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FILOSOFIA, RECONHECIMENTO E DIREITO

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Academic year: 2021

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FILOSOFIA, RECONHECIMENTO

E DIREITO

(2)

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS

Chanceler

D. Jayme Henrique Chemello

Reitor

Alencar Mello Proença

Pró-Reitora de Graduação

Myriam Siqueira da Cunha

Pró-Reitora de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão

Vini Rabassa da Silva

Pró-Reitor Administrativo

Carlos Ricardo Gass Sinnott EDUCAT - EDITORA DA UCPel

Editor

Wallney Joelmir Hammes CONSELHO EDITORIAL

Wallney Joelmir Hammes- Presidente Lino de Jesus Soares

Luciano Vitória Barboza Luiz Roberto Bitar Real Vilson José Leffa

EDUCAT

Editora da Universidade Católica de Pelotas - EDUCAT Rua Félix da Cunha, 412

(3)

AGEMIR BAVARESCO MANUEL MOREIRA DA SILVA

Organizadores

FILOSOFIA, RECONHECIMENTO

E DIREITO

EDUCAT

Editora da Universidade Católica de Pelotas Pelotas – 2006

(4)

© 2006 Agemir Bavaresco, Manuel Moreira da Silva Direitos desta edição reservados à

Editora da Universidade Católica de Pelotas Rua Félix da Cunha, 412

Fone (53)3284.8030 - Fax (53)3225.3105 Pelotas - RS - Brasil

E-mail: educat@phoenix.ucpel.tche.br Loja virtual: http://educat.ucpel.tche.br Editora filiada à ABEU

PROJETO EDITORIAL EDUCAT

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Ana Gertrudes G. Cardoso

CAPA Valder Valeirão

Ilustração da capa: Fontana di Trevi Contra-capa: G. W. F. Hegel

F478 Filosofia, reconhecimento e direito / [organizadores] Agemir Bavaresco, Manuel Moreira da Silva. – Pelotas : EDUCAT, 2006.

182p.

ISBN 85-7590-077-3

1. Filosofia – direito. 2. Direito – Filosofia. I. Bavaresco, Agemir. II. Silva, Manuel Moreira

CDD 340.1

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim CRB 10/1233

(5)

SUMÁRIO

Apresentação ... 7

A. Eticidade e Intersubjetividade: observações acerca da influência de Fichte sobre Hegel ... 13

Erick Calheiros de Lima 1. Intersubjetividade e direito em Fichte ... 13

2. A crítica de Hegel na Differenzschrift: dois modelos de intersubjetividade ... 23

3. Intersubjetividade e Einssein: o Naturrechtaufsatz ... 38

B. Reconhecimento Intersubjetivo no Viés Jusfilosófico de Hegel e Kojève ... 67

Agemir Bavaresco e Sérgio B. Christino 1. Do precário conceito de intersubjetividade dos modernos ... 71

2. Intersubjetividade e Reconhecimento em Hegel ... 73

2.1 Nos primeiros Escritos ... 73

2.2 Na Fenomenologia do Espírito ... 80

3. Reconhecimento e Intersubjetividade no Esboço de uma Fenomenologia do Direito de Kojéve ... 82

3.1 Questão metodológica ... 82

3.1.1 A dialética hegeliana ... 83

3.1.2 Monismo sim, monismo não ... 84

3.1.3 A dialética Kojèviana ... 85

3.2 O desejo antropogênico ... 87

3.3 Modelos de Direito, ou ideal de justiça, segundo Kojéve ... 95

3.3.1 A justiça da igualdade ou o Direito aristocrático 96 3.3.2 A justiça da equivalência ou o Direito burguês .. 99

(6)

4. Modelos Metodológicos de Reconhecimento: do direito subjetivo ao intersubjetivo ... 108 C. O Idealismo Especulativo e o Problema da

Fundamentação Ético-Política da Mediação Institucional e do Reconhecimento Intersubjetivo na Filosofia Prática Contemporânea ... 117

Manuel Moreira da Silva

1. Posição do Problema ... 117 2.Limites e aporias de algumas considerações

não-especulativas em torno da mediação institucional e do reconhecimento intersubjetivo ... 127

1. O Realismo-naturalismo e a destranscendentalização da Razão prática ... 131 2. O Idealismo relativo e a retranscendentalização da

Razão prática ... 139 3. Necessidade da Passagem a uma Concepção Especulativa

do Direito, Elementos para sua Retomada e Desenvolvimento na Atualidade ... 150

1. O que é o Especulativo puro? ... 154 2. Nota sobre a Concepção especulativa do Direito e

sua atualidade ... 162 4. A guisa de conclusão: O Eu plural e a ordem

normativo-institucional ... 176 Referências bibliográficas ... 178

(7)

Apresentação

Adentramos cada vez mais em um novo patamar da existência humana, uma existência consciente não só de seus próprios limites, mas também de estar para além dos mesmos, a qual, contudo, ainda não é capaz de afirmar-se na plenitude da efetividade espiritual que ela mesma se atribui. A dissolução do Cosmos natural antigo e medieval, bem como da concepção estritamente nomotética do Direito natural e da Antropologia política nele fundada, aparece nos dias de hoje quase completamente realizada; a sobrevivência desse Cosmos natural em certas concepções atuais de algo como ―mundo da vida‖, ―formas de vida‖, etc., que dele ainda guardam resquícios, não mais operam segundo o princípio de uma razão cósmica abrangente e da comunidade ético-política que a reflete. Outrossim, a fragmentação e os estilhaços da subjetividade transcendental absolutamente fixada em si e por si mesma, própria dos modernos e contemporâneos, bem como da concepção estritamente hipotética de um Cosmos limitado à transcrição matemática e da liberdade como reciprocamente limitada, parecem estar em vias de perfazer a sua mais completa aniquilação; portanto, levando às suas últimas conseqüências – fazendo-a referir-se a si própria – a dissolução do Cosmos natural por ela mesma instaurada. Isso, ainda que nos apareça como um resultado meramente negativo, confirmando assim as posições dos mais diversos niilismos, contudo, apresenta-se positivamente; a saber, como resultado efetivo de um longo processo de desenvolvimento espiritual que, como tal, só pode ser compreendido em sua efetividade se o concebermos especulativamente.

Eis aí o pano de fundo que, de certo modo, está na base e constitui o estofo dos artigos que compõem a presente obra, Filosofia, reconhecimento e Direito. São três estudos em torno da concepção hegeliana do reconhecimento recíproco, os quais, respectivamente, cada um a seu modo e os três em conjunto, perfazem o arco e a envergadura mesma dessa que foi a primeira tentativa de se pensar, em seu rigor histórico-sistemático, o lugar e a função do que hoje se designa mediação institucional e

(8)

reconhecimento intersubjetivo. Mais que isso, embora cada um considere o problema do reconhecimento em Hegel, a partir de um aspecto específico e sob um viés distinto, a unidade sistemática do todo que no conjunto da presente obra se perfaz é garantida: (1) pela exigência do tempo presente no que tange ao repensamento de nosso lugar no Cosmos – mas não mais subordinados a ele, como no caso do Cosmos natural antigo e medieval e do Mundo representado moderno e contemporâneo – e da reestruturação de nossa vida comunitária como seres espirituais livres. (2) Pela tentativa mesma de retomar e desenvolver, ainda que em esferas distintas, os próprios princípios motores da Concepção especulativa do Direito – de fato, apenas esboçada em Hegel no que respeita ao elemento intersubjetivo – nos quadros de seu ponto de partida histórico-sistemático, de sua retomada fenomenológica e de seu desenvolvimento propriamente especulativo puro. O que, de certo modo, levando-se em conta certa dialética de atração e repulsão que salvaguarda a liberdade das orientações que presidem cada um dos textos apresentados a seguir, se constitui como uma verdadeira reproposição do que Hegel chamara ponto de vista especulativo.

