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Entre castelos, processos e metamorfoses : uma experiência urbana na Aracaju do presente

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Academic year: 2021

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(1)UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL. LAÍS ALVES DE OLIVEIRA LIMA. ENTRE CASTELOS, PROCESSOS E METAMORFOSES: UMA EXPERIÊNCIA URBANA NA ARACAJU DO PRESENTE. São Cristóvão, SE 2015.

(2) LAÍS ALVES DE OLIVEIRA LIMA. ENTRE CASTELOS, PROCESSOS E METAMORFOSES: UMA EXPERIÊNCIA URBANA NA ARACAJU DO PRESENTE. Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Psicologia Social.. Orientador: Prof. Dr. Kleber Jean Matos Lopes. São Cristóvão, SE 2015.

(3) ENTRE CASTELOS, PROCESSOS E METAMORFOSES: UMA EXPERIÊNCIA URBANA NA ARACAJU DO PRESENTE. LAÍS ALVES DE OLIVEIRA LIMA. APROVADA EM: ___ /___/___.. BANCA EXAMINADORA. ____________________________________________________________ Kleber Jean Matos Lopes (Orientador) Professor Doutor – Universidade Federal de Sergipe. ____________________________________________________________ José Maurício Mangueira Viana Professor Doutor – Universidade Federal de Sergipe. ____________________________________________________________ Luis Antonio dos Santos Baptista Professor Doutor – Universidade Federal Fluminense (Externo ao programa).

(4) À rua, porque dela não saímos ilesos.

(5) AGRADECIMENTOS. À minha família, por incentivar a busca por novos caminhos. A Luiz Paulo, pelo amor cultivado, pela vida que construímos juntos. À família que me acolheu: Ana Cláudia, Beto e Ana Paula (gordinha), pelo carinho. Aos amigos e artistas. Priscilla, pela amizade, companheirismo e por nossa dupla ArMenina que me motivou a continuar em contato com a arte, vamos pixar muitos muros por aí. Tainá, pelo incentivo, pelas risadas. Elias Santos, meu mestre das artes, pela motivação e todo conhecimento passado nos meus 14 anos de contato com a arte. Aos amigos que cultivei no trabalho em Estância, Francis, Thiani, Cátia e Jean, pelos risos e pelo carinho quando a distância se fez presente. Aos Amigos do Foucault, James, Bruninha, Marcel, Paulinha, Carmem, que mantêm as chamas do conhecimento e da amizade acesas. E também à Elen, pelo compartilhamento do tempo e dessa escrita nos últimos momentos. Aos amigos de todas as horas, Maiana, Lorena, Half e Danilo, por se fazerem sempre presentes. Aos amigos Elton e João por tornarem isso possível, ajudando nos últimos momentos, e por se fazerem companheiros de caminhada durante a graduação. E também à Lázaro, menino prodígio que foi para terras distantes. Aos amigos do Colégio de Aplicação da UFS, Valter, Thiago e Charlise, pela amizade, pelo riso, pelas boas trocas nesses anos todos. Aos amigos do Conocer, Gina, Milagros, Ana, Thiago, Lucas, Karol, Rodrigo, Tânia, Sandy, Dulce, Igor e Soraya, que fizeram minhas manhãs de sábado mais felizes durante esses dois anos e meio de mestrado. Aos mestrandos da turma 2013/1 em Psicologia Social, pela perseverança diante do descaso vivenciado. Quem sair por último apague a luz! Ao PRD, pelo trabalho ofertado, pela companhia nas caminhadas por uma cidade a mim desconhecida. Aos Professores que compartilharam dessa jornada, Liliana, Marcelo, Michele e Lívia. A Padim Kleber, pela orientação inquietante e pelo apoio quando as coisas se fizeram difíceis. Obrigada pela amizade e pelo carinho..

(6) Ao Professor Luis Antonio Baptista, pelas palavras e pela atenção oferecida. Ao professor Maurício Mangueira, pelo conhecimento passado, pelas alegrias vividas, pela amizade. Ao Dr. Apolônio, pelo cuidado ofertado, pela saúde a mim reestabelecida. A Caio Dilgo, o amor em forma de pessoa, por me ensinar a ser feliz todos os dias..

(7) RESUMO. Nas ruas com seus habitantes, formas de vida emergem num cotidiano imprevisível ainda que a normatização busque a uniformização e a previsibilidade para a experiência. Foi andando sobre as tramas da cidade, buscando formas de vida que resistem às lógicas que impedem a proliferação da diferença, que uma escrita sobre produção de subjetividade na cidade se delineou. A escrita se fez em meio à vivência das ruas e das discussões que giram em torno dela, a partir da etnografia do espaço urbano registrada em diários de campo. Os encontros foram produzidos nas ruas com habitantes, passantes, pessoas que fazem da rua campo de trabalho. O contato com a urbe, suas relações e multiplicidade, revelaram um campo movente e conduziu o olhar sobre possibilidades de vida que se efetuam nas brechas de um modo de existir capitalístico, fazendo pensar tais vidas que resistem como vidas criadoras de si, como obras de arte. Franz Kafka aparece aí como o intercessor de uma escrita cheia de metamorfoses que busca narrar o vivido em contos como: Maria Feliciana, Uma Menina Acrobata, A Ponte e O Povo da Sopa. A partir das experiências na urbe foi possível observar que, mais que se conservar, a vida quer se expandir, gerar mais vida, impor a si uma nova direção. A escrita buscou novas formas de pensar o presente, criando linhas de fuga para problemas que emergem no cotidiano. O caminho está aberto, as discussões aqui são feitas de trajetórias que buscam conduzir o olhar sobre o presente. Palavras-chave: Cidade, Franz Kafka, Produção de subjetividade, história do presente..

(8) ABSTRACT. The streets with its inhabitants, life forms emerge in an unpredictable daily although the regulation seeks uniformity and predictability for the experience. Walking on the plots of the city, searching for life forms that resist the logic wich prevent the proliferation of difference, a writing on subjectivity production in the city outlined. The writing was done through the experience of streets and discussions revolving around it, from the ethnography of urban space recorded in field diaries. The meetings were produced in the streets with residents, bystanders, people who make the street work camp. Contact with the metropolis, their relationships and multiplicity, revealed a moving field and led the look on possibilities of life that are carried in the gaps in a way there capitalistic into thinking such lives that resist as life-creating itself as works of Art. Franz Kafka appears there as the intercessor of a full metamorphoses of writing that seeks to narrate the tales lived in as Maria Feliciana, An Acrobatic Girl, The Bridge and The Soup People. From the experiences in the metropolis it was observed that more than conserving, life wants to expand, generating more life, impose themselves a new direction. Writing sought new ways of thinking about the present, creating escape routes for problems that arise in daily life. The path is open, discussions here are made of paths that seek to lead the eye on the present. Keywords: City, Franz Kafka, subjectivity production, history of the present..

(9) SUMÁRIO. UMA APRESENTAÇÃO.....................................................................................11. PARTE I: Um modo de costurar.........................................................................14 A METAMORFOSE de uma pesquisa................................................................17 VIDA COMO OBRA DE ARTE.................................................................19 INTERCESSORES..................................................................................21 O PROCESSO de pesquisa...............................................................................25 A CONSTRUÇÃO de um caminho.....................................................................31 CARTA AO PAI: o que se quer contar.................................................................36. PARTE II: Um modo de narrar............................................................................38 MARIA FELICIANA..................................................................................41 UMA MENINA ACROBATA.....................................................................49 A PONTE.................................................................................................52 O POVO DA SOPA..................................................................................57 CONSIDERAÇÕES ...........................................................................................63 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................71 DIÁRIOS DE EXPERIÊNCIA..............................................................................75.

