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Perspectivas intersemióticas e transmidialidade: adaptando Jane Austen no século XXI

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE LETRAS

MESTRADO EM ESTUDOS DE LITERATURA

LITERATURAS DE LÍNGUA INGLESA

LUANA MARICATO MUSMANNO

PERSPECTIVAS INTERSEMIÓTICAS

E

TRANSMIDIALIDADE:

ADAPTANDO JANE AUSTEN NO SÉCULO XXI

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LUANA MARICATO MUSMANNO

PERSPECTIVAS INTERSEMIÓTICAS

E

TRANSMIDIALIDADE:

ADAPTANDO JANE AUSTEN NO SÉCULO XXI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Em Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito para obtenção de grau de Mestre.

Orientador: Professora Doutora SONIA Regina Aguiar TORRES da Cruz

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

M987 Musmanno, Luana Maricato.

Perspectivas intersemióticas e transmidialidade: adaptando Jane Austen no século XXI / Luana Maricato Musmanno. – 2015.

180 f.

Orientadora: Sonia Regina Aguiar Torres da Cruz.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2015.

Bibliografia: f. 145-177.

1. Austen, Jane, 1775-1817. Orgulho e preconceito. 2. Adaptação para o cinema. 3. Análise do discurso narrativo. 4. Mídia. I. Cruz, Sonia Regina Aguiar Torres da. II. Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras. III. Título.

CDD 823.09

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Musmanno, Luana Maricato. Perspectivas Intersemióticas e Narrativas Transmidiáticas: adaptando Jane Austen no séc. XXI. Dissertação de Mestrado. UFF, 2015. 190 p.

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________________

Professora Doutora SONIA AGUIAR TORRES DA CRUZ – Orientadora Universidade Federal Fluminense – UFF

Titulares

Professora Doutora CARLA DE FIGUEIREDO PORTILHO Universidade Federal Fluminense – UFF

Professora Doutora ELISA LIMA ABRANTES Universidade Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ

Suplentes

Professor Doutor ANDRÉ CABRAL DE ALMEIDA CARDOSO Universidade Federal Fluminense – UFF

Professora Doutora VANESSA CIANCONI VIANNA NOGUEIRA Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ

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AGRADECIMENTOS

A Sonia Torres, minha orientadora, por ter acreditado no meu trabalho, pelo acompanhamento incansável, pelos ensinamentos, pelas sugestões e pelos inúmeros insights.

A Carla Portilho, por tudo que aprendi durante as ricas horas de estágio e durante as aulas sobre Shakespeare e o Teatro Ocidental.

A André Cardoso e Elisa Abrantes, pelas sugestões na ocasião da apresentação de meu trabalho no Seminário dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras (2013).

A Ângela Maria Dias, pelas aulas sobre o melodrama e sua influência em outras linguagens artísticas.

A Maria Elizabeth Chaves de Mello pelas discussões acerca das origens do romance ocidental, suas peculiaridades e sua importância até os dias atuais.

A meus colegas, pelas discussões, sugestões e ensinamentos. A minha família, pelo companheirismo e apoio.

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Dedico este texto a meus pais.                                

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... p. 7

1. CAPÍTULO I: Adaptar ou Perecer: Perspectivas Contemporâneas dos Estudos de Adaptação ... p. 14 Adaptar ou perecer ... p. 14 A tradução intersemiótica ... p. 16 Do romance às telas ... p. 20 O heritage film ... p. 34 O apelo nostálgico do heritage film ... p. 41 O romance clássico e o ciberespaço ... p. 44

2. CAPÍTULO II:Orgulho, Preconceito e a Hipermodernidade ... p. 47 Orgulho e preconceito: o romance ... p. 50 Orgulho e preconceito: recepção crítica ... p. 69

3. CAPÍTULO III: Universalmente Reconhecida: Adaptando Austen no séc. XXI ... p. 78 Adaptando Jane Austen ... p. 78 Orgulho e Preconceito: adaptações ... p. 98

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O foco narrativo: perspectivas teóricas ... p. 101 O foco narrativo no romance Orgulho e preconceito ... p. 104 O foco narrativo no filme Orgulho e preconceito (2005) ... p. 109 O foco narrativo em The Lizzie Bennet Diaries (2012-2013) ... p. 129

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... p. 143

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ... p. 145

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RESUMO

A fim de realizar uma análise comparativa de duas adaptações

contemporâneas do romance Orgulho e preconceito, da escritora inglesa

Jane Austen, este trabalho percorre, em um primeiro momento, a história

das teorias de adaptação, assim como a recepção crítica da obra de Austen.

Finalmente, é dada atenção à construção do foco narrativo no romance e

sua transposição para outras mídias, com ênfase nas adaptações para o

cinema e para a internet. O trabalho analisa com especial interesse as

narrativas transmidiáticas, que recentemente alcançaram grande sucesso de

público.

Palavras-chave: Orgulho e preconceito, Jane Austen, adaptação, foco

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ABSTRACT

In order to offer a comparative analysis of two contemporary adaptations of Pride and Prejudice, by English author Jane Austen, this M.A. thesis presents a brief discussion of the history of adaptation as well as of the

critical reception of Austen’s work. Special attention is paid to the

construction of the narrative point of view, both in the novel and in its transposition to other media, with emphasis on Cinema and the Internet. Transmedia narratives are investigated with keen interest, given that they have recently enjoyed great success.

Keywords: Pride and Prejudice, Jane Austen, adaptation, narrative point of

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“Adaptar ou perecer: eis a inexorável lei da natureza.” (WELLS, 1946, p. 12)1

 

                                                                                                               

1 Trad. nossa. No original: Adapt or perish has been the inexorable law of life through all these ever

intensifying fluctuations, and it becomes more and more derisive as the divergence widens between what our fathers were wont to call the order of Nature and this new harsh implacable hostility to our universe, our all.

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INTRODUÇÃO

A adaptação é parte essencial da vida. Em termos evolutivos, é a capacidade de adaptação que determina a permanência ou o desaparecimento de uma espécie. Em A origem das espécies, obra publicada em 1859, o naturalista Charles Darwin apontou a enorme importância do processo de adaptação na manutenção da existência. Analogamente, a adaptação pode desempenhar funções relevantes também em outras esferas. O intercâmbio entre formas artísticas diversas (literatura, música, pintura, cinema), por exemplo, permite infinitas possibilidades de significado e permanência. Quais são os efeitos das interações entre as artes, e que papel o processo de adaptação desempenha nessas interações?

Expressão artística por excelência do século XX, a arte cinematográfica tem no processo de adaptação um de seus pilares. Uma análise da história do cinema demonstra que, desde o início, adaptações contribuíram para seu estabelecimento e sua popularização. Entre os primeiros títulos produzidos pela Sétima Arte, é possível identificar inúmeros exemplos de adaptações de textos literários. O conto popular “Cinderela”, por exemplo, foi adaptado pelo francês Georges Méliès ainda em 1899. Méliès adaptou também romances como As viagens de

Gulliver (1902) e Robinson Crusoé (1902), entre outros. O ilusionista não foi o único a vislumbrar as possibilidades da transposição de textos literários para as

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telas do cinema. Inúmeros outros diretores apostaram em projetos de adaptação. Com o advento do cinema falado, a prática continuou em alta. É um dos propósitos deste trabalho, portanto, argumentar que adaptações são parte essencial da história do cinema.