No primeiro artigo, ―Eticidade e Intersubjetividade: observações acerca da influência de Fichte sobre Hegel‖, Erick Lima procura delinear a influência da doutrina fichteana da intersubjetividade, tal como apresentada na Grundlage des Naturrechts [Fundação do Direito Natural] (1796-1797), sobre a formação do conceito hegeliano de Sittlichkeit [Vida ética ou Eticidade]. Partindo da relação entre a concepção de intersubjetividade e a filosofia social de Fichte, o autor expõe a seguir a crítica do jovem Hegel ao conceito fichteano de Comunidade política – onde, para Hegel, se conflitariam duas concepções distintas em torno da Intersubjetividade – e, finalmente, nos apresenta uma importante análise da famosa crítica de Hegel à concepção do Direito em Fichte. Respectivamente, Lima discute aí o chamado Differenzschrift [Escrito da Diferença], de 1801, onde Hegel tematiza o sistema fichteano da filosofia a partir de seu confronto com o de Schelling, e o Naturrechtsaufsatz [Artigo sobre o Direito

(9)

Natural], publicado no Kritisches Journal der Philosophie [Jornal Crítico de Filosofia] de 1802-1803; nesse artigo, tendo como pano de fundo o próprio desdobramento de sua concepção do Absoluto apresentada no Differenzschrift – a Identidade da identidade e da não-identidade – Hegel lança mão de uma crítica das tradições empirista e formalista do Direito natural moderno, a fim de revelar a suprassunção de ambas como preâmbulo ao delineamento do processo de auto-diferenciação do Absoluto no plano de sua vida ética efetiva. Lima termina seu artigo explicitando alguns pressupostos de sua leitura do Naturrechtaufsatz, notadamente a subseqüente integração da teoria fichteana da intersubjetividade operada por Hegel no System der Sittlichkeit [Sistema da Vida Ética].

No segundo artigo, ―Reconhecimento intersubjetivo no viés jus-filosófico de Hegel e Kojève‖, Agemir Bavaresco e Sérgio Christino procuram retomar a leitura kojèviana da Luta pelo reconhecimento em Hegel; leitura essa que, talvez por se fixar nos limites estritos da esfera fenomenológica, se associa à perspectiva da humanização pelo trabalho em Marx e à contribuição existencialista em seu desenvolvimento do percurso antropológico que conduz o homem de sua condição animal até à condição de humanidade. Os autores mostram primeiramente o desenvolvimento da teoria hegeliana do reconhecimento e, logo depois, analisam o desejo antropológico de reconhecimento como fonte da idéia de justiça em Kojève; isso, mediante a distinção da dialética de Hegel [articulação negativa do imediato no movimento de sua própria mediação] e a de Kojève [de natureza dual-linear], de modo a retomar a recusa kojèviana do dualismo ontológico e do monismo materialista como ponto de partida para a compreensão de um processo de tipo reflexivo, como é o caso do fenômeno jus-filosófico. Desse modo, a partir do dualismo dialético linear instaurado com a luta pelo reconhecimento, os autores justificam a introdução por Kojève de um terceiro desinteressado (imparcial) como mediador das posições litigantes, superando assim a dialética dualista linear do senhorio e da escravidão, enquanto momento de superação do antagonismo no embate entre os litigantes; com o que, segundo

(10)

os autores, teríamos um momento especulativo que seria o mesmo da metodologia hegeliana.

Em seguida os autores nos apresentam a fenomenologia da justiça, segundo Kojève, a partir do princípio de que o desejo, conforme Hegel, quer o reconhecimento, sendo este a fonte última da idéia de justiça. Retrata-se aí a exposição kojèviana da idéia de justiça em sua delimitação fenomenológica, segundo os momentos da justiça aristocrática ou a igualdade, da justiça burguesa ou a equivalência e da justiça cidadã ou a eqüidade; isso, em mostrando a evolução da idéia de justiça conforme uma lógica do reconhecimento simétrico entre deveres e direitos, entre universal e particular, bem como explicitando a coincidência do universalismo do direito aristocrático e o particularismo do direito burguês. O que, como tal, se funda na compreensão dos direitos e dos deveres os mais pessoais, enquanto exercidos pelo indivíduo, se mostrarem como os direitos e deveres os mais universais, como direitos e deveres do cidadão enquanto cidadão ou aqueles de todos e de cada um; daí a conclusão segundo a qual o reconhecimento intersubjetivo se dá em vários níveis de mediação sócio-jurídico-político e, por isso, a necessidade da inserção, como complementar à de Hegel, da teoria do reconhecimento intersubjetivo no viés jus-filosófico de Kojève, como uma referência incontornável na construção de um Direito intersubjetivo capaz de enfrentar os desafios do tempo presente. Enfim, se de um lado, no dizer dos autores, a elaboração de uma hermenêutica jusfilosófica de viés intersubjetivo na complexidade da sociedade mundializada encontra, na teoria hegeliana do reconhecimento, um pressuposto epistemológico fundamental; de outro, ainda que limitada à aplicação da idéia de justiça e à descrição fenomenológica de sua tipologia, a passagem de Kojève ao especulativo – expressa em sua aplicação das três idéias de justiça para o Direito internacional, Direito público, Direito penal e Direito privado – também se mostrará fundamental no cenário ético-político atual.

No último artigo, ―O Idealismo especulativo e o problema da fundamentação ético-política da mediação institucional e do reconhecimento intersubjetivo na filosofia prática contemporânea‖, Manuel Moreira da Silva tematiza o

(11)

papel das instituições como elemento mediador entre os indivíduos, em situação de reconhecimento recíproco; isso, a partir do que o autor considera a retomada e o desenvolvimento da Concepção especulativa do Direito tal como estabelecida por Hegel. O ponto de partida do artigo consiste no reconhecimento de algumas insuficiências da filosofia hegeliana no tocante ao problema da Intersubjetividade, sobretudo, como esfera lógico-real da mediação dos sujeitos que não mais se circunscrevem à esfera do Espírito subjetivo, mas que também ainda não passaram à esfera do Espírito objetivo; os quais, embora já tenham passado pelo reconhecimento fenomenológico, ainda não se puseram como eus espirituais em si e para si, e uns para os outros, perfeitamente livres – ao mesmo tempo não-idênticos e idênticos: (1) autônomos, (2) absolutamente rígidos, (3) opondo-se mútua resistência e, no entanto, (1) não-autônomos, (2) não impenetráveis, (3) de certo modo confundidos – e, por isso, ainda não se puseram em situação de reconhecimento intersubjetivo como seres espirituais, reconhecendo-se a si mesmos como tais no Absoluto. Neste sentido, o autor se propõe a elaborar um esboço do que seria a esfera intermediária posterior ao Espírito subjetivo e anterior ao Espírito objetivo, a qual se desenvolve no plano de uma Filosofia do Espírito intersubjetivo ou das Instituições, de onde o mesmo limitar-se aos problemas atinentes à atividade prática do Espírito livre em seu vir-a-ser objetivo. Bem entendido, não nos quadros da objetividade constituída – as instituições instituídas ou objetivadas do Direito, da Moralidade e da Eticidade, que, como tais, se apresentam como elementos operativos ou constitutivos no interior dessas subesferas – e sim, do Ato pelo qual a instituição do que quer que seja se instaura como tal nesse Ato mesmo enquanto o próprio Instituir.

Partindo da questão fundamental segundo a qual a solução dos problemas da mediação institucional e do reconhecimento intersubjetivo não pode se limitar à revinculação do Jurídico ao Político, mas tem que fundá-la em um plano estritamente lógico-metafísico, o autor se põe a discutir com Vittorio Hösle sobre os limites e as especificidades do tratamento hegeliano da mesma. Para isso, o autor lança mão de um desenvolvimento do que ele próprio designa os limites e

(12)

contradições das concepções não-especulativas do Direito e, mais precisamente, da Razão prática, enquanto circunscrita ao horizonte de sua destranscendentalização de um lado, e, de outro, de sua retranscendentalização. Disso resulta o reconhecimento, pelo autor, de pelo menos duas contribuições dessas concepções para a Concepção especulativa do Direito tal como ele mesmo pretende expô-la. De um lado, a dissolução realista interna do dualismo kantiano de noumeno e fenômeno ou de coisa em si e aparência tal como desenvolvida por Habermas; de outro, a reproposição da postulação kantiana de ―eus noumenais e atemporais‖, agora como constituintes de uma estrutura intersubjetiva absoluta, que tomam decisões éticas, sem que as mesmas estejam sujeitas à lei causal, desenvolvida pelo Idealismo objetivo de Hösle. Enfim, o autor conclui seu artigo, buscando esclarecer a efetivação do Espírito como Universal ativo que se particulariza na multiplicidade dos espíritos finitos, livres de determinações causais espácio-temporais; pelos quais – em sua relação consigo e com os outros, instituída no processo de mediação institucional e reconhecimento intersubjetivo – ele concretiza sua própria universalidade ativa, em se singularizando sob a forma de uma Comunidade Ideal do Espírito.