(10) Afundado na noite. Como alguém que às vezes baixa a cabeça para meditar, totalmente afundado na noite. Em torno as pessoas dormem. Uma pequena encenação, um inocente auto-engano de que dormem em casas, em camas firmes, sob o teto sólido, estirados ou encolhidos sobre colchões, em lençóis, sob cobertas, na realidade reuniram-se como outrora e mais tarde, em região deserta, um acampamento ao ar livre, um número incalculável de pessoas, um exército, um povo, sob o céu frio, na terra fria, estendidos onde antes estavam em pé, a testa premida sobre o braço, o rosto voltado para o chão, respirando tranquilamente. E você vigia, é um dos vigias, descobre o mais próximo pela agitação da madeira em brasa no monte de galhos secos ao seu lado. Por que você vigia? Alguém precisa vigiar, é o que dizem. Alguém precisa estar aí. (KAFKA, F. À noite. In: Narrativas do espólio. P. 114).

(11) 1. UMA APRESENTAÇÃO. As linhas retas deste documento se contrapõem ao percurso tortuoso que objetivou sua escrita. Os caminhos comportavam desvios, curvas, subidas, atropelos, de modo que o se perder fazia-se corriqueiramente. E foi perdendome que pude encontrar o desconhecido, as algemas apertadas do comodismo que me fixavam a ideias empoeiradas foram aos poucos se afrouxando, de modo que tive que aprender a andar sem elas. Novas trilhas foram traçadas à medida que o trajeto se fazia. Foram longas caminhadas pelo pensamento sobre a cidade, os modos de resistência e a arte, palavras-chave que abriram as portas deste percurso de pesquisa. Tais palavras se entrelaçavam com o objetivo de criar um espaço de discussão sobre os modos de resistência na cidade, tendo o estímulo da arte para tal efetuação, porém, novos arranjos foram formados na medida em que estas eram problematizadas. A vida sempre vista como algo maior e, assim como as obras de arte, dotada de uma produção criativa, substituiu a arte como artefato para produção de resistências passando ela mesma a ser tomada como prática desta produção. Caminhar pelo pensamento e pelas ruas de Aracaju dizem de um mesmo registro, levando em consideração que “apenas os pensamentos caminhados têm valor”1. Os passos dados nesses espaços me levaram a procurar vidas que resistiam, que perseveravam na existência e que criavam novas possibilidades de vida. As vidas pulsantes estavam nas ruas, construindo modos de viver que permitiam seu convívio com práticas capitalísticas padronizadas de produção de subjetividade. Tais vidas subvertem a ordem de tal padronização, e criam na cidade novos modos de viver. O encontro não seria fácil, o pensamento se fez fronteiriço às emboscadas galgadas por mim. Sem que soubesse dos efeitos que viriam, construí uma porta para a rua, acreditando que o trabalho em conjunto com algumas instituições facilitaria os encontros e os tornariam mais proveitosos. No entanto, logo que a. 1. NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Porto Alegre, RS: L&PM. P. 23. 11.

(12) porta foi construída uma nova burocracia foi criada, selecionando quem podia ou não entrar. Sem saber ao certo o que a mim haviam destinado, fui tratada tal como K., em O Castelo, pois eu e ele éramos estrangeiro no território em que decidimos habitar. Nós então perguntamos, cada um em seu lugar: “E é preciso pedir permissão para pernoitar?”2. Uma resposta positiva nos foi endereçada, K. porém teve mais sorte, conseguiu no mesmo dia pernoitar, já eu, tive que ir em busca de uma autorização. O fato aconteceu com se dissessem: Desista!3 (...). Era de manhã bem cedo, as ruas limpas e vazias, eu ia para a estação ferroviárias. Quando confrontei um relógio de torre com o meu relógio, vi que era muito mais tarde do que havia acreditado, precisava me apressar bastante; o susto dessa descoberta fez-me ficar inseguro no caminho, eu ainda não conhecia bem aquela cidade, felizmente havia um guarda por perto, corri até ele e perguntei-lhe sem fôlego pelo caminho. Ele sorriu e disse: - De mim você quer saber o caminho? - Sim – eu disse -, uma vez que eu mesmo não posso encontrálo. - Desista, desista – disse ele e virou-se com um grande ímpeto, como as pessoas que querem estar a sós com o seu sorriso.4. Foram longas investidas, perdi-me em diversos caminhos até chegar em um lugar onde eu não sabia o que realmente iria encontrar. A previsão não dizia das condições do tempo, nem dos vendavais pelos quais passaria. Foram necessários alguns meses de espera e, enquanto isso, a rua permanecia aberta a quem quisesse passar. Foi quando, por fim, os encontros com as pessoas em situação de rua puderam ocorrer por intermédio de aparatos institucionais como o Projeto Redução de Danos, vinculado à Secretaria Municipal de Saúde, e o Centro POP, vinculado à Secretaria da Assistência Social, órgãos da cidade de Aracaju que mantêm contato frequente com pessoas que vivem nas ruas. Finalmente atravesso uma das portas para a rua, e logo me deparo com a cidade com seus veios abertos, com a noite que a pinta de outras tonalidades e que traz consigo vidas antes escondidas, excluídas do convívio com os passantes apressados das manhãs. Outros problemas surgem, a vida tomada. 2. KAFKA, F. O castelo. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P. 8 Título do texto exibido posteriormente. 4 KAFKA, F. Desista!. In.: Narrativas do espólio. P. 209 3. 12.

(13) como obra de arte logo aparece como questão: o viver na rua passa necessariamente por uma construção criadora de si? Mesmo sem respostas que objetivam sentidos, segui caminhando pelas ruas da história do presente de Aracaju. Em meio ao caminho que trilhava encontrei muitos intercessores: Franz Kafka, Michel Foucault, Maurício Mangueira, Luis Antônio Baptista, Luiz, Elen, Kleber e também caminhantes da vida, das ruas sem percursos prontos e que parecem querer construir novas passagens para seus ditos, escritos e vividos. O caminho apontou para uma outra direção, e as escritas do vivido tomaram uma nova forma. Foi assim que, caminhando por outros percursos, cheguei ao autor tcheco Franz Kafka, que me mostrou sua literatura menor, literatura engajada onde os processos individuas são políticos. Os escritos sobre o vivido nas ruas de Aracaju foram então atravessados pelos escritos de Kafka, compondo junto a eles.. 13.

(14) PARTE I: Um modo de costurar. 14.

(15) Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E, se via um menino que tinha um pião, já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o no chão e ia embora. Na verdade acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E, sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e, se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto ele corria até perder o fôlego atrás do pião. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe desajeitado da fieira. (Franz Kafka, O pião). 15.

(16) 2. PARTE I: Um modo de costurar. Uma costura entrelaça linhas, tecidos, constrói formas, transforma retalhos em peças úteis, dando sentido a pedaços de vida através de linhas que intercalam noções. Foi assim que na pesquisa, pedaços de histórias, trechos de acontecimentos, trapos de conhecimento que formavam um emaranhado de ideias, foram aos poucos criando uma forma, produzindo sentidos. As linhas soltas da pesquisa foram amarradas a tantas outras que a ela não pertencia, e assim surgiram outros campos, outros olhares. O bordado dessa primeira parte diz da construção da pesquisa, seu objetivo, seus primeiros passos, sua caminhada, as mudanças de direção. Tudo alinhavado com as linhas duras de Franz Kafka, que preenche com a força da sua arte a trajetória realizada. De Kafka, em princípio, quis a doação de alguns títulos que deu a seus livros, como também de muitas linhas de seus escritos que me serviram para compor com os textos que escrevi e que buscam nesse encontro uma pulsação conjunta que dimensione a necessária intercessão entre vida, arte, pensamento e ciência5.. 5. DELEUZE, G. Intercessores. In: ____. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992.. 16.

(17) 2.1 A METAMORFOSE de uma pesquisa. Esse trabalho lança perspectivas para um futuro, para um possível que se realizou nessa escrita e outros tantos possíveis que possam se realizar com ela. Quando projeta-se algo, imaginam-se os passos, os caminhos que serão percorridos. Cria-se um mapa como guia, ainda que não se saiba nada sobre o relevo, a hidrografia ou o clima com o qual irá se deparar. E por não saber, por não se poder antecipar a vida, esse mapa prega peças, faz tropeçar muitas vezes nas pedras no meio do caminho e rolar por um abismo de questões. Mas o mapa se fez e com ele na mão, perdi-me por diversas vezes. O mapa não disse das irregularidades do relevo que me depararei, pois essa configuração mudava a cada olhadela sobre sua trajetória. A cidade e a produção de sua história do presente se revelavam um campo movediço. Sair do lugar, movimentar-me para não ser tragada a cada passo era o risco necessário para que se fizesse essa produção, para que fosse possível dizer dessa história. O movimento de pesquisa foi como uma metamorfose, que ia tomando formas, criando vida. Por mais que se tentasse um roteiro para ela, a vida excedia o previsto em sua dinâmica, o acaso emergia e interferia, os fluxos eram redirecionados a ponto de não ser possível saber exatamente o que faria depois. Não havia passos a serem seguidos. Essa metamorfose aconteceu pelas relações que foram produzidas, pelos bons e maus encontros, muito menos no espaço burocrático das disciplinas cursadas no Programa de Pós Graduação em Psicologia Social da UFS e muito mais nas reuniões de alunos, de grupo de pesquisa, nas idas e vindas do trabalho no interior, dos desencontros ao se tentar passar pelas burocracias institucionais. Voltando aos escritos de sua projeção, observo que a pesquisa propunha falar sobre a relação entre a criação cotidiana, que permite resistir às práticas de dominação e uniformização na cidade, e a criação daquilo que nos tira do lugar pela intervenção. Neste sentindo, acreditava que a arte, ao produzir instabilidade, poderia contribuir para a criação de novas resistências. Tal ideia. 17.

(18) de resistência está próxima a noção de conatus que, em Espinosa6, diz de um perseverar na existência. E “certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos”7 percebi, como Gregor Samsa viu consigo, que o corpo da pesquisa se metamorfoseava. “O que terá acontecido comigo?”8 perguntava eu, como perguntava Samsa ao se deparar com sua transformação. A noção de arte, que me era tão cara, por acreditar que “a arte é o grande estimulante da vida”9, assume a feição dessa mudança. A arte acabou tornando-se um peso para o encaminhamento do trabalho, ainda que esta quase sempre soe como leveza para as coisas vivas. Hoje é possível perceber que o peso se deveu ao grande investimento que fiz, ao querê-la como um instrumento, como uma ferramenta. No projeto de pesquisa para a seleção do mestrado escrevi: “encontrei na arte aquilo que poderia ser uma ferramenta essencial. A arte aparece aqui como intervenção urbana, exercitando um novo olhar para as formas que habitam o cotidiano”. Esta ferramenta tornou-se bastante pesada, ao ponto de não ser possível movê-la. Assim acabou se tornando um obstáculo, pois por mais que eu frisasse a ideia da pesquisa numa produção de resistências nas cidades, o que aparecia como destaque era sempre o trabalho com a arte, como se isso fosse o principal. E então, deixei-me tomar por um movimento metamorfoseante, diferente daquele que passou Gregor Samsa10 em meio a uma vida que lhe sufocava pelo trabalho extenuante de cacheiro viajante, e em que ser besouro aparece como uma continuidade de um viver onde o corpo vai mais rapidamente ao encontro dos seus limites. Ao contrário de Gregor, a transformação ocorreu em mim e na pesquisa por um excesso de questões e de possibilidades que emergiram diante do fazer pesquisa, e diferente dele, pude sair do quarto e viver o mundo que se metamorfoseava lá fora. Adiante esse mundo se faz nesse trabalho através de narrativas que trazem um tanto desse percurso. Mas, foi assim que a arte foi então deixando de ser um trabalho estético produtor de resistência, para se tornar a própria resistência, numa ideia de vida 6. ESPINOSA, B. Ética. In: Coleção Os Pensadores. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. São Paulo: Editora Abril, 1973. 1ª ed. 7 KAFKA, F. A metamorfose. Tradução Marcelo Backes. Porto Alegre: L&PM, 2002. P. 11 8 Idem, p. 11. 9 NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução, apresentação e notas de Renato Zwick. - Porto Alegre: L&PM, 2011. P 96. 10 Personagem de Franz Kafka no livro A Metamorfose.. 18.

(19) como obra de arte, que podemos encontrar no pensamento de Nietzsche. Aí invisto minhas forças, na vida como obra de arte, aquilo que inventa um modo de resistir, que persevera na existência, ainda que uma lógica capitalística de uniformização da vida dite o modo de habitar a cidade. E essas vidas que resistem mesmo diante desta lógica, é que fui buscar. Buscar modos onde o termo “habitar a cidade" não se faça uma história de repetições, e assim vi nos moradores de rua uma possibilidade de expressão dessas vidas criadoras, mesmo em condições de vidas indignas.. 2.2 VIDA COMO OBRA DE ARTE O trabalho que invisto sobre a arte aparece como discussão já nas primeiras obras de Nietzsche. Temeroso de um niilismo radical, ao qual “tudo é vão e nada vale a pena”, Nietzsche busca educar o ser humano para que este possa fazer frente ao absurdo da existência, dando novos sentidos e objetivos para o seu cotidiano. Assim, “exorta cada um a esculpir sua existência como uma obra de arte”11, e investe-se na tarefa de descobrir e inventar novas formas de vida, convidando o ser humano a construir sua própria singularidade. “Tudo isso só pode ser feito contra o presente, contra um “eu” constituído”12. Nietzsche dá um novo sentido à vida. Ao contrário de alguns biologistas, que pensam a vida a partir do instinto de conservação, Nietzsche a considerava uma atividade criadora, e como atividade criadora, a vida não quer se conservar, mas crescer, expandir sua força, gerar mais vida, impondo a si uma nova direção. Assim, a vida é vontade de potência, um eterno superar-se, “a regra não é a luta pela vida, mas a luta de uma vida que quer mais vida”13. O movimento da vida é impulsionado pela potência, pelo desejo de expandir, de poder criar, de vencer as resistências. A arte aparece como afirmação e divinização da existência, são os impulsos estéticos que dão condição para a criação de novas existências. Neste 11. DIAS, R.M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. P. 13. Idem, p. 13. 13 Ibidem, p. 36. 12. 19.

