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CINCO GRAUS DE DIFERENÇA

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CINCO GRAUS DE DIFERENÇA

4 peças curtas para rádio

Carlos Campos, João Janicas, Railson Almeida,Thomaz Paiva

Mestrado em Estudos Artísticos,

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

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CINCO GRAUS DE DIFERENÇA estreou em Portugal, no dia 20 de junho de 2016, Dia Mundial do Refugiado, na Rádio Universidade de Coimbra, com a seguinte ficha artística:

Textos: Carlos Campos, João Janicas, Railson Almeida, Thomaz Paiva Direção de Atores: Ana Maria Mula

Sonoplastia: Sofia Fonseca Rodrigues

Interpretação: Alexandra Silva, Andrea Inocêncio, Ana María Mula, Carlos Campos, Carlota Napierala, Cristina janicas, João Oliveira, João Paulo Janicas, José Castela, Railson Gomes de Almeida, Rui Damasceno, Sofia Fonseca Rodrigues e Zhang Qinzhe Coordenação: Carlos Costa

Produção: Mestrado em Estudos Estudos Artísticos, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em parceria com Centro de Refugiados Paz/Peace, RUC – Rádio Universidade de Coimbra, CITAC – Círculo de Iniciação Teatral da Universidade de Coimbra, Cooperativa Bonifrates e TAGV – Teatro académico de Gil Vicente.

CINCO GRAUS DE DIFERENÇA integrou-se no chamada internacional "The Syrian Monologues" promovida pela Companhia de Teatro da Palestina ASHTAR Theatre

"CINCO GRAUS DE DIFEREÇA"de Carlos Campos, João Janicas, Railson Almeida e Thomaz Paiva está publicado ao abrigo duma licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 3.0 Portugal License. Utilize, partilhe e transforme. Mas exclusivamente para fins não comerciais e creditando sempre as autorias originais. E volte a partilhar eventuais obras derivadas deste mesmo modo.

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PRÓLOGO

(no estúdio de uma estação de rádio)

LOCUTOR 1 - Hoje é o Dia Mundial do Refugiado. Atualmente existem no mundo cerca de 60 milhões de pessoas deslocadas e desses, 20 milhões são considerados refugiados.

Só as populações síria, afegã, sudanesa, somali e congolesa no seu conjunto totalizam mais de 8 milhões.

Sete milhões de sírios, um terço dos que viviam no país em 2011, abandonaram as suas casas e 2 milhões estão em nações vizinhas.

Durante os últimos meses, alguns elementos da RUC tiveram a oportunidade de investigar a situação dos refugiados.

Aproveitamos o Dia Mundial do Refugiado para passar uma primeira série de quatro pequenas reportagens, intituladas CINCO GRAUS DE DIFERENÇA, que dão conta de algumas das realidades por que passam, desde o campo de refugiados na Jordânia até à sua chegada e acolhimento em Portugal.

(entra o genérico do programa)

LOCUTOR 2 - Cinco graus de diferença a separar a latitude de Portugal e da Síria. Mas entre os paralelos dos povos há um abismo de 20 milhões de pessoas em fuga.

LOCUTOR 1 - Durante os últimos meses, dois elementos da RUC tiveram a oportunidade de investigar a situação dos refugiados. A peça radiofónica CINCO GRAUS DE DIFERENÇA, que vai agora para o ar na RUC, dá conta de algumas das realidades por que passaram, desde o campo na Jordânia até à sua chegada e acolhimento em Portugal.

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REPORTAGEM 1 - PARALELO 35, de Carlos Campos

Personagens: Pedro e Ana, dois jovens entre 20 e 25 anos, rapaz e rapariga; Rui, jornalista – jovem com cerca de 20 anos.

(no estúdio de uma estação de rádio)

LOCUTOR - A primeira reportagem, PARALELO 35, passa-se no campo de refugiados de Zaatari, no norte da Jordânia, a 12 kms da fronteira com a Síria.

