trigo perfeito

na espiga. 29 E, quando o fruto amadurece, logo ele lhe mete a foice, porque chegou o tempo

da ceifa.

26 O Reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra…

 Esta é a mais paradoxal e optimista das parábolas. O trigo cai na terra e desaparece, depois brota sem que o agricultor tenha de fazer algo. Quando estiver maduro, lança a foice para a colheita. Há uma referência explícita ao texto do profeta Joel (4,13) sobre o fim dos tempos, mas o sentido é diferente.

 É a parábola da absoluta confiança em Deus e no seu poder. À pergunta dos discípulos - "Onde está… Quando chega o Reino de Deus?" - Jesus convida-os a olhar mais para diante: A semente está a ser lançada à terra e ainda terá de morrer, mas possui em si mesma a força da vida e, por isso, crescerá e dará o seu fruto. Só do ponto de vista da colheita tem sentido a sementeira. Só da perspectiva da realização total do Reinado de Deus é que se entendem as diversas fases por que ele passa.

 É um convite a olhar o mundo, a história e a nossa vida com os olhos de Deus, com os olhos de uma mãe ou de um pai que acarinham um bebé, com a perspetiva de vê-lo crescer como homem ou mulher. Se quisessem apressar as coisas e queimar etapas, a criança arriscava-se a não chegar a atingir a maturidade. Deixemos que o Reino de Deus, nas pessoas e no mundo, cresça com o seu dinamismo próprio, dando o tempo para a sua maturação.

 É também o segredo da paz ativa com que Jesus vivia: Os discípulos andavam preocupados porque o Reino nunca mais chegava; os revolucionários zelotas tinham já pegado em armas para libertar a nação; os essénios, preocupados com o fim do mundo próximo, tinham-se já separado dos pecadores; os fariseus tinham pautado a sua vida por um rigorismo legal externo, para conseguir agradar a um Deus susceptível. Jesus, pelo contrário, olha para o mundo com os olhos do Pai e vê que o Seu Reino se desenvolve, no meio das dificuldades, mas sob as mãos protetoras e poderosas do Pai. Jesus não fica

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ocioso perante a vinda do Reino. Pelo contrário, dá-se completamente à tarefa de semeá-lo, mas conhece o dinamismo da semente e o amor poderoso do Pai que o enviou.

 É a parábola da fé no homem, mas também da fé na escatologia: Não é possível uma fé

com estes horizontes, uma vida de calma, paz e esperança, sem a dimensão definitiva e total do Reino, da Ressurreição e da vida total em Deus.

 Jesus convida a ver os sinais dessa realidade e a lançar à terra, com confiança, alegria e paciência, a semente do Reino.

PARÁBOLA DO GRÃO DE MOSTARDA (4,30-32) -MT 13,31-32;LC 13,18-19

30 Dizia também: Com que havemos de comparar o Reino de Deus? Ou com qual parábola o

representaremos? 31 É como um grão de mostarda que, ao ser deitado à terra, é a mais

pequena de todas as sementes que existem; 32 mas, uma vez semeado, cresce, transforma-se

na maior de todas as plantas do horto e estende tanto os ramos, que as aves do céu se podem abrigar à sua sombra.

31 É como um grão de mostarda que, ao ser deitado à terra, é a mais pequena de todas as sementes…

 Na linha das anteriores, esta parábola exprime bem o dinamismo do Reino, sublinhando

sobretudo a desproporção entre os começos, aparentemente insignificantes, e o resultado que assume dimensões grandiosas.

 A imagem das aves do céu que vêm acolher-se à sombra da árvore é usada no Antigo Testamento para falar dos povos que fazem parte de um grande império. Deste modo, Jesus afirma o dinamismo interno do Evangelho. Este pequeno grupo, que agora segue Jesus, há de crescer e tornar-se na maior que todas as árvores, dando abrigo e acolhimento aos homens e mulheres de todas as nações. Mas, ao aderir a este projeto do Evangelho para toda a terra, é preciso não esquecer que ele será sempre uma semente pequena a lançar à terra, em todas as terras e tempos.

 Mas o sentido da parábola, lida na comunidade, não se esgota no anúncio das dimensões

numéricas e geográficas do Reino. É a sua própria natureza que a parábola sublinha. A vida que Jesus semeia não é apenas uma colheita abundante, em termos daquilo que se considera sucesso, em termos sociais, estratégicos, militares, políticos ou sociais. Esta é uma semente que produz frutos para além de todas as sementeiras humanas, que vão para além da própria capacidade humana. Na realidade, sementes destas somente Jesus pode semear porque é o Filho de Deus, na plenitude do Espírito que recria todas as coisas.

 Há sempre um dinamismo interno, invisível, em tudo o que diz respeito ao Reino, que os homens desprezam por ser insignificante, mas que representa o verdadeiro segredo do desenvolvimento e da vida.

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USO DAS PARÁBOLAS (4,33-34) -MT 13,34-35

33 Com muitas parábolas como estas, anunciava-lhes a Palavra, conforme eram capazes de

compreender. 34 Não lhes falava senão em parábolas; mas, em particular, explicava tudo aos

discípulos.

33-34 anunciava-lhes a Palavra, conforme eram capazes de compreender… mas, em particular, explicava tudo aos discípulos.

 A conclusão do discurso das parábolas volta ainda à questão do uso que Jesus faz das parábolas, com a distinção entre as multidões e o grupo dos discípulos, a quem tudo era explicado em particular. Encontramo-nos ainda no contraste entre “os de dentro e os de fora”, embora não na mesma linha de aceitação e rejeição que estava presente na secção anterior. Aqui, trata-se mais da distinção entre a multidão que acorre para ouvir e ser curada e os discípulos que constituem um grupo mais estável à volta de Jesus.

 Mas há também uma outra importante diferença nesta conclusão, em relação a quanto se

dizia acima (4,11) que as parábolas apresentavam o Reino, aos de fora, de uma forma velada. Agora diz-se que as parábolas são um modo pedagógico para adaptar a mensagem à capacidade de compreensão da multidão, que começa a entender a Boa Nova.

 É muito importante ter em conta esta solicitude pedagógica de Jesus, que desafia as nossas comunidades a adaptarem e inculturarem o Evangelho em cada situação, e com a gradualidade requerida a cada grupo e a cada etapa das pessoas, sem paternalismo nem integralismo. Jesus não veio impor uma doutrina petrificada; veio comunicar a notícia do amor salvador do Pai. O seu estar próximo, preocupar-se que tenha sido bem entendido, que a Palavra criou empatia e relação é que é o seu objetivo. Jesus não está a "formar" técnicos do Evangelho: está a criar uma comunidade de gente que, à sua volta, se vão sentindo irmãos, que compreendem e se inserem no projeto/vontade de Deus. A Palavra, nas suas diversas formas, está ao serviço deste objetivo.

TEMPESTADE ACALMADA (4,35-41) -MT 8,23-27;LC 8,22-25

35 Naquele dia, ao entardecer, disse: Passemos para a outra margem. 36 Afastando-se da

multidão, levaram-no consigo, no barco onde estava; e havia outras embarcações com Ele. 37

Desencadeou-se, então, um grande turbilhão de vento, e as ondas lançavam-se sobre o barco, de forma que este já estava quase cheio de água. 38 Jesus, à popa, dormia sobre uma

almofada. 39 Acordaram-no e disseram-lhe: Mestre, não te importas que pereçamos? Ele,

despertando, intimou ao vento e disse ao mar: Cala-te, acalma-te! O vento serenou e fez-se grande calma. 40 Depois disse-lhes: Porque estais tão apavorados? Ainda não tendes fé? 41 E

sentiram um grande temor e diziam uns aos outros: Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?

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35 Passemos para a outra margem!

 Jesus tinha simbolicamente conduzido os seus em direção ao mar, como fizera Moisés para libertar o povo do Egito. Ele deseja abrir novos horizontes, para além da estreiteza de mente a que os mestres de Israel tinham conduzido a herança de Moisés e dos profetas. Desta vez, o êxodo não será em direção à terra de Israel, mas de Israel para o mundo, neste caso, o território estrangeiro de Guerasa, do outro lado do lago (mar): Passemos para a outra margem!

 No Evangelho de João, Jesus dá aos discípulos, depois de uma pesca infrutífera, uma orientação do mesmo género: Lancem a rede para o lado direito do barco! (Jo 21,6). É próprio das instituições humanas habituarem-se ao dia-a-dia, a deixarem de olhar para além do próprio quintal e de se acomodarem ao ninho quente do "sempre foi assim". Em todas as épocas, Jesus vai dizendo aos seus: assumam a mentalidade do êxodo! Não se resignem nem se acomodem! Partam de si próprios e lancem-se na aventura de um mundo novo! Deus não é uma peça de museu, Ele vai sempre à vossa frente!

 Jesus não vem anular ou substituir Israel. Este será sempre o povo de Deus. Ele vem propor a renovação, na fidelidade à vocação de ser bênção para os povos. As pessoas podem ser infiéis a Deus, mas Deus nunca será infiel à humanidade e às promessas que proferiu, mas fidelidade sem renovação, não coincide com o dinamismo do Espírito de Deus.

37 Desencadeou-se um grande turbilhão de vento, e as ondas lançavam-se sobre o barco, de forma que este já estava quase cheio de água…

 Passar para a outra margem, promover a renovação, não é coisa fácil. O próprio Jesus e aqueles que O seguem já viram a oposição que isso pode suscitar e quanto pode custar a renovação. Viver agachado ou aconchegado nas estruturas e rodeado de muros pode ser limitador, mas resguarda das tempestades e poupa o trabalho de pensar, de arriscar, de procurar novos caminhos. Fica garantida a segurança psicológica e moral da certeza da lei, mesmo que seja à custa de ter de fechar os olhos aos problemas que se encontram para além dos muros protetores e de atrofiar as asas até não servirem para voar.

 Sair deste aconchego significa enfrentar a incerteza das ondas que rapidamente se podem tornar tempestuosas e ameaçadoras. A água da dúvida e do imprevisto entra facilmente no barco e é muito provável que nos sintamos realmente perdidos, como os discípulos no barco com Jesus.

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38 Jesus, à popa, dormia sobre uma almofada. Acordaram-no e disseram-lhe: Mestre, não te importas que pereçamos?

 Em contraste com a azáfama dos discípulos, Jesus dorme à popa do barco. Evidentemente

que não se trata apenas do efeito do cansaço, depois de um dia a pregar à multidão. Dois traços parecem sobressair deste sono:

 É, antes de mais, a manifestação da estatura de Jesus acima das tempestades que assolam o mar e deixam impotentes os discípulos. Ele é o Senhor, que tem poder sobre o abismo, como sobre os espíritos do mal e a doença. Mas é importante que esteja na barca que enfrenta a tempestade, onde os discípulos têm medo.

 Por outro lado, a exclamação aflita dos discípulos – não te importas que pereçamos? – faz eco da pergunta que os crentes fazem perante o silêncio de Deus nas ocasiões mais dramáticas da vida: Acorda, Senhor, porque dormes? É-te indiferente a nossa dor a aflição?

 No seu grito, os discípulos exprimem a angústia e o inconformismo de todos os aflitos perante o silêncio de Deus. Exprimi-lo, dirigindo-o diretamente a Ele, como fez Job, mesmo com insistência e rebeldia é ainda uma forma de confiança, chegando ao seu humano limite: serás realmente insensível à nossa angústia?

39… Intimou ao vento e disse ao mar: Cala-te, acalma-te! O vento serenou e fez-se grande calma.

 O auxílio de Jesus é descrito de uma forma semelhante ao que encontramos em relação

aos demónios, através do verbo "epitimaw", aqui traduzido por intimar, que pode ser igualmente: imperar, repreender severamente. É o verbo que Jesus utiliza para exercer a Sua autoridade sobre os espíritos impuros. Esta aproximação é confirmada pela ordem de se calar, igualmente imposta aos demónios (cf. Mc 1,25; 3,12; 9,25).

 Deste modo, Jesus mostra que o seu sono não é feito de indiferença ou de cansaço. Quer pareça dormir, quer mostre por gestos a sua autoridade, Ele está bem atento à aflição dos discípulos e não se distrai no seu cuidado por eles.

40 Porque estais tão apavorados? Ainda não tendes fé?

 A observação de Jesus não está isenta de crítica, mas significa muito mais do que isso. O termo– apavorados "deiloi" – que Marcos coloca na boca de Jesus, tem um sentido negativo: originariamente significa tímido ou cobarde. O problema não é sentir temor e medo. A questão é perder a cabeça e a visão da vida.

 Mas, mais do que criticá-los, Jesus apresenta um caminho com outra pergunta: ainda não tendes fé? E o que é a fé, neste contexto? A fé é o assumir que, nas dificuldades de toda a

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vida das pessoas, da família, da Igreja, Deus está presente na barca, mesmo que esteja em silêncio. A sua presença, sem lhe tirar dramaticidade e inevitável angústia, dá a estas situações-limite uma outra dimensão: por mais trágico que seja o momento, só posso dizer que não está fora do poder e do amor de Deus.

 O próprio Jesus se confrontará com esse silêncio de Deus no Jardim das Oliveiras (14,36ss) pedindo ao Pai que afaste dele o cálice que está para tomar. E, na cruz (15,34ss), as suas últimas palavras soam muito semelhantes à pergunta dos discípulos: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?". A presença de Jesus no barco dos discípulos é, ao mesmo tempo, expressão da sua solidariedade radical com a humanidade frágil no meio do abismo e das tempestades da vida, mas é, igualmente, testemunho da sua incondicional confiança no poder e no amor do Pai.

41 Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?

 A cena conclui-se com outra pergunta dos discípulos que faz eco do assombro da multidão na sinagoga de Cafarnaum: Que é isto? Eis um novo ensinamento, e feito com tal autoridade que até ordena aos espíritos malignos e eles obedecem-lhe! (1,27). No mesmo sentido vão as observações admiradas das pessoas a propósito das curas e sinais dados por Jesus. A questão baila já na mente, sobretudo dos discípulos, e tem uma resposta que se vai desenhando: só Deus pode fazer tal coisa ou alguém com a sua autoridade. No entanto, a questão fica em aberto e vai percorrer toda a narração até ao fim do Evangelho.

O POSSESSO DE GUERASA (5,1-20) -MT 8,28-34;LC 8,26-39

5,1 Chegaram à outra margem do mar, à região dos guerasenos. 2 Logo que Jesus desceu do

barco, veio ao seu encontro, saído dos túmulos, um homem possesso de um espírito maligno.

3 Tinha nos túmulos a sua morada, e ninguém conseguia prendê-lo, nem mesmo com uma

corrente, 4 pois já fora preso muitas vezes com grilhões e correntes, e despedaçara os grilhões

e quebrara as correntes; ninguém era capaz de o dominar. 5 Andava sempre, dia e noite, entre

os túmulos e pelos montes, a gritar e a ferir-se com pedras.

6 Avistando Jesus ao longe, correu, prostrou-se diante dele 7 e disse em alta voz: «Que tens a

ver comigo, ó Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te, por Deus, que não me atormentes!»

8 Efetivamente, Jesus dizia: «Sai desse homem, espírito maligno.» 9 Em seguida,

perguntou-lhe: «Qual é o teu nome?» Respondeu: «O meu nome é Legião, porque somos muitos.» 10E suplicava-lhe insistentemente que não o expulsasse daquela região.

11 Ora, ali próximo do monte, andava a pastar uma grande vara de porcos. 12 E os espíritos

malignos suplicaram a Jesus: «Manda-nos para os porcos, para entrarmos neles.» 13 Jesus

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cerca de uns dois mil, precipitou-se do alto no mar e ali se afogou. 14 Os guardas dos porcos

fugiram e levaram a notícia à cidade e aos campos.

As pessoas foram ver o que se passara. 15 Ao chegarem junto de Jesus, viram o possesso

sentado, vestido e em perfeito juízo, ele que estivera possuído de uma legião; e ficaram cheias de temor. 16 As testemunhas do acontecimento narraram-lhes o que tinha sucedido ao

possesso e o que se passara com os porcos. 17 Então, pediram a Jesus que se retirasse do seu

território.

18 Jesus voltou para o barco e o homem que fora possesso suplicou-lhe que o deixasse andar

com Ele. 19 Não lho permitiu. Disse-lhe antes: «Vai para tua casa, para junto dos teus, e

conta-lhes tudo o que o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti.» 20 Ele retirou-se, começou

a apregoar na Decápole o que Jesus fizera por ele, e todos se maravilhavam.

 Este texto não é uma simples narração histórica da intervenção de Jesus em Gerasa. Tal não quer dizer que seja uma invenção do evangelista. Está bem de acordo com o modo de partir de um relato existente e de construir, a partir dele, uma narração destinada a procurar (darache) e revelar o seu significado. Chama-se Midrache, um processo muito utilizado pelos mestres de Israel, que é usado também nos evangelhos.

 A esta luz se compreendem alguns dados do texto que, de outro modo, seriam incongruentes. Por exemplo, uma vara de 2.000 porcos não é fácil de conceber nesta altura, naquele território e, no território de Guerasa não existe nenhum precipício que que toque no lago/mar de Genesaré. Por essa razão, é importante atender à natureza simbólica do texto, se se quer perceber o seu sentido dentro do Evangelho.

1-2 Chegaram à outra margem do mar, à região dos guerasenos … veio ao seu encontro, proveniente dos sepulcros, um homem possuído por um espírito impuro.

 Jesus passa para a outra margem do lago, para o território da Decápole, fora da terra de Israel. É a primeira vez que Jesus alarga a sua ação a um território estrangeiro. A Boa Nova deve também ser anunciada aos outros povos e não se destinam, apenas, aos descenden-tes de Abraão.

 Ao desembarcar, Jesus é confrontado com o espírito do mal que domina o homem. O mundo pagão não apresenta uma situação melhor do que a de Israel. Como na sinagoga de Cafarnaum (1,21-28) Jesus confronta-se com um homem. É toda a humanidade que tem necessidade urgente de libertação.

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3-6 Tinha a sua morada nos túmulos, tinham tentado acorrentá-lo ... ninguém o conseguia dominar ... vivia gritando, dia e noite e ferindo-se a si próprio ...

 A pormenorizada caracterização deste endemoninhado não pretende ser uma descrição dos sintomas da possessão, mas sim uma apresentação simbólica, como toda esta narração, da situação do mundo pagão.

 Por três vezes se afirma que este homem tem a sua morada entre os túmulos, no reino da morte. É uma humanidade oprimida, que em vão se tenta acorrentar, pois reage à opressão com a revolta e é indomável na sua reação. Mas a revolta apenas serve para feri-lo e ele anda nu, despojado de dignidade e vagabundo, gritando o seu desespero e a sua revolta. Além disso, tem um nome militar – Legião – e manifesta-se num sem número de modos: Somos muitos. Neste mundo, a violência é a lei, tanto dos opressores como dos oprimidos e a consequência é a desagregação social e o domínio da morte. Este é o quadro desta possessão diabólica do mundo pagão.

7 Que tens tu a ver comigo? ... Não me atormentes!

 Como na sinagoga de Cafarnaum (1,24), a presença de Jesus põe em causa esta situação

de violência e de morte e, neste caso, os que reagem são os que pretendem a libertação pela violência. Para eles, a Boa Nova não aparece como libertação, mas como desmobili-zação, que compromete a eficácia da luta, fazendo perdurar a exploração. Para eles, Jesus não tem nada a ver com a situação; a luta é deles e há de prosseguir pelos meios bélicos de sempre. Mas esse caminho, pela lei do mais forte, conduz a um interminável ping-pong de destruição e morte.

 A presença de Jesus traz uma nova maneira de estar no mundo e uma solução diferente

para os problemas da opressão e da violência. A Sua atenção fixa-se, como sempre, neste homem que é vítima e operador de violência em relação a si próprio e à sociedade. O que é necessário é reconduzir a pessoa à sua dignidade e humanidade. Por isso, Jesus começa por libertar o homem do espírito da violência que o destrói e restituí-lo são e regenerado ao jogo das relações e à sociedade que o rejeitava e acorrentava.

12 ...os espíritos suplicaram-lhe que os mandasse para os porcos ... e a vara inteira precipitou do abismo abaixo no mar.

 A segunda parte desta narração, é de carácter ainda mais simbólico do que a primeira. Marcos apresenta a radicalidade da mudança de mentalidade provocada pela presença de Jesus.

 O porco é, para os judeus, o protótipo do animal impuro, que os pagãos comem, mas que

os descendentes de Abraão não podem sequer tocar (Cf.2Mac.6,18-31). É para o seu próprio domínio de impureza que Jesus relega o espírito de violência, mas este destrói-se

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a si próprio, atirando-se ao abismo. Aonde chega a Boa Nova, instaura-se um novo tipo de sociedade que se caracteriza, antes de mais, pela libertação do espírito de violência.

 Esta Libertação proposta por Jesus à Humanidade, não é facilmente compreendida pelos

que se encontram no seio deste ciclo de violência, pois põe em causa muitos dos princípios em que assenta o relacionamento entre os homens e os povos. A gente daquela região "ficou cheia de medo" por ver a nova atitude daquele que estivera possuído pela violência e pediu a Jesus que se afastasse do seu território.

19 ...vai para a tua casa, para junto dos teus e anuncia-lhes como o Senhor usou de misericórdia para contigo.

 Contrariamente ao que tem sido habitual, Jesus não faz nenhuma recomendação de silêncio sobre o sucedido. Antes manda este curado difundir a notícia da sua cura junto dos seus. No mundo pagão não havia uma mentalidade que pudesse interpretar, em termos de messianismo tradicional, a ação de Jesus e, sobretudo, esta nova atitude que liberta o homem da violência, deve ser objeto de anúncio a todo o mundo.

 Este é o modo como Marcos vê a humanidade do seu tempo: uma humanidade marcada

pela lei da violência, tanto dos opressores, como dos oprimidos. É a este mundo que Jesus se dirige e é a ele que é anunciada a Boa Nova da libertação.