(20) sentido, fazer a vida uma obra de arte é resistir, criar repertórios de ser no mundo. “Criar é colocar a realidade como devir, isto é, aos olhos do criador não há mundo sensível já realizado onde é preciso integrar. Criar não é buscar. Não é buscar um lugar ao sol, mas inventar um sol próprio”14 O pensamento nietzschiano é desenrolado por Foucault, que formula seu conceito de subjetivação como uma relação de forças consigo, da constituição de modos de existência, ou da invenção de possibilidades de vida. Deleuze vai dizer que Foucault valoriza “não a existência como sujeito, mas como obra de arte. Trata-se de inventar modos de existência, segundo regras facultativas, capazes de resistir ao poder bem como se furtar ao saber, mesmo se o saber tenta penetrá-los e o poder tenta apropriar-se deles. Mas os modos de existência ou possibilidades de vida não cessam de se recriar, e surgem novos”15. Assim como Nietzsche o fez, passo da reflexão sobre as obras de arte para uma reflexão particular, a vida mesma considerada como arte: “Arte de criar a si mesmo como obra de arte, isto é, sair da posição de criatura contemplativa e adquirir os hábitos e os atributos de criador, ser artista de sua própria existência”16. A motivação que me leva a buscar vidas criadoras, ou vidas que se efetuam como obra de arte, parte da necessidade de encontrar linhas de fuga que se distanciem da captura dos corpos pela biopolítica, pelo capitalismo cultural, pela economia imaterial ou qualquer outro movimento de uniformização da vida. Assim fui encontrar isso nos vagabundos, moradores de rua, pois, assim como “o nômade, como o esquizo, é o desterritorializado por excelência, aquele que foge e faz tudo fugir. Ele faz da própria desterritorialização um território subjetivo”17 Nessas vidas encontramos outros modos de se posicionar no mundo, frente às dificuldades do viver, estas vidas encontram caminhos onde não lhe é oferecido nada. São vidas que destoam frente as práticas exacerbadas de consumo que criam desejos. “Afinal, o que nos vende o tempo todo, senão isto: maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir? O 14. DIAS, R.M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 65-66. DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34. P. 120-121. 16 DIAS, R.M. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. P. 20. 17 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004 . P. 252 15. 20.

(21) fato é que consumimos mais do que bens materiais, conteúdos culturais, mais do que produtos concretos, formas de vida – e mesmo quando nos referimos apenas aos estratos mais carentes da população, ainda assim essa tendência é crescente. Na verdade, através dos fluxos de imagem, de informação, de conhecimento e de serviços que nos chegam ou que acessamos, consumimos maneira de viver, de sentir, de pensar, de sonhar, consumimos toneladas de subjetividade”18 Uma nova modalidade de exclusão surge em meio ao capitalismo financeiro, que já conseguiu espalhar seus tentáculos pelas redes. Essa exclusão aparece em meio a valorização das conexões, da fluidez desse sistema financeiro que garante a mobilidade de uns às custas da imobilidade de outros. Novas formas de angústia e de impotência surgem frente a mais valia da modernidade. Diante disso, micropolíticas resistem à nova ordem, um novo conjunto de estratégias fazem frente a este viver. “Seria preciso perguntar-se de que maneira, no interior dessa megamáquina de produção de subjetividade que é o Império contemporâneo, surgem novas modalidades de se agregar, de criar redes de sentido, de inventar dispositivos de autoavaliação”19.. 2.3 INTERCESSORES A escrita de um texto, o gesto, o caminhar, o pensamento: “sempre se trabalha em vários, mesmo quando isso não se vê”20. Atravessados pelas leituras, pelos olhares, pelas músicas e imagens, e pelo outro, experimentamos um fazer e um fazer-se. Quando esses atravessamentos provocam um aumento na potência de criação estamos diante dos intercessores. “A criação são os intercessores, sem eles não há obra”21, e quando me vi em meio a construção de uma pesquisa apareceu a necessidade de fabricar meus próprios intercessores.. 18. PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 252. 19 Idem, P. 254 20 DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed. 34. P. 160. 21 Idem, P. 160.. 21.

(22) Kafka insinua-se como lembrança quando a desestabilização e a problematização aparecem como as marcas de um trabalho. Aberto a parcerias, nos ensina a pensar com, e nos liberta do pensar e agir dos manuais que predizem nossas ações, nosso modo de agir22. Ao convite de um pensar e agir com, me deixei ser guiada por ele, na mesma medida em que ele foi levado por mim. Foi vivenciando a força das ruas e de um fazer acadêmico que não busca por respostas, mas que valoriza o imprevisível da própria trajetória de pesquisa, que Kafka aparece como o autor intercessor deste caminhar. Kafka se faz trincheira com seus escritos, cria saídas para os problemas mais difíceis e ao mesmo tempo produz inquietação. Judeu, habitante de Praga, diante de sua condição periférica que impossibilitava sua escrita de outra forma que não em alemão, fez da literatura algo impossível e deu voz a uma literatura menor, produziu um discurso de minoria mesmo quando carrega em seu feito a gramática de uma língua maior. Kafka é denso, uma leitura pesada para os movimentos rápidos que vivemos nos dias de hoje. Além disso, a estratégia montada por ele busca escapar a inercia redutora das leituras, característica que o faz tão contemporâneo. A escrita de Kafka promove a desmontagem dos mecanismos que operam nosso cotidiano, nosso viver autômato. A desmontagem que faz dessa máquina social, passa por um conhecimento da produção de subjetividade, razão esta de ter sido considerado o designer da vida interior e do absurdo. Sua motivação é a vontade de uma escrita, que o traz repouso e prazer diante de um emprego intolerável. Muitas vezes por isso, algumas interpretações o colocam no centro da angústia e da culpabilidade, porém quem o lê sente o movimento paradoxal em sua obra, onde a inquietação é constante e o estranhamento se faz alegria. Essa dimensão paradoxal de sua obra, “segundo Deleuze e Guattari, é uma força que desloca os problemas tradicionais do <<trágico>> e da culpabilidade>> para os da alegria e da política”23. É partir. 22. PASSETTI, E. Kafka-Foucault sem medos. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. 23 GONDINHO, F. A escrita (do) impossível. In: Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. P. 8. 22.

(23) dessa visão que Deleuze e Guattari vão opor a alegria e a política, “dois critérios do gênio: a política que o atravessa e a alegria que comunica”24. Kafka produz um discurso novo que renova a maneira de agir e pensar. Sua literatura une a alegria à política, expurgando o trágico e denunciando o absurdo da existência. A alegria é o humor do riso que provoca sua leitura. Sua escrita se faz em fragmentos que se confundem com sua vida. A escrita em fragmentos sugere uma experimentação com ela, saltando de um ponto a outro, sua escrita se fazia em laboratório de ensaios, onde não havia uma preocupação com o belo. “Esta construção é que é máquina para Kafka, <<ora enredado nas máquinas capitalistas, burocráticas ou fascistas, ora traçando uma linha revolucionária modesta>>”25. “Os livros de Kafka descrevem a aventura de uma pesquisa, de uma investigação”26. Ao ler Kafka, aprendemos a valorizar o acontecimento, que instaura a ruptura com a rotina, que estabelece a singularidade de uma situação, que anuncia a diferença lá onde havia repetição27. Kafka dá lugar à descontinuidade, anunciando o múltiplo onde antes só havia linearidade, o contínuo. Suas histórias não têm causa primeira, não remontam a uma origem que tudo explicaria. Suas histórias se abrem para um futuro incerto, para o infinito, que tudo admite, até a morte. Desse modo, nos ensina que o acontecimento é raro, cercado de vazios e silêncios, e que emergem em meio a conexões e diferentes possibilidades. Assim, irá mostrar que os fatos humanos são arbitrários, não são óbvios, e a compreensão dessa raridade é ao que o historiador se dedica. É do devir que passa ao seu redor que Kafka irá falar, “Suas histórias parecem nos ensinar que uma das tarefas do historiador é mapear, no presente, as suas virtualidades, seus devires, os futuros possíveis que contêm em potência”28. Partindo de um acontecimento arbitrário, raro, cercado de mistérios, Kafka tenta estabelecer uma série de conexões com outros eventos que parecem a ele conectados, buscando deste modo uma compreensão das 24. GONDINHO, F. A escrita (do) impossível. In: Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 9 25 Idem. P. 14 26 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP:Ateliê Editorial, 2004, p. 14. 27 Idem. 28 Ibdem, 2004, p. 25.. 23.