Ana Bastos, 23 anos, recém licenciada em enfermagem voluntariou-se para trabalhar em Zaatari e está lá desde Novembro de 2015. O seu irmão, Pedro Bastos, nosso colega, decidiu fazer uma reportagem sobre a vida no campo, e esteve lá nos meses de Março e Abril, onde pôde acompanhar o trabalho da irmã.

(Exterior. Gravação em telemóvel ou em gravador simples. Num campo de refugiados, ouve-se algum vento e ao fundo sons de jovens que correm e percebe-se ao longo da reportagem que jogam futebol. Jovem rapaz grita: Passa a bola, em árabe).

PEDRO - Zaatari impressiona quem chega. Abriu em Julho de 2012, em pleno deserto, para uma lotação de 60 mil pessoas. Chegou a ter 200 mil em 2013 e hoje vivem aqui cerca de metade. Quase toda a gente veio da Síria. As histórias das pessoas são todas diferentes, mas tocam-se em algum ponto.

(Pausa curta. Ouve-se vento, crianças a jogar futebol e o mesmo jovem a gritar: Passa a bola, em árabe)

PEDRO - Ana, após cinco meses neste campo de refugiados, como poderias resumir a tua experiência?

ANA - Não tem sido fácil, mas a recompensa é enorme. Pode parecer um cliché, mas, na realidade, o sorriso das pessoas supera qualquer dia de calor, como este, a poeira ou as noites frias. A situação de quem chega ao campo é terrível e precisam de toda a ajuda possível. As pessoas não têm outro lugar estável. O que era deles foi destruído ou ameaçado. E não falo só das coisas físicas. A maior parte das famílias perdeu alguém ou então estão em guerra.

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ANA - Pensa nisto. Estás em Coimbra, sais de casa, vais visitar uns amigos ou família, voltas a casa, tiras a chave do bolso para abrir a porta, mas ela não existe, nem a porta, nem a casa. Nada, só tijolos. E depois, no instante seguinte, atendes o teu telefone e dizem-te: o teu irmão acabou de morrer... (Pausa curta)

Há muito pior, como já te contei. Depois disso, não lhe resta mais nada. Pegam nos filhos e vêm para cá ou para outros sítios. Quem pode lutar fica, mas quem tem filhos... Quem está cá vai sabendo o que se passa lá pelo telefone.

PEDRO - E parece-me que estão sempre a chegar pessoas a Zaatari. Pelo menos desde que aqui cheguei, vejo chegar autocarros todos os dias... E há imensos voluntários de todo o mundo. Ainda ontem estivemos a falar com vários, desde palhaços ingleses, praticantes de capoeira do Brasil a estudantes de engenharia da universidade da Jordânia.

ANA - O trabalho é imenso e só com tanta gente a ajudar e uma boa coordenação pode ser bem feito.

PEDRO - Podes descrever o que vais fazer hoje?

ANA - O meu trabalho é identificar as famílias em situação precária com recém-nascidos e com situações de saúde graves. Não há saneamento, nem água canalizada ou eletricidade e isso pode levar a situações complicadas. Além disso, devido ao sol, existem crianças com problemas de pele. Hoje vou ver algumas famílias que chegaram nos últimos dias.

PEDRO – Então, agora também usas lenço na cabeça!

ANA - É verdade. Mas não tem nada a ver com o que estás a pensar. Aqui dá jeito. Evita que a areia se entranhe no meu cabelo.

(Continua-se a ouvir vento, crianças a jogar futebol e ouve-se rapaz gritar: Passa a bola, em árabe)

PEDRO - Os miúdos que jogam futebol parecem ignorar o que se passa.

ANA - Mas não esquecem. É impossível. Vês aquele que está sempre a gritar “passa a bola (em árabe)”. Sabes o que quer dizer? Passa a bola. E sabes porque gosta de

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dizer isso tantas vezes? Foi das últimas coisas que o pai lhe disse… As crianças sofrem muito com esta situação. Algumas sem pais ou familiares, sem escola… PEDRO - É mesmo terrível.

ANA - Aqui no campo de Zaatari há escola, mas nem o estado jordano, nem o sírio lhes passará qualquer certificado. Por outro lado, muitos jovens não tiveram oportunidade de trazer as suas certificações, o que lhe dificulta o acesso à universidade.

PEDRO - O futuro não está fácil para eles, pois não?

ANA - Pois. Os jovens sentem esta situação profundamente. Estou a lembrar-me de uma conversa entre dois rapazes, um sudanês e um sírio, que ouvi por acaso, há alguns dias. O sudanês perguntava: Qual é a cor do mar na Síria? E o outro respondia: É igual à do mar do Sudão, vermelha. (Pausa ligeira. Mulher anuncia,

gritando, em árabe: Chegaram os camiões de água.)

(novamente no estúdio da estação de rádio)

JORNALISTA - Como foi referido, acabámos de escutar uma reportagem feita por dois voluntários, irmãos, no campo de refugiados de Zaatari, na Jordânia, hoje o segundo maior do mundo. Aqui, no estúdio, tenho ao lado, um deles, o nosso colega da RUC, o Pedro Bastos. Olá Pedro, parece ter sido uma experiência muito enriquecedora. Foi muito complicado?

PEDRO - Olá. Não foi fácil, mas a preparação foi boa e as informações que a Ana enviava ajudou, mas nunca é exatamente o que esperávamos. De qualquer modo, assim que nos deparamos com as pessoas e as suas histórias esquecemos as nossas dificuldades. Acho que um momento marcante, foi quando pensei na injustiça que é o facto de eu poder voltar para casa, para a minha tranquilidade, mas aquela gente não. A partir desse instante não podia desistir.

JORNALISTA - Infelizmente, não parece que o conflito vá acabar tão cedo. Tencionas voltar?

PEDRO - Neste momento vou colaborar daqui. Outras pessoas querem ir e eu vou estar com elas; mas sim, tenciono voltar ainda este ano.

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JORNALISTA - A tua irmã ainda fica até Novembro?

PEDRO - Sim, exato. Ela foi por um ano. Quero lá voltar e regressar com ela.

JORNALISTA - Que grito era aquele que ouvimos no final da reportagem? Era a chamada para a oração? (Pedro não compreende e jornalista clarifica)... mesmo no final?

PEDRO - Ah. Não. Naquele instante estavam a chegar camiões de água que abastecem o campo. Por dia, chegam cerca de 400 camiões e a água é racionada. Acho que naquele dia o abastecimento atrasou-se um pouco e estavam a anunciar a sua chegada.

JORNALISTA - A dada altura a Ana diz que a organização do campo é importante. Como acabaste de referir nem tudo corre como planeado.

PEDRO - É preciso compreender que este campo de Zaatari foi concebido para muito menos gente e que muita coisa foge do controlo. Por exemplo: a gestão do campo colocou os contentores que servem de habitação ordenados de uma determinada forma. Por vários motivos, as famílias mudam o seu contentor de posição. Arranjam umas rodas de carro, usam um veio de madeira e lá vão, com a casa para outro sítio. Claro que não se vai impedir, quem já passou por tanto, de fazer o que faz. Mas isso obriga a uma gestão versátil.

JORNALISTA - Pedro, sei que voltarás aqui para falar sobre este assunto. Mas desde já deixa-me dar os parabéns pelo teu trabalho e agradeço-te o facto de teres aqui estado.

PEDRO - Obrigado. Foi um prazer.

JORNALISTA - Antes de terminarmos, vamos ouvir um pequeno texto de um voluntário italiano sobre o Mar Mediterrâneo que o Pedro conheceu no campo:

VOLUNTÁRIO -

“É o mar onde se salgam os corpos perdidos dos que o cruzaram por ajuda, O mar dos que pedem para que a sua casa destruída seja deles outra vez, E onde se dissolvem as lágrimas daqueles que tanto perderam.

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REPORTAGEM 2 - PARALELO 36, de João Janicas

Personagens: JORNALISTA, ACOMPANHANTE 1 (Responsável da equipa), ACOMPANHANTE 2 (Tradutora), EMPREGADO DO BALCÃO, UM CLIENTE DO BAR, PEREGRINO 1, PEREGRINO 2, MULHER REFUGIADA, MOTORISTA.

(no estúdio de uma estação de rádio)

LOCUTOR - Nesta segunda parte da reportagem CINCO GRAUS DE DIFERENÇA, PARALELO 36, vamos acompanhar um grupo de refugiados nas suas primeiras horas em Portugal. Desembarcados no aeroporto ao final da tarde, o grupo foi recebido por uma responsável do Centro de Acolhimento e por uma tradutora e seguiu de autocarro para o centro, numa viagem que prometia ser longa. De microfone aberto, o nosso repórter acompanha os primeiros contactos com alguns portugueses, numa estação de serviço onde o grupo parou, para rezar, em sinal de agradecimento. As suas primeiras palavras ao pisar o chão português foram “Aqui cheira a paz e liberdade”.

(exterior de uma área de serviço na auto-estrada; chegada do autocarro)

ACOMPANHANTE 1 - … mortos de cansaço. Porque é que não esperam até chegarmos ao Centro?

ACOMPANHANTE 2 - O senhor Faruk diz que o devem fazer logo após o pôr-do-sol. ACOMPANHANTE 1 - Está a chover. Diz-lhes que vamos entrar no café da estação de serviço.

(interior de café na área de serviço)

EMPREGADO DO BALCÃO - Em que é que posso ajudar?

ACOMPANHANTE 1 - Senhor, estamos a levar estas famílias de refugiados para a sua nova casa. Eles não vão comer ou beber nada, mas precisavam de ir aos lavabos fazer as suas abluções e de um cantinho para rezar. Talvez ali ao canto…

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EMPREGADO DO BALCÃO - Não sei se é possível… Isto vai ficar superlotado. Os clientes têm que ter acesso às montras e como essas pessoas não vão consumir nada…

UM CLIENTE - Por amor de Deus! Se é por mim, deixe lá as pessoas fazer as suas orações.

EMPREGADO DO BALCÃO - Mas podem chegar outros clientes e assustar-se ao ver esta gente aqui, as mulheres vestidas desta maneira…

UM CLIENTE - Vão pensar que são terroristas, não? EMPREGADO DO BALCÃO - Sei lá! Não me admirava/

ACOMPANHANTE 1 - /Pronto, deixe, deixe. Nós vamos procurar outro sítio.

(exterior da área de serviço)

ACOMPANHANTE 1 - Diz-lhes que vamos até aquele telheiro na área de merendas. O autocarro, depois, apanha-nos lá.

ACOMPANHANTE 2 - Mas estão lá outras pessoas…

ACOMPANHANTE 1 – E qual é o problema?! As pessoas sabem que estamos a acolher os refugiados, não?

(zona de merendas da área de serviço)

ACOMPANHANTE 1 – (O som de um carro a passar corta o meio da frase.)Boa noite. Estas pessoas são refugiados e …//... rezar aqui, se não se importam?

PEREGRINO 1 - (Mastiga enquanto fala.) Aqui, porquê? Nós também estamos cansados. E queremos comer sossegados.

ACOMPANHANTE 2 - Mas os refugiados não vão incomodar. Eles só querem rezar! PEREGRINO 1 - (O som de um carro a passar corta o meio da frase.) Nós também estamos a rezar. Não vê que vamos a pé para ... //… Alá e Deus Nosso Senhor no mesmo sítio?

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PEREGRINO 2 - Deixa lá isso, pá! Tu estás só a encher o bandulho. Deixa as pessoas abrigar-se e fazer lá as rezas deles. Se fosses tu também gostarias que te recebessem bem…

PEREGRINO 1 - (O som de um carro a passar corta o meio e o fim da frase.) Eu?! ... //… aqui de para-quedas, têm casa, médico grátis, trabalho… não é que eu seja contra... A questão é porque é que quem está cá não ... //…

ACOMPANHANTE 2 - (Com muita tristeza.) O senhor não tem coração… ACOMPANHANTE 1 - Deixa, deixa... //…

(Ouve-se o autocarro que se aproxima. A pouco e pouco mistura-se com este o som de um raid aéreo.)

