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Orgulho, Preconceito e a Hipermodernidade

2.2. ORGULHO E PRECONCEITO: RECEPÇÃO CRÍTICA

Amanda Collins (2001) afirma que, mesmo antes da popularização da obra de Austen, as interpretações de seus romances já eram motivo de disputas. Jane Aiken Hodge (2014) observa que há dois campos principais entre os estudiosos da obra da autora: um lado a vê como a “Tia Jane”, dama virtuosa e feminina que escrevia romances leves e com finais felizes; o outro a vê como a Srta. Jane Austen, mulher inteligente e impiedosa cujos romances revelavam uma compreensão arguta do mundo a sua volta, da forma como a sociedade opera, e das restrições impostas às mulheres nessa sociedade. Sua obra foi por vezes alinhada a valores conservadores, por vezes progressistas. A preocupação com protagonistas aristocratas cujas trajetórias culminam em casamentos heterossexuais levou muitos críticos a classificar Austen como uma autora conservadora simpatizante do patriarcado e das divisões de classe. Claudia Johnson (1988) considera, entretanto, a aceitação por Austen dos mitos

                                                                                                               

31 Trad. nossa. No original: The use of Austen’s name knows no generic boundaries. Who else is cited

with equal approval by feminists and misogynists, can be linked to nineteeth-century anarchism, twenty- first-century terrorism, and the National Trust, and forms part of the inspiration behind works as diverse as Eugene Onegin and Bridget Jones’s Diary?

conservadores como uma forma de burlar o sistema, avançando questões ligadas ao universo feminino ao mesmo tempo em que mantinha uma aparência de autora “bem-comportada” e afeita à moral da época.

Claudia Johnson (2012) observa que os primeiros vitorianos, em geral, não eram grandes admiradores da obra de Austen, associando-a um passado nostálgico e distante. É famosa a declaração da autora Charlotte Brontë, em resposta à recomendação da obra de Austen por um amigo:

Por que você gosta tanto da Srta. Austen? Não consigo entender. O que o levou a dizer que preferia ter escrito Orgulho e preconceito ou Tom Jones a qualquer um dos romances Waverly? Não tinha visto Orgulho e preconceito até ler aquela frase sua, e então tomei o livro para estudá-lo. E o que encontrei? Um retrato daguerreotipado de um rosto comum; um jardim cuidadosamente cultivado com bordas e flores delicadas, mas nenhum vislumbre de uma fisionomia vívida, nem campos abertos, ar puro, colinas azuis ou belos riachos. Não gostaria de modo algum de conviver com suas damas e cavalheiros, em suas casas elegantes mas confinadas32.

Entretanto, ao mesmo tempo em que era motivo de críticas por parte de alguns autores, despertava grande admiração em outros. Em 1926, após reler pela terceira vez Orgulho e preconceito, Sir Walter Scott declarou:

Aquela jovem tinha um talento para descrever os sentimentos de personagens comuns que é o mais maravilhoso que já encontrei. Posso reproduzir grandes comoções como qualquer um. Mas o toque refinado que torna interessantes coisas e personagens comuns pela verdade da descrição e dos sentimentos me foi negado.

                                                                                                               

32 Tradução nossa. No original: Why do you like Miss Austen so very much? I ampuzzled on that point.

What induced you to say you would rather have written “Pride and Prejudice” or “Tom Jones” than any of the Waverly novels? I had not seen “Pride and Prejudice” till I read that sentence of yours, and then I got the book and studied it. And what did I find? An accurate daguerretyped portrait of a common-lace face; a carefully-fenced, highly cultivated garden with near borders and delicate flowers – but no glace of a bright vivid physiognomy – no open country – no fresh air – no blue hill – no bonny beck. I should hardly like to live with her ladies and gentlemen in their elegante but confined houses. Ver BRONTË,

Que pena que tão talentosa criatura tenha falecido tão cedo!33 (SCOTT apud FOWLER, 2004, p. 261)

Em fins do séc. XIX, a popularidade do estilo vitoriano entrou em declínio. Novos experimentos literários levaram à valorização de estilos originais. Os escritores do chamado Bloomsbury Group34, em particular, eram simpatizantes da visão de mundo setecentista e do humor, contrição, razão e ceticismo que a caracterizavam. Combinados à uma valorização das relações interpessoais, esses fatores contribuíram para um retorno da popularidade de Austen. O contexto histórico, social e cultural das primeiras décadas do século XX levou, também, a mudanças na forma de interpretar a obra da autora. As guerras e revoluções que marcaram o período reavivaram a busca por um passado mais inocente. Austen foi novamente associada a um mundo de calma e tranquilidade e sua obra utilizada com uso terapêutico para soldados que sofriam de estresse pós- traumático (cf. TODD, 2014, pos. 3783-3788).

