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Após um período de decadência face à competição com os blockbusters americanos, as décadas de 1980 e 1990 assistiram a um ressurgimento do cinema britânico. Um dos principais filões que contribuíram para esse ressurgimento foi o drama histórico. Filmes como Carruagens de Fogo (1981), Uma Janela Para o

Amor (1986), Razão e Sensibilidade (1996) e Shakespeare Apaixonado (1996)

permitiram ao cinema britânico oferecer algum tipo de resistência perante a força dos grandes títulos do cinema estadunidense. O enorme sucesso alcançado pelos primeiros títulos levou à demanda por novas produções do gênero e à associação do cinema britânico a filmes de época de qualidade. Andrew Higson (2003) e outros críticos classificaram essas produções segundo o termo heritage films. O termo, originalmente cunhado pelo acadêmico Charles Barr foi aplicado ao conjunto de filmes que retratavam a Inglaterra pré-Segunda Guerra Mundial produzidos durante as décadas de 1980 e 1990 (cf. VOIGTS-VIRCHOW, 2004, p. 14). Inicialmente, essas produções sofreram duras críticas por seu suposto conservadorismo, sua nostalgia por um passado fossilizado e seu aparente alinhamento ao domínio da Primeira-Ministra britânica Margaret Thatcher, a “Dama de Ferro”, que promoveu, por um lado, um período de desestatização e reativação da economia da Grã-Bretanha, mas, por outro, enfrentou problemas como o aumento do desemprego e da pobreza. Voigts-Virchow (2004, p. 14) aponta que, desde meados da década de 1990, a inclusão de novas perspectivas

(feministas, queer, pós-coloniais) aos estudos de cinema contribuiu para a expansão do conceito do drama histórico, e os filmes heritage passaram a ser vistos como espaços de pluralidade nos quais importantes questões sociais e culturais podiam ser discutidas.. Posteriormente, Higson reformulou seu conceito inicial, afirmando que o público desses filmes não subscreve, necessariamente, a mitologia conservadora de uma identidade nacional:

De um lado, filmes heritage aparentemente apresentam uma versão bastante convencional do passado nacional, uma vista de cima, conservadora, classe alta, patricarcal. De outro, esses filmes frequentemente conseguem mover grupos socialmente marginalizados da periferia para o centro da narrativa. Na forma deslocada do drama de época, portanto, o filme heritage cria um importante espaço para a encenação de ansiedades e fantasias contemporâneas de identidade nacional, sexualidade, classe e poder.12(HIGSON, 2003, pos. 496-500)

Giddings et al. (apud WHELEHAN, 2013, pos. 437-442) lembram que a nostalgia na arte não é necessariamente um fenômeno novo, e citam o revival gótico do início do séc. XIX como exemplo. Imelda Whelehan (2013) argumenta que o passado do drama histórico apresenta-se como um “passado contemporâneo”, isto é, um cenário temporalmente distante mas que reflete questões políticas, sociais, econômicas e culturais do presente. É importante, portanto, ressaltar o papel exercido pelo contexto na produção artística. Segundo Sartre, “não se escreve sem um público e sem um mito – sem um determinado público construído por circunstâncias históricas, sem um determinado mito de

                                                                                                               

12 Trad. nossa. No original: On the one hand, heritage films seem to present a very conventional version

of the national past, a view from above, conservative, upper-class, patriarchal; on the other hand, they very often seem to move marginalized social groups from the footnotes of history to the narrative centre. In the displaced form of the costume drama, the heritage film thus creates an important space for playing out contemporary anxieties and fantasies of national identity, sexuality, class, and power.

uma literatura que depende em grande parte da demanda desse público” (cf. SARTRE apud BLUESTONE, 2003, p. 31).13

As produções do tipo heritage apresentam certos traços em comum: narrativas que se desenrolam em um passado remoto, cenários campestres, esmero na escolha de figurinos e fortes referências literárias, normalmente buscadas no cânone ocidental. Segundo Higson (2003,   pos. 606), os principais traços da estética heritage incluem uma “narrativa lenta, episódica, des- dramatizada”. Em outras palavras, uma narrativa que privilegia mais o aspecto visual e o estudo de personagens que a ação. A maior parte das produções são dramas sociais localizados no passado, com traços naturalistas, operando na esfera íntima em oposição à épica (embora haja exemplos importantes de épicos nacionalistas, como Coração Valente, Elizabeth, e Henrique V). O foco em histórias pessoais leva à centralização da trama do romance e a uma ênfase na esfera doméstica, espaço de articulação de vozes femininas: Elizabeth, Emma,

Razão e Sensibilidade, Uma Janela Para o Amor, Chá com Mussolini, Retorno a Howards End são alguns exemplos, entre outros. O uso da câmera é

especialmente importante: o movimento tende a ser fluido e lento e os planos, profundos, não apenas por um desejo de seguir os movimentos das personagens mas também para oferecer ao espectador um ângulo estético através do qual apreciar locações, cenários, figurinos e composição (cf. HIGSON, 2003, Pos. 615-618). É bastante comum encontrar composições de tableaux neste gênero de

                                                                                                               

13  Trad.   nossa.   No   original:   […] one ‘cannot write without a public and without a myth – without a

certain public which historical circumstances have made, without a certain myth of literature which depends to a great extent upon the demand of this public.  

filme, que dão ao espectador a oportunidade de observar detalhes ao mesmo tempo em que estimulam a apreciação estética da cena. O cinema heritage é, portanto, um cinema autoconsciente, que demonstra grande preocupação com o próprio fazer estético. Higson (2003) identifica uma “aura de arte e qualidade” em torno dos heritage films, qualidade que também se traduz na escolha de atores e atrizes com reconhecida formação dramática. O autor aponta, também, o elemento de intertextualidade presente nessas escolhas de elenco: Emma Thompson, por exemplo, esteve em Henrique V (1989), George & Frederic (1991), Retorno a Howards End (1992), Vestígios do Dia (1993), Muito Barulho

por Nada (1993), Carrington – Dias de Paixão (1995), Razão e Sensibilidade

(1995), Brideshead Revisited – Desejo e Poder (2008), Educação (2009), tornando-se praticamente sinônimo do drama histórico inglês e de um cinema de qualidade.

De acordo com Higson (2003) a maior parte dos filmes heritage privilegia uma Inglaterra branca, anglo-saxã de classe média alta. Poucos são os filmes que lidam com a questão da pobreza rural (O Inocente, O Despertar de uma Mulher

Apaixonada, Tess – Uma Lição de Vida) e são menos frequentes ainda aqueles em que as classes mais baixas assumem papeis de protagonismo – “na maioria dos casos, os empregados tendem a figurar como peças de decoração” (cf. HIGSON, 2003, pos. 472) –, sublinhando os privilégios das classes altas:

[A] maioria dos dramas de época citados parecem fascinados com a propriedade privada, a cultura e os valores de uma fração bastante limitada da população: aqueles que herdaram ou acumularam riqueza e capital cultural, e que encontravam-se próximos aos que detinham o poder politico. O passado nacional e a identidade nacional emergem desses filmes bastante ligados às classes altas, enquanto a nação é reduzida às paisagens pastorais do sul da Inglaterra, raramente manchada pela modernidade da urbanização ou da industrialização.14(HIGSON, 2003, pos. 472-475)

O teórico inglês afirma que “esses filmes operam como embaixadores culturais, promovendo imagens do que significa ser inglês” (cf. HIGSON, 2003, pos. 146)15. Entretanto, considerando o mercado atual, ele questiona se ainda faz sentido falar em um filme “inglês” ou “britânico”, já que muitos esses filmes são, em geral, co-produções envolvendo investidores e/ou profissionais de diferentes países. Várias das adaptações heritage de Austen, por exemplo, não foram realizadas por diretores britânicos: Razão e Sensibilidade (1995), Emma (1996),