MULHER REFUGIADA - O meu país é um corpo sem alma. Os acontecimentos aceleraram, até ao meu último dia na Síria. Tivemos que fugir por causa dos intensos bombardeamentos na nossa zona. Quando chegámos à primeira paragem, fomos colocados numa casa velha com as paredes tão rachadas como os nosso sonhos destruídos. As janelas estavam seladas e cada vez que olhava para elas, perguntava-me: será que alguma vez se vão voltar a abrir? Haverá um novo dia para o meu país? Esperámos durante muito tempo até cair a noite e podermos fazer a jornada seguinte. Então, partimos…

Esqueci-me do meu casaco naquela casa. Quis voltar, mas o traficante proibiu-me e o carro partiu. Eu não queria aquele casaco por ser quente e o vento nos gelar os ossos. Queria aquele casaco porque o cheiro do meu pai ainda estava nele; quando me despedi dele, a correr, ele entregou-mo, com as lágrimas nos olhos, preocupado coma incerteza do nosso futuro... //…1

(noutro local da área de serviço)

MOTORISTA - Estão a transmitir uma reportagem na rádio sobre a vinda dos refugiados. Está aqui um trabalho bem feito. Até têm entrevistas lá na terra deles!

1

Adaptado do depoimento de Fatmeh Al Zoubi – Daraa, in The Syrian Monologues. Personal

stories of Syrian Refugees in Jordan (Training Editing&Translation by Iman Aoun, Jordan, 2015), ASHTAR

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ACOMPANHANTE 1 - Muito bem, Sr. Motorista. Mas agora acho que temos que partir...

MOTORISTA - Não sei, não, doutora… Veja!

ACOMPANHANTE 1 - (Gritando.) Então, ... //… onde é que vão?

ACOMPANHANTE 2 - (Gritando ao longe.) As mulheres e as crianças passaram... //… o lugar de que precisam.

(Som das passadas de pessoas a correr. Ouve-se também a respiração um pouco ofegante do jornalista enquanto fala… A certa altura começa a ouvir-se, em fundo, mas cada vez mais distintamente, uma voz de mulher que canta em árabe e que acompanha todo o diálogo seguinte.)

JORNALISTA - Temos acompanhado as famílias de refugiados nos seus primeiros contactos com a terra e as pessoas em Portugal. Não têm sido fáceis. Estamos numa área de serviço algures numa saída da A1. Neste momento, aproximamo-nos de um local que, após várias peripécias, o grupo parece ter finalmente encontrado para fazer as suas orações de agradecimento. (Som de passadas e respiração ofegante do

JORNALISTA.) É uma zona arborizada, um pouco afastada… Estamos a chegar… As

famílias estão todas juntas, reunidas em círculo, alguns de joelhos… as crianças e as mulheres à frente… os homens em volta… Mas ainda não estão a rezar… Alguma coisa se passa… Vamos aproximar-nos de tradutora da equipa, Nadiya Ben Salem. e tentar saber o que está a acontecer.

(Continua a ouvir-se sempre a voz de mulher que canta em árabe.)

ACOMPANHANTE 2 - Ouvimos primeiro uma criança que chorava, chorava… não parava de chorar… Depois as famílias dirigiram-se para aqui... As mulheres agarraram ao colo o bebé que estava com fome… estão a dar-lhe de comer. É uma miúda e um bebé, sozinhos… Quem sabe o que lhes aconteceu… Estão a tentar sossegá-lo e a adormecê-lo…

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REPORTAGEM 3 - PARALELO 37, de Railson Almeida

Personagens: JORNALISTA, SAMMER, VOZES, BRASILEIRO, SR. CASACA, ELES)

(no estúdio de uma estação de rádio)

LOCUTOR 1 - Nesta terceira parte da reportagem CINCO GRAUS DE DIFERENÇA, PARALELO 37, acompanhamos uma história baseada no depoimento de Samir de Castro, brasileiro, que está em Portugal há quatro anos. Durante algum tempo, trabalhou no Bar do Sr. Casaca situado a alguns quilómetros de Coimbra. Ele conheceu Sammer Kattan, um refugiado sírio que não vê desde o tempo do trabalho. Inclusive, ele está à procura do seu amigo, quem tiver informações do seu paradeiro, por favor entre em contato com o nosso estúdio

JORNALISTA – Começamos com algumas opiniões, recolhidas na Baixa de Coimbra, acerca dos refugiados em Portugal.