 Não será necessária muita imaginação para descobrirmos, nos nossos dias, marcados pelo anseio de liberdade e, ao mesmo tempo, por tantos sistemas de opressão, combatidos tantos outros "movimentos de libertação", o mesmo espírito de morte que destrói a so-ciedade e mantém escravos de um idêntico círculo vicioso de violência, tanto os opressores como os oprimidos. O espírito de violência não se encontra apenas nas relações internacionais, no terrorismo e no banditismo organizados; ele manifesta-se na vida de cada dia, nos relacionamentos sociais, profissionais e mesmo familiares, frequentemente marcados pelo ódio, o revanchismo e a lei do mais forte. À luz do Evangelho, este é um sistema de morte, um viver entre os túmulos, uma autodestruição a nível pessoal e social.

 É preciso, antes de mais, deixar-se libertar deste espírito de violência; convencer-se de que este não é o caminho da libertação; assumir a mesma atitude de Cristo que, confrontado com a violência, não responde do mesmo modo. Aparentemente vencido pela violência, Ele é, na realidade, o vencedor e regenerador que abre um caminho novo para uma nova sociedade de justiça, dignidade e autêntica paz.

A FILHA DE JAIRO E A MULHER QUE PERDIA SANGUE (5,21-43)-MT 9,18-26;LC 8,40-56

21 Depois de Jesus ter atravessado, no barco, para a outra margem, reuniu-se uma grande

multidão junto dele, que continuava à beira-mar. 22 Chegou, então, um dos chefes da

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minha filha está a morrer; vem impor-lhe as mãos para que se salve e viva.» 24 Jesus partiu

com ele, seguido por numerosa multidão, que o apertava.

25 Certa mulher, vítima de um fluxo de sangue havia doze anos, 26 que sofrera muito nas mãos

de muitos médicos e gastara todos os seus bens sem encontrar nenhum alívio, antes piorava cada vez mais, 27 tendo ouvido falar de Jesus, veio por entre a multidão e tocou-lhe, por

detrás, nas vestes, 28 pois dizia: «Se ao menos tocar nem que seja as suas vestes, ficarei

curada.» 29 De facto, no mesmo instante se estancou o fluxo de sangue, e sentiu no corpo que

estava curada do seu mal. 30 Imediatamente Jesus, sentindo que saíra dele uma força,

voltou-se para a multidão e perguntou: «Quem tocou as minhas vestes?» 31 Os discípulos

responderam: «Vês que a multidão te comprime de todos os lados, e ainda perguntas: ‘Quem me tocou?’» 32 Mas Ele continuava a olhar em volta, para ver aquela que tinha feito isso. 33

Então, a mulher, cheia de medo e a tremer, sabendo o que lhe tinha acontecido, foi prostrar-se diante dele e disprostrar-se toda a verdade. 34 Disse-lhe Ele: «Filha, a tua fé salvou-te; vai em paz e

sê curada do teu mal.»

35 Ainda Ele estava a falar, quando, da casa do chefe da sinagoga, vieram dizer: «A tua filha

morreu; de que serve agora incomodares o Mestre?» 36 Mas Jesus, que surpreendera as

palavras proferidas, disse ao chefe da sinagoga: «Não tenhas receio; crê somente.» 37 E não

deixou que ninguém o acompanhasse, a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago. 38 Ao

chegar a casa do chefe da sinagoga, encontrou grande alvoroço e gente a chorar e a gritar. 39

Entrando, disse-lhes: «Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A menina não morreu, está a dormir.» 40 Mas faziam troça dele. Jesus pôs fora aquela gente e, levando consigo

apenas o pai, a mãe da menina e os que vinham com Ele, entrou onde ela jazia. 41

Tomando-lhe a mão, disse: «Talitha qûmi!», isto é, «Menina, sou Eu que te digo: levanta-te!» 42 E logo a

menina se ergueu e começou a andar, pois tinha doze anos. Todos ficaram assombrados. 43

Recomendou-lhes vivamente que ninguém soubesse do sucedido e mandou dar de comer à menina.

21 Depois de Jesus ter atravessado, no barco, para a outra margem, reuniu-se uma grande multidão junto dele, que continuava à beira-mar.

 Regressando ao território de Israel, Marcos apresenta duas cenas entrelaçadas (cf. os episódios da família - 3,21.31-35 - e dos escribas vindos de Jerusalém - 3,22-30) que põem em foco o tema da vida no seu presente e no futuro. Começa com a súplica de um chefe de sinagoga que pede a cura da filha que está a morrer (5,22-24); introduz, no centro, a cura de uma mulher que perde sangue (5,25-34); retomando o fio da narração do primeiro relato, com a notícia da morte da menina e da sua restituição à vida por Jesus (5,35-43).

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 Na viagem a Guerasa, Jesus confrontou-se com a violência que destrói as pessoas e a sociedade, e a conduz à destruição e à morte. Regressando a Israel, confronta-se com dois casos que colocam no centro o tema da vida, no presente e o futuro, que estão a esvair-se.

 A referência a Israel está bem patente na figura do chefe da sinagoga, cuja filha está a morrer e na mulher que perde sangue (vida). Além disso, a menina tem 12 anos; a mulher há 12 anos que vai perdendo a vida e as curas só pioraram a sua situação. O número 12 indica, realmente, o povo eleito nas suas doze tribos.

 Os dois fios narrativos deste texto orientam a atenção para a centralidade da fé em Jesus como a atitude necessária para fazer face à provisoriedade da vida, o dom fundamental de Deus. Para os povos e, agora, para Israel, Marcos apresenta Jesus, como Aquele que restitui a vida e a abre ao futuro.

25-28 Certa mulher, vítima de um fluxo de sangue havia doze anos,… veio por entre a multidão e tocou-lhe nas vestes, pois dizia... ficarei curada.

 A mulher, a transmissora da vida, por excelência mestá perdendo vida (sangue) há 12 anos. É uma figura simbólica de Israel que está fechado à intervenção de Deus em Jesus, deixando esvair a energia da sua fidelidade de escuta, dos desígnios de Deus e da sua missão de bênção para os pagãos.