Embora essenciais à arte cinematográfica, adaptações são frequentemente submetidas a avaliações preconceituosas. Segundo os estudiosos de adaptações Robert Stam e Alessandra Raengo (2005), um dos principais motivos para essa visão negativa foi a valorização, ainda nos primeiros anos do cinema, do conceito de fidelidade. Quem nunca ouviu (ou disse) a frase “o livro é sempre melhor que o filme”? Diversos trabalhos (cf. MCFARLANE, 1996; LEITCH 2003; ELLIOT, 2003; STAM & RAENGO 2005; HUTCHEON, 2011) contribuíram para a adoção de uma nova perspectiva nos estudos de adaptação: a perspectiva dialógica. A título de contextualização, será traçado um breve panorama da evolução dos estudos de adaptação no Capítulo I, intitulado “Adaptar ou perecer: perspectivas contemporâneas dos estudos de adaptação”.

Devido a seu enorme sucesso, realizadores continuam a apostar em adaptações, não apenas para as telas do cinema mas também para outras mídias. A série Sherlock, adaptação dos contos de Sherlock Holmes para a Londres do século XXI, é um exemplo não somente do novo fôlego que as adaptações ganharam nos últimos 30 anos mas também de como adaptações de clássicos encontram grande receptividade por parte do público contemporâneo. Desde o seu lançamento, em 2010, a série criada por Steven Moffat e Mark Gatiss já foi

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vendida para mais de 100 países e ganhou inúmeros prêmios, entre eles o British Academy of Film and Television Arts (BAFTA)de melhor série dramática. Com o enorme sucesso da série inglesa, os contos de Conan Doyle ganharam também uma versão estadunidense: a série Elementary (2012-presente), ambientada na cidade de Nova York. Nesta adaptação, Sherlock Holmes é um toxicômano em reabilitação e o Dr. Watson aparece na pele de uma mulher, a Dra. Joan Watson, que supervisiona o tratamento de Sherlock e o ajuda a evitar recaídas. A série do canal estadunidense CBS obteve enorme sucesso de público (já completou três temporadas no competitivo mercado dos EUA) e foi indicada a vários prêmios da televisão americana, incluindo um prêmio Emmy.

Entre os autores mais adaptados no mercado cinematográfico e televisivo anglo-saxão, ocupa lugar de destaque a inglesa Jane Austen, fenômeno de popularidade entre realizadores, crítica e público. O interesse por sua obra aumentou exponencialmente nas últimas décadas, no período que ficou conhecido na indústria do entretenimento como Austenmania, quando inúmeras adaptações de sua obra chegaram às telas do cinema e da TV e, mais recentemente, à World Wide Web. Quais os motivos para tamanha popularidade quase 200 anos após sua publicação? Que aspectos caracterizam essas adaptações?

Considerando os questionamentos acima, é relevante aprofundar a investigação do processo da tradução intersemiótica, procurando compreender suas particularidades e sua permanente popularidade. Como questão central, a

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análise considerará o uso do foco narrativo na obra de Austen e sua transposição para adaptações direcionadas ao cinema e à internet. Em seu artigo “The Impossibility of Filming ‘Jane Austen’: Or At Least Six Degrees of Separation”, Brian McFarlane (2006) sustenta que o narrador de Austen tem uma “voz” peculiar de difícil transposição para outros meios que não o literário. O narrador, em Austen, tem fundamental importância na construção do tom irônico que caracteriza seus romances. Através de um exímio domínio da técnica narrativa, Austen constrói romances complexos e sempre atuais. Como essa voz narrativa é transposta para as adaptações é uma das principais questões que nortearão esta pesquisa. Minha hipótese principal é a de que as adaptações mais recentes não “facilitam” a questão do foco narrativo em Austen, mas o adaptam com sucesso, de maneiras que comunicam-se diretamente com o público contemporâneo.

O corpus desta pesquisa é formado pelo romance Orgulho e preconceito, publicado pela primeira vez em 1813, e duas de suas adaptações mais recentes: o longa-metragem Orgulho e Preconceito (2005) e a série para a internet The

Lizzie Bennet Diaries (2012-2013). As razões para esse recorte específico são,

primeiramente, o objetivo de analisar exemplos mais recentes de adaptações de Austen, e, então, realizar a comparação entre duas adaptações bastante diversas direcionadas a diferentes mídias. Também anima este trabalho o interesse especial por um novo tipo de transposição: a adaptação de romances clássicos para narrativas transmidiáticas e para a linguagem extremamente atual do ciberespaço.

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A fim de compreender a evolução crítica do conceito de adaptação, inicio a pesquisa com uma revisão dos estudos da tradução intersemiótica. Após discutir a importância das adaptações na história do cinema, serão investigadas as razões para sua popularidade. A pesquisa baseia-se, majoritariamente, nas contribuições de McFarlane (1996), Leitch (2003), Stam & Raengo (2005) e Hutcheon (2011) para os estudos de adaptação e segue uma perspectiva dialógica do processo de análise e avaliação de adaptações. Todo texto traz em si um contexto. No caso das adaptações, o diálogo entre mídias é muitas vezes acompanhado de um diálogo entre culturas. Sob essa perspectiva, o estudo de adaptações revela oportunidades para a melhor compreensão do contexto cultural em que estão inseridos tanto o texto-fonte quanto a adaptação. O Capítulo I deste trabalho, intitulado “Adaptar ou Perecer: Perspectivas Contemporâneas dos Estudos de Adaptação”, apresenta uma breve revisão da história dos estudos de adaptação, iniciados formalmente a partir da obra Novels into Film, de George Bluestone (1957). Analiso várias outras contribuições à área, com particular destaque para Stam & Raengo (2005) e sua ênfase no aspecto dialógico do processo de adaptação. Investigo o gênero de filmes conhecido como heritage films, suas características principais e sua relação com as adaptações de Austen. No Capítulo II, intitulado “Orgulho, Preconceito e a Hipermodernidade”, busco recuperar a trajetória da recepção da obra de Austen junto à crítica e ao público. No Capítulo III, intitulado “Universalmente Reconhecida: Adaptando Austen no Século XXI”, analiso a enorme popularidade de adaptações baseadas em seus romances.

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Finalmente, no Capítulo IV, intitulado “Análise Comparativa de Adaptações”, realizo uma análise do uso do foco narrativo no romance Orgulho e preconceito e nas duas adaptações selecionadas como objeto de estudo. Para tal, dialogarei com o estudo de Lygia Chiappini Leite (2002) sobre o tema.

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CAPÍTULO

I

Adaptar ou Perecer:

Perspectivas Contemporâneas dos Estudos

de Adaptação

1.1. ADAPTAR OU PERECER

Em Adaptação (2002), filme de Spike Jonze com roteiro de Charlie Kaufmann, o protagonista desespera-se perante o desafio de adaptar para o cinema o livro de não-ficção The Orchid Thief (1998), da jornalista estadunidense Susan Orlean. No longa, o processo de adaptação é levado às telas em original meta-adaptação: o roteirista Charlie (interpretado pelo ator estadunidense Nicholas Cage) é o alter-ego do Charlie Kaufmann da vida real. Através de uma inteligente mise-en-abyme, Adaptação põe em evidência os desafios apresentados pelo processo de adaptação.