VOZ : Enquanto isso, nossos jovens desistem de estudar nas Universidades por falta de bolsas.

VOZ : E nossos recém doutores emigram por falta de postos de trabalho. VOZ : E não vão pagar as propinas? Para se mostrar assim tão acolhedora! VOZ : Este país não é para portugueses.

VOZ : E trouxeram essa gente com véu.

VOZ : Mas, e os refugiados cristãos? Que estão a ser maltratados e mortos pelos ditos moderados do Islão!

VOZ : A Europa materialista pouco se importa com os cristãos decapitados no Oriente Médio.

VOZ : Refugiados cristãos não são tão "exóticos" como muçulmanos e não chamam tanto o interesse dos meios de comunicação.

VOZ : Hoje em dia, alguns preferem desprezar o que é nosso. Seja de nacionalidade ou religião. Para dar preferência ao que parece politicamente correto.

VOZ : Nosso povo português definha-se debaixo das pontes e deambula pelas ruas sem qualquer apoio...

VOZ : Pobre povo que és tão mal amado por quem te governa e te suga!

VOZ : Vão ter tudo grátis, enquanto nós portugueses temos que trabalhar para nos sustentar.

VOZ: E se perdemos os empregos, ficamos sem abrigo porque não há filho da puta de nenhum político que nos ajude.

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JORNALISTA - Vamos ouvir agora o depoimento do jovem brasileiro Samir de Castro. BRASILEIRO - Trabalhava neste bar há apenas um ano. Ao chegar já havia um funcionário, por coincidência com um nome igual ao meu, mas ele, pelo contrário, era um homem de poucas palavras. Até onde entendi ele era árabe e estava ainda aprendendo sua nova língua, mas era um excelente funcionário. O nosso patrão era Seu Casaca, um português severo, mas que gostava de nosso trabalho. Elogiava-nos. Principalmente ao Sammer. Sammer chegava pontualmente às 10, todos os dias; vinha de bicicleta, não sei de onde, mas nunca atrasava. Nossas poucas conversas eram sobre futebol, ele adorava falar do Neymar, Ronaldinho e da seleção brasileira. Eu lhe disse que lhe daria de presente uma camisa 10 da seleção brasileira…

JORNALISTA - Muito bem. De certeza, ele adorou, não? BRASILEIRO - Não, foi uma pena, não consegui… BRASILEIRO - Mas porquê? O que se passou?

BRASILEIRO - Então, aconteceu, um facto triste. Lembro-me que era uma sexta-feira, estávamos arrumando a bagunça depois do almoço, quando eles chegaram. Disseram ao Seu Casaca que haviam recebido uma denúncia que ele estaria oferecendo trabalho a um imigrante ilegal. Nessa hora eu gelei. Meu visto havia vencido há 6 meses, e era eu o tal imigrante ilegal. Porém, eu estava na cozinha. E eles perceberam primeiro ao Sammer, que estava fora. Perceberam que era estrangeiro. Depois, falaram umas coisas que não percebi. Eu estava atento à reação do Seu Casaca. Mas, então resolvi sair do bar, pelos fundos… apenas corri sem direção.

JORNALISTA: Qual foi a reação do Seu Casaca?

BRASILEIRO: Já chego lá. Eu voltei ao café no dia seguinte. Devia explicações ao Seu Casaca. Ao adentrar no bar não vi o Sammer, mas, sim, um outro estrangeiro. Pelo sotaque era do leste, acho que da Ucrânia. Falei com Seu Casaca, expliquei que eles queriam a mim, pois meu visto venceu há meses. Então ele olha pra mim e fala com uma frieza coisas que nunca havia ouvido dele. Coisas que prefiro não repetir aqui. Não entendi muito bem sua reação. Então eu simplesmente virei e fui saindo perplexo. Ele ainda gritou comigo, mandou ir pra cozinha. Não fui. Apenas falei: Não.