                                                                                                               

14 Trad. nossa. No original: Despite the caveats, then, most of the costume dramas cited seem fascinated

by the private property, the culture, and the values of a very limited class fraction in each period depicted, those with inherited or accumulated wealth and cultural capital, and in close proximity to those with political power. The national past and national identity emerge in these films as very much bound to the upper and upper middle classes, while the nation itself is often reduced to the soft pastoral landscape of southern England, rarely tainted by the modernity of urbanization or industrialization

15 Trad. nossa. No original: […] these films operate as cultural ambassadors, promoting certain images

Persuasão (1995), Palácio das Ilusões (1999). Além disso, esses filmes

“ingleses” não são direcionados apenas ao mercado interno mas também ao mercado internacional. Higson (2003, pos. 148) sugere que se constrói, assim, uma “mitologia internacional”, vendida através de um produto refinado e associado ao cinema de arte.

Certos dramas de época do período parecem articular uma celebração nostálgica e conservadora dos valores e modos de vida das classes privilegiadas e, ao fazê-lo, uma Inglaterra que não mais existe parece ser reinventada como algo a ser recordado e desejado.16 . (HIGSON, 2003, pos. 246-248)

O crítico inglês afirma também que a popularidade dos filmes de época ganhou impulso a partir de dois projetos bem-sucedidos: Brideshead Revisited, minissérie de 1981 para a TV adaptada do romance de Evelyn Waugh, e

Carruagens de Fogo, longa para o cinema do mesmo ano. O sucesso de ambos

estabeleceu a demanda por dramas de época ingleses, e o filão permanece em alta desde então. É importante ressaltar, portanto, a influência dos dramas históricos feitos para a TV na formação do fenômeno heritage.

Apesar de seu grande sucesso junto ao público em geral, é possível identificar um público específico do heritage film. Higson argumenta que o público típico das produções do gênero é mais familiarizado com o cinema de arte e com produções visualmente refinadas do que o público em geral. O autor afirma, ainda, que este público é majoritariamente feminino, o que se reflete nos

                                                                                                               

16 Trad. nossa. No original: […] certain English costume dramas of the period seemed to articulate a

nostalgic and conservative celebration of the values and lifestyles of the privileged classes, and how in doing so an England that no longer existed seemed to have been reinvented as something fondly remembered and desirable.

temas usualmente abordados nas produções. Além disso, as produções costumam ter forte participação feminina, da escolhas dos textos às equipes de produção: direção, roteiro, elenco, figurinos, cenários, etc. Entretanto, embora muitas produções sejam voltadas para o público feminino, Higson (2003) lembra que um grande número de produções focam em uma temática homossocial (Carruagens

de Fogo, O Declínio dos Anos Dourados, Muito Barulho Por Nada) ou até

mesmo homossexual (Memórias de Um Espião, Carrington – Dias de Paixão e

Wilde – O Primeiro Homem Moderno).

Higson (2003, pos. 692) argumenta que houve uma evolução dentro do gênero do drama histórico inglês: à medida que as convenções do gênero tornavam-se mais conhecidas do público, os realizadores sentiam-se mais livres para inovar, deixando momentaneamente de lado o fetiche pela reconstrução de época para direcionar as produções à sensibilidade contemporânea. A contribuição de Claire Monk (2012) foi essencial para a expansão do conceito do

heritage film. Ela argumenta que a categoria heritage não é homogênea como

seus primeiros críticos afirmavam. A autora defende que, no início da década de 1990, surge um novo tipo de filme heritage, ao qual ela dá o nome de pós-

heritage. Segundo Monk, nesse momento desenvolvem-se novas formas de

dialogar com o passado dentro do heritage film, principalmente através da abordagem de temas mais controversos como, por exemplo, a homossexualidade. Monk e outros estudiosos do tema têm contribuído para expandir o conceito do

heritage cinema como uma esfera de discussão de questões relevantes e

inclusivas.