Com esses três estudos em torno da concepção hegeliana do reconhecimento recíproco, Filosofia, reconhecimento e Direito insere-se na perspectiva da Filosofia do Direito ou, melhor dito, pretende estabelecer um diálogo interdisciplinar jusfilosófico. Neste livro, tendo por horizonte a problemática contemporânea da luta pelo reconhecimento, nossa atenção voltou-se, especificamente, à filosofia do Direito hegeliana, expondo temas e problemas de sua elaboração teórico-prática, conforme os enfoques dos autores. Esperamos, desta forma, apontar para importância deste debate e o aprofundamento e atualização do pensamento hegeliano para o Direito.

(13)

A. Eticidade e Intersubjetividade: observações acerca da influência de Fichte sobre Hegel

Erick Calheiros de Lima1

1. Intersubjetividade e direito em Fichte

No universo temático que forma a Wissenschaftslehre2, Fichte parte de uma distinção entre espontaneidade e liberdade. Para ele a diferença entre estes termos é que a liberdade supõe consciência do agir livre, ao passo que a espontaneidade, como condição de possibilidade de toda consciência, dela prescinde. Enquanto há apenas a espontaneidade absoluta da pura autoposição do eu, a absoluta identidade a si e a contínua superação de todo limite, pelo intuir de si mesmo, não pode haver autoconsciência propriamente dita da liberdade, a qual requer separação entre sujeito e objeto e um movimento reflexivo de retorno a si, a partir desta separação – ou, na terminologia imortalizada por Fichte, a partir do choque (Anstoß). A faculdade prática absoluta é mera espontaneidade sem consciência do seu agir livre: somente mediante um outro independente de si o eu pode pôr a si mesmo conscientemente como ser-para-si, somente

1

Doutorando em Filosofia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

2

Nos referimos aqui não simplesmente à obra de Fichte publicada em 1794 com o título Grundlage des gesamten Wissenschaftslehre, mas também às obras de filosofia prática publicadas com a designação nach den Prinzipien

der Wissenschaftslehre, isto é, a Grundlage des Naturrechts (1796/1797) e o

System der Sittenlehre (1798). O contexto sistemático da primeira Wissenschaftslehre também é consideravelmente ampliado por textos programáticos, como é o caso das Vorlesungen über die Bestimmung des

Gelehrten (1794) ou mesmo pelas Vorlesungen compaginadas como

Wissenschaftslehre nova methodo (1798). A citação das obras completas é feita com base na edição Fichte, J. G Werke em 20 volumes, Editadas por Immanuel H. Fichte, Walter De Gruyter, Berlin,1971. A partir de agora utilizaremos a abreviação GNR para a Grundlage des Naturrecht nach den

Prizipien der Wissenchaftlehre, e Sittenlehre para o System der Sittenlehre nach den Prizipien der Wissenchaftlehre, ambos presentes no volume 3 da

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sob a condição da posição de um não-eu se torna possível a consciência-de-si da atividade como livre.

Fichte introduz uma importante modificação na arquitetônica da filosofia prática ao localizar o ponto de partida do sistema real de liberdade – e, por conseguinte, da ―ciência real do direito‖3 – não na vontade pura, mas na vontade finita. Desta maneira, o ponto de partida da concepção fichteana de comunidade se vê vinculado à investigação ―transcendental‖ das condições de possibilidade de consciência efetiva da liberdade. Na medida em que a autoconsciência individual tem como uma de suas condições a interação (Wechselwirkung) com outra vontade, abre-se com isso um novo terreno para a teoria liberdade, a saber: o terreno da constituição intersubjetiva da liberdade individual4.

3 Quatro importantes comentadores de Fichte defendem, de maneira diversa, a

tese de que a Grundlage des Naturrechts contém rupturas na sistemática, bem como divergências em relação à obra fichteana posterior. Enquanto Baummans vê não somente ausência de rigor lógico na dedução do conceito de direito, mas também uma ruptura intransponível entre a obra sobre o direito e a doutrina-da-ciência de 1794, Schottky identifica, no procedimento filosófico de Fichte após a dedução do conceito de direito nos §§ 1-4, um retorno ao direito natural de Hobbes. Principalmente a visão de Baummans quanto à incoerência entre o direito natural e a filosofia primeira é ratificada pela obra de Verweyen, através do recurso às obras posteriores de Fichte sobre o direito. Contra todas estas interpretações posiciona-se Ludwig Siep, para quem as principais incoerências da obra de Fichte se tornam aparentes, se se puder interpretar o método utilizado pelo filósofo desde a abertura da obra como uma forma prototípica do método de exposição segundo ―experiências da consciência‖, mais tarde assimilado pelo próprio Hegel. Verweyen, H. – Recht und Sittlichkeit in J.G. Fichtes Gesellschaftslehre, München, 1975; Baumanns, P. – Fichtes ursprüngliches System. Sein

Standort zwischen Kant und Hegel, Stuttgart, 1972 Siep, Ludwig – „Einheit und Methode von Fichtes „Grundlage des Naturrechts――, in: Siep, Ludwig–

Praktische Philosophie im deutschen Idealismus, Frankfurt am Main, 1992, 41-64

4 Para Ludwig Siep, o método de dedução transcendental empregado na

dedução do conceito de direito se caracteriza por uma modificação tão intensa deste conceito herdado por Kant que se deixa derivar desta modificação um conceito de experiência da consciência. Ludwig Siep (1992). Este método se caracteriza decerto pelo intento geral de fornecer as ações cognitivas e volitivas que têm de ser pressupostas como condições de possibilidade da consciência da eficiência livre. Entretanto, esta aplicação

(15)

O conceito de individualidade é... um conceito recíproco

(Wechselbegriff), isto é, um conceito que somente em

relação a um outro pensar pode ser pensado, e que é condicionado, segundo a forma, pelo mesmo – e, na verdade, por um igual – pensamento. Ele somente é possível em um ser racional, na medida em que é posto de maneira conclusa por um outro. Portanto, ele não é nunca meu, e sim, segundo minha admissão (Geständnis) e a admissão do outro, meu e seu, seu e meu. É um conceito comunitário (ein gemeinschaftlicher Begriff), no qual duas consciências são unificadas na unidade.5

É Fichte, portanto, que introduz a idéia de que o indivíduo como tal, considerado isoladamente e apartado da interação ―real‖ em que se encontra, desde sempre e que constitui o ―a priori‖ que condiciona sua consciência-de-si como indivíduo, nada mais é do que uma abstração. O ser humano é um gênero, e o indivíduo somente é livre e consciente de si como tal, em meio a outros seres humanos6. A posição de si é condicionada pela posição do outro, de maneira que o eu não pode existir como tal sem relação ao outro. Para Fichte, a consciência da liberdade não é um estado em que a auto-reflexão revela uma faculdade previamente dada, ou um fato da razão, mas um processo de encontrar-se a si mesmo através de ―choque‖ com outros seres humanos. Estas concepções formam a

geral do intento transcendental da Wissenschaftslehre representa uma extensão metodológica na medida em que passa do âmbito das condições de uma unidade subjetiva e da consciência da objetividade na base de uma espontaneidade absoluta para a unidade transcendental de um sujeito que é um ser racional finito.

5

GNR, 47/48

6

―O ser humano (da mesma forma que todos os seres finitos em geral) só se torna ser humano entre seres humanos; e como ele não pode ser outra coisa a não ser um ser humano – e não seria mais nada, se ele não fosse isto que ele é – se devem haver de algum modo seres humanos, então tem de haver muitos.‖ [GNR, 39] ―...isto é uma verdade que deve ser provada estritamente a partir do conceito de ser humano. Tão logo se determina completamente este conceito, é-se impelido do pensamento de um indivíduo à aceitação de um segundo, a fim de se poder explicar o primeiro. O conceito de ser humano não é, pois, o conceito de um indivíduo – pois um tal ser é impensável –, mas o conceito de um gênero.‖ [GNR, 39]

(16)

gênese da teoria fichteana da intersubjetividade nos escritos de 1794 a 1798, baseada no modelo Aufforderung/Anerkennung.

Com sua ligação entre intersubjetividade e teoria da consciência, Fichte antecipa a teoria hegeliana do reconhecimento, especialmente em sua versão mais tardia, que se notabiliza, justamente, por uma primazia na consideração do papel do processo de reconhecimento para a teoria da consciência7 em detrimento de uma discussão sobre temas relativos à filosofia prática. Uma distinção que deve ser levada em conta quando se aborda o problema do reconhecimento em Fichte, desenvolvido em sua teoria do direito, é o fato, não especialmente visível para a maioria dos comentadores8, de que

7

Segundo Wildt e Honneth, na compreensão fenomenológica da teoria do reconhecimento desde a Fenomenologia, o processo de reconhecimento não pode mais ser entendido simplesmente como um caminho para a apropriação cognitiva de uma relação de reconhecimento originária prévia, pois, neste novo âmbito em relação à teoria do reconhecimento em Jena, Hegel não pressupõe mais uma ―eticidade natural‖ do amor na relação familiar. Ver Wildt, Andreas – Autonomie und Anerkennung. Hegels Moralitätskritik im

Lichte seiner Fichte-Rezeption, Stuttgart, 1983, 360 e Honneth, Axel–Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Suhrkamp,

Frankfurt am Main, 1992, 73. Em sua crítica à compreensão fenomenológica da teoria do reconhecimento, Honneth acredita que ela tenha, através de um ―re-direcionamento para a teoria da consciência‖, obstruído a possibilidade de se pensar o processo de reconhecimento como um processo de formação da autonomia pessoal, o que teria como decorrência um ―modelo substancialista de eticidade‖. No entanto, há que se pensar se esta leitura não poderia ser considerada equivocada. Somente através deste direcionamento, no Systemenentwurf de 1803/1804, foi possível a Hegel a superação da representação tradicional de natureza como essência das conexões ordenadoras estruturadas teleologicamente e a ocupação paulatina com a autonomia do indivíduo. Na verdade, a compreensão antiindividualista da eticidade enquanto substância espinosana é muito mais ferrenha nos textos políticos da primeira fase do período de Jena, como o Naturrechtaufsatz e o System der Sittlichkeit.

8

Na vertente de comentadores especialmente atentos a este fato, são dignos de nota Siep e Honneth. Siep lembra este fato em praticamente todos os seus textos que fazem referência à teoria da intersubjetividade desenvolvida por Fichte no Naturrecht. Já Honneth, ao considerar a apropriação hegeliana do conceito de reconhecimento no System der Sittlichkeit de 1802, diz : ―em seu escrito sobre a fundamentação do direito natural‖, Fichte compreendeu o

(17)

Fichte não concebe o direito como idêntico ao processo de reconhecimento, mas concebe este processo como uma estrutura intersubjetiva primária, no bojo da qual as relações jurídicas entre arbítrios se tornam possíveis: ―a toda interação arbitrária de seres livres jaz uma interação originária e necessária dos mesmos como fundamento, a seguinte: o ser livre necessita, através de sua simples presença no mundo sensível, sem mais, todo outro ser livre a reconhecê-lo como uma pessoa ... Ambos conhecem (erkennen) um ao outro em seu interior, mas estão isolados, como antes.‖9

É no quadro deste fundamento intersubjetivo da possibilidade da relação (jurídica) entre arbítrios que se deixa compreender o desenvolvimento da Grundlage a partir do §8 na forma de uma antinomia a ser solucionada.

Pessoas como tais devem ser absolutamente livres e simplesmente dependentes de sua vontade. Pessoas devem, tão certo quanto elas o são, estar em influência recíproca e, portanto, não simplesmente dependentes de si. Como ambas as coisas possam subsistir em conjunto, responder a isso é a tarefa da ciência do direito (Rechtswissenschaft); e a pergunta que jaz como seu fundamento é esta: como é possível uma comunidade de

seres livres como tais?10

Fichte pretende resolver esta antinomia, demonstrando que a interação com o outro é condição necessária da formação prático-cognitiva da autoconsciência individual. É na interação com o outro que a liberdade originariamente absoluta do eu é limitada pela liberdade do outro, uma limitação que não é exterior ao conceito de liberdade, mas que lhe é essencial, já que sem a limitação da atividade em si infinita do eu não seria possível nenhuma posição do não-eu. No entanto, chama atenção a vinculação, declarada acima, da idéia de reconhecimento ao isolamento do indivíduo, e nisto reside a verdadeira

reconhecimento como uma interação entre os indivíduos que subjaz à relação jurídica.‖ Honneth (1992).

9

GNR, 85/86

10

(18)

conseqüência da unilateralidade do desenvolvimento dado por Fichte ao elemento intersubjetivo, isto é, o caráter propriamente negativo de seu conceito intersubjetivo de liberdade, que o faz compreender a relação ao outro como essencialmente limitativa, apesar de constitutiva para a consciência individual. Fichte não chega a conceber a mediação intersubjetiva da liberdade individual de uma maneira ―solidária‖ e não excludente, mas essencialmente limitativa. Isto é bastante notório na tese fichteana acerca da durabilidade hipotética da obrigatoriedade, mas se torna evidente numa declaração feita por Fichte em outro contexto, a saber: a ―fundação do saber teórico‖ na Wissenschaftslehre de 1794. Fichte diz que ―a forma da interação (Wechselwirkung) consiste no excluir e ser-excluído dos membros recíprocos um pelo outro.‖11

Fichte deduz o reconhecimento recíproco como relação que subjaz às relações jurídicas e que é, como tal, condição de possibilidade da consciência-de-si. A idéia de que a liberdade originariamente infinita do sujeito tem de ser limitada na relação

11

WL 1794, 195. Deve-se notar que introduzimos uma modificação na tradução desta passagem em relação à tradução de Rubens Rodrigues. No original, Fichte diz: ―Die Form der Wechselwirkung besteht im gegenseitigen

Ausschliessen und Ausgeschlossenwerden der Wechselglieder durcheinander.‖. R. R traduz Wechselwirkung por alternância. Sem dúvida,

existem boas razões para esta escolha, principalmente se se considera o contexto eminentemente teórico da declaração. Não somos partidários da tese defendida por Philonenko e aprofundada por Rénaut de que a primeira Doutrina-da-Ciência contenha já uma teoria da intersubjetividade, o que, segundo Rénaut, leva a considerar que a Grundlage des Naturrechts vem justamente resolver, graças à sua discussão intersubjetivista da categoria

Wechselwirkung, a aporia deixada pela primeira versão da

Ciência no tocante ao problema da representação. No entanto, como este trabalho tem como ponto específico de preocupação o registro prático da filosofia do idealismo alemão, preferimos continuar a traduzir o termo pelo seu equivalente mais apropriado no contexto da filosofia fichteana do direito. Ver também Philonenko, A. – L’oeuvre de Fichte , J.Vrin , Paris , 1984; Métaphysique et politique chez Kant et Fichte, Bibliothèque d'histoire de la philosophie / Nouvelle série , J.Vrin, Paris, 1987; e Renaut, Alain – Système

du droit : philosophie et droit dans la pensee de fichte, P.U.F, Paris, 1986;

„Deduktion des Rechts (Dritter Lehrsatz: §4)―, in: Merle, Christophe(Hg) – Johann Gottlieb Fichte, Grundlage des Naturrechts , Akad.-Verl. , Berlin , 2001, 81-95.

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com um outro, a fim de poder se pôr como real, é, do ponto de vista das premissas de Fichte, bastante consistente; pois todas as determinações são em si, inicialmente, negações e, portanto, limitações. No entanto, resta sempre a questão acerca da necessidade de que a relação recíproca entre sujeitos seja um excluir recíproco. Isto se deve ao fato de que Fichte põe como fundamento de sua teoria um indivíduo atomizado, o qual não entra com o outro em uma relação possivelmente solidária, nem deixa que o outro ―participe‖ da formação de sua individualidade, mas que apenas necessita da esfera exclusiva da alteridade, para afirmar sua individualidade. ―Eu devo ser um eu autônomo (ein selbständiges Ich), este é meu fim-término (Endzweck); para tudo aquilo através do que as coisas fomentam esta autonomia, eu devo utilizá-las, este é o seu fim-término.‖12

Na abertura da teoria da intersubjetividade no System der Sittenlehre (§ 17), torna-se mais clara a relação que Fichte pretende existir entre o eu e o outro. A existência do outro assume a conotação de um instrumento ao restabelecimento da minha liberdade originária. Se, por um lado, a existência de outros seres racionais exteriores a mim possibilita a formação cognitiva da consciência da liberdade; por outro lado, ela é associada univocamente ao momento negativo da necessária limitação de liberdade individual como condição para aquela formação. A teoria fichteana da intersubjetividade parece se converter num subterfúgio para a corroboração individual da própria liberdade frente aos outros; e como isto, também para o outro somente é possível pelo asseguramento de um espaço de liberdade, o reconhecimento parece se tornar um processo para a produção de um excluir recíproco. Este é o significado da ―repressão jurídica‖ do reconhecimento em Fichte. A relação de direito, deduzida a partir do reconhecimento, é compreendida por Fichte numa adesão ao programa kantiano13 da limitação

12

Sittenlehre, 208

13

Em GNR, 52, Fichte diz: ―Eu tenho que reconhecer o ser racional fora de mim em todos os casos como tal, isto é, limitar minha liberdade pelo conceito da possibilidade de sua liberdade.A deduzida relação entre seres racionais, segundo a qual cada um limita sua liberdade pelo conceito da possibilidade da liberdade do outro, sob a condição de que o primeiro limite da mesma

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recíproca. Desta maneira, o ser racional reconhecido por mim como livre permanece sempre um limite, para além do qual não existe minha liberdade. Fichte constrói uma filosofia social realmente baseada no direito estrito, e por isso chega a compreender a lei, que deve ser o ―direito natural realizado‖14

, somente como Zwangsrecht, o qual atua com ―necessidade mecânica‖ contra o ―egoísmo universal‖ dos indivíduos15

.

Esta identificação da coerção jurídica com o ―direito natural realizado‖ se baseia numa concepção negativa da liberdade do indivíduo. ―O conceito de direito deve ser um conceito originário da razão pura.‖16

Como se origina da razão pura, o direito se constitui, para Fichte, como uma coerção imanente17 à liberdade do indivíduo, a qual é por isso mesmo compreendida como condição da consciência-de-si individual. ―Encontra-se na intenção deste conceito, que ele se torne necessário, mediante o fato de que o ser racional não pode se pôr como tal com consciência-de-si, sem se pôr como indivíduo, como um dentre outros seres racionais, os quais ele supõe estarem fora de si, da mesma forma como ele supõe a si mesmo.‖18

Para Hegel, a compreensão atomística da relação intersubjetiva, juridicamente reduzida, enquanto incapaz de

forma a sua pela do outro, denomina-se relação de direito (Rechtsverhältnis), e a fórmula que foi agora apresentada é o princípio do direito (Rechtssatz).‖

14 GNR, 149 15 GNR, 142/152 16 GNR, 7 17

―Se os efeitos dos seres racionais devem poder coincidir no mesmo mundo, ter, conseqüentemente, influência uns sobre os outros, estorvar-se e criar impedimentos reciprocamente, então a liberdade nesta última significação somente seria possível para pessoas, que estão nesta situação de uma influência recíproca uns com os outros, sob a condição de que todos encerrassem sua efetividade em certos limites e que dividissem de certa maneira entre si o mundo como esfera de sua liberdade. Como eles são postos livres, então um tal limite não poderia encontrar-se fora da liberdade, pelo que ele seria suspenso (aufgehoben) e de forma alguma seria limitado como liberdade. Antes, todos precisariam pôr-se a si mesmos este limite através da liberdade, isto é, todos precisariam tomar-se como lei não causar dano à liberdade daqueles com os quais se encontram em comunidade de influência recíproca (in gegenseitiger Wechselwirkung) ‖[ GNR, 8/9]

18

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render uma liberdade individual positiva, torna-se tanto mais evidente na própria intenção de compreender a ―relação comunitária‖ como condição da liberdade individual.

Na concepção de uma gênese intersubjetiva da liberdade individual está aglutinado o potencial ético para uma relação positiva e mutuamente formadora das individualidades. Fichte identifica no §3 o conceito de Aufforderung com a educação ou formação dos indivíduos para se tornarem seres humanos. Se o modelo de um striktes Recht conduz à investigação de condições de realizabilidade do direito, não parece com isso ter sido tolhido totalmente o potencial inclusivo da relação intersubjetiva. No contexto dos §§ 8-1319, que concerne à determinação da realizabilidade do direito como lei coercitiva, Fichte declara que: ―a possibilidade da relação jurídica entre pessoas no âmbito do direito natural é condicionada por fidelidade e crença (Treue und Glauben). A crença e a fidelidade mútuas não são, no entanto, dependentes da lei do direito: elas não se deixam coagir, nem há um direito para tal. Não se pode coagir alguém a ter uma crença interior na minha retidão, porque esta não se exterioriza, e jaz, portanto, fora da esfera do direito natural.‖20 Apesar de

19

Siep vê nesta ruptura um retorno a Hobbes, na medida em que Fichte passa a pressupor que não se encontra no indivíduo nenhuma moralidade, mas somente amor próprio. Segundo Siep, entretanto, que a vontade de autoconservação se contraponha à livre autolimitação não se deixa deduzir nem do conceito de vontade, nem imediatamente como condição da consciência-de-si.. Para Siep (1992), a ruptura que identificamos a partir do §7 deixa-se dissipar, se se compreende o Naturrecht como baseado num método de apresentação de experiências da consciência, de maneira que a conexão entre livre autolimitação, egoísmo universal e lei de coerção garantida pelo estado possa ser compreendida sem a tese de uma ruptura da exposição e recaída no método ―pré-transcendental‖ do direito natural, isto é, o abandono da dedução das condições de possibilidade da consciência-de-si e do ponto de vista da consciência agente em nome de pressuposições concernentes à antropologia, como a tese de um egoísmo universal. Para nossa interpretação do direito natural de Fichte uma tal compreensão é sem dúvida marcante, principalmente quando auxilia na manutenção da unidade da obra. Entretanto, não nos parece ir contra a tese de que a repressão jurídica do conceito de reconhecimento em Fichte acaba por limitar as potencialidades ético-intersubjetivas do conceito de interpelação.

20

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Fichte ter insistido na independência do direito natural, em relação a um vínculo ―moral‖ e positivo entre as vontades, a possibilidade da relação jurídica é condicionada por uma relação recíproca de confiança e de expectativa positiva de comportamento, a qual jaz fora da esfera do direito natural, isto é, não é realizável mediante coerção. Ora, se o reconhecimento, enquanto relação intersubjetiva originária, fundamenta toda relação entre arbítrios; e se toda relação jurídica tem, como condição de possibilidade, um ―substrato‖ formado pela inteligibilidade mútua, pela confiança e pela expectativa positiva no comportamento do outro, é lícito supor que este estofo de mútua compreensibilidade seja engendrado pelo – ou melhor, seja uma outra designação para o – reconhecimento recíproco, compreendido agora não em sua limitação jurídica, mas na plenitude de seu potencial inclusivo como resposta à interpelação21. Este âmbito não pode ser coagido, ele é originariamente engendrado como condição da ―individualização‖.

O adiantamento de confiança mutuamente atribuída pressupõe uma comunidade de consciências, de tal maneira que o agir, segundo esta orientação mutuamente estabelecida somente se torna plausível, se as consciências não possuem motivos fortes para deixar de proceder conforme uma autolimitação voluntária: tem de se mostrar minimamente plausível para as mesmas a opção preliminar por um respeito mútuo. Com efeito, o conceito

21

Sob o título de ―repressão jurídica do conceito de reconhecimento em Fichte‖, espera-se aqui compreender, na linha de Ludwig Siep (1992), aquele processo pelo qual, segundo Fichte, a relação de reconhecimento recíproco se sobrepõe ao paradigma da interpelação, na medida em que ela, enquanto resultado de uma limitação da liberdade por uma solicitação intersubjetiva, não pode ser compreendida de imediato como educação em seu sentido mais geral, como formação prática da individualidade em seu sentido mais profundo. Eis porque, com a qualificação de uma repressão jurídica pretendemos dar conta desta redução da intersubjetividade que Siep identifica ao propor uma interpretação da passagem entre os §§ 3 e 4 como uma reflexão da consciência interpelada, como uma conseqüência que a consciência que se forma retira da experiência de interpelação, a qual somente confere sentido à compreensão que propõe Fichte deste desenvolvimento como educação.

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jurídico de reconhecimento parece limitar a riqueza e o potencial de uma concepção participativa e inclusiva de intersubjetividade que, entretanto, poderia ser percebida no escopo mais geral da interpelação como formação ou educação. Não é difícil ver que Hegel pretenderá reconhecer no potencial não excludente desta compreensão da intersubjetividade, na mútua implicação de unidade e diferenciação das consciências, a estrutura dialética do espírito, o que o conduzirá, na consecução de seu conceito de eticidade, a enunciar como preâmbulo, para o chegar-a-si da individualidade um modo plenamente acabado de intersubjetividade, um nexo de mútuo reconhecimento de que ele, sob o nome de amor, atribui aos estágios ainda naturais de uma existência comunitária. Neste sentido, quando pretendemos que uma concepção não excludente de intersubjetividade se sobreponha como um negativo da repressão jurídica do conceito fichteano de reconhecimento, pretende-se com isto sustentar a tese de que, em vista do problema de demonstrar aplicabilidade do direito e de torná-lo um conceito real, o egoísmo fundamental, cuja reversão é tarefa da coerção sob o estado, somente pode ser introduzido na exposição fichteana, através de uma experiência da perda de confiança. Por conseguinte, se este quadro geral de uma expectativa positiva, com respeito ao comportamento do outro for atribuída, em sua gênese e possibilidade, às potencialidades não coercitivas da interpelação, resta ao conceito de direito, fundado sobre o reconhecimento recíproco e cuja aplicabilidade é o objetivo da teoria mostrar uma limitação das potencialidades daquela relação intersubjetiva.

2. A crítica de Hegel na Differenzschrift: dois modelos de intersubjetividade

Pretende-se, aqui, não promover um apanhado geral da crítica hegeliana à concepção fichteana do estado, mas antes chamar atenção para o fato de que, na constituição do conceito hegeliano de eticidade, que se pode localizar nos primeiros anos de Jena, um papel de suma importância é desempenhado pela sua Auseinandersetzung com a concepção fichteana de intersubjetividade. Pretende-se mostrar que a constituição do

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conceito hegeliano de eticidade no Naturrechtaufsatz e no System der Sittlichkeit, o qual se caracteriza, em primeiro lugar, por uma decantação filosófico-especulativa das investigações sobre a intersubjetividade em Frankfurt, tem seu impulso mais essencial no que, num primeiro momento, é uma refutação da intersubjetividade, ―juridicamente reprimida‖, da filosofia social de Fichte; mas também que, por outro lado, o itinerário trilhado pela filosofia social de Hegel, nos anos subseqüentes em Jena, e que contém a prefiguração da forma definitiva da filosofia do ―espírito objetivo‖, somente se torna possível por uma re-assimilação e revalorização do viés jurídico do conceito fichteano de reconhecimento. Do ponto de vista do resultado das investigações de Hegel sobre a intersubjetividade em Frankfurt, este movimento de distanciamento e reaproximação em relação à concepção fichteana de intersubjetividade, movimento que contribuirá à amplitude normativa do conceito hegeliano de eticidade, diz respeito sobretudo à possibilidade de aglutinar, por um lado, a intuição frankfurtiana da intersubjetividade como superação da dicotomia entre o universal da pura consciência-de-si e o particular da consciência-de-consciência-de-si empírica ou individual; e, por outro lado, a intuição propriamente fichteana de que os momentos de formação das individualidades e de sua unificação numa ―consciência universal‖ se condicionam reciprocamente22

. Hegel pretende que Fichte, apesar de ter apreendido o ponto de partida especulativo, propriamente dito na unidade de ser e pensar, não procedeu, na construção do sistema, de maneira condizente com este princípio; e isto porque, segundo Hegel, manteve irredutivelmente separadas a atividade incondicionada da consciência-de-si (Eu=Eu) e a consciência empírica, limitada pelo não-eu23. O elemento que desempenha um papel importante

22

Siep, Ludwig – Anerkennung als Prinzip der praktischen Philosophie, Freiburg/München, 1976, 52/53

23

Na Differenzschrift e em Glauben und Wissen, Hegel chega a discutir, sob a luz de sua caracterização geral da auto-suspensão da reflexão na razão especulativa, aspectos intrincados das filosofias de Kant, Fichte e Jacobi, e até mesmo a oferecer uma caracterização sistemática da ―completude de formas‖ da filosofia da reflexão. Um estudo sobre a sua profundidade – e mesmo plausibilidade – excederia o intento deste trabalho e talvez tivesse de

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na crítica hegeliana à moral e ao direito formalistas, é a dicotomia entre pura consciência-de-si e consciência-de-si efetiva, pela qual se expressa o enunciado fichteano da dicotomia absoluta entre subjetividade e objetividade, cujo desdobramento é importante para as ―ciências reais‖ 24. ―O ater-se firmemente à

subjetividade da intuição transcendental, por meio do qual [o] Eu permanece um sujeito-objeto subjetivo, aparece de maneira que mais salta aos olhos na relação do eu com a natureza, em parte na dedução da mesma, em parte nas ciências que se fundam sobre isso.‖(TWA 2, 72) Trata-se para Hegel, principalmente, de oferecer, a partir da crítica ao subjetivismo em que permanece o absoluto da filosofia fichteana, uma compreensão da gênese da contraposição absoluta entre razão e natureza. ―Na apresentação e dedução da natureza, tal como ela é fornecida no Sistema do Direito Natural, mostra-se a contraposição absoluta da natureza e da razão e a dominação da reflexão em toda a sua dureza‖(TWA 2, 79). Para Hegel, a relação da razão à natureza interior ou exterior ao homem é uma ―síntese do dominar‖, e a natureza é, em suas múltiplas formas, apenas algo ―determinado e morto‖. A

perseguir o fio condutor da crítica de Hegel em suas obras de maturidade, onde diversos pontos estão melhor decantados. No entanto, na tentativa de promover a passagem à crítica do ―formalismo do entendimento prático‖, parece profícuo delimitar os contornos da crítica hegeliana ao primeiro sistema de Fichte. Na medida em que Glauben und Wissen concentra-se, à exceção de ataques à filosofia do direito de Fichte, muito mais na obra Bestimmung des Menschen, de 1800, cabe aqui chamar antes a atenção para os elementos contidos na Differenzschrift. Para a citação das obras de Hegel estamos utilizando o seguinte texto. Hegel, G. W. F. Werke em 20 volumes – Auf der Grundlage der Werke Von 1832-1845 neu ed. Ausg., Ausg. in Schriftenreihe „Suhrkamp-Taschenbuch Wissenschaft― / [Red. Eva Moldenhauer und Karl Markus Michel] – Frankfurt am Main : Suhrkamp. A referência a este texto ao longo do trabalho será feita através da sigla TWA e o número da página.