A importância da adaptação não se restringe à esfera da arte. Em verdade, a adaptação pode ser vista como fator determinante de sobrevivência e de manutenção da vida. Em A origem das espécies, o naturalista britânico Charles Darwin encontrou no processo de evolução a explicação para a vida na Terra como a conhecemos. Em breves palavras, a teoria da seleção natural sugere que o número de indivíduos bem-adaptados ao meio tende a aumentar, enquanto

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aqueles não-adaptados tendem a desaparecer. De uma perspectiva darwiniana, portanto, foi a capacidade de adaptação que possibilitou a permanência da vida.

No universo da arte, a adaptação também cumpre papel fundamental, construindo relações não apenas entre diferentes obras, mas também entre as mais variadas linguagens artísticas. De certo modo, toda arte é adaptativa, pois adapta um determinado conteúdo para os meios à disposição. Um soneto, por exemplo, é a adaptação da expressão de um eu lírico para uma estrutura literária com características pré-determinadas. Personagens, motivos e obras literárias são constantemente adaptados, por exemplo, para as artes plásticas, como demonstrado nas figuras abaixo.

Figura 1: a personagem Ofélia, do Hamlet de Shakespeare, retratada por Sir John Everett Millais

Figura 2: Dom Quixote (1955), de Pablo Picasso

Adaptações de obras literárias tiveram fundamental importância para a permanência dos textos ao longo dos séculos. As peças de William Shakespeare foram escritas tendo como ponto de partida fontes literárias cuja origem é, muitas

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vezes, de difícil definição. Romeu e Julieta, por exemplo, foi eternizada pelo

autor entre 1591 e 1595. Sua trama, porém, remonta à antiguidade: seu enredo baseia-se em um antigo conto traduzido em 1562 por Arthur Brooke sob o título

The Tragicall Historye of Romeus and Juliet, cujas origens remontam ao século

III (cf. HELIODORA, 2011, p. 8). Mais recentemente, adaptações para o cinema, para a TV e para novas mídias contribuíram para que as peças de Shakespeare, os contos de Conan Doyle e os romances Machado de Assis, entre outros, permanecessem no imaginário coletivo.

Inúmeros questionamentos interessantes acompanham o processo de adaptação: como se dá a transposição de uma obra de um sistema de signos a outro? Por que determinadas obras e autores são mais frequentemente adaptados? Como o público contemporâneo dialoga com adaptações de obras muitas vezes distantes no tempo e no espaço? Esses e outros questionamentos diretamente relacionados ao processo da tradução intersemiótica nortearão o presente trabalho.

1.2. A TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA

Como o nome indica, a tradução intersemiótica surgiu como conceito a partir de estudos no campo da tradução. O conceito de tradução passou por modificações ao longo dos séculos, evoluindo para significar, atualmente, um processo de interpretação e transposição. Em sua travessia de conteúdos e

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contextos, o processo de tradução é capaz de evidenciar espaços interculturais, isto é, espaços limítrofes onde elementos de um ou mais contextos culturais ganham significação. Umberto Eco (2007) enfatiza o aspecto crítico do processo de tradução:

[U]ma boa tradução é sempre uma contribuição crítica para a compreensão da obra traduzida. Uma tradução conduz sempre a um certo tipo de leitura da obra, assim como faz a crítica propriamente dita, pois, se o tradutor negociou escolhendo dirigir a atenção para determinados níveis do texto, ele automaticamente focalizou a atenção do leitor em tais níveis. Também nesse sentido, as traduções da mesma obra integram-se entre si, pois muitas vezes nos levam a ver o original sob um ponto de vista diverso. (ECO, 2007, p. 291)

Haroldo de Campos (apud PLAZA, 2010, p. 28) já afirmara: “tradução será sempre ‘recriação ou criação paralela, autônoma, porém recíproca.” Sob essa perspectiva, é possível compreender a tradução intersemiótica como extensão da atividade crítica que é parte de todo processo tradutório. É possível observar, portanto, uma aproximação dos conceitos de tradução e adaptação.

A expressão “tradução intersemiótica” foi primeiro utilizada por Roman Jakobson, em 1959, no importante ensaio “Aspectos Linguísticos da Tradução”. Jakobson define a tradução intersemiótica como aquela que ocorre de um sistema de signos a outro. A tradução intersemiótica pode consistir na adaptação musical de um poema, na transposição de uma escultura para um texto descritivo, na adaptação cinematográfica de um romance ou na transformação de uma série de TV em jogo eletrônico, entre inúmeros outros exemplos. Como no processo da tradução propriamente dita, a tradução intersemiótica pode evidenciar não somente elementos menos evidentes de um texto-fonte mas também aspectos do

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próprio contexto sociocultural em que texto-fonte e adaptação se inserem. De acordo com Julio Plaza (2010, p. 30), “a tradução intersemiótica induz, pela própria constituição sintática dos signos, à descoberta de novas realidades” .

A investigação das relações interartes não é um interesse recente. Em A

República, Platão já se ocupara dessas relações, reconhecendo uma antiga

separação entre filosofia e poesia e apontando para os potenciais perigos decorrentes do mau uso da mimese (imitação). Segundo Platão, a mimese estava duas vezes afastada do Mundo das Ideias, o mundo onde encontrava-se a Verdade segundo o filósofo grego. Portanto, quanto mais mimese, maior o risco de o poeta afastar-se desse mundo verdadeiro que Platão considerava o objetivo de toda filosofia. É necessário, pois, alertar o poeta para o caráter nocivo da má imitação. Já a Poética de Aristóteles identificou as relações entre a poesia e as outras artes, mas sob uma perspectiva bastante diferente. Para Aristóteles, a mimese era parte da natureza humana, e a catarse proporcionada por ela um elemento benéfico para a sociedade. Essas questões permanecem pertinentes quando se analisa a importância da adaptação nos dias atuais e sua relação com a reprodução de matrizes textuais estabelecidas.

Em 1766, o crítico de arte alemão Gotthold Ephraim Lessing analisou aproximações entre a poesia e as artes plásticas em seu ensaio “Laocoön”, enfatizando a necessidade de considerar cada linguagem artística segundo suas próprias características e funções. O desenvolvimento do conceito de linguagem como sistema de signos, impulsionado por Ferdinand de Saussure (2006) ao final

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do século XIX, permitiu o desenvolvimento de uma perspectiva sistêmica das diferentes linguagens artísticas. É interessante observar que as proposições de Saussure coincidem com o nascimento do cinema. A enorme influência das ideias saussurianas logo chegou aos estudos da linguagem cinematográfica nascente. O constante diálogo da arte cinematográfica com as demais formas de arte contribuiu para reavivar inúmeros questionamentos sobre as relações estabelecidas entre diferentes expressões artísticas.

Desde o seu nascimento, em fins do século XIX, o cinema estabeleceu-se como espaço de releituras. Através da película, a realidade é não somente representada, mas reinventada. Ao longo do século XX, o cinema buscou ganhar espaço equivalente àquele ocupado por outras artes como a literatura e a pintura. Durante o processo, a arte cinematográfica descobriu o poder do diálogo com outras linguagens. Por se tratar de arte nova, discussões específicas sobre a relação meio-mensagem foram relevantes na construção do pensamento crítico sobre o cinema e tornaram-se uma constante nos estudos sobre adaptação. Em 1936, considerando especialmente a fotografia e o cinema, Walter Benjamin registrou o nascimento dessa nova era artística:

Com o século XX, as técnicas de reprodução atingiram um tal nível que estão agora em condições não só de se aplicar a todas as obras de arte do passado e de modificar profundamente seus modos de influência, como também de que elas mesmas se imponham como formas originais de arte. Sob esse ponto de vista, nada é mais revelador do que a maneira pela qual duas de suas diferentes manifestações – a reprodução da obra de arte e a arte cinematográfica – atuaram sobre as formas tradicionais da arte. (BENJAMIN, 2011, p. 245)

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O estudo dos aspectos técnicos que caracterizam uma determinada linguagem artística é de grande relevância para a compreensão do processo da tradução intersemiótica. Julio Plaza (2010, p. 10) lembra que “[o] processo tradutor intersemiótico sofre a influência não somente dos procedimentos de linguagem, mas também dos suportes e meios empregados, pois que neles estão embutidos tanto a história quanto seus procedimentos”. Mais recentemente, com o advento da internet e sua extraordinária popularidade, os estudos de adaptação ganharam novo fôlego. Hoje, adaptações para o cinema competem com adaptações para o ciberespaço.

1.3. DO ROMANCE ÀS TELAS

Adaptações literárias para o cinema não são um fenômeno recente. Durante todo o primeiro século de existência da arte cinematográfica, realizadores, público e crítica demonstraram enorme interesse por adaptações. Ainda em 1899, quando a arte cinematográfica dava seus primeiros passos, o ilusionista francês Georges Méliès adaptou o conto “Cinderela”. Em 1902, Méliès dirigiu, também,

Viagem à Lua, baseado nos romances Da terra à lua (1865), de Júlio Verne, e Os primeiros homens da lua (1901), de H. G. Wells. O filme de treze minutos

revolucionou o uso do cinematógrafo para narrar histórias, pavimentando o caminho para a construção de uma linguagem que mais tarde caracterizaria a arte

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cinematográfica. Méliès continuou adaptando romances, entre eles As viagens de

Gulliver (1902), Robinson Crusoé (1903) e Vinte mil léguas submarinas (1907).

Méliès não foi o único a compreender as vantagens de se utilizar textos já consagrados como fonte para filmes. Inúmeros outros diretores realizaram adaptações para o cinema. Para citar apenas alguns exemplos de adaptações para o cinema mudo, temos Alice in Wonderland (1903), Oliver Twist (1907) e Tudo Pelo Dinheiro (adaptação de O grande Gatsby, 1926). E a prática continuou em

alta mesmo após a passagem para o cinema falado: E O Vento Levou (1939),

2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), Barry Lyndon (1975), A Lista de Schindler (1993), Forrest Gump: O Contador de Histórias (1994), O Lobo de Wall Street (2013). A adaptação também não é uma prática limitada a projetos

menores. Ben-Hur: A Tale of the Christ (1925), baseado no romance homônimo de 1880, foi o filme mais caro da era do cinema mudo. São adaptações também alguns dos filmes mais caros da história recente do cinema: os filmes da série

Harry Potter, as animações dos estúdios Disney, os filmes de super-heróis (em

alta no cinema hollywoodiano recente), entre outros.

Uma das razões para a preferência de estúdios grandes e pequenos por adaptações é seu enorme sucesso de público e crítica. Adaptações estão entre as maiores bilheterias de todos os tempos. Estão também entre os filmes recordistas das principais premiações direcionadas ao mundo da Sétima Arte. No Brasil, a franquia Tropa de Elite, baseada em livro homônimo, alcançou o primeiro lugar entre as maiores bilheterias de títulos nacionais.

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A adaptação faz parte, portanto, da história mesma do cinema. Até que ponto é possível separar o próprio processo do fazer cinematográfico do processo de adaptação? Segundo os estudiosos das relações literatura-cinema Robert Stam e Alessandra Raengo (2005, p. 45), “quase todos os filmes podem ser vistos, de certa maneira, como ‘adaptações’”2. O processo de realização de um filme se desenvolve, usualmente, a partir de um roteiro. Sob essa perspectiva, é possível afirmar que o processo de realização de qualquer roteiro é também uma experiência de adaptação. Os autores sugerem que a preferência por textos já consagrados – especialmente romances – como fonte de projetos cinematográficos pode ser explicada pelo enorme prestígio atribuído à literatura, especialmente face ao status do cinema como arte mais jovem. Estudiosos do cinema identificaram nesse prestígio a ferramenta de que precisava a arte cinematográfica para afirmar-se como arte. Realizadores viram no romance – e em peças teatrais, poemas, contos – as bases para o estabelecimento da indústria nascente e o capital cultural que traria reconhecimento à arte nova.

Em um primeiro momento, críticos, cineastas e autores acreditavam, também, que levar a literatura clássica para as massas era uma das missões do cinema. Em 1911, Stephen Bush afirmou:

É a obra-prima que convida especialmente à filmagem, e o motivo é bem claro: um épico que agradou e encantou a muitas gerações mais provavelmente resistirá ao teste da reprodução cinematográfica...Afinal, a palavra ‘clássico’ tem o seu significado. Significa a aprovação das melhores pessoas nos tempos mais iluminados. Os méritos de um assunto clássico são certos porque conhecidos e

                                                                                                               

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apreciados por comparativamente poucos homens. Cabe aos filmes torná-los conhecidos a todos.3 (BUSH apud LUPACK, 1999, p. 3)

A afirmação de Bush por certo já não encontra eco hoje, em plena pós-modernidade, quando conceitos como o de uma arte “selecionada pelas melhores pessoas” são vistos com desconfiança. O próprio conceito de clássico é de difícil definição. Em Por que ler os clássicos, Italo Calvino (2007) busca definir o que constituiria um clássico. Calvino sustenta que determinadas obras conquistaram uma permanência cultural definitiva, e que seria, portanto, pouco realista ignorar sua influência. Textos como Odisséia, Dom Quixote ou Hamlet penetraram de tal forma a cultura ocidental que mesmo um primeiro contato com essas obras acaba por tornar-se um processo de releitura. Calvino (2007, p. 11) ressalta, ainda, que “[o]s clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)”. Não se utilizará aqui, portanto, uma definição prescritiva de “clássico”, mas uma abordagem baseada na identificação de textos literários históricos que permanecem relevantes nos tempos atuais.

Durante suas primeiras décadas, o cinema era visto por muitos como uma expressão artística menor, principalmente quando comparada à literatura. No

                                                                                                               

3  Trad.  nossa.  No  original:  It is the masterpiece of the ages that especially invites filming, and the reason

for it is very plain. An epic that has pleased and charmed many generations is most likely to stand the test of cinematographic reproduction. … After all, the word ‘classic’ has some meaning. It implies the approval of the best people in the most enlightened times. The merits of a classic subject are nonetheless certain because known and appreciated by comparatively few men. It is the business of the moving picture to make them known to all.