(24) engrenagens que movimentam essas múltiplas séries. Assim é que os acontecimentos permitem conhecer as estruturas, que só aparecem em cada prática minúscula que as efetiva29. Kafka desestabiliza a sociedade das formalidades, que privilegia o uso da força física quando há desobediência, que vê o uso do castigo como um bem, numa linguagem seca e sem metáforas. Em Kafka, quando em seu texto um homem se torna um besouro, ele é realmente é um besouro, não é uma ilusão do personagem, o devir-animal é uma fuga do ser humano, do que significa ser humano naquele contexto, prefere-se ser animal a ser funcionário de uma grande loja de confecções, ou ser membro de uma família 30. “A escrita de Kafka não é para entender, é para sentir. Gerar desconforto, causar incômodo, despertar o corpo vibrátil para o que está se passando a sua volta e não se está dando conta (...), sacudir os corpos da paralisia, do adormecimento causado pelo processo de produção de subjetividades e corpos disciplinares”31. A literatura é carregada positivamente enunciação de uma vida coletiva e mesmo revolucionária. Pelbart32, ao lembrar do ensinamento de Agamben, conta que a literatura e o pensamento fazem experimentos assim como a ciência, assim, seria preciso deixar-se levar por esses experimentos sem verdade criados pela literatura, pois através deles arriscamos menos nossa convicção e mais nossa existência. Para Agamben, os experimentos da literatura equivalem à liberação da mão do primata na sua postura ereta. Assim, “é preciso fazer da literatura uma brecha, não do avesso, mas do diverso que pode ser este mundo. Fazer da escritura uma linha de fuga, uma possibilidade de viver outra vida, de escapar das engrenagens, de provocar curtos-circuitos na visibilidade e dizibilidade dominantes, abrir o mundo para possíveis”33. Assim é que nasce a literatura menor de Kafka, utilizando a linguagem da minoria, num momento em que em Praga era inviável escrever em outra língua. 30. ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p.26. 31 Idem, p. 25. 32 PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 139 33 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p. 26.. 24.

(25) senão em alemão, o que provocava nos judeus um sentimento de desterritorialização. Essa, portanto, seria a primeira característica da literatura menor, sua língua é afetada por um coeficiente forte de desterritorialização 34. A segunda característica da literatura menor é que tudo nela é político, de forma que as questões individuais estão ligadas à política. Desse modo, os triângulos familiares se conectam a outros triângulos como os triângulos comerciais, burocráticos e econômicos. A terceira característica da literatura menor é que para ela tudo tem valor coletivo. O que o escritor escreve constitui uma ação coletiva. Assim, “as três categorias da literatura menor são: a desterritorialização da língua, a ligação individual com o imediato político, o agenciamento colectivo de enunciação”35. Por fim, é preciso saber que “não se deve gostar de Kafka; ele (escrita ou pessoa) não é para o gosto: ele é a anarquia sobre a literatura, o narrador, o leitor benevolente, o crítico literário. É a descrição mais assustadora sobre cada um. Ele não é só para o leitor; é uma realidade: é kafkiano”36. 2.4 O PROCESSO de pesquisa. O começo nunca existiu, e as histórias se encadeam num cotidiano fugidio. Mas algumas delas ressoam para um além ato, e se perpetuam numa escrita e num fazer pesquisa. Bastaram alguns comentários, em um serviço de saúde mental, para que meu corpo fosse afetado. A reprodução pela mídia do usuário de drogas como perigo urbano, ou pelo sistema de saúde como doença social, que justificavam o fato de que muitos moradores de rua deveriam ser retirados dela, se esvaneceu entre a constatação, de um funcionário deste serviço, de que morar na rua era algo prazeroso para alguns usuários, que diziam se sentir livres. Era um outro sujeito que estava ali, que dizia sobre si, e não aquele construído por diversas instituições como a mídia, a escola, a saúde. 34. DELEUZE, G & GUATTARI, F. Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim. DELEUZE, G & GUATTARI, F. Kafka – para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim. P. 41 36 PASSETTI, E. Pequenas obediências, intensas contestações. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 135 35. 25.

(26) e seus aparelhos de Estado, com o nome “usuário de drogas” ou “morador de rua”. E o corpo, “superfície de inscrição dos acontecimentos, lugar de dissociação do Eu, volume em perpétua pulverização”37, afetado deambulou em diversos espaços-tempo, até o momento em que o afeto viabilizou sua expressão numa escrita nessa pesquisa. Foi nas idas e vindas de uma estrada em construção que a atenção cartográfica, depois de meses escondida por entre livros, se pôs em exercício. O ônibus que ia da capital para o interior, e viceversa, me levando de casa para o trabalho e do trabalho para casa, trazia peculiaridades de um cotidiano que passava desapercebido por aqueles que apenas serviam-se do transporte, efetuando um reconhecimento automático da situação. A novidade da circunstância provocava rupturas nos saberes já constituídos, e foi acompanhando a trajetória e tudo que se passava ali que o reconhecimento se fez atento38.. Estamos voltando do interior para a cidade grande, ou da cidade para o interior na visão e trajeto de muitos ali. No ônibus, pessoas amontoadas procuram uma fuga, uma passagem de ar para poderem continuar suas vidas. Muitos trabalham na roça, outros vêm de uma cidade menor para uma universidade longe da capital, cada um constrói o seu percurso, ainda que muitos pareçam ter o percurso já traçado, seja pela trajetória do ônibus, seja pela lógica que rege suas vidas. Uma parte da aglomeração desce na beira da estrada em direção às universidades particulares da região, grandes empresas de (re)produção de saber que conseguiram capturar grande parte daquela população com o discurso global de educar para trabalhar e trabalhar para viver. Também capturada por esta lógica, sigo meu trajeto aparentemente já traçado, encontro um lugar para sentar e descansar o corpo fadigado pela manhã de trabalho. Minha visão é a dos óculos escuros, anestesiada, pareço não me preocupar com o que se passa ao redor. De onde estou, vejo o ponto de fuga no horizonte, estrada e mais estrada pela frente. Mas eis que a realidade me desperta na voz 37. PELBART, P. O corpo, a vida, a morte. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. P. 144 38 “Bergson comenta sobre o reconhecimento atento: “enquanto no reconhecimento automático nossos movimentos prolongam nossa percepção para obter efeitos úteis e nos afastam assim do objeto percebido, aqui, ao contrário, ele nos reconduzem ao objeto para sublinhar seus contornos. Daí o papel preponderante, e não mais acessório que as lembranças-imagens adquirem”.” (BERGSON, 1987/1990, p.78 apud KASTRUP, 2009, p. 46).. 26.