Lentamente, a imagem nostálgica e pacífica começa a ser transformada por novos estudos críticos. O trauma da guerra é gradualmente transposto para a academia e ganha espaço a leitura da obra de Austen como campo de batalha.

Os romances de Austen são principalmente sobre os perigos de viver em um lugar confinado, estreito, contundente onde a experiência se desenvolve sob a égide da provação, onde jovens protagonistas vulneráveis e deferentes com nenhuma                                                                                                                

33 Tradução nossa. No original: That Young lady had a talento for describing the involvement and feelings

and characters of ordinary life which is to me the most wonderful I ever met with. The Big Bow-wow strain I can do myself like any now going, but the exquisite touch which renders ordinary commonplace things and  characters interesting from the truth of the description and the sentiment is denied to me. What a pity such a gifted creature died so early!

34 O Bloomsbury Group foi um importante grupo de escritores, intelectuais, filósofos e artistas que se reuniam no bairro de Bloomsbury, em Londres. Seus membros mais conhecidos incluem Virginia Woolf, John Maynard Keynes e E. M. Forster.

autonomia são expostos a adversidades tão brutais que são impossíveis de ser experimentadas, muito menos enfrentadas de maneira direta. No mundo de Austen, este espaço confinado é a comunidade; durante a Primeira Guerra Mundial, é chamado de trincheira. Mas, em ambos, a boa conduta durante “instantes épicos” de dificuldade é valorizada35. (JOHNSON, 2012, Pos. 1940-1948)

No conto “The Janeites36” (1926), o escritor Rudyard Kipling retrata o fenômeno dos adoradores da autora. No conto de Kipling, soldados nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial utilizam a obra de Austen como forma de união frente às atrocidades que se viam condenados a experimentar. Segundo Janet Todd (2014), foi o escritor inglês Reginald Farrer quem inaugurou esta tendência sombria na crítica austeniana, considerando-a uma autora áspera e mordaz. Farrer viu nessa mordacidade uma forma de resistência perante as forças que constituíam seu universo sócio-cultural. Essa veia sombria foi retomada mais tarde pelo psicólogo D. W. Harding. Em 1940, Harding publicou o ensaio “Regulated Hatred: An Aspect of the Work of Jane Austen”, de forte influência freudiana, em que se debruçou sobre aspectos geralmente ignorados da obra da autora, como as relações conturbadas entre mães e filhas, apontando a hostilidade que a caracterizava e que se perdia em seus mais ardorosos admiradores. A edição de R.W. Chapman das cartas de Austen (1932) e de sua juvenilia (1932) também contribuiu para jogar luz sobre novas facetas da autora. Essa Austen

                                                                                                               

35 Tradução nossa. No original: Austen’s novels are about nothing if not the perils of living in a confined,

narrow, profoundly bruising place where experience unfolds under the aegis of ordeal, where vulnerable, deferent young protagonists with next to no autonomy are exposed to adversities so brutal that they cannot be essayed, much less assailed directly. In Austen’s world, that narrow place is called a neighborhood; during World War I it is called a trench, but in both, a premium is placed on behaving well during “epical instants” of duress.

36 O termo “Janeites” foi cunhado pelo crítico literário George Salisbury em 1894, em uma introdução a

Orgulho e preconceito, para identificar leitores que apreciavam e compreendiam o gênio de Austen. A

expressão já foi utilizada tanto como termo de elogio quanto de abuso. Ver LYNCH, Janeites: Austen’s

mais sombria é a base da Austen atual e de seu apelo junto ao desencantado público pós-moderno. Em meados do século, F.R. Leavis contribuiu para a elevação de Austen ao status de escritora canônica com sua obra The Great

Tradition (1948), na qual define o cânone do romance inglês. Segundo Leavis

(apud DEMORY, 2010, p. 125-126), os romances de Austen são “formalmente perfeitos” e sua perfeição formal é baseada em um “intenso interesse moral” na vida.