24

Este itinerário é, de resto, o fio condutor da crítica hegeliana na Differenzschrift. ―Na seguinte apresentação do sistema fichteano deve-se tentar mostrar que a pura consciência, a identidade de sujeito e objeto estabelecida no sistema como absoluta, é uma identidade subjetiva de sujeito e objeto. A apresentação vai tomar o itinerário de provar o eu, o princípio do sistema, como sujeito-objeto subjetivo, tanto imediatamente, quanto no modo de dedução da natureza e, especialmente, nas relações da identidade nas ciências particulares da moral e do direito natural‖ (TWA 2,50)

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natureza é deduzida, segundo Hegel, no tocante à filosofia teórica, apenas como condição da autoconsciência, enquanto que, na filosofia moral e na filosofia social de Fichte, ela é deduzida apenas como limitação, tanto como impedimento necessário ao esforço infinito, quanto como condição exterior do agir livre.

Esta absoluta contraposição entre natureza e razão é o que propriamente dá origem à crítica hegeliana às concepções jurídico-morais de Fichte. Para Hegel, a concepção fichteana de comunidade humana, compreendida como um sistema ético e jurídico de autolimitações e de limitações recíprocas, subordina tanto a natureza pulsional dos seres humanos considerados individualmente, quanto suas relações espontâneas uns aos outros. A absoluta contraposição de razão e natureza se transforma numa relação de negação recíproca entre a liberdade limitada dos direitos e deveres, e a liberdade absoluta do eu puro. A idéia de comunidade como limitação implica a idéia de que, em comunidade, a liberdade absoluta tem que ser renunciada. Contra esta concepção, Hegel lança mão do substrato de todas as suas intuições de juventude que se ligam ao caráter plenamente livre da vida pública: o ideal de uma comunidade como a mais elevada liberdade, uma comunidade viva enquanto uma ―relação recíproca da vida, verdadeiramente livre e infinita, isto é, bela‖ (TWA 2, 82).

Portanto, para Hegel, as insuficiências especulativas de Fichte se tornam ainda mais evidentes, na medida em que está subjacente às suas contribuições à filosofia prática e à filosofia da natureza aquela forma ―mais concreta‖ da contraposição absoluta entre sujeito e objeto, a qual Hegel compreende como ―contraposição entre razão e natureza‖; e que, na medida em que se funda na exterioridade intransponível da natureza em relação ao conceito, converte-se numa relação de dependência. ―Esta relação de dependência da natureza ao conceito, a contraposição da razão sobressai mais ainda devido às conseqüências que se seguem, daí em ambos os sistemas da comunidade dos seres humanos.‖ (TWA 2, 81) O caráter funesto destas conseqüências se revela sobretudo na renúncia a uma concepção não limitativa e plenamente livre da comunidade humana – compreendida tanto como relação intersubjetiva, quanto no que concerne à relação

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entre indivíduo e estado – em nome da sua compreensão em termos essencialmente individualistas e atomísticos.

Somente se a idéia é, primeiramente, finitizada através disso: que ela é contraposta a uma esfera empírica e posta enquanto [esfera] espiritual e, em seguida, esta esfera / espiritual é, ela mesma, desmembrada qualitativamente, mais uma vez, numa multidão infinita de átomos espirituais, subjetividades, enquanto cidadãos de uma coisa que se chama reino do espírito, pode se falar de conseqüências espirituais. (TWA 2, 427/428)

É a partir deste diagrama geral que Hegel pretende mostrar, nos primeiros escritos de Jena, que, na ―doutrina da ciência aplicada‖, revelam-se as mesmas insuficiências que acometem o arcabouço mais fundamental do pensamento fichteano: o subjetivismo e o formalismo intransponíveis ao princípio fichteano da identidade de sujeito e objeto. Primeiramente, Hegel segue sua intuição do período de Frankfurt de que a dominação do universal vazio sobre o particular, que caracteriza o formalismo prático de Kant e Fichte, mostra-se tanto no âmbito intra-subjetivo da consciência moral, quanto na esfera intersubjetiva das relações de direito. Para Hegel, o que diferencia a dominação do conceito formal na esfera moral da dominação, na esfera do direito é que, neste caso, a exterioridade mútua de universal e singular se revela como contraposição absoluta da vontade universal e da vontade individual enquanto exteriores uma à outra, ao passo que aquela contraposição é considerada, na esfera moral, como devendo ser superada no interior do indivíduo.

A doutrina dos costumes tem em comum com o direito natural que a / idéia domine absolutamente o impulso, a liberdade domine absolutamente a natureza. Entretanto, eles se diferenciam em que, no direito natural, a sujeição de seres livres sob o conceito é, em geral, absoluto autofim (absoluter Selbstzweck), de maneira que o abstraktum fixado da vontade comum esteja também fora do indivíduo e tenha poder sobre ele. Na doutrina dos

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costumes o conceito e a natureza têm de ser postos como unificados numa e na mesma pessoa. No estado somente o direito deve dominar, no reino da eticidade somente o dever deve ter poder, na medida em que ele é reconhecido pela razão do indivíduo enquanto lei. (TWA 2, 87/88)

Com efeito, o ponto comum entre ambas as ―realizações‖ práticas da dominação sob o universal vazio é uma ―absoluta e fixa polaridade de liberdade e necessidade‖, a qual não permite ―pensar em nenhuma síntese e em nenhum ponto de indiferença‖ e pela qual ―a transcendentalidade se perde totalmente no fenômeno e em sua faculdade, o entendimento.‖ Desta maneira, diz Hegel, a identidade absoluta ―não pode se resolver verdadeiramente nem para o indivíduo no ponto de indiferença da beleza do ânimo e da obra, nem para a comunidade livre completa dos indivíduos numa associação (Gemeinde).‖ (TWA 2, 90) Entretanto, esta concepção, que tem suas raízes na crítica da filosofia prática ensaiada em Frankfurt, não mais é considerada em sua indiferença para com a ―interiorização do senhor‖, mas antes a relação de dominação sobre a natureza pulsional do indivíduo, que se processa pela interiorização do universal formal, revela, frente à exterioridade mútua de vontade universal e vontade singular, seu caráter ―mais inatural‖25

; pois, enquanto o direito formalista supõe que ―a crença na unicidade do interior com o exterior não se dá‖; por outro lado, na moral,

se ... o mandante é transferido para o próprio ser humano, e nele são absolutamente contrapostos um mandante e um sujeitado, então a harmonia interior é destruída. Não-unicidade e cisão absoluta constituem a essência do ser humano. Ele tem de procurar por uma unidade, mas, no

25

―Ser seu próprio senhor e escravo parece, na verdade, ter uma vantagem diante do estado em que o ser humano é o escravo de um estranho. Entretanto, a relação (Verhältnis) da liberdade e da natureza, se acaso, na eticidade, ela deve se tornar uma dominação e escravidão subjetiva, uma opressão própria da natureza, se torna muito mais inatural do que a relação (Verhältnis) no direito natural, no qual o mandante e detentor do poder aparece como um outro que se encontra fora do indivíduo vivo.‖ (TWA 2, 88)

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caso de uma não-identidade que jaz no fundamento, resta-lhe tão-somente uma unidade formal. (TWA 2, 88)