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JORNALISTA: Mas então, acho que todos continuamos a não saber muito bem o que se passou com o seu colega Sammer…

(ambiente de bar)

ELES - O senhor é que é o dono deste bar? SR. CASACA - Sim, o que desejam?

ELES - Fomos informados que aqui trabalha um imigrante ilegal.

SR. CASACA - Desculpa, aqui não há ninguém ilegal. Aqui só tenho um brasileiro e um outro estrangeiro.

ELES - Estrangeiro de onde? Por acaso se trata de algum refugiado?

SR. CASACA - Não sei dizer-lhe. Sammer, venha cá, fale com estes senhores.

SAMMER - Olá, boa tarde? O que vão pedir? Temos hoje, um bacalhau com nata, e bifanas de porco com batatas. O que desejam?

ELES - Sammer é o seu nome, não é? Você é de que país? SAMMER - Sou da Síria.

ELES - O que veio fazer na Europa?

SAMMER - Buscar refúgio da guerra que está acontecendo. ELES - Então veio buscar refúgio? Pode vir connosco?

SAMMER - Não entendi senhores. Os senhores querem que eu vá com vocês? Aonde? ELES - Queremos que venha connosco. Apenas isso.

SAMMER - Eu não posso, estou trabalhando e tenho compromisso depois de sair daqui.

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ELES - Acho que você ainda não entendeu. Você vem connosco.

SAMMER - Acho que entendi. Deve estar havendo um engano. Seu Casaca, por favor, explique a esses senhores que o senhor me conhece e que sou uma pessoa de bem. ELES - O senhor acha seguro ter um árabe no seu bar?

SR. CASACA: ... Eu não sabia que ele era árabe.

ELES: Não sabia? O senhor pode ter problemas por isso?

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REPORTAGEM 4 - PARALELO 38, de Thomaz Paiva Personagens: JORNALISTA, PROFESSORA, ZAÍRA.

(no estúdio de uma estação de rádio)

JORNALISTA - Agora, para finalizar os quatro paralelos de “5 graus de diferença”, temos a convidada Filipa de Oliveira, professora de uma escola do 1.º Ciclo onde há estudantes dos programas de acolhimento a refugiados em Portugal.

Boa tarde, Filipa. Como está?

PROFESSORA FILIPA – Vou bem, obrigada!

JORNALISTA - Mas então, o que tem para nos contar?

PROFESSORA FILIPA – Pois! Passei por uma situação interessante com uma das meninas, na escola em que dou aulas. Na minha turma do 1.ª ano tenho uma menina, a Zaíra, que é uma aluna refugiada. Se calhar nem devia dizer “aluna refugiada”, é uma aluna…

LOCUTOR – Continue, continue…

PROFESSORA FILIPA – Pois! Foi assim... Eu queria saber como ela se estava dar. Então, quando tocou para o intervalo, chamei-a para conversar com ela...

(barulho de uma campainha a anunciar o intervalo entre as aulas para o recreio das crianças, barulho de crianças a brincar e a conversar)

PROFESSORA FILIPA – Zaíra, querida, vem cá!

ZAÍRA (tímida, com alguns erros na nova língua) – Sim, professora

PROFESSORA FILIPA – Eu gostava de conversar contigo. Está tudo bem contigo? ZAÍRA – Sim, tudo bem!

(Som de cadeiras a serem arrastadas)

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ZAÍRA – Sim, gosto muito! Muito fixe...

PROFESSORA FILIPA – Que bom!!! Fico feliz com isso! De que é que gostas mais na escola?

ZAÍRA – Gosto... Gosto dos profe...professores! Gosto do lanche... E das brinca... Professora – Brincadeiras?

ZAÍRA – Sim! Gosto muito.

PROFESSORA FILIPA – Muito bem! Olha que português perfeito! Falas muito bem, Zaíra! Tens praticado bastante com os teus colegas!

ZAÍRA – Sim, sim. Obrigada, professora!!! Gosto muito... São muito minhas amigas! PROFESSORA FILIPA – E em casa? Como estás?

ZAÍRA – Hmmm... Está bem...

(hesitação, silêncio)

PROFESSORA FILIPA – Hmm... Que bom, Zaíra! Então já que está tudo bem, podes ir brincar!

ZAÍRA – Mas... Mãe... Ela disse que... Que posso brincar com toda a gente. PROFESSORA FILIPA – Claro que podes. E por que não poderias?

ZAÍRA – Porque em casa... Nossa casa, Síria, não pode. PROFESSORA FILIPA – Como não?

ZAÍRA – Meninos e meninas...

PROFESSORA FILIPA – Ah sim... Entendo! E tu queres brincar com os meninos? ZAÍRA – Sim!

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PROFESSORA FILIPA – Pois! Não faz mal. Podes brincar, Zaíra. Aqui em Portugal, podes brincar com quem quiseres.

ZAÍRA – Não... Não é problema?

PROFESSORA FILIPA – Não, não há problema nenhum! Vês? Os meninos ficam juntos das meninas e todos vocês podem brincar, pular, conversar, abraçar-se... É normal e não há problema algum! Mas somente se quiseres, claro!

ZAÍRA – Minha família também “diz” que eu posso ser como as raparigas de cá, se eu quiser...

PROFESSORA FILIPA – Que bom que a tua família pensa assim, Zaíra! Estás num país novo de cultura diferente. É normal…

ZAÍRA – Sim! Mas... “Ter” Medo...

PROFESSORA FILIPA – Não precisas ter medo. É só guardares com carinho as coisas que gostas do teu país e sentires-te bem com as coisas de Portugal. Segue os conselhos de tua família, que ficará tudo bem.

ZAÍRA – Mãe “diz” que quando eu “cresço”, “pode” ser o que quero! PROFESSORA FILIPA – Pronto! Sim! Podes, Zaíra! Claro que podes. ZAÍRA – Quero... Ser “médico”.

PROFESSORA FILIPA – Olha que maravilha! Tenho a certeza que tu serás uma grande médica!

(Zaíra dá um riso de felicidade. Mas a seguir cala-se. Silêncio momentâneo.)

ZAÍRA – E quando eu voltar para Síria?

PROFESSORA FILIPA – Aaaa… quando voltares… Pronto, Zaíra! Gostei de conversar contigo. Dá cá um beijinho. Vai ainda brincar um pouco com os teus colegas.

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EPÍLOGO

(no estúdio de uma estação de rádio)

LOCUTOR 1 - Transmitimos CINCO GRAUS DE DIFERENÇA, uma peça de teatro radiofónico em forma de quatro reportagens.

LOCUTOR 2 - Cinco graus de diferença separam a latitude de Portugal e da Síria. Mas entre os paralelos dos povos há um abismo de 20 milhões de pessoas em fuga.

LOCUTOR 1 - A partir de uma investigação de alguns meses, relataram-se algumas das realidades por que passam os refugiados, desde o campo na Jordânia até à sua chegada e acolhimento em Portugal.

LOCUTOR 2 - CINCO GRAUS DE DIFERENÇA tem a assinatura de Ana Maria Mula, Carlos Campos, João Janicas, Railson Almeida e Thomaz Paiva e é uma iniciativa do Mestrado em Estudos Artísticos, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, com coordenação de Carlos Costa, em parceria com o Centro de Refugiados Paz/Peace, RUC, CITAC, TEUC e TAGV.

LOCUTOR 1 - CINCO GRAUS DE DIFERENÇA integra-se no chamada internacional "The Syrian Monologues" promovida pela Companhia de Teatro da Palestina ASHTAR Theatre, que desafiou os artistas europeus a contactarem comunidades de refugiados e a encetarem processos criativos inspirados pelas respetivas experiências. Além da Universidade de Coimbra, estão também envolvidas organizações artísticas da Alemanha, Brasil, França, Irlanda, Itália, Reino Unido, Ruanda e Sri Lanka.

Referências

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