 Esta mulher, como tantos outros em Israel, adverte esta crise de vida e, na sua fé, vê em Jesus a intervenção regeneradora de Deus. De um modo culturalmente significativo, acredita que o chegar perto e o tocar, mesmo que seja apenas na orla do seu manto, bastará para ser curada.

30-34 Quem tocou as minhas vestes?... Filha, a tua fé salvou-te; vai em paz e sê curada do teu mal.

 No seu gesto de fé simples e temeroso, a mulher talvez não espere mais que o milagre da cura da sua doença. Talvez não tenha, nem a consciência nem a coragem de exprimir publicamente a sua dor e a sua angústia. Jesus, porém, conhece o coração dela e procura-a com olhprocura-ar solícito e misericordioso. Nenhumprocura-a dor, vergonhprocura-a ou confusão lhe ficprocura-am longe ou lhe são estranhos.

 A cura já advertida pela mulher é continuada no contacto consciente com Jesus, que Ele mesmo proporciona. Jesus faz-lhe notar que não é apenas um curandeiro miraculoso ou mágico. O que é importante é a fé/adesão na Sua Pessoa, que ela começou a experimentar. Essa fé é que garante a verdadeira vida que ela vinha perdendo.

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35s …da casa do chefe da sinagoga, vieram dizer: A tua filha morreu; de que serve agora incomodares o Mestre? … Não tenhas medo; crê somente!

 Depois deste encontro com a mulher, Marcos retoma a narração da menina moribunda,

que é vista apenas como a filha do chefe da sinagoga. A associação dos dois personagens adultos está nitidamente ligada à situação de Israel: o seu presente – a mulher – e o seu futuro – a menina – está comprometido.

 A notícia da morte da filha agrava a angústia do pai, mas Jesus continua a apresentar a solução da fé na Sua Pessoa, como o caminho de futuro. Na cultura do tempo, uma menina, aos doze anos começa a ser considerada mulher, esposa e capaz de ser mãe. É esse futuro que Jesus garante ao chefe da sinagoga, o líder religioso da comunidade. Ele não veio negar ou acabar com a preciosa tradição de Israel. Pelo contrário, foi enviado por Deus para que ela possa adquirir nova energia e multiplicar-se.

39-41 A menina não morreu, está a dormir… Mas faziam troça dele… Tomando-lhe a mão, disse: «Talitha qûmi!», isto é, Menina, sou Eu que te digo: levanta-te!

 Em casa do chefe já se faz luto, mas Jesus manda embora esses carpidores de mortos. Ele não vem ao funeral; vem trazer vida. No plano de Deus, a menina está apenas adormecida, pois a fidelidade de Deus vem despertá-la e abrir os seus olhos a um novo futuro.

 O pegar pela mão é o mesmo gesto de proximidade que teve com a sogra de Pedro, com o

leproso e com os outros doentes que queriam, nem que fosse apenas tocar na orla do seu manto. Não se trata de um toque mágico, mas de uma proximidade pessoal de Jesus perante aqueles que sofrem; perante a tragicidade da morte. Ele toca em toda a sua profundidade a fragilidade humana.

 A proximidade é acompanhada da palavra – Talitha qûmi!», isto é, Menina, Eu que te digo: levanta-te!. Como na cena do barco, Jesus não invoca Deus para pronunciar a palavra da vida e da paz. É a sua própria autoridade que está presente: Eu te digo. Ele é o Filho de Deus e age com a sua autoridade para dar a vida.

 Esta autoridade é reforçada pelo imperativo: Levanta-te! Por outro lado, o verbo levantar, é o que se utiliza, igualmente, para falar da ressurreição. É, antes de mais, o retorno à vida e à família. Para quem está habituado a ler o texto em grego, não escapa a relação com a ressurreição.

 Na verdade, este é o segundo efeito que Jesus pretende com os seus milagres. Ele não pretende apenas ser conhecido como substituto miraculoso dos médicos. Seria muito pouco! Os doentes que Ele cura voltam a ter doenças e os mortos que chama de regresso à vida, vão morrer mais cedo ou mais tarde. A sua missão não é apenas fornecer cuidados paliativos ou adiar tragédias. Ele vem para dar a vida do Pai que não acaba. É isso que é

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importante que as pessoas percebam. Essa é a razão do apelo à fé, como adesão à Sua Pessoa, fonte e caminho da vida do Pai.

REJEIÇÃO DE JESUS EM NAZARÉ (6,1-6) -MT 13,53-58;LC 4,16-30;JO 4,44

1 E partiu dali. Foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no. 2 Chegado o sábado, começou

a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por suas mãos? 3 Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José,

de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» E isto parecia-lhes escandaloso. 4 Jesus disse-lhes: «Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus

parentes e em sua casa.» 5 E não pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos,

impondo-lhes as mãos. 6 Estava admirado com a falta de fé daquela gente e foi percorrendo

as aldeias vizinhas a ensinar.

1 Foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no…

 Neste contexto de abertura de horizontes a uma nova vida e de apelo à fé na Sua Pessoa, ganha especial significado o regresso de Jesus às suas raízes, à pequena cidade de Nazaré. Na terra das suas origens humanas, Marcos concentra a atenção na sinagoga, onde se vive a fé e a tradição de Israel. Como em Cafarnaum (cf. 1,21-28), Jesus não vai à sinagoga apenas para cumprir o preceito, mas vai ensinar.

 Os compatriotas ficam maravilhados com as suas palavras e associam-nas às notícias sobre os seus milagres e a fama da sua sabedoria. Mas a esta admiração contrapõe-se a perceção das humildes origens de Jesus e da família que ali reside. Tudo isto lhes parecia escandaloso. Como pode um simples concidadão, com uma família humilde e bem conhecida arrogar-se tal importância?