(27) rouca do senhor sentado ao meu lado, ele parece não se importar com o meu ar de indiferença criado pelos óculos e pelo cansaço, e insiste em me sacolejar com sua vida. Como se soubesse da minha profissão de psicóloga, conta sua história e a de seus familiares, a preocupação que tem com alguns deles, principalmente de seu filho que agora é um vigilante concursado, mas que falta muito ao trabalho e, por isso, tem medo que fique desempregado. Em meio à conversa, ou quase monólogo do senhor, sobe uma senhora com uma enorme sacola de pano cheia de objetos que não pude identificar. Muitos cumprimentos, a senhora com a sacola e o senhor ao meu lado se conheciam. Perguntam como vai a família e os trabalhos na roça, e é nessa hora que o sacolejo é maior. A senhora fala da seca, dos poços vazios e da dificuldade de conseguir água para as atividades diárias. Diz ainda que tudo piorou depois da duplicação da rodovia, porque “antes era mais fácil atravessar a pista e lavar roupa no rio do outro lado, mas agora colocaram esse muro...”. Olho para a pista como nunca antes havia olhado, e realmente percebo o muro que divide a ida e vinda dos carros, não há passarelas, nem faixas de pedestres, as pessoas que moram naquelas casinhas, que vemos ao longe da estrada, tiveram barrados seus direitos de andar pelas redondezas. O senhor pergunta como a senhora faz, no que ela responde “continuo atravessando, boto a roupa no carrinho de mão, atravesso, passo o carrinho por cima do muro e depois passo para o outro lado”. A conversa continua com a preocupação do senhor, agora voltada para senhora à nossa frente. Ela desce em algum ponto da estrada, mas não desce do meu pensamento, venho carregando a senhora pela estrada todos os dias, nas minhas idas e vindas do trabalho, e me pergunto em que ponto da estrada ela deve morar, e até que ponto ela irá resistir39. Foi a partir da relação com o cotidiano, muitas vezes visto em estado de inércia, que surgiu a necessidade de fazer ver aquilo que nele aparece como desestabilização, destruição de bloqueios e produção de resistência. A imagem da senhora que resiste dia a dia ao engessamento de sua vida, arriscando-se, lutando por sua autonomia, atravessando barreiras sejam físicas, sejam de relações de poder que descartam as singularidades do viver, me pôs a pensar nas resistências exercidas no cotidiano, e nos lugares que elas ocupam.. 39. Primeira escrita, quando a pesquisa ainda estava tomando forma.. 27.

(28) No percurso trilhado por essa desestabilização, compartilhei da inquietação de Venturini (2012), e como ele (...) Comecei então a prestar atenção em perceber a presença destas potencialidades nos lugares do desconforto e da miséria extrema, nas instituições, nas áreas mais degradadas da cidade. Comecei a apreciar o antagonismo dos “vencidos”, os testemunhos que podem manter abertas as contradições sociais, e entendi que a história brota da microfísica do poder, e que os acontecimentos de cada época se constituem a partir de pequenos gestos, desconhecidos e preciosos, que alimentam o grande rio subterrâneo da história. Rio este que percorre longos trechos nas profundezas da terra para de repente irromper na superfície, muitas vezes bem longe do lugar onde se formou, com a força e o frescor de uma mudança40 Com o corpo afetado pelas imagens de um espaço em movimento e de afetos desconhecidos, busquei o encontro com a força-leve daqueles que lutam por um viver fora dos padrões pré-estabelecidos e se contentam apenas em dormir olhando as estrelas41. Assim, foi no encontro com o viver na rua que pude perceber a força criadora do resistir. Mas a trajetória não seria tão fácil, o campo mostrou-se movediço.. *. Na primeira pisada senti a areia movediça e não seria tão simples atravessar a rua. Quis entrar por ruelas, mas havia um guarda para barrar minha entrada: faltava o papel com a assinatura. Mas de quem é a rua? Se é possível viver nela sem uma assinatura, por que tal pedido para alguém que só queria andar e trocar algumas palavras? Aqui se inicia um jogo de tentativas, buscas e frustrações. Modificada, construí uma nova pesquisa. Um novo olhar sobre a arte, não mais como um instrumento produtor de resistência, mas agora como a própria 40. VENTURINI, E. Prefácio. In: BAPTISTA, L.A. O veludo o vidro e o plástico: desigualdade e diversidade na metrópole. Niterói: Editora da UFF, 2012. P.12 41 Um dos funcionários do serviço de saúde mental trouxe a fala de um dos usuários em situação de rua que justificou o motivo de ter escolhido a rua para viver: “Para que eu vou voltar para casa se eu posso dormir olhando as estrelas?” (Diário de Campo, 2011).. 28.

(29) resistência, assim como Rancière42 supõe que a arte resiste sobre dois sentidos contraditórios: como a coisa que persiste ao seu ser e como homens que se recusam a persistir na situação deles. Para Deleuze “A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha”, mas um povo que sofre não deve se ocupar dela, para ele “Quando um povo cria, é por seus próprios meios, mas de maneira a reencontrar algo da arte (Garrel diz que o Museu do Louvre contém, ele também, uma soma de sofrimento abominável), ou de maneira que a arte reencontre o que lhe faltava”43. A partir da noção de vida como obra de arte, fez surgir um novo olhar sobre a pesquisa. Apesar das mudanças, minha busca continuava sendo a mesma: a produção de subjetividade e os modos de resistências na cidade, entendendo o resistir como um perseverar na existência - sob influência do conceito de conatus em Espinosa-, como uma força insubordinada, ativa e irredutível às funções de adaptação, conservação e utilidade da vida, marcada pelo poder de transformação, produtora de desvios e novos sentidos. Para construção de tal empreitada, fui em busca de vidas que resistem, e vi nos moradores de rua a força viva deste conceito, pois a rua com suas curvas, desvios, surpresas, impõe a quem nela vive um modo de vida criador. Iniciei meu trajeto nos espaços onde se discutia políticas para “população em situação de rua”, assim como são atualmente chamados, e descobri que este é um tema que está na moda, talvez por causa da Copa do Mundo e das Olimpíadas marcadas para o Brasil, no anos de 2014 e 2016 respectivamente, quando os estados se veem tentados a produzir uma política higienista de limpeza das ruas, e onde a guerra ao crack surge como desculpa para diversas ações de repressão por parte do Estado. Ainda que me intrometesse nesses espaços, não era minha intenção produzir uma pesquisa de dentro de um aparato institucional. Então fui em busca de um colega de curso que tinha contatos com moradores de rua por trabalhar como redutor de danos. Resolvi que com apenas um telefonema o trabalho de campo seria iniciado. Seria tudo muito simples, já estava tudo planejado, e em. 42. RANCIÈRE, J. Será que a arte resiste à alguma coisa? In: Corpo, arte e clínica/ Tânia Mara Galli Fonseca e Seldas Engelman (Orgs.). - Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004. 43 DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed 34, 2010. P. 219. 29.

(30) poucos dias estaria escrevendo páginas e mais páginas sobre os encontros com os moradores de rua, e foi aí que a pesquisa deu outra reviravolta. O que era para ser uma entrada pelas brechas, furando o esquema de segurança, e que na minha imaginação bastaria apenas uma ligação para que o trabalho de campo se iniciasse, foi abertura de um período de desencontros e esperas. O tal colega que iria me ajudar com a entrada no campo não era mais redutor de danos, e parecia não ter tempo para minhas investidas, então me passou o contato do coordenador do programa, que indicaria alguém. O coordenador parecia querer abrir as portas para mim, porém precisava que eu fizesse um pedido institucional, e só com a autorização do seu superior, eu poderia então entrar pelo Projeto Redução de Danos (PRD). Já que teria que ir atrás do papel, pensei: por que não entrar também por outras vias que possibilitassem um contato maior com os moradores de rua? Então fui atrás do papel com a autorização para entrar no campo através do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP). Cada papel seguiu seu caminho. Na assistência porém, entre um birô de um e a assinatura de outro, distante por 2 metros, passaram-se meses; as férias completas da funcionária que autorizaria, a perda do meu ofício com o pedido depois da longa espera, diversos desencontros com a pessoa que me devolveria o papel com a autorização, uma manhã inteira esperando uma reunião terminar para então conhecer a pessoa com a qual só conseguia falar por telefone, consigo ainda hoje ouvi-la falar ao telefone: “Essas respostas por telefone têm importância real, como é que não? Como é que uma informação dada por um funcionário do castelo pode ser desimportante?”44. Durante esse emaranhado de problemas os quais vejo terem sidos colocados por mim, tentei uma aproximação com os moradores de rua por outra via: uma pessoa conhecida de uma integrante do grupo de mestrado entrega sopa à noite à população de rua. Combinei de ir com ela, porém o encontro não aconteceu. Por fim, consegui a tão preciosa assinatura no verso do meu ofício cuja autorização parecia ter sido decidida na minha frente com um “Acho que não tem problema não... Você vê algum problema? O trabalho vai ser com os moradores de rua, não tem problema não”. Assim como eu, “em lugar nenhum K. tinha visto antes, como ali, as. 44. KAFKA, F. O castelo. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008. P. 87. 30.

(31) funções administrativas e as vidas tão entrelaçadas – de tal maneira entrelaçadas que às vezes podia parecer que a função oficial e a vida tinham trocado de lugar”45. Já na saúde, com a autorização em mãos em menos de um mês, o problema era achar uma vaga na agenda conturbada do gestor. Depois de passados dois meses, desde o meu pedido, pude então conversar por uma hora com o coordenador e planejar minhas entradas, o que necessitaria de minha apresentação prévia aos redutores na reunião semanal. A conversa fiada, na primeira reunião como o coordenador do PRD, já me alertou sobre novas formas de controle e ocupação do espaço urbano. Soube da ocupação do centro a noite pela cavalaria da Polícia Militar, inibindo o uso de drogas em alguns pontos de maior visibilidades e assim dificultando a vida de muitas pessoas que vivem nesses espaços; da futura vinda de um ônibus para o projeto “crack é possível vencer”, que terá câmeras de monitoramento e circulará pela cidade com o objetivo de identificar contrabandistas e prestar informações sobre saúde a usuários de drogas; da criação de um Comitê de avaliação e monitoramento para população em situação de rua. O campo seria movimentado.. 2.5 A CONSTRUÇÃO de um caminho. Papeis autorizados em mãos, já tenho o bilhete para a viagem. O estrangeiro é a própria cidade a qual nos fazemos distantes mesmo em sua presença. A atração dos viajantes e missionários pelo deslocamento me perturba “pela inquietação com outras experiências, pelo desejo de encontrar desconhecidos, pela disponibilidade para se expor a esse tipo de dificuldade, à novidade, à diferença”46, mas aqui o deslocamento só se faz em terras distantes na medida em que a cidade se faz outra quando é experimentada. É aproximando-se dos seus poros, dos seus movimentos, que torna-se possível produzir uma relação outra com a urbe, percebendo nela a alteridade de seus. 45 46. KAFKA, F. O castelo. Trad. Modesto Carone. – São Paulo: Companhia das Letras, 2008, P. 71 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. P. 148-149. 31.

(32) encontros. Deixando-se penetrar pelas malhas de sua história: o presente que se quer contar. Esses passos dados na cidade são forçados a desvios, subidas, descidas, tropeços. E é o desconhecido dos passos que permite a aproximação com essa diferença. que. parecia. não. diferir,. emergindo. assim. a. vontade. de. compartilhamento com aqueles que também vivem essa experiência. É assim que a pesquisa se fez em diálogo, assumiu um tom polifônico ao permitir que as vozes da urbe penetrassem na escritura desse relato. Etnografar os percursos é permitir que diferentes dados mobilizem os mais diversos sentidos, fazendo da pesquisa uma criação tanto do pesquisador como daquilo do que se quer saber. A interpretação e a generalização aparecem como mecanismos inibidores da própria experiência de viagem sobre o presente. Os aparatos teóricos quando postos sobre a alteridade do campo o reduz a velhas formas, cortando suas arestas e estranhezas que dariam luz ao novo. Mas se ao contrário, a experiência de campo inspira a teoria, é possível então conseguir uma inteligibilidade dos fenômenos, que os afasta dos perigos da totalização e da simplificação. Se por um lado o passeio é livre, por outro o discurso sobre ele é provido de fronteiras que o enrijecem. Os embates teóricos forçam a produção de uma escrita que esteja no verdadeiro, independentemente de ser falsa ou verdadeira, ela deve estar no campo de aceitabilidade da disciplina. Aí a autoridade do pesquisador se hipertrofia, neutralizando ou fazendo recuar aspectos criadores da pesquisa47. Longe dos mecanismos da interpretação e dos reducionismos que os nomes sociais impõe aos sujeitos, busco andanças que me levem ao desconhecido, ao não familiar, para deixar-me permear pela especificidade da experiência. É tecendo uma irregularidade no fio regular que percorre o pensamento da vida que a pesquisa produz atritos e experiência de estranhamento. Novas experiências são produzidas envolvendo diferentes afetos e percepções durante as andanças pelo campo. Nesse sentido, se por um lado o próprio campo torna possível tal desfamiliarização, por outro o estranhamento não é dado por ele, é preciso estar disponível para expor-se à novidade, e é o próprio processo de. 47. CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.. 32.

(33) trabalho de campo que permite atingir o estranhamento48. É numa viagem sur place, que não exige movimento, mas que envolve a relação com a diferença, a acolhida da novidade que me propus adentrar. Porém, tal jornada não é feita sozinha, uma multiplicidade de vozes percorre toda a escrita que se faz do processo de pesquisa, de forma que é uma produção coletiva que emerge49. A jornada pelo desconhecido da cidade se faz pelos agenciamentos que são produzidos no campo. Tais agenciamentos são composições heterogêneas, multiplicidades que ligam os elementos mais diversos. Os enunciados que fazem parte dos agenciamentos estão ligados ora a uma exterioridade não linguageira - corpos ou coisas -, formando os agenciamentos coletivos de enunciação, ora a ações e paixões, formando os agenciamentos concretos50, de forma que o discursivo está sempre agenciado ao não discursivo. É trafegando em meio aos agenciamentos que sujeito, identidade, significação perdem seu posto de entidades primeiras, pois são, antes de mais nada, resultantes do jogo de agenciamentos, estes sempre coletivos. Os agenciamentos “são datados, transitórios e sempre em relação com um limiar que, atingido, promove uma virada, uma mudança”51. A composição de corpos, o agir “com”, o falar “com”, o escrever “com”, compõe a unidade do agenciamento chamada por Deleuze de simpatia52. É a simpatia que permite a ligação com o heterogêneo que nos cerca, e se diferencia da atitude de identificação e afastamento53. Não há julgamento na simpatia, nem amabilidade ou piedade, ela é afecção nos agenciamentos, e é no compartilhamento das paixões que estes se produzem. Haveria, portanto, que existir uma disposição para se deixar afetar pelo que nos cerca, de forma que a identidade a que estamos habituados não nos impeça de partilhar as paixões ali presentes 54. É 48. “A viagem sur place é a que não exige movimento e envolve a relação com a diferença, a acolhida da novidade que aquele outro território oferece, daquilo que não estava previsto. A viagem de campo é imóvel, viagem da diferença, não importando a distância percorrida”. (Idem, p. 149) 49 “Deleuze e Guattari (1977) mostram como Kafka produziu uma literatura da enunciação coletiva – com o seu uso do dialeto alemão de Praga (marginal ou “menor” em relação ao alemão dominante), com as 50 Os conceitos “agenciamentos coletivos de enunciação” e “agenciamentos concretos” são utilizados por Caiafa (2007) tendo Deleuze (1977) como referência. 51 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, P. 152. 52 O conceito de simpatia é empregado por Caiafa (2007) fazendo referência à Deleuze (1977). 53 “A distância nos indica “o olhar do entendimento”, “um olhar científico asseptizado”, enquanto a identificação no leva ao contágio, à confusão com o outro. Nos dois casos perdemos a força da alteridade, a oportunidade de entrar em composição com os heterogêneos” (Caiafa, 2007, p. 152) 54 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 154.. 33.