A partir da década de 1970, a ascensão de teorias marxistas, feministas, novohistoricistas e pós-coloniais reabilitaram Austen como heroína subversiva (cf. VICKERY, 2011). Publicada em 1975, a obra Jane Austen and the War of

Ideas, de Marilyn Butler, teve papel pioneiro em aprofundar a interpretação dos

romances da autora à luz das novas teorias que transformavam a academia. Mais recentemente, a grande quantidade de novas adaptações para o cinema influenciou os estudos sobre Austen, animando-os com “um senso fascinante de releitura, revisão e reencontro com o familiar em novos e poderosos modos”37 (cf. JOHNSON & TUITE, 2011, pos. 267-271).

O que o revival cinematográfico de Austen conseguiu em termos espetaculares foi atrair atenção para a mediação transformadora que ocorre em qualquer ato de leitura, particularmente com uma autora que é objeto de culturas de leitura tão diferentes como Austen. ‘Versões’ cinematográficas tornam manifesta a multiplicidade de versões textuais, e desafiam a autoridade de qualquer versão única, seja a intenção da autora, do editor, ou crítica38(JOHNSON & TUITE, 2011, Pos. 267-271)

                                                                                                               

37 Trad. nossa. No original: Much Austenian appreciation and criticism is thus animated by a fascinating

sense of rereading, reviewing and reencountering the known but in powerful new ways.

38 Trad. nossa. No original: What the cinematic revival of Austen has achieved in particularly spectacular

terms has been to draw attention to the transformative mediation which occurs with any act of reading, particularly with an author who is the subject of such profoundly intense and diverse reading cultures as Austen. Cinematic ‘versions’ make manifest the multiplicity of textual versions, and thereby challenge the

Um aspecto curioso que caracteriza a recepção da obra de Jane Austen é a conjugação das esferas popular e erudita. As duas tradições de Austen parecem por vezes antitéticas entre si. Mas, segundo Demory (2010), há evidências de que estes dois campos estão, senão convergindo, pelo menos encontrando um terreno comum. Judy Simons (2011) lembra que Austen amadureceu como escritora durante um período em que questões sobre hierarquia cultural eram articuladas. O período entre os séculos XVII e XVIII viu um aumento considerável no número de publicações e o nascimento de novos gêneros literários. Simons (2011, pos. 7571-7574) identifica um paralelo entre a defesa atual de novos gêneros como as graphic novels, a fotografia e as séries para a web, e a defesa do romance nascente a que eram invariavelmente compelidos os autores do século XVIII. Em A abadia de Northanger Abbey, Austen faz uma defesa apaixonada de romances, principalmente aqueles de autoria feminina, que sofriam duplamente sob o preconceito dirigido contra uma arte que ainda buscava estabelecer-se.

Sim, romances; pois não adotarei este mau e insensato costume, tão comum em escritores de romances, de degradar pelas suas desprezíveis censuras os próprios trabalhos, aos números daqueles aos quais eles mesmos se unem – juntando-se com seus maiores inimigos para conferir os mais duros epítetos a tais trabalhos, e quase nunca permitindo que sejam lidos pela sua própria heroína, a qual, se acidentalmente pegasse um romance, certamente fecharia suas páginas insípidas com desgosto. Ah! Se a heroína de um romance não for protegida pela heroína de outro, de quem poderia ela esperar proteção e consideração? Não posso aprovar isso. Deixemos aos críticos que abusem de tais efusões de imaginação o quanto queiram, e que falem sobre cada novo romance nas rotas melodias do lixo com o qual a imprensa agora se lamenta. Não nos abandonemos, somos um corpo ferido. Embora nossas produções tenham propiciado prazer mais amplo e verdadeiro do que aqueles de qualquer corporação literária no mundo, nenhum tipo de                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

authority of any one version of the work, and of the author’s intention, editor’s version, or interpretive version of the work, or the autobiographical versions of the self and other that Austen produces.

composição tem sido tão desprezado. Do orgulho, da ignorância ou da moda, nossos inimigos são tantos quanto os nossos leitores. E embora as habilidades do nongentésimo condensador da história da Inglaterra, ou do homem que coleta e publica em um volume algumas dúzuas de linhas de Milton, Pope e Prior, com um jornal do “Spectator”, e um capítulo de Sterne, sejam elogiadas por mil penas, parece haver um desejo quase geral em desprezar a capacidade e em desvalorizar o trabalho do romancista, e diminuir os trabalhos que têm apenas um gênio, espírito e gosto para recomendá-los. “Não sou leitor de romances, raramento leio romances. Não imagine que leio romances com frequência. Isso é muito bom para um romance”. Tal é o dito comum. “E o que está lendo, srta. ...?” “Oh! É apenas um romance!”, responde a jovem com falsa indiferença, ou vergonha momentânea. “É apenas Cecilia, ou Camilla, ou Belinda”. Ou, em resumo, apenas algum trabalho no qual as maiores forças da mente são exibidas; um trabalho no qual o mais completo conhecimento da natureza humana, a mais feliz delineação de suas variedades, as mais vívidas efusões de gênio e humor são levadas ao mundo na mais bem escolhida linguagem.” (AUSTEN, 2009, p. 35-37)