Para os propósitos do presente trabalho convém, sobretudo, sublinhar que o programa da crítica hegeliana ao direito natural de Fichte nos ―textos especulativos‖ dos primeiros anos de Jena (Differenzschrift e Glauben und Wissen), não se limita somente a uma crítica a um certo modelo de estado, ou melhor, a um certo modelo de relação entre o indivíduo e o estado, mas antes diz respeito fundamentalmente a um modelo jurídico de intersubjetividade dos indivíduos em comunidade política. Primeiramente, o problema para Hegel é que a comunidade política é compreendida como uma rede de relações limitativas e definidoras das esferas de ação e cuja finalidade é propiciar a vida em comunidade de liberdade exterior: ―esta comunidade de seres racionais, aparece enquanto condicionada / pela limitação necessária da liberdade, a qual dá a si mesma a lei de se limitar.‖ (TWA 1, 81/82) Que, no direito natural de Fichte, a ―comunidade ... seja representada como uma comunidade de seres racionais, a qual tem de pegar o atalho pela dominação do conceito‖ (TWA 2, 81); e o estado, compreendido como subsunção26 dos indivíduos sob o universal exterior, ―o inteiro edifício da comunidade de seres vivos ... seja erguido pela reflexão‖ (TWA 2, 81), tem seu fundamento, para Hegel, numa compreensão limitativa da intersubjetividade social que torna inviável a recuperação, na esfera comunitária, da identidade originária da razão, enunciada como ponto de partida do sistema. ―Cada ser racional é um duplo para o outro: a) um ser racional, livre; b) uma matéria modificável, um apto (ein Fähiges) a ser tratado como mera coisa.‖ (TWA 2, 81) É nestes termos que Hegel compreende que a matriz intersubjetiva da teoria fichteana do direito dilacera de maneira irreconciliável a unidade da razão viva e livre e a transforma numa multidão atomística de seres racionais que revelam, cada um em si mesmo e para o outro, a

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―O direito deve acontecer, mas não enquanto liberdade interior, mas sim enquanto liberdade exterior dos indivíduos, a qual é um ser-subsumido dos mesmos sob o conceito, que lhes é estranho.‖(TWA 2, 425)

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heterogeneidade absoluta da liberdade e da matéria modificável que os ―compõem‖ individualmente. ―Esta separação é absoluta e, desta maneira, assim como ela uma vez jaz no fundamento da sua inaturalidade, nenhuma relação pura (reine Beziehung) [deles] um em face do outro é mais possível, e toda relação é um dominar e ser-dominado conforme leis de um entendimento conseqüente.‖ (TWA 2, 81)

Para Hegel, o estado fichteano se constitui pela ampliação ―vertical‖ de uma estrutura limitativa de relação intersubjetiva ou horizontal às diferentes esferas da interação social, uma estrutura que Hegel compreende, seguindo sua investigação em Frankfurt, como tributária da racionalidade, fundada na reflexão, e que se depara com o outro tal como se defronta com um objeto manipulável, e cujo exercício intrasubjetivo aparece no embate virtuoso entre o impulso ético e a natureza impulsiva. ―O direito natural se torna, através da oposição absoluta do impulso puro e do impulso natural, uma apresentação da completa dominação do entendimento e escravidão do vivo‖ (TWA 2, 87) A contraposição absoluta e irreconciliável no interior do indivíduo entre o impulso vazio para a liberdade e para a autodeterminação e o impulso natural ou Naturtrieb, estão, para Hegel, necessariamente conectadas à compreensão fichteana de comunidade, como um ordenamento jurídico que, muito embora se veja impelido ao melhoramento, conforme a razão, vê-se condenado a permanecer eternamente no âmbito de um Notstaat, numa esfera da ampliação indefinida da matriz jurídica de uma intersubjetividade individualista e atomística (Verhältnis) a toda e qualquer relação comunitária (Beziehung), pelo quê se faz renúncia a ter que ―tornar prescindíveis as leis através dos costumes‖ (TWA 2, 83/84). ―Este estado (Stand) da necessidade é afirmado como direito natural e, na verdade, não de maneira que seu fim supremo fosse suspendê-lo e, no lugar desta comunidade conseqüente (verständig) e irracional, construir, pela razão, uma organização / da vida livre de toda escravidão sob o conceito; mas antes o estado da necessidade (Notstand) e sua extensão infinita sobre todos os estímulos (Regungen) da vida valem, enquanto necessidade absoluta.‖ (TWA 2, 83/84)

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É neste sentido, portanto, que Hegel constata, na compreensão fichteana de comunidade, que uma compreensão essencialmente limitativa da intersubjetividade implica a total ausência de relações (Beziehungen) que caracterizam uma comunidade bela e livre, mas acima de tudo viva, dotada de uma constituição orgânica. A comunidade política de Fichte é, para Hegel, ―um edifício no qual a razão não tem nenhuma participação e o qual ela, portanto, censura, porque ela tem de se encontrar, de maneira mais expressa, na organização mais perfeita que pode conferir a si mesma: na configuração de si mesmo em um povo.‖ (TWA 2, 87) Para Hegel, a matriz da intersubjetividade jurídica, que se caracteriza sobretudo pela necessidade prática de limitação interior ou exteriormente motivada da liberdade exterior do indivíduo, em nome da liberdade exterior dos outros, reverte-se em dominação do conceito e escravidão da natureza, isto é, em violação da beleza da unificação vital originária dos indivíduos pelo cálculo intelectual das condições de possibilidade de uma comunidade em liberdade exterior. ―A liberdade é o caráter da racionalidade, ela é o que em si suspende toda limitação e o mais elevado do sistema fichteano. Na comunidade com os outros, entretanto, ela tem de ser renunciada, para que a liberdade de todos os seres racionais que estão em comunidade seja possível; e a comunidade é, novamente, uma condição da liberdade.‖ (TWA 1, 81/82) É por trás desta violação da vida pela fixação das limitações da liberdade que se esconde, para Hegel, o caráter desumano e tirânico das leis reguladoras da vida comum dos indivíduos. ―Se a comunidade dos seres racionais fosse, essencialmente, um limitar da verdadeira liberdade, então ela seria em si e / para si a suprema tirania.‖ (TWA 2, 82/83) Desta consideração essencialmente negativa do teor ―jurídico‖ do conceito fichteano de comunidade política é que se segue, para Hegel, a transformação do princípio de liberdade absoluta numa compreensão do estado como máquina, como construção do entendimento, que reduz tanto relações éticas intersubjetivas, quanto a relação entre indivíduo e estado a um ―dominar e ser-dominado segundo regras de um intelecto conseqüente‖.

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Mas aquele estado do entendimento não é uma organização, mas uma máquina, o povo não [é o corpo orgânico de uma vida comum e rica, mas uma pluralidade atomística e pobre de vida, cujos elementos são substâncias absolutamente contrapostas, em parte uma porção de pontos, de seres racionais, em parte matérias multiplamente modificáveis pela razão – isto é, nesta forma: pelo entendimento – elementos cuja unidade é um conceito, cuja ligação é um dominar sem-fim. (TWA 2, 87)

Com efeito, para Hegel, o colapso formalista da identidade originária da razão pela sua fixação na ―metade‖ supra-sensível do sujeito transforma a liberdade verdadeira, que se objetiva em relações intersubjetivas ―solidárias‖ ou ―não-excludentes‖, numa liberdade subjetivizada e apenas negativa, exercida em relações intersubjetivas empobrecidas pelo caráter essencialmente limitativo:

o conceito do limitar constitui o reino da liberdade, no qual cada relação recíproca (Wechselverhältnis) verdadeiramente livre, para si mesma infinita e ilimitada, isto é, bela da vida, é aniquilada por meio disso: que o vivo no conceito e matéria é lacerado, e a natureza é posta em sujeição (Botmässigkeit). (TWA 1, 81/82)

A partir desta concepção negativa da liberdade do indivíduo que faz valer sua esfera de um agir, de acordo com a razão, pode-se reconduzir a crítica hegeliana à filosofia social de Fichte ao embate entre duas concepções de liberdade. A partir de Jena, o princípio fundamental da filosofia prática de Hegel é o princípio da unidade de liberdade objetiva e subjetiva, ao passo que a Fichte se reprova a fixação em um conceito eminentemente subjetivo de liberdade. ―A liberdade tem de suspender a si própria para ser liberdade. Evidencia-se novamente a partir disso que liberdade aqui é somente um mero negativo, a saber: indeterminidade absoluta, ou seja, assim como foi mostrado a respeito do pôr-se a si mesmo, é um fator ideal – a liberdade considerada do ponto de vista da reflexão.‖ (TWA 1, 81/82)

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