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ensaio “The Cinema”, por exemplo, Virginia Woolf, descreveu a arte cinematográfica de forma bastante negativa:

[À] primeira vista a arte do cinema parece simples, até mesmo estúpida. Aparece o rei cumprimentando o time de futebol. Aparece o iate de Sir Thomas Lipton. Aparece Jack Horner vencendo o Grand National. O olho devora tudo instantaneamente, e o cérebro, agradavelmente estimulado, contenta-se a assistir às coisas que acontecem sem procurar pensar.4(WOOLF, 1926, p. 314)

Entretanto, para público e realizadores, o cinema e a literatura formavam uma parceria interessante. Em sua obra seminal Novels into Film, publicada pela primeira vez em 1957, George Bluestone afirma que desde o início a relação entre o cinema e a literatura fora caracterizada por estreita proximidade. O cineasta russo Sergei Eisenstein (2002) já apontara a influência dos romances de Charles Dickens na obra do estadunidense D.W. Griffith. Segundo Eisenstein (2002, p. 180), a utilização de planos paralelos na narrativa cinematográfica, que se tornaria tão comum no cinema do século XX, fora inspirada na técnica de ação paralela utilizada por Dickens. No cinema, a técnica foi utilizada pela primeira vez no filme mudo Enoch Arden, em 1911. A alternância entre Annie Lee esperando pela volta do marido e a cena do naufrágio deste foi motivo de grandes discussões entre Griffith e seus patrões. Estes acreditavam que o público teria dificuldades em compreender um enredo apresentado através de cenas alternadas. O cineasta conseguiu, por fim, convencê-los de que o público já se acostumara com essa linguagem através dos romances de Dickens, que fazia com que seus

                                                                                                               

4  Trad. nossa. No original: [A]t first sight the art of the cinema seems simple, even stupid. There is the

king shaking hands with a football team; there is Sir Thomas Lipton’s yacht; there is Jack Horner winning the Grand National. The eye licks it all up instantaneously, and the brain, agreeably titillated, settles down to watch things happening without bestirring itself to think.

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personagens ora desaparecessem de vista, ora voltassem no enredo secundário. Eisenstein lembra, ainda, que os romances de Dickens geraram, para seus contemporâneos, uma relação similar àquela gerada, mais tarde, pelo cinema: enorme popularidade inspirada pela experiência de outras perspectivas, talvez mais românticas que a vida cotidiana. Eisenstein aponta, por fim, a enorme plasticidade dos romances dickensianos, aquilo que ele chama de “qualidade ótica”: seus personagens são levemente exagerados, quase artificiais, e lembrados por suas expressões marcantes, tanto visuais quanto auditivas.

Bluestone (2003) insiste na diferenciação entre os dois meios. O autor estabelece que a meios diversos (romance e cinema) correspondem resultados diversos.

Tanto romance quanto filme são artes do tempo. Porém, enquanto o princípio formativo do romance é o tempo, o princípio formativo do filme é o espaço. (BLUESTONE, 2003, p. 61) 5

Sua maior contribuição aos estudos da relação literatura-cinema foi alertar para a inutilidade da busca por fidelidade na transposição de um romance para as telas. O autor cita alguns comentários frequentemente utilizados para referir-se a adaptações de romances para o cinema, como “o filme é fiel ao espírito do livro”; “é absurdo como massacraram o filme!”; “o filme deixa de fora passagens-chave, mas ainda é um bom filme”. Essas declarações sublinham o preconceito de que são alvo as adaptações cinematográficas. Bluestone aponta que tal preconceito

                                                                                                               

5 Trad. nossa. No original: Both novel and film are time arts, but whereas the formative principle in the

novel is time, the formative principle in the film is space.

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surge da noção errônea de que o livro é a norma, e de que a adaptação deve ser analisada segundo a perspectiva do desvio. Ele lembra, ainda, que as modificações na transposição de livro para filme são inevitáveis, pois se trata de “gêneros estéticos diferentes” (cf. BLUESTONE, 2003, p. 5). O teórico sugere que seria mais interessante analisar adaptações da perspectiva das peculiaridades de cada uma das linguagens artísticas (cinema e literatura), postas em evidência na passagem de um sistema de signos a outro.Esse movimento em direção a uma maior compreensão das peculiaridades dos meios foi fundamental para a revisão do conceito de fidelidade que até então norteara a avaliação de adaptações literárias.

Em Novel to Film: An introduction to the theory of adaptation, Brian McFarlane (1996) propôs uma nova abordagem para o processo de adaptação. O autor sustenta que a insistência no conceito de fidelidade obscurece outros aspectos relevantes do processo:

A insistência na fidelidade levou à supressão de abordagens potencialmente mais gratificantes do fenômeno da adaptação. Essa insistência tende a ignorar a ideia de adaptação como exemplo de convergência entre as artes, talvez um processo desejável – inevitável, até – em uma cultura rica. Não considera o que pode ser transferido do romance para o filme como distinto dos elementos que demandarão processos mais complexos de adaptação. Marginaliza determinantes de produção que não têm nada a ver com o romance, mas que exercem uma influência poderosa sobre o filme. Uma maior consciência dessas questões seria mais útil que os inúmeros depoimentos de como filmes “empobrecem” grandes romances.6 (MCFARLANE, 1996, p. 10)

                                                                                                               

6 Trad. nossa. No original: The insistence on fidelity has led to a suppression of potentially more

rewarding approaches to the phenomenon of adaptation. It tends to ignore the idea of adaptation as an example of convergence among the arts, perhaps a desirable – even inevitable – process in a rich culture; it fails to take into serious account what may be transferred from novel to film as distinct from what will require more complex processes of adaptation; and it marginalizes those production determinants which have nothing to do with the novel but may be powerfully influential upon the film. Awareness of such issues would be more useful than those many accounts of how films ‘reduce’ great novels.

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McFarlane (1996) sugere, então, uma abordagem intertextual para a análise de relações romance-cinema. O autor lembra que adaptações alcançarão não somente espectadores familiarizados com o texto original, mas também aqueles que dele não têm qualquer conhecimento. Segundo McFarlane (1996, p. 21), só esse fato já seria suficiente para um distanciamento da abordagem baseada na fidelidade: “Dizer que um filme é baseado em um romance é chamar a atenção para apenas um elemento – para muitas pessoas, crucial – de sua intertextualidade, mas nunca pode ser o único”7. Ele cita alguns elementos importantes para além do texto: as condições dentro da indústria do cinema, o clima social à época da produção, o efeito da escolha de determinados atores, atrizes, diretores, roteiristas, etc. para o projeto, entre outros. Lembra também que é importante, antes de proceder à análise, determinar o tipo de objeto de pesquisa: trata-se de uma adaptação direta? De um comentário ao texto original? De uma desconstrução do texto original? McFarlane (1996, p. 23) ressalta a importância de se considerar a relação entre a adaptação com seu texto-fonte: “Dada a prevalência do processo e dado que interpretações e memórias do romance-fonte são elementos fortemente determinantes na intertextualidade de um filme, há pouco valor em meramente dizer que o filme deveria ser considerado de forma autônoma”8. Essa mudança de perspectiva, em que as modificações realizadas no processo de adaptação não são desdenhadas, mas

                                                                                                               

7  Trad. nossa. No original: To say that a film is based on a novel is to draw attention to one – and, for

many people, a crucial - element of its intertextuality, but it can never be the only one.  

8 Trad. nossa. No   original:   Given the prevalence of the process and given that interpretations and

memories of the source novel are powerful determining elements in the film’s intertextuality, there is little value in merely saying that the film should stand autonomously.

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celebradas, influenciou a maior parte dos estudos atuais de adaptação. Entre as principais obras atuais dedicadas ao tema, têm particular relevância os estudos desenvolvidos por Leitch (2003), Stam & Raengo (2005) e Hutcheon (2013). Primeiramente, é importante definir um recorte que identifique elementos que caracterizam as relações entre romance-fonte e adaptações, adotando uma perspectiva palimpsêstica (cf. GENETTE, 2010), ou seja, uma perspectiva que considere adaptações em sua relação com o romance-fonte, com outras adaptações do mesmo romance e com outros textos similares.

No artigo “Twelve Fallacies in Contemporary Adaptation Theory”, Thomas Leitch (2003) identifica as principais questões levantadas pelos estudos de adaptação contemporâneos. De grande relevância para este trabalho é sua afirmação de que, assim como um romance pode servir de veículo para inúmeras adaptações, cada adaptação evoca também textos anteriores diversos daquele que se propõe adaptar (cf. LEITCH, 2003, p. 164). Toda obra dialoga com inúmeros outros textos. Uma adaptação dialoga não somente com seu texto-fonte, mas também com todas as outras adaptações do mesmo texto já produzidas, adaptações de outros romances, não-adaptações, etc. A posição de Leitch é similar à do crítico de cinema Neil Sinyard, que defende que adaptações sejam entendidas também como atividades de crítica literária, trazendo à luz aspectos relevantes do texto-fonte (cf. SINYARD apud PARRILL, 2002, p. 9). Além disso, toda obra de arte, reflete, de certa forma, sua época. Por mais “atemporal” que se proponha ser, todo texto traz um contexto. No caso das adaptações, o

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diálogo entre mídias é muitas vezes acompanhado de um diálogo intercultural. E o resultado pode ser revelador tanto no que diz respeito ao texto-fonte quanto às culturas envolvidas. Sob essa perspectiva, o estudo de adaptações ganha importância, e passa a ser decisivo para a melhor compreensão de um cinema, de uma literatura, de uma cultura. O movimento de adaptação não é um movimento de mão única, mas bi- e multidirecional, no qual “romances, poemas e teatro absorvem e adaptam materiais e tropos fílmicos como princípios temáticos e estruturantes” (cf. CORRIGAN, 2007, p. 30).9 Brian McFarlane (2007, p. 23) lembra que não somente os primeiros filmes abraçaram técnicas narrativas advindas do romance, mas também autores como James Joyce e Virginia Woolf absorveram práticas narrativas fílmicas, principalmente no que diz respeito à representação do espaço-tempo.

Embora de grande relevância para a história do cinema, a prática da adaptação é muitas vezes vista como forma menor de criação. É possível que o preconceito incorporado à cópia remonte à teoria mimética de Platão: toda a arte estaria baseada na mimese (imitação) da natureza. Para Platão, a Natureza era apenas a cópia de um Mundo Ideal. A arte seria, portanto, cópia da cópia, duas vezes afastada da “Verdade”. Se desde Platão a criação artística carrega o estigma da mimese, torna-se duplamente compreensível o preconceito sobre a criação artística que tem por base o processo de adaptação. Robert Stam & Alessandra Raengo (2005) reúnem algumas definições comumente utilizadas

                                                                                                               

9 Trad. nossa. No original: “[...] novels, poetry, and theater absorb and adapt filmic materials and tropes

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para descrever a relação da adaptação com a obra original: “parasitismo”, “hibridismo”, “traição”, “deformação”, “vulgarização”, “assassinato” – termos que guardam em si uma visão negativa do processo de adaptação. Entre os fatores que contribuem para essa visão, os autores apontam a anterioridade histórica da literatura em relação ao cinema, a valorização da palavra escrita em detrimento de outras linguagens, e o mito de que textos não-verbais são mais “fáceis”.

Stam & Raengo (2005) sublinham, portanto, que durante muito tempo os estudos de adaptação foram norteados pelo conceito de fidelidade. Quanto mais próxima do texto “original”, mais bem-sucedida era a adaptação. Novas teorias desenvolvidas no século XX questionaram ideias ligadas às relações textuais e abriram caminho para novos conceitos sobre adaptação. Os dois teóricos (2005) sugerem que as teorias sobre intertextualidade de meados do século XX contribuíram de forma decisiva para a transformação do conceito de adaptação. Graham Allen (2011) sustenta que a descrição saussuriana de linguagem como um sistema de signos relacional, ou seja, um sistema em que o valor do signo é dado por sua relação com um grupo de outros signos, pode ser compreendida como um ponto de partida para a teoria da intertextualidade. Segundo Allen, um segundo ponto de origem para o desenvolvimento do conceito de intertextualidade foi a teoria desenvolvida pelo russo Mikhail Bakhtin sobre a polifonia do romance. Bakhtin (1981) preocupava-se com os contextos inerentes não somente aos textos, mas a todos os tipos de linguagem. Para Bakhtin, o

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romance é o gênero dialógico por excelência, pois se apresenta como espaço de discursos múltiplos. Allen (2011, p. 28) afirma que é essa visão de linguagem que Julia Kristeva sublinha em seu uso do termo “intertextualidade”. O termo foi proposto por Kristeva em meados da década de 1960, em uma tentativa de combinar as teorias de Saussure e Bakhtin, e questionar o conceito de uma significação estável. Partindo dos conceitos de dialogismo de Bakhtin e de intertextualidade de Kristeva, Gérard Genette (2010) propõe o termo

transtextualidade, para significar as relações, óbvias ou veladas, entre textos.

Genette postulou cinco principais categorias de relações entre textos: intertextualidade, que Genette define como “uma relação de co-presença entre dois ou vários textos”; paratextualidade, relação formada por uma obra e seu título, subtítulo, notas, etc.; metatextualidade, ou o comentário que une um texto a outro sobre o qual ele fala; arquitextualidade, que aproxima textos por critérios taxonômicos; hipertextualidade, que Genette entende como arelação que une um texto B (hipertexto) a um texto anterior A (hipotexto), que o primeiro “transforma, modifica, elabora ou amplia” (cf. GENETTE apud STAM, 2008: 21-22). Esta última categoria influenciou os estudos contemporâneos de adaptação. Sob essa nova perspectiva, um novo conceito de adaptação foi aos poucos desenvolvido, substituindo a ideia de fidelidade pela ideia de dialogismo. Segundo Stam (2008, p. 21), “uma adaptação não é tanto a ressuscitação de uma palavra original, mas uma volta num processo dialógico em andamento. O

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dialogismo intertextual, portanto, auxilia-nos a transcender as aporias da ‘fidelidade’”.

Entre os estudiosos de adaptação no Brasil, Ismail Xavier também apontou para a necessidade de substituir a postura purista por uma postura dialógica. Xavier (2003) lembra que

[L]ivro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores nele expressos. (XAVIER, 2003, p. 62)

Linda Hutcheon (2013, p. 25) questiona: “se as adaptações são, por definição, criações tão inferiores e secundárias, por que estão assim presentes em nossa cultura e, de fato, em número cada vez maior?”. A autora sugere que parte da resposta tem a ver com a aparição constante de novas mídias e canais, o que leva ao desejo de experimentar histórias já conhecidas através de novos meios. Ela argumenta que parte do prazer da adaptação advém do processo de repetição

com variação: o ritual combinado à atração da surpresa. Stam & Raengo (2005) já haviam apontado a relevância do componente tecnológico na transformação do conceito de adaptação. Ecoando Walter Benjamin (2011), os estudiosos lembraram que as novas tecnologias, principalmente as digitais, enfraquecem noções de pureza. Entretanto, enquanto Benjamin via a reprodutibilidade como uma diminuição da qualidade artística (o que ele chama de “aura”) do objeto, para Stam & Raengo (2005) a facilidade na reprodução possibilitaria o surgimento de novas linguagens, enriquecendo o objeto artístico com novas

