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Cultura e ciência, arte e técnica dicotomias

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Academic year: 2021

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Cultura e ciência, arte e técnica: dicotomias que

constituem fechamentos para o ser.

Fábio Fonseca de Castro

Doutor de Sociologia,

Professor da Faculdade de Comunicação da UFPA

Resumo: O artigo elabora uma crítica da noção, presente em toda a metafísica

ocidental, de que há uma fronteira a distinguir os campos da cultura e da ciência, bem como os campos da arte e da técnica. Ele resume uma palestra proferida em 2006 no Instituto de Artes do Pará.

Palavras-chave: Arte, técnica, intersubjetividade.

A sociedade ocidental costuma separar, no seu modo de proceder e de ver o mundo, a esfera da criação técnica da esfera da criação artística. É como se não pudéssemos pensar senão dicotomicamente: de um lado a cultura e de outro a ciência. De um lado a arte e de outro a técnica. Essa forma de raciocínio parece ser uma constante na historia do Ocidente, estando presente no senso comum de nossas sociedades da mesma forma que, embora em graus diferentes, esteve presente em sociedades ocidentais do passado.

Porém, nem sempre teria sido assim. Conta-nos a historia da filosofia que houve um momento em que essas dicotomias não existiam, ciência e cultura sendo noções inteiramente coincidentes. Observa Fernando Bastos1 que uma certa idéia sobre a "natureza" constitui, na Grécia antiga, a origem comum da ciência e da filosofia. Essa idéia logo seria pervertida por uma valorização da idéia de "homem" pelos filósofos ditos "antropólogos" - a linhagem dominante a partir de Platão e Aristóteles. Está na essência dessa mudança a formatação do pensamento ocidental e a sua correspondente matriz de pensamento dominante. A compreensão dessa transformação é essencial para se compreender porque ciência e cultura, bem como técnica e arte, resultam em coisas separadas, e algumas vezes divergentes, em nosso mundo.

Com efeito, tudo parece advir de uma transmutação na acepção original da noção de natureza. Traduzimos a palavra grega physis, porque assim também fizeram os latinos, por "natureza". Não obstante, essa tradução resulta numa simplificação excessiva de um vocábulo que, em seu uso original, queria dizer bem mais que a natureza física. A esse

propósito Heidegger observa, na sua Introdução à filosofia2, que a noção

1

BASTOS, Fernando. Da necessidade de uma outra "abertura do ser" in Revista brasileira de filosofia, n° 82.

2

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de physis, para os Pré-socráticos como para os homens de seu tempo, equivalia a uma espécie de manifestação racional de um latente - ou seja, do mundo, do universo inteiro - e não apenas, portanto, de um fenômeno físico, desse modo constituindo o oposto ao lanthano - aquilo que está esquecido, adormecido, morto, termo que conduz, etimologicamente, ao nome do rio que envolvia o reino dos mortos (e dos esquecidos) na mitologia grega, o rio Lethe.

Desse modo, a physis - aquilo que pode se manifestar - constitui o oposto do Lethe - aquilo que foi esquecido - conformando um processo de evidenciação que os gregos chamarão de alethéa - a-lethéa: o que foge ao Lethe, o que lhe é oposto. O vocábulo alethéa, em última instância, quer dizer verdade: a verdade divina que representa o Ser, ou melhor, a integridade entre os diversos processos que, mais tarde, a pretexto da lógica, serão separados. Na physis se encontram o sagrado e o profano, as "origens" e as "representações", a arte e a ciência. Para os Pré-socráticos encontram-se fundidos os processos míticos e lógicos. Heidegger chamava a essa situação de "abertura para o Ser", cabendo a ele a elaboração da denuncia contundente de que os filósofos seguintes, a partir mesmo de Sócrates, promoveram uma espécie de "fechamento" para o Ser.

Falamos, portanto, de uma ruptura. Ruptura entre duas formas de ver o mundo, sendo seu resultado grandemente incidente sobre nosso modo de pensar.

A matriz dicotômica de pensamento, dominada por um espírito classificador e censitário, parece ter visto o dia por meio da reflexão platônico-aristotélica, cabendo lembrar que Platão, não obstante não ter elaborado uma teoria positiva sobre a arte exprimiu, de uma maneira bastante pejorativa, uma tese sobre o pouco valor da obra de arte, qualificando-a como uma referência imperfeita diante do mundo verdadeiro das idéias. Essa matriz de pensamento, fundada por Platão e amplificada por Aristóteles com sua taxinomia e com sua teoria da mímesis, parece se ter renovado com a reflexão tomista, num certo momento da historia medieval e com a reflexão cartesiana, um pouco mais tarde, incidente, esta ultima, sobre o racionalismo e sobre o empirismo. A influência cartesiana, por sinal, abriu caminho para a consolidação da referida matriz de pensamento em nossa sociedade, inferindo sobre nosso modo de pensar por meio da hiper valorização da lógica racionalista, a partir do século XVII. Tratar-se-ia, se se quiser identificar melhor essa matriz de pensamento, de uma estrutura logocêntrica, capacitada à longa duração, marcada por um raciocínio dialético, estruturada sobre a formulação de hipóteses e redutora das fugas, das fissuras e dos nexos não necessariamente lógicos presentes no pensamento humano. Essa matriz de pensamento imiscui-se à própria idéia de Ocidente. Ela tende a predominar em tudo o que organiza nossas sociedades, atuando por meio de diversos dispositivos de censura e condenando a um segundo plano, no ordenamento das coisas do mundo, tudo aquilo que pareça fora dos contextos da razão.

No entanto, o predomínio dessa matriz de pensamento no mundo ocidental, tantas vezes agressiva, dura e repressora, deixa

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entrever aquele momento anterior, historicamente fundamentado e filosoficamente pleno de possibilidades, no qual técnica e arte, bem como ciência e cultura, foram exatamente a mesma coisa. Esse momento, que corresponderia, portanto, ao pensamento dito pré-socrático, pode ser compreendido como uma matriz de pensamento redutora,

não-censitária, não-dialética, não-epistemológica. E, desse modo,

hermenêutica.

Na verdade, esse "momento anterior", essa "outra matriz de pensamento", perdurou durante toda a ditadura da razão que se fez haver no Ocidente. Perdurou obscurecidamente, calada e secretamente - mas vivamente também. Ele pode ser mais bem percebido em certas épocas de especial tensão no Ocidente - épocas sem lógica, sem razão, mas consubstancializadas por certa energia, certo vitalismo social ou, ainda, certa "efervescência", para usar da expressão criada por Durkheim para descrever certas formas de coesão e ação social, com a qual se parecia nocautear a razão. Alguns exemplos dessas efervescências hermenêuticas poderiam ser percebidos na historia: certo momento da escolástica, dentre outros, na Idade Média, o momento barroco ou, ainda, os diversos movimentos artísticos que se sucederam entre a segunda metade do século XIX e, na Europa ao menos, até a Primeira Grande Guerra. Sim, e ainda a cena cultural pós-moderna, que constitui, fundamentalmente, uma critica mordaz, embora nem sempre compreendida como tal, das soberbas da razão.

O tema da separação entre a esfera da criação técnica e a esfera da criação artística foi particularmente explorado pelas patrulhas da razão. Talvez seja por isso que nos parece tão descabido, e algumas vezes insólito, falar ao mesmo tempo de ciência e de arte. Ou não?

A concessão normalmente feita refere ao modo como o saber científico tem colaborado com o desenvolvimento de projetos e escolas artísticas. Volta e meia ouve-se falar sobre cyber-art, techno-pop, processos de digitalização em fotografia e música, etc. Com efeito, a ampliação do espectro tecnológico propiciado pela informática acaba por ampliar, igualmente, o espectro da produção artística contemporânea. Porém, a relação entre arte e ciência que se esta sugerindo aqui se pretende maior que o impacto dessa revolução no mundo contemporâneo, de forma que ela, por importante que seja, não é mais que uma exceção no modo como são geralmente descritas as relações entre ciência e arte.

A própria historia da reflexão estética reproduz essa dicotomia. Exemplo significativo é a rigorosa separação entre cognição e juízo estético presente no pensamento de Kant. Como se sabe, Kant faz da critica do conhecimento o principal objeto de sua filosofia. A respeito do conhecimento estético, esse filosofo sugere que ele constitui um julgamento, sim, mas surgido de uma atitude desinteressada, não sendo nem empírico e nem demonstrativo, tal como, por exemplo, o julgamento moral. Ora, a percepção da estética, se compreendida como uma transcendência, resulta num idealismo bastante próximo à condenação, operada por Platão e por Aristóteles, da esfera do gosto e da arte a uma condição secundaria face à esfera da razão e do cientifico.

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Outro exemplo de como a reflexão estética reproduz a matriz de pensamento dicotomizada da relação entre cultura e ciência e entre arte e técnica é a filosofia estética de Hegel, que se baseia numa certa idéia de continuidade histórica e, em conseqüência, de progresso. Um progresso "cognitivo", bem entendido, o qual, no entanto, poderia ser associado a um progresso cientifico marcado pelo acumulo ou especialização do conhecimento, na medida em que Hegel sugere que a dita "cognição", quando alcançada, esgotaria a própria necessidade da arte. Em outras palavras, a filosofia estética de Hegel contém essa profecia excessiva de que a ciência suplantara, algum dia, a própria necessidade da arte. Idéia, de resto, presente também em boa parte da filosofia estética marxