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DEBATES HISTORIOGRÁFICOS CONTEMPORÂNEOS: A GUERRA DO PARAGUAI E SUAS VIAS DISCURSIVAS

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DEBATES HISTORIOGRÁFICOS CONTEMPORÂNEOS: A GUERRA DO PARAGUAI E SUAS VIAS DISCURSIVAS

Ana Paula Squinelo1

Denominada na historiografia oficial como Guerra do Paraguai2, o conflito ocorrido na Bacia Platina, entre fins de 1864 e início de 1870, legou a esta região impactos que vão além do legado político, econômico e cultural. Os discursos em torno do conflito platino gestados em diferenciados momentos históricos, historiográficos e políticos, seja no Brasil, Argentina ou Paraguai, serviram para justificar projetos políticos identificados com grupos dominantes que desejaram articular, em especial no Brasil, uma idéia de nação que esteve atrelada a todo um projeto de formação de um Brasil moderno.

Nesse sentido realizando um breve, mas pontual levantamento historiográfico3, identifico alguns marcos que definem a historiografia, sobretudo a brasileira no que se refere à temática relacionada à Guerra do Paraguai, a saber: um primeiro momento logo em seguida ao pós-guerra caracterizado por escritos de protagonistas ou não do conflito, apresentando um forte viés militar, enfatizando os episódios e batalhas ocorridas, datas e fatos, como também valorizando a “vitória brasileira” e seus heróis, e que se estendeu até meados da década de 1960; um segundo momento identificado por uma influência “marxista”, e com um forte apelo contrário ao imperialismo inglês, que atingiu seu ápice na década de 1970 em meio as ditaduras militares que se impunham na América Latina; um terceiro momento que é marcado por escritos de estudiosos e pesquisadores que se auto-intulam de “neo-revisionistas”, e que armados com “determinadas ferramentas teóricas e metodológicas”, propõem-se apresentar uma visão acerca da Guerra menos “carregada por um viés ideológico” e calcada em documentos, visão esta que passou a ser veiculada a partir de fins da década de 1980. Esta

1 Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e Professora Adjunta do Curso de História, do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campo Grande.

2 Segundo o historiador Alambert: “Se a Belle Époque européia terminou com uma guerra (a “Grande Guerra”), a nossa começou com uma: a “Guerra do Paraguai”, na denominação que a História consagrou (pois o nome do derrotado figura como a consagração da culpa). ALAMBERT, Francisco. Para que serve a Guerra, hoje? Coletâneas do Nosso Tempo. Departamento de História de Rondonópolis. Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Ano 04, números 4 e 5, set. 2000/2001. Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá: Editora Universitária, 2001, p. 31. Neste artigo Guerra do Paraguai, Guerra, Guerra Platina, conflito platino e conflito guarani são utilizados como sinônimos.

3 Não é de meu interesse esgotar as produções publicadas sobre a Guerra do Paraguai, e sim, apenas apresentar algumas obras referenciais que marcaram esse processo de construção discursiva e estabelecer um diálogo visando compreender tais construções históricas.

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“cronologia” foi sistematizada e apresentada entre outros por Leslie Bethell4. Entretanto diante dos avanços dos estudos históricos pode-se averiguar na atualidade pesquisas que vão além dos enfoques delineados acima e que apresentam e incorporam em suas reflexões novos sujeitos, novas problemáticas e novas temáticas acerca da Guerra do Paraguai.

A citada historiografia do pós-guerra foi marcada por uma produção caracterizada por narrativas elaboradas por seus protagonistas que personalizaram suas vivências e experiências através de suas memórias, e também da escrita de cartas e diários. Como exemplos desse viés discursivo aponto na produção brasileira as seguintes obras: Reminiscências da campanha do

Paraguai, 1865-1870, de Evangelista de Castro Dionísio Cerqueira5; Diário e notas autobiográficas, de André Rebouças6; Cartas da Guerra: Benjamin Constant na Campanha do Paraguai7; e , A Retirada da Laguna. Episódio da Guerra do Paraguai8, de Alfredo

d’Escragnolle Taunay; das referências paraguaias elenco: Memórias ó reminiscências

históricas sobre la Guerra del Paraguay, de Juan Crisóstomo Centurión9; e, La Guerra del Paraguay contra la Triple Alianza10, de Francisco Isidoro Resquin.

Respeitando as devidas diferenças a serem levadas em consideração pelo historiador em seu ofício ao trabalhar com memórias, reminiscências, diários e cartas, em linhas gerais essa primeira produção que se iniciou logo após o conflito platino legou uma visão sobre a Guerra na qual foi consagrada a vitória brasileira, tendo o exército imperial, em nome de d. Pedro II, “cumprido com sua missão” ao “libertar o Paraguai do governo de um tirano”; para tal incumbiu-se de registrar as glórias do Império brasileiro representada nas grandes batalhas e nos feitos heróicos. Embora a Guerra tenha trazido a desarticulação dos pilares do Império, acabou por se revestir nesses escritos como uma apologia a um “manto” que se ruía. Nesta vertente explicativa a nação paraguaia, como também seu símbolo maior – Solano López, foram deliberadamente execrados e colocados à margem da história e da historiografia. Deriva desse contexto as imagens negativas que associamos ao Paraguai: país pobre, miserável, povoado por pessoas “preguiçosas” e sinônimo de “falcatruas”, “contrabando”,

4 BETHELL, Leslie. A Guerra do Paraguai. História e Historiografia. In: MARQUES, Maria Eduarda Castro Magalhães (Org.). A Guerra do Paraguai: 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995, pp. 23-4. 5 CERQUEIRA, Evangelista de Castro Dionísio. Reminiscências da campanha do Paraguai, 1865-1870. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, [s.d.].

6 REBOUÇAS, André. Diário e notas autobiográficas. Organização Ana Flora e Ignácio Rose Veríssimo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938.

7 LEMOS, Renato (Transcrição, organização e introdução). Cartas da Guerra: Benjamin Constant na Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: IPHAN; 6. SR; Museu da Casa de Benjamin Constant, 1999.

8 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. A Retirada da Laguna. Episódio da Guerra do Paraguai. Tradução e organização de Sérgio Medeiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

9 CENTURIÓN, Juan Crisóstomo. Memórias ó reminiscências históricas sobre la Guerra del Paraguay. Asunción: El Lector, 1987. (4 volumes).

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“pirataria” e “falsificações”. Solano López por sua vez “só encontrou seu lugar” se é que o fez no Panteón de los Heroes.

Essa visão acerca da Guerra permeou ainda os manuais didáticos daquele período e gerações foram educadas através dos escritos do paranaense Rocha Pombo11. Esta abordagem vista como tradicional e patriótica imperou por décadas no cenário brasileiro, servindo de eixo explicativo do ponto de vista político e ideológico para uma nação que dava seus primeiros passos como um país republicano e necessitava assim de sinais, símbolos e emblemas que negassem o passado imperial, símbolo do atraso e da escravidão.

Processo contrário ocorreu com a nação paraguaia que buscou ao invés de negar seu passado de “país derrotado” frente ao Brasil, (re) significar a Guerra à medida que buscou valorizar sua “derrota”. Cabe ressaltar que essa “valorização da derrota” não se deu de forma isolada e desconexa de um contexto político peculiar.

Assim como no Brasil após o conflito platino, as versões que percorreram o Paraguai também trataram de “desvincular-se” daquele passado histórico, como também de “enterrar” e mais que isso de “desaparecer” com a figura de Solano Lopéz, que era identificado como o grande culpado pelo estado em que se encontrava o Paraguai12. Foi apenas no governo do general Alfredo Stroessner13, portanto em um contexto histórico muito específico, que a Guerra e, sobretudo a figura de Solano López foram resgatadas da “margem da história”; afinal o novo governo necessitava de “heróis” que identificassem seus propósitos. Novos referenciais, novos mitos... Os discursos em torno da Guerra do Paraguai só estavam a esperar os momentos oportunos...

No Brasil sob a égide da ditadura militar os escritos sobre o conflito platino receberam uma nova corpagem à medida que foi resgatado com o objetivo de ser um instrumento de denúncia contra os regimes militares. Influenciado pelas obras do argentino León Pomer14, em 1979 o jornalista Julio José Chiavenato lançou sua obra intitulada “Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai15”, que propagava uma visão sobre este litígio fortemente marcada por um viés “marxista”, antiimperialista e anti-anglicano; o conflito de acordo com este autor teria

11 POMBO, Rocha. História do Brasil. 9.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1960; e, Nossa Pátria. Rio de Janeiro: [s.n.], 1917.

12 Vale lembrar que após a Guerra do Paraguai esta nação ficou ocupada pelo Brasil durante cinco anos e governado por uma junta composta por brasileiros.

13 Alfredo Stroessner comandou o Golpe de Estado no Paraguai entre os dias 03 e 4 de maio de 1954, o que determinou o final do governo civil de Federico Chaves, assumindo o poder do governo paraguaio, e no qual se manteve até o ano de 1989.

14 POMER, León. La Guerra del Paraguay; Gran Negocio. Buenos Aires: Caldén, 1968; Os conflitos do Prata. São Paulo: Brasiliense, 1979; A Guerra do Paraguai. A grande tragédia rioplatense. São Paulo: Global, 1981. 15 CHIAVENATO, Julio José. Genocídio Americano: a Guerra do Paraguai. São Paulo: Moderna, 1998. (Coleção Polêmica).

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ocorrido por interesses econômicos na região platina, especificamente em relação à nação paraguaia. A Inglaterra, que se destacava no cenário mundial, naquele contexto via no Paraguai “um entrave” para sua expansão e conseqüente dominação na América Latina.

Para Chiavenato em linhas gerais:

A Guerra do Paraguai foi causada, em conteúdo, por motivos econômicos. Naturalmente, há questões de limites entre os países, as reivindicações territoriais da Confederação Argentina e do Império do Brasil, para mutilar a República do Paraguai. Essas questões, porém pela sua falta de propósito para causar uma guerra, como meros pretextos para criar condições de uma invasão do Paraguai, são secundárias. Além da questão de limites, mais aceitável do ponto de vista histórico, embora sua falsidade possa ser facilmente demonstrada, havia questões políticas, estas oriundas das causas primordiais, as econômicas. Depois, há o que se poderia chamar vulgarmente de razões ideológicas, que serviram para a propaganda da guerra, acusando o governo de López de ser uma tirania, uma barbárie que se precisava exterminar para ‘libertar’ o povo paraguaio”16.

Ressalto que o Paraguai pós-independência teve três governantes: Gaspar Rodrigues de Francia, CarlosAntonio López e Solano López, e cada qual marcado com determinadas características. Carlos Antonio López procurou “modernizar” o Paraguai, empreendendo uma série de medidas e levando ao Paraguai inclusive técnicos especializados, como é o exemplo do engenheiro inglês George Thopsom. A Inglaterra, entretanto não via tais ações “com bons olhos”, ao contrário, de acordo com esta “visão imperialista” do litígio a nação inglesa via no Paraguai um “possível concorrente” no estuário do Prata, e para evitar tal concorrência teria levado Brasil, Argentina e Uruguai a se unirem na Guerra contra o Paraguai.

De fato os impactos dos escritos de “Genocídio Americano” naquele contexto ganharam proporções significativas, e tornou-se um “grande best seller”; guardada as devidas proporções e evitando cair nas armadilhas do anacronismo, a obra acabou naquele momento cumprindo um papel significativo na medida em que denunciava, mesmo que de forma panfletária, por exemplo, as atrocidades cometidas por militares brasileiros como foi o caso do Duque de Caxias e do Conde d’Eu. Assim como Rocha Pombo formou, através de seus escritos, várias gerações de brasileiros, outras que se seguiram foram educadas e passaram a compreender a Guerra do Paraguai por este viés imperialista.

Posto tais questões pode-se averiguar que estes dois vieses interpretativos acabaram por reduzir as análises sobre a Guerra do Paraguai, a achar o “mocinho” e o “bandido” em meio ao conflito; o “culpado” e o “inocente” pelo litígio; o “bom” e o “mal”. Se uma supervalorizou a nação brasileira em detrimento da paraguaia, a segunda propôs a inverter

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este processo. E em meio a estas visões reducionistas ficaram e acabaram “por se perder”, por exemplo, os sujeitos históricos desse conflito, o cotidiano, aqueles que de fato protagonizaram o litígio durante anos.

Tal cenário sofreu uma reconfiguração em meados da década de 1980 com a chegada de “novos tempos”, afinal o “vento neoliberal” soprava rumo ao encontro do continente latino-americano. Nesse sentido alguns pesquisadores como Francisco Fernando Monteoliva Doratioto17, Moniz Bandeira18 e Alfredo da Mota Menezes19, foram “buscar” nos documentos tidos como oficiais as respostas às fissuras que haviam se estabelecido nas análises sobre a Guerra Platina. Para o renomado historiador Boris Fausto estes estudiosos apresentaram uma versão da Guerra mais coerente e bem apoiada em documentos.

Moniz Bandeira foi quem primeiro delineou suas interpretações que vieram a influenciar escritos posteriores. O autor apontou que a origem da Guerra estava intrínseca a dinâmica do Prata; para Bandeira os problemas e conflitos existentes entre as nações recém-formadas, no caso Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, eram o suficiente para a eclosão do conflito. Limites de fronteira, navegação do rio da Prata e relações diplomáticas rompidas teriam levado ao conflito guarani. Pergunto-me então qual o papel dos sujeitos históricos neste viés interpretativo?

De acordo com Bandeira:

O Brasil, na verdade, não articulou a Tríplice Aliança nem moveu a guerra contra o Paraguai, como instrumento da Grã Bretanha, conforme certos escritores, sobretudo nos países da Bacia do Prata, propalaram. Pelo contrário, rompera desde 1863 as relações diplomáticas com a Grã-Bretanha, conforme certos escritores, onde a firma John & Alfred Blyth e a casa bancária do Barão de Rothschild já faziam negócios com o Governo Francisco Solano López e não tinham interesse na deflagração da guerra contra o Paraguai. O próprio Barão de Mauá, por alguns autores hispano-americanos apontado, equivocadamente, como representante financeiro de Rothschild, tudo vez para evitar, opondo-se à política do Governo brasileiro na Bacia do Prata, e só se dispôs a conceder-lhe financiamento, depois de iniciadas as hostilidades, porque não tinha alternativa20.

A meu ver estas análises calcadas, sobretudo em documentos diplomáticos, apresentam uma visão do conflito recheada de nomes, datas, acordos, governantes, tratados, batalhas, episódios, mas que mais uma vez não contemplaram os sujeitos históricos como

17 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. A Guerra do Paraguai: segunda visão. São Paulo: Brasiliense, 1991; O conflito com o Paraguai. A Grande Guerra do Brasil. São Paulo: Ática, 1996; Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

18 BANDEIRA, Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata: da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. 2. ed. São Paulo: Ensaio; Brasília: UnB, 1995.

19 MENEZES, Alfredo da Mota. Guerra do Paraguai. Como construímos o conflito. São Paulo: Contexto, 1998. 20 BANDEIRA, Moniz. Op. Cit., p. 14

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mediadores para estabelecer um diálogo com tais documentos. Nesse sentido as tensões do conflito são diluídas em meio à narrativa, e a Guerra é apresentada de forma tênue, branda, homogênea, contínua, sem rupturas, sem sangue, sem perdas, sem interesses... sem sujeitos... sem escravos... sem mulheres... poucos protagonistas...

Cabe registrar a reflexão proposta por Alambert sobre esta “nova leva” de estudiosos da Guerra:

Esses autores puseram-se então, com ares de novos subversivos de cátedra ou de redação de suplemento culturais (portanto aparentemente longe de qualquer partidarização ideológica), a atacar os supostos reducionismos do bem sucedido historiador. Esses neorevisionistas aproveitam-se daquelas supostas fragilidades do contendente para instaurar uma nova Guerra das Letras, Documentos e Interpretações. No bojo do debate, entretanto, aliam-se ao discurso dominante, em tempos de triunfo neoliberal, para atacar as práticas historiográficas inspiradas pelo marxismo, especialmente aquelas que se baseiam em algum pressuposto ligado à teoria do imperialismo, que foi a base das interpretações de Chiavenato e daqueles que com ele compactuaram. Independentemente dos erros e dos acertos em questão quanto às interpretações historiográficas polêmicas – no mais sempre necessárias -, o que se vê por trás dessa nova batalha é a utilização, ainda esta vez, da máscara criada com a Guerra do Paraguai para esconder outros propósitos, nem sempre conscientes aos sujeitos em questão21.

Se no Brasil a obra de Doratioto “fervilhou” no meio acadêmico e foi de certa forma bem recebida pelos seus pares, no Paraguai o impacto foi bem diferente. O autor que já no título da obra propôs sem “qualquer restrição” apresentar uma “Nova História da Guerra do Paraguai”, não chegou a alcançar este propósito na medida em que reforçou velhos chavões e interpretações sobre a Guerra, como também não incorporou interpretações novas ou diferenciadas, apenas compilou e sistematizou uma série de dados e informações advindos de documentos oficiais de cunho diplomático. Então não convenceu seus “pares paraguaios” de que seus escritos eram isentos de uma determinada ideologia e desconexo com o universo neoliberal que aplicava duros golpes na América Latina.

Não se pode negar que os escritos de Doratioto, assim como os anteriores, também alcançaram os livros didáticos brasileiros; e a indústria editorial mais preocupada em estar sintonizada com o “boom” do momento do que propriamente com as pontuais análises históricas e historiográficas sobre o conflito platino, levou para o “palco das obras didáticas”, a “nova verdade” anunciada por Doratioto; cabe ressaltar, sem as devidas mediações historiográficas e ideológicas.

21 ALAMBERT, Francisco. Op. cit., p. 35. 7

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Paralela a esta interpretação da Guerra de cunho documental e diplomático, registro que no cenário acadêmico a partir de meados da década de 1990, pode-se visualizar uma produção histórica e historiográfica com traços marcadamente diferenciados. Tal produção fruto de estudos acadêmicos – dissertações de Mestrado ou teses de Doutoramento -, finalmente trazem em seu bojo novos elementos interpretativos do conflito guarani.

Nesse viés são apresentados ao leitor – leigo ou especializado -, informações e análises, entre outros, acerca do papel da mulher na Guerra do Paraguai22; a participação indígena no conflito23; a presença de comerciantes; a formação do exército brasileiro; o papel que o exército teve como elemento desestruturador da monarquia e estruturador da república; o papel da imprensa no decorrer dos episódios; o estudo das imagens produzidas no “calor das batalhas” e no “teatro de operações”. Apresenta dessa forma interpretações que vão além da dicotomia causas e conseqüências, culpado e inocente, bem ou mal... Passeiam pelas margens do conflito, pelo cotidiano, pelos protagonistas, pelos sujeitos históricos, buscando evidências que levam a compreensão da Guerra como um processo articulado às questões políticas, sociais, econômicas e também culturais. Outros estudos ainda tratam de pensar a guerra como um instrumento ideológico e analisar tais construções articulando com “o pensar” as estruturações que se elaboram em torno dos conceitos de memória e de identidade.

A obra magistral de Ricardo Salles intitulada “Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército”, publicada em 1990, é um exemplo significativo a ser pensando como fruto desse “novo olhar” sobre a Guerra do Paraguai. Em oposição à idéia tradicional de que o Império brasileiro possuía um exército bem formado e articulado, Salles demonstrou através de suas pesquisas como se deu a formação do exército imperial frente ao conflito que já se encontrava em andamento e a relação desse com as camadas médias, setores populares livre e escravos. Em um dos capítulos Salles propôs-se ainda a analisar:

[...] o envio das tropas ao Paraguai, seu cotidiano, suas formas de combater, os critérios de determinação dos atos de bravura, as políticas de promoções e de manutenção da disciplina e, finalmente, as relações entre oficiais e soldados, [procurando] avaliar como essas contradições não puderam ser abafadas na corporação militar, agravando as tensões internas delas decorrentes24.

22 DOURADO, Maria Teresa Garritano. Mulheres comuns, senhoras respeitáveis: a presença feminina na Guerra do Paraguai. 2002. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados.

23 SQUINELO, Ana Paula. O indígena e a Guerra do Paraguai. Revista Arandu: informação, arte, ciência, literatura. Dourados, n. 15, p. 34-6, fev./abr. 2001.

24 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 5.

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Acompanhando essa tendência interpretativa aponto também as seguintes obras que considero referências contemporâneas para o estudioso da Guerra do Paraguai: “Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai25”, de Jorge Prata de Souza; “A batalha de papel: a Guerra do Paraguai através da caricatura26”, de autoria de Mauro César Silveira; “A espada de Dâmocles. O Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império27”, fruto da tese de doutoramento de Wilma Peres Costa; “Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai28”, de Divalte Garcia Figueira; e, finalmente, “Imagens em desordem: a iconografia da Guerra do Paraguai (1864-1870)29”, de André Toral.

Silveira e Toral debruçaram-se sobre as imagens produzidas pelos protagonistas do conflito durante as batalhas, e em especial, as pesquisas de Silveira ao tratar do papel exercido pela imprensa no conflito platino resgatou uma série de imagens que foram produzidas tanto por brasileiros, como por paraguaios; assim pode-se compreender como a imprensa brasileira gestou imagens negativas acerca de Solano López e de seu exército e que circulavam entre os soldados brasileiros cumprindo, entre outros, o papel de “motivar”, de “reanimar”, e de “encorajar” os soldados brasileiros que se encontravam com a “moral baixa”, à medida que satirizavam, ridicularizavam e denegriam López e seus soldados guaranis. Por outro lado o pesquisador demonstrou que mesmo diante do longo e exaustivo conflito a imprensa paraguaia também esteve presente no “teatro de operações”, e não deixou de produzir caricaturas a respeito, por exemplo, do Marquês de Caxias e do Conde d’Eu. À medida que essas imagens são devidamente contextualizadas e interpretadas trazem à luz informações sobre a Guerra Platina que os documentos oficiais em função de seu “lugar social” não permitem identificar.

O estudo de Costa delineia-se também como significativo no contexto dessas produções historiográficas, tendo em vista que a autora rompeu com a simples análise calcada na participação do exército brasileiro no conflito, estabelecendo uma mediação e buscando dialogar com os impactos causados no pós-guerra. Em seu estudo objetivou compreender: “[...] a participação das forças armadas profissionais na questão do Império e na consolidação

25 SOUZA, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Mauad; ADESA, 1996.

26 SILVEIRA, Mauro César. A batalha de papel: a Guerra do Paraguai através da caricatura. Porto Alegre: L&PM, 1996.

27 COSTA, Wilma Peres. A espada de Dâmocles. O Exército, a Guerra do Paraguai e a crise do Império. São Paulo: Hucitec; Ed. UNICAMP, 1996.

28 FIGUEIRA, Divalte Garcia. Soldados e negociantes na Guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas/FFLH/USP; FAPESP, 2001.

29 TORAL, André Amaral de. Imagens de desordem: a iconografia da Guerra do Paraguai. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.

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da República. [Como também] reconstituir essa participação como dimensão integrante da crise da monarquia, mas a partir da especificidade da inserção política da instituição armada”30.

A participação da mulher no conflito, via de regra, centrada na figura da Madame Linchy, foi superada com as pesquisas de Dourado que apresenta “outras mulheres” como agentes e partícipes do cotidiano da Guerra. As destinadas, as residentas, as matriarcas, as patriotas, as fugitivas, as viúvas e descendentes dos combatentes, também colocaram seus pés sobre o teatro da guerra...

Igualmente outros enfoques sobre a Guerra do Paraguai precisam ser abordados, sobretudo pelos estudos regionais, por exemplo, pesquisas que contemplem a questão dos Voluntários da Pátria, no que tange a situação que enfrentaram após o término do conflito e, conseqüente retorno para seus locais de origem ou não; como o Império brasileiro “recebeu de volta” as pessoas que foram para a Guerra; como se processou as reivindicações das pensões em atraso ao governo imperial; no caso específico do antigo estado de Mato Grosso, como se deu a ocupação da região e subseqüente formação de famílias que na atualidade acabaram por se destacar no cenário estadual.

Vale ressaltar que esses são apenas alguns exemplos de novas abordagens relacionadas à temática da Guerra e que conseguiram de alguma forma ganhar projeção nacional, entretanto há uma quantidade significativa de pesquisas sendo realizadas fora dos grandes centros, ou do eixo Rio de Janeiro – São Paulo – Minas Gerais, ligados aos Programas de Pós-Graduação e que oferecem explicações de vários pontos relacionados ao conflito platino, mas com enfoques ligados a diferentes regiões do país. Entendendo que a discussão em torno do Nacional, Regional e Local são faces “de uma mesma moeda”, e, portanto elementos imprescindíveis para a compreensão de um “todo”, espera-se que tais produções possam ser divulgadas e debatidas tanto no âmbito acadêmico como junto às comunidades de interesse e que possam ganhar projeções nas obras didáticas. Dessa forma espera-se que a “história que é ensinada sobre a Guerra do Paraguai”, possa estar presente nos currículos escolares de maneira que venha a “encantar” o educando e levá-lo a compreender as diversas e intrincadas facetas do conflito, sem a carga ideológica que atualmente marca o ensino sobre esta Guerra.

REFERÊNCIAS

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