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interpretações. Os autores argumentam que o conceito negativo anterior cedeu lugar a visões mais favoráveis do processo de adaptação: adaptação como leitura, reescrita, crítica, tradução, transmutação, recriação, dialogização, etc. Além disso,lembram que adaptações evidenciam o princípio de que toda obra de arte é derivativa, oferecendo novas perspectivas de análise de um determinado contexto cultural: “[adaptações] tornam-se um barômetro das tendências ideológicas circulantes durante o momento de produção. Cada recriação de um romance desmascara facetas não somente do romance em questão e de seu período e cultura de origem, mas também do período e cultura em que é produzida a adaptação” (cf. STAM & RAENGO, 2005, p. 45)10. Julie Sanders (2005) afirma que adaptação e apropriação são fundamentais para a prática e o gozo da literatura. Sanders sustenta que “a inerente intertextualidade da literatura encoraja a constante e mutável produção de significado e uma rede de relações textuais sempre em expansão” (cf. SANDERS, 2005, p. 2)11. A autora identifica uma tensão entre dependência e liberação implícita à maioria das adaptações e apropriações. Ela aponta, ainda, uma dimensão política por trás de atos de adaptação e apropriação, evidenciada de maneira particular no chamado heritage

film.

                                                                                                               

10 Trad. nossa. No original: [adaptations] become a barometer of the ideological trends circulation

during the moment of production. Each recreation of a novel for the cinema unmasks facts not only of the novel and its period and culture of origin, but also of the time and culture of the adaptation.

11 Trad. nossa. No original: The inherent intertextuality of literature encourages the ongoing, evolving

production of meaning, and an ever-expanding network of textual relations.

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1.4. O HERITAGE FILM

Após um período de decadência face à competição com os blockbusters americanos, as décadas de 1980 e 1990 assistiram a um ressurgimento do cinema britânico. Um dos principais filões que contribuíram para esse ressurgimento foi o drama histórico. Filmes como Carruagens de Fogo (1981), Uma Janela Para o

Amor (1986), Razão e Sensibilidade (1996) e Shakespeare Apaixonado (1996)

permitiram ao cinema britânico oferecer algum tipo de resistência perante a força dos grandes títulos do cinema estadunidense. O enorme sucesso alcançado pelos primeiros títulos levou à demanda por novas produções do gênero e à associação do cinema britânico a filmes de época de qualidade. Andrew Higson (2003) e outros críticos classificaram essas produções segundo o termo heritage films. O termo, originalmente cunhado pelo acadêmico Charles Barr foi aplicado ao conjunto de filmes que retratavam a Inglaterra pré-Segunda Guerra Mundial produzidos durante as décadas de 1980 e 1990 (cf. VOIGTS-VIRCHOW, 2004, p. 14). Inicialmente, essas produções sofreram duras críticas por seu suposto conservadorismo, sua nostalgia por um passado fossilizado e seu aparente alinhamento ao domínio da Primeira-Ministra britânica Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro”, que promoveu, por um lado, um período de desestatização e reativação da economia da Grã-Bretanha, mas, por outro, enfrentou problemas como o aumento do desemprego e da pobreza. Voigts-Virchow (2004, p. 14) aponta que, desde meados da década de 1990, a inclusão de novas perspectivas

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(feministas, queer, pós-coloniais) aos estudos de cinema contribuiu para a expansão do conceito do drama histórico, e os filmes heritage passaram a ser vistos como espaços de pluralidade nos quais importantes questões sociais e culturais podiam ser discutidas.. Posteriormente, Higson reformulou seu conceito inicial, afirmando que o público desses filmes não subscreve, necessariamente, a mitologia conservadora de uma identidade nacional:

De um lado, filmes heritage aparentemente apresentam uma versão bastante convencional do passado nacional, uma vista de cima, conservadora, classe alta, patricarcal. De outro, esses filmes frequentemente conseguem mover grupos socialmente marginalizados da periferia para o centro da narrativa. Na forma deslocada do drama de época, portanto, o filme heritage cria um importante espaço para a encenação de ansiedades e fantasias contemporâneas de identidade nacional, sexualidade, classe e poder.12(HIGSON, 2003, pos. 496-500)

Giddings et al. (apud WHELEHAN, 2013, pos. 437-442) lembram que a nostalgia na arte não é necessariamente um fenômeno novo, e citam o revival gótico do início do séc. XIX como exemplo. Imelda Whelehan (2013) argumenta que o passado do drama histórico apresenta-se como um “passado contemporâneo”, isto é, um cenário temporalmente distante mas que reflete questões políticas, sociais, econômicas e culturais do presente. É importante, portanto, ressaltar o papel exercido pelo contexto na produção artística. Segundo Sartre, “não se escreve sem um público e sem um mito – sem um determinado público construído por circunstâncias históricas, sem um determinado mito de

                                                                                                               

12 Trad. nossa. No original: On the one hand, heritage films seem to present a very conventional version

of the national past, a view from above, conservative, upper-class, patriarchal; on the other hand, they very often seem to move marginalized social groups from the footnotes of history to the narrative centre. In the displaced form of the costume drama, the heritage film thus creates an important space for playing out contemporary anxieties and fantasies of national identity, sexuality, class, and power.

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uma literatura que depende em grande parte da demanda desse público” (cf. SARTRE apud BLUESTONE, 2003, p. 31).13

As produções do tipo heritage apresentam certos traços em comum: narrativas que se desenrolam em um passado remoto, cenários campestres, esmero na escolha de figurinos e fortes referências literárias, normalmente buscadas no cânone ocidental. Segundo Higson (2003,   pos. 606), os principais traços da estética heritage incluem uma “narrativa lenta, episódica, des-dramatizada”. Em outras palavras, uma narrativa que privilegia mais o aspecto visual e o estudo de personagens que a ação. A maior parte das produções são dramas sociais localizados no passado, com traços naturalistas, operando na esfera íntima em oposição à épica (embora haja exemplos importantes de épicos nacionalistas, como Coração Valente, Elizabeth, e Henrique V). O foco em histórias pessoais leva à centralização da trama do romance e a uma ênfase na esfera doméstica, espaço de articulação de vozes femininas: Elizabeth, Emma,

Razão e Sensibilidade, Uma Janela Para o Amor, Chá com Mussolini, Retorno a Howards End são alguns exemplos, entre outros. O uso da câmera é

especialmente importante: o movimento tende a ser fluido e lento e os planos, profundos, não apenas por um desejo de seguir os movimentos das personagens mas também para oferecer ao espectador um ângulo estético através do qual apreciar locações, cenários, figurinos e composição (cf. HIGSON, 2003, Pos. 615-618). É bastante comum encontrar composições de tableaux neste gênero de

                                                                                                               

13  Trad.   nossa.   No   original:   […] one ‘cannot write without a public and without a myth – without a

certain public which historical circumstances have made, without a certain myth of literature which depends to a great extent upon the demand of this public.  

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filme, que dão ao espectador a oportunidade de observar detalhes ao mesmo tempo em que estimulam a apreciação estética da cena. O cinema heritage é, portanto, um cinema autoconsciente, que demonstra grande preocupação com o próprio fazer estético. Higson (2003) identifica uma “aura de arte e qualidade” em torno dos heritage films, qualidade que também se traduz na escolha de atores e atrizes com reconhecida formação dramática. O autor aponta, também, o elemento de intertextualidade presente nessas escolhas de elenco: Emma Thompson, por exemplo, esteve em Henrique V (1989), George & Frederic (1991), Retorno a Howards End (1992), Vestígios do Dia (1993), Muito Barulho

por Nada (1993), Carrington – Dias de Paixão (1995), Razão e Sensibilidade

(1995), Brideshead Revisited – Desejo e Poder (2008), Educação (2009), tornando-se praticamente sinônimo do drama histórico inglês e de um cinema de qualidade.

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De acordo com Higson (2003) a maior parte dos filmes heritage privilegia uma Inglaterra branca, anglo-saxã de classe média alta. Poucos são os filmes que lidam com a questão da pobreza rural (O Inocente, O Despertar de uma Mulher

Apaixonada, Tess – Uma Lição de Vida) e são menos frequentes ainda aqueles em que as classes mais baixas assumem papeis de protagonismo – “na maioria dos casos, os empregados tendem a figurar como peças de decoração” (cf. HIGSON, 2003, pos. 472) –, sublinhando os privilégios das classes altas:

[A] maioria dos dramas de época citados parecem fascinados com a propriedade privada, a cultura e os valores de uma fração bastante limitada da população: aqueles que herdaram ou acumularam riqueza e capital cultural, e que encontravam-se próximos aos que detinham o poder politico. O passado nacional e a identidade nacional emergem desses filmes bastante ligados às classes altas, enquanto a nação é reduzida às paisagens pastorais do sul da Inglaterra, raramente manchada pela modernidade da urbanização ou da industrialização.14(HIGSON, 2003, pos. 472-475)

O teórico inglês afirma que “esses filmes operam como embaixadores culturais, promovendo imagens do que significa ser inglês” (cf. HIGSON, 2003, pos. 146)15. Entretanto, considerando o mercado atual, ele questiona se ainda faz sentido falar em um filme “inglês” ou “britânico”, já que muitos esses filmes são, em geral, co-produções envolvendo investidores e/ou profissionais de diferentes países. Várias das adaptações heritage de Austen, por exemplo, não foram realizadas por diretores britânicos: Razão e Sensibilidade (1995), Emma (1996),

                                                                                                               

14 Trad. nossa. No original: Despite the caveats, then, most of the costume dramas cited seem fascinated

by the private property, the culture, and the values of a very limited class fraction in each period depicted, those with inherited or accumulated wealth and cultural capital, and in close proximity to those with political power. The national past and national identity emerge in these films as very much bound to the upper and upper middle classes, while the nation itself is often reduced to the soft pastoral landscape of southern England, rarely tainted by the modernity of urbanization or industrialization

15 Trad. nossa. No original: […] these films operate as cultural ambassadors, promoting certain images

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Persuasão (1995), Palácio das Ilusões (1999). Além disso, esses filmes

“ingleses” não são direcionados apenas ao mercado interno mas também ao mercado internacional. Higson (2003, pos. 148) sugere que se constrói, assim, uma “mitologia internacional”, vendida através de um produto refinado e associado ao cinema de arte.

Certos dramas de época do período parecem articular uma celebração nostálgica e conservadora dos valores e modos de vida das classes privilegiadas e, ao fazê-lo, uma Inglaterra que não mais existe parece ser reinventada como algo a ser recordado e desejado.16 . (HIGSON, 2003, pos. 246-248)

O crítico inglês afirma também que a popularidade dos filmes de época ganhou impulso a partir de dois projetos bem-sucedidos: Brideshead Revisited, minissérie de 1981 para a TV adaptada do romance de Evelyn Waugh, e

Carruagens de Fogo, longa para o cinema do mesmo ano. O sucesso de ambos

estabeleceu a demanda por dramas de época ingleses, e o filão permanece em alta desde então. É importante ressaltar, portanto, a influência dos dramas históricos feitos para a TV na formação do fenômeno heritage.

Apesar de seu grande sucesso junto ao público em geral, é possível identificar um público específico do heritage film. Higson argumenta que o público típico das produções do gênero é mais familiarizado com o cinema de arte e com produções visualmente refinadas do que o público em geral. O autor afirma, ainda, que este público é majoritariamente feminino, o que se reflete nos

                                                                                                               

16 Trad. nossa. No original: […] certain English costume dramas of the period seemed to articulate a

nostalgic and conservative celebration of the values and lifestyles of the privileged classes, and how in doing so an England that no longer existed seemed to have been reinvented as something fondly remembered and desirable.

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temas usualmente abordados nas produções. Além disso, as produções costumam ter forte participação feminina, da escolhas dos textos às equipes de produção: direção, roteiro, elenco, figurinos, cenários, etc. Entretanto, embora muitas produções sejam voltadas para o público feminino, Higson (2003) lembra que um grande número de produções focam em uma temática homossocial (Carruagens

de Fogo, O Declínio dos Anos Dourados, Muito Barulho Por Nada) ou até

mesmo homossexual (Memórias de Um Espião, Carrington – Dias de Paixão e

Wilde – O Primeiro Homem Moderno).

Higson (2003, pos. 692) argumenta que houve uma evolução dentro do gênero do drama histórico inglês: à medida que as convenções do gênero tornavam-se mais conhecidas do público, os realizadores sentiam-se mais livres para inovar, deixando momentaneamente de lado o fetiche pela reconstrução de época para direcionar as produções à sensibilidade contemporânea. A contribuição de Claire Monk (2012) foi essencial para a expansão do conceito do

heritage film. Ela argumenta que a categoria heritage não é homogênea como

seus primeiros críticos afirmavam. A autora defende que, no início da década de 1990, surge um novo tipo de filme heritage, ao qual ela dá o nome de

pós-heritage. Segundo Monk, nesse momento desenvolvem-se novas formas de

dialogar com o passado dentro do heritage film, principalmente através da abordagem de temas mais controversos como, por exemplo, a homossexualidade. Monk e outros estudiosos do tema têm contribuído para expandir o conceito do

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heritage cinema como uma esfera de discussão de questões relevantes e

inclusivas.

1.5. O APELO NOSTÁLGICO DO HERITAGE FILM

Escrevendo sobre a sociedade ocidental contemporânea, o sociólogo francês Jean Baudrillard (1991) denunciou o fenômeno do simulacro, isto é, a substituição do real por sua simulação. Segundo Baudrillard, na sociedade pós-moderna o signo ganhou prioridade sobre o significado, obliterando o real. Baudrillard usa como exemplo os parques temáticos da Disneylândia, em que um simulacro de realidade (ou de algo que nem mesmo existiu) é oferecido como realidade. Se buscarmos exemplos ainda mais atuais desse fenômeno, podemos identificar a progressão do simulacro na enorme popularidade dos autorretratos (selfies) publicados online. Estes retratos, cuidadosamente compostos, contam uma narrativa à escolha do usuário: sucesso, felicidade, sensualidade, prosperidade, erudição, etc. Tal narrativa não necessariamente corresponde à verdade, e nem é esta sua função. Sua função é servir como substituto à verdade. Na era digital, a realidade não tem mais a mesma importância que anteriormente; em seu lugar, tem-se um simulacro de realidade, cuidadosamente construído fragmento a fragmento, e que, em um certo momento, assume o lugar de realidade. Baudrillard sustenta que, em um mundo de simulação, a nostalgia adquire renovada importância à medida que criamos signos para simular aquilo

Referências

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