(34) experimentando a simpatia que perdemos os limites estritos da identidade, e é perdendo uma parte de si mesmo que experimentamos o fora e nos ligamos ao outro. “O trabalho de campo oferece uma oportunidade singular de agenciamentos com o desconhecido, por realizar diferentes formas de viagem, por envolver estrangeirismos”55. A simpatia deve estar presente nas andanças pelo campo, é a atitude que se adquire diante dela que “impede o distanciamento asséptico e julgador, ao mesmo tempo em que cria uma aproximação sóbria, companheira da inquietação intelectual”56. A experiência etnográfica como produção subjetiva não é de ordem pessoal, sendo concebida no contexto de agenciamentos de subjetivação. A subjetividade está sempre em processo, nunca está pronta, e a inquietação do viajante em meio aos encontros torna possível uma criação subjetiva. Da vivência, do ato de estar no campo, a escrita aparece como seus rastros. A escrita da experiência é uma escrita artesanal, um objeto confeccionado, e nesse sentido é ficção. Longe da pretensa necessidade de reproduzir em palavras aquilo que parte dos afetos, das intensidades, mas visando fazer um registro do cotidiano, de vidas infames que resistem em certo espaço-tempo, a escrita aqui se faz em meio a atravessamentos, distante de padrões inodoros, neutros. Parte dos afetos, dos cheiros e das cores do cotidiano, buscando migalhas de acontecimentos57. A escrita que se faz em meio aos atravessamentos do campo de pesquisa utiliza-se de ferramentas como entrevistas e diários de campo. Ainda que o perguntar estabeleça uma direção, a entrevista quando envolvida pela simpatia se investe a serviço de uma inquietude intelectual e afasta o pesquisador de uma posição privilegiada no diálogo. “Assim, a entrevista é tanto mais interessante como recurso quanto possa ser em alguma medida uma conversa e envolver hospitalidade”58. O diário ou as notas de campo são instrumentos permeados por. 55. CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, p. 155. Idem, p. 157. 57 “Juan Jose Saer (2004) observa que os escritores de ficção não falsificam nada e que, ao produzirem seus personagens e seus enredos, querem que essa experiência descrita seja tomada em toda literalidade e, eu acrescentaria, num sentido especial, em sua concretude. Assim também se dá com as pessoas que encontramos no campo e cujas histórias, nesse caso, não inventamos, mas modificamos em parte como nossa presença e nossas palavras, e queremos recontar” (Caiafa, 2007, p.145) 58 CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007, P. 157. 56. 34.

(35) experiências e impressões do pesquisador, e que viabilizam uma narrativa do vivido. As notas de campo caracterizam o viajante na medida em que são também um diário de viagem, de uma expedição. Ao fazer uso de ferramentas como diários de campo e entrevista, o pesquisador possibilita uma abertura dos agenciamentos do campo que darão corpo a escrita. A escrita etnográfica como produção coletiva é permeada pela pluralidade de vozes, pela presença de estrangeirismos e de agenciamentos, e nesse sentido é uma atividade de criação. A escrita deve fazer passar uma multiplicidade dentro da outra, pois escrevemos sempre com outros e a partir dos agenciamentos que constituem a nossa vida. Ao fazer com e não por, abrese espaço para um discurso em polifonia, onde o pesquisador mergulhado na enunciação coletiva exprime sempre um pouco das palavras de outrem. Ao se aproximar da linguagem daqueles que relata, não se pondo acima dela, a linguagem do pesquisador afasta-se de uma posição de produção de outros, talhada muitas vezes no fazer da expertise que, partindo da generalização, constrói objetos inferiores. Aproximando a linguagem do texto às linguagens cotidianas, torna-se possível subverter a produção de outros. A diversidade efetiva de presenças no campo e na escritura não é resultado de processos de interpretação e generalização, mas sim, de estranhamentos que se realizam pela viagem iniciada pelo etnógrafo e continuada por todos que participam dos agenciamentos, inclusive o leitor. O leitor como componente dos agenciamentos coletivos na pesquisa também precisa se engajar, se pôr disponível para experimentar a alteridade do campo trazido na escritura. Ao permitir que as alteridades emerjam no texto, “a pesquisa pode então trazer algo novo, elucidar em algum grau as questões que recortou, produzir pensamento e fazer o leitor pensar”59. Assim também propõe Kafka, pois “sua escrita destina-se a um leitor insubmisso, subversivo, que pratique reviravoltas sobre si, a sociedade, a ordem, o inevitável atravessar de territórios que nenhuma fronteira, em nome de um grande bem seja capaz de suportar”60.. 59. CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. P. 170. ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p.11. 60. 35.

(36) 2.6 CARTA AO PAI: o que se quer contar. Das vidas que encontrei, das vidas que busquei, nada em seus atos se faz de triunfal. Assim como Foucault (2003), em seu texto A vida dos homens infames, Quis também que essas personagens fossem elas próprias obscuras; que nada as predispusesse a um clarão qualquer, que não fossem dotadas de nenhuma dessas grandezas estabelecidas e reconhecidas – as do nascimento, da fortuna, da santidade, do heroísmo ou do gênio; que pertencessem a esses milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastro61. É a história do homem comum que pretendo contar, homem que vivencia a cidade nas cicatrizes da pele e que faz dela um lugar de possibilidade para sua existência. Levo como companheiros dessa trajetória Kafka, pois assim como Foucault: eles trazem para suas proximidades os inconformados, os que vivem no risco, os que sabem que na noite permanece a convulsão desprotegida da luz do dia, da clareza acadêmica, do julgamento do tribunal. Eles falam da vida de cada um. (...) São sujeitos pedestres, sujeitos sem fama, sujeitos que se constituem e se desmancham, metamorfoseiam-se no próprio processo histórico62. É o encontro com a vida das personagens da cidade, com seus riscos e resistência que a história aqui irá se desenrolar. Kafka se faz companheiro nesta jornada, pois vivendo uma época de devires fascistas, numa Europa sufocada por totalitarismos, “ele e suas personagens buscam desesperadamente saídas, buscam frestas, passagens, tocas, buracos, corredores, sótãos onde possam se proteger, onde possam realizar o trabalho de constituir um mundo, para si, que seja divergente daquele que não podem suportar”63.. 61. FOUCAULT, M. (2003) A vida dos homens infames. In: ______. Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p.203-222. 62 ALBUQUERQUE JUNIOR, D. M. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: Kafka-Foucault sem medos/coordenador Edson Passetti. – Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p. 20. 62 PASSETTI, E. Pequenas obediências, intensas contestações. In:__. Kafka, Foucault: sem medos/ Coord. Edson Passetti. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004, p. 25. 63 Idem, 2004, p. 25.. 36.

Referências

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