 Para os habitantes da cidade, o mundo de Deus tem de ser algo de distante, não pode habitar no meio de nós. Há uma certa ideia de sagrado e de sobrenatural que contradiz a lógica divina da encarnação e constitui um impedimento ao acolhimento do Evangelho. Esta sempre foi a questão central de Jesus, não apenas para os nazarenos, mas para todo o Israel: como aceitar um Messias sem a expressão humana de poder e de magnificência? Esta é a tentação de Jesus no deserto e será motivo de troça das autoridades no Calvário: "desça da cruz para acreditamos nele!". O Messias crucificado que Marcos vem anunciar não é uma perspetiva atraente nem credível.

 É isso que Jesus constata com tristeza: Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa (6,4). A reação dos nazarenos exprime as atitudes de rejeição e oposição à anteriormente experimentada, na atitude da família e das autoridades. Por

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isso, o lamento de Jesus não se dirige apenas a Nazaré, mas à oposição dos representantes do seu povo.

5-6 Não pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. Estava admirado com a falta de fé daquela gente.

 Esta conclusão de Marcos é, à primeira vista, estranha: diz que Jesus não fez milagres (dunamis – portento)… mas apenas curou (therapew - curar) alguns enfermos. Então as curas não são milagres? Precisamente esta distinção entre os dois conceitos é importante e liga-se com o que dissemos atrás sobre o valor dos sinais e do silêncio imposto por Jesus às pessoas que cura. Jesus não quer ser confundido com um "curandeiro" ou um "mago-miraculista". Ele sente verdadeira compaixão por aqueles que sofrem, aproxima-se e leva socorro e vida, mesmo quando eles não entendem mais do que a "sorte" de terem encontrado um pronto-socorro imediato. Esta compaixão misericordiosa de Jesus não é uma recompensa para os bons, mas sinal da atenção especial de Deus por aqueles que sofrem e se encontram em dificuldade.

 Jesus pretende mais do que isso. Deseja que a cura seja sinal do amor e do poder de Deus, que revele a todos o carinho atento e seguro de Deus; que crie confiança na vida e no futuro, para além das futuras contrariedades que sempre vão aparecer. Foi isso que percebeu a mulher que perdia sangue: para além de ser curada, foi salva pela sua fé (cf. 5,25ss). É essa fé que Jesus recomenda e alimenta no chefe da sinagoga com a filha moribunda (cf 5,36).

 Este é o passo fundamental da vida: perceber que a adesão a Cristo significa a adesão a um projeto de vida nas mãos de Deus, que não é posto em causa nem pela doença nem pela morte. Perante isto, a cura momentânea é importante, mas não é decisiva. Quem deu o salto estará preparado para fazer face a futuras contrariedades e crises; quem não deu, chega desarmado diante delas. Este salto, os habitantes de Nazaré ainda não deram e Jesus ficava espantado diante da falta de fé deles.

MISSÃO DOS DOZE (6,6-13) -MT 10,5-15;LC 9,1-6;10,1-11

7 Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos

malignos. 8 Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão,

nem alforge, nem dinheiro no cinto; 9 que fossem calçados com sandálias e não levassem duas

túnicas. 10 E disse-lhes também: «Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela até partirdes

dali. 11 E se não fordes recebidos numa localidade, se os seus habitantes não vos ouvirem, ao

sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles.» 12 Eles partiram e

pregavam o arrependimento, 13 expulsavam numerosos demónios, ungiam com óleo muitos

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7 Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos.

 Depois de se ter apresentado como Senhor da vida e do futuro para os judeus e para as nações, depois de ter formado o núcleo inicial da sua comunidade, Jesus começa a enviar em missão os seus discípulos. Embora modesta no seu âmbito, esta missão assume um significado fundamental.

 Com o primeiro envio de discípulos, Jesus dá cumprimento a quanto estabeleceu na escolha dos Doze, que foram chamados para estarem com Ele e para enviá-los a anunciar. Já no chamamento dos primeiros discípulos, para serem pescadores de homens, estava implícito que o discipulado está implicitamente unido à missão. Seguir Jesus e colaborar na sua missão, dirigida a todas as pessoas e nações, são duas faces da mesma medalha.

 Mas, neste processo de formação da sua comunidade destacada do judaísmo, a missão surge como um factor novo e caraterístico. O judaísmo, não pode ser missionário, porque ninguém se pode tornar. Judeu, ou se nasce, ou não se é. A realidade religiosa judaica está voltada para dentro de si própria. Jesus vai às sinagogas, para as ensinar e abrir. A sua comunidade tem de ser uma comunidade virada para fora, para o mundo, mesmo para além das fronteiras, como aconteceu com a viagem a Guerasa.

 Envia-os dois a dois, sublinhando a dimensão comunitária da missão. Dado que o Reino de Deus tem a ver sobretudo com a libertação para a relação, a solidariedade, o amor fraterno, a missão tem de levar essa marca identitária onde quer que vá. Mais ainda, a própria comunidade será a promotora dessa missão, não apenas naqueles que envia, mas na proposta de um estilo de vida fraterna.

 O objetivo da missão é ser promotores da liberdade e dignidade das pessoas, libertando-as de todo o mal que libertando-as aflige e impede de realizarem a sua vida segundo o projeto de Deus. Devem continuar a tarefa libertadora do Mestre.

8-9 Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser um cajado: nem pão, nem alforge, nem dinheiro no cinto...

 O estilo da missão é muito importante. As recomendações de Jesus limitam-se ao essencial: antes de mais, a modéstia de meios. Os missionários não devem sobressair pela grandeza dos meios utilizados. A exemplo do Mestre, na sobriedade da vida, devem manifestar a grandeza e o poder do amor de Deus.

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10 Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela… se não fordes recebidos numa localidade, se os seus habitantes não vos ouvirem, ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés, em testemunho contra eles.

 A segunda recomendação de Jesus tem a ver com tentação do populismo e do poder. Não

devem fazer campanha de casa em casa. Aceitem, com alegria e gratidão, a hospitalidade que lhes for oferecida, sem andar à busca das melhores oportunidades. Nesse convívio, gerado na partilha dos pobres, já se começará a desenvolver esse novo mundo que eles vão anunciar.

 Mas não entrem em conflitos; o Evangelho não pode ser imposto a ninguém. Jesus conta

que os discípulos, como Ele próprio, vão experimentar recusas e oposições. De modo nenhum devem recorrer à violência, mas, seguindo o exemplo do Mestre, não deixem de fazer sentir, mediante o sacudir o pó das sandálias, a responsabilidade que assumem perante Deus, aqueles que recusam a Boa Nova.

12-13 Eles partiram e pregavam a conversão, expulsavam numerosos demónios, ungiam com óleo muitos doentes e curavam-nos.

 A missão dos discípulos é sempre a continuação da missão de Jesus. Foi isso que eles viram e aprenderam e agora são enviados a pôr em prática. Por isso, Marcos descreve esta primeira missão dos discípulos com os mesmos termos com que falou do ministério de Jesus: convidar a converter-se (mudar de mente), expulsar demónios, curar os doentes.

 Mais do que grandes discursos, Jesus recomenda que se dê atenção às pessoas. Através

desses gestos é que elas hão de perceber que Deus não está distante, mas mandou mensageiros para aliviar dores, libertar de todas as opressões, curar de todos os males e criar nova esperança, tendo como figura central o próprio Jesus.

MORTE DE JOÃO BAPTISTA (6,14-29) -MT 14,1-22;LC 3,19-20;9,7-9

14 O rei Herodes ouviu falar de Jesus, pois o seu nome se tornara célebre; e dizia-se: «Este é

João Baptista, que ressuscitou de entre os mortos e, por isso, manifesta-se nele o poder de fazer milagres»; 15 outros diziam: «É Elias»; outros afirmavam: «É um profeta como um dos

outros profetas.» 16 Mas Herodes, ouvindo isto, dizia: «É João, a quem eu degolei, que

ressuscitou.»

17 Na verdade, tinha sido Herodes quem mandara prender João e pô-lo a ferros na prisão, por

causa de Herodíade, mulher de Filipe, seu irmão, que ele desposara. 18 Porque João dizia a

Herodes: «Não te é lícito ter contigo a mulher do teu irmão.» 19 Herodíade tinha-lhe rancor e

queria dar-lhe a morte, mas não podia, 20 porque Herodes temia João e, sabendo que era

(24)

agrado. 21 Mas chegou o dia oportuno, quando Herodes, pelo seu aniversário, ofereceu um

banquete aos grandes da corte, aos oficiais e aos principais da Galileia. 22 Tendo entrado e

dançado, a filha de Herodíade agradou a Herodes e aos convidados. O rei disse à jovem: «Pede-me o que quiseres e eu to darei.» 23 E acrescentou, jurando: «Dar-te-ei tudo o que me

pedires, nem que seja metade do meu reino.» 24 Ela saiu e perguntou à mãe: «Que hei de

pedir?» A mãe respondeu: «A cabeça de João Baptista.» 25 Voltando a entrar apressadamente,

fez o seu pedido ao rei, dizendo: «Quero que me dês imediatamente, num prato, a cabeça de João Baptista.» 26 O rei ficou desolado; mas, por causa do juramento e dos convidados, não

quis recusar. 27 Sem demora, mandou um guarda com a ordem de trazer a cabeça de João. O

guarda foi e decapitou-o na prisão; 28 depois, trouxe a cabeça num prato e entregou-a à

jovem, que a deu à mãe. 29 Tendo conhecimento disto, os discípulos de João foram buscar o

seu corpo e depositaram-no num sepulcro.

17 Herodes quem mandara prender João e pô-lo a ferros na prisão…

 Marcos guardou, até agora, a narração da prisão e morte de João Batista, que já tinha sido noticiada como prelúdio ao início da missão de Jesus. A escolha deste ponto da narração não é ocasional, mas insere-se muito bem no percurso narrativo de Marcos.

 No seu ministério, Jesus foi mostrando, até este momento, que veio para realizar as promessas feitas pelos profetas, que ecoam de modo muito claro na mensagem de João Batista.

 Por outro lado, tinha sido acusado de estar fora de si pela família, acusado de possessão diabólica pelas autoridades e liminarmente rejeitado nas suas origens, em Nazaré. Isso leva-o a acentuar a especificidade do seu projeto, que não será simplesmente a realização daquilo que os mestres de Israel entendiam, mas algo de novo e de mais amplos horizontes.

 Um ciclo histórico está a concluir-se e um novo está para ter início, em que Jesus começará a desvelar mais claramente os traços do Reino de Deus que vem iniciar.

 Tudo isto tem a ver com a identidade e o destino do próprio Jesus, que surge com toda a acuidade nestes últimos episódios, levando as pessoas e os próprios discípulos a interrogarem-se: Quem é este?

 O próprio rei Herodes, que governa na Galileia, dá ocasião a este "flashback" da prisão e morte de João Batista, por se interrogar, ele próprio, sobre a identidade de Jesus. Perante a diversidade de opiniões que surgem, Herodes sobressai com a ideia de que Jesus é João, a quem eu degolei, que ressuscitou (6,16).

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