Austen gostava de experimentar com novos gêneros, como bem demonstra sua juvenilia, que reúne peças de teatro, sátiras a livros de história, e romances epistolares. Austen dialogava, também, com outras linguagens artísticas. Em

Mansfield Park, por exemplo, o teatro e suas possibilidades formam o pano de

fundo para o desenrolar da trama. Judy Simons aponta para a ironia das acusações que a obra de Austen e seus derivados sofrem hoje:

É irônico que a obra de Austen, com sua defesa desavergonhada da cultura popular, tenha se tornado a província de um público leitor seleto e refinado. É igualmente incongruente que no início do séc. XXI uma escritora tão canônica tenha sido reivindicada por um público popular39. (SIMONS, 2011, Pos. 7588)

Segundo Brideocake (2011, pos. 7354-7355), há múltiplas Austens hoje. Claudia Johnson resume a presença multifacetada da autora nos dias atuais:

Sem dúvida, “Jane Austen” é mais presente hoje que em qualquer momento anterior. É uma figura lendária, e seus cultos não mostram sinais de dispersão. Sua                                                                                                                

39  Trad. nossa. No original: It is ironic that Austen’s work, with its unashamed defense of popular culture,

should have become the province of a select and refined readership. It is equally incongruous that at the start of the twenty-first century such a canonical writer has become reclaimed by a popular audience.

presença vai além do meio literário. É encontrada: em deslumbrantes filmes de Hollywood, Grã-Bretanha e Bollywood, muitas vezes com a presença de nossas estrelas favoritas; em adaptações para a TV historicamente autênticas; em outras criações inspiradas em Austen. Jane Austen sempre dá uma boa história ou editorial. Em jornais ou na internet, há sempre algum bafafá. Para o bem ou para o mal, fãs de Trollope, Fielding, Dickens ou até Shakespeare e Wordsworth não encontram as manchetes que comumente encontramos; a torrente de artigos em resposta à publicação “Was Jane Austen Gay?” [Jane Austen era gay?]; a enxurrada de notas, resenhas e entrevistas sobre suas produções a partir de meados da década de 1990; a agitação acerca de sua ortografia e pontuação; a constante corrente de artigos sobre as causas de sua morte; a identidade real do Sr. Darcy; o peso moral de seu mundo; e, reflexivamente, seu status de celebridade, para o qual cada novo item contribui40. (JOHNSON, 2012, pos. 3270-3277)

É possível afirmar que Austen alcançou maior fama mundial nos últimos anos que em qualquer outro período. As inúmeras adaptações demonstram que sua obra dialoga de forma bastante interessante com o mundo contemporâneo. No próximo capítulo, um panorama das adaptações da obra autora é apresentado, com particular atenção para as adaptações de seu romance mais popular, Orgulho

e preconceito.

                                                                                                               

40  Trad. nossa. No original: Clearly, “Jane Austen” is more widely pervasive today than ever before as a

legendary figure, and membership in her cults shows no sign of abating. This ubiquity also extends beyond the literary. We encounter her in dazzling movies from Hollywood, Great Britain, and Bollywood, often featuring our favorite stars; in TV adaptations produced with seeming-historical authenticity; and in other cinematic spin-offs and homages. And Jane Austen is always good for a News story or editorial. In newspapers and now on the web, there is always some brouhaha brewing. For better or worse, fans of Trollope or Fielding or Dickens or even Shakespeare and Wordsworth do not find it common to encounter the headlines that we come across so often: the torrent of articles appearing in response to the London Review of Books’ publication in Austen of 2003 of ‘Was Jane Austen Gay?’; the floods of notices, reviews, and interviews about her screen productions from the mid-1990s forward; the flurry over her spelling and punctuation; the steady stream of articles about the cause of her death; the identity of the real Mr. Darcy; the moral weightiness of her world; and, self-reflexively, her celebrity status itself, to which every new item contributes.

CAPÍTULO III

Universalmente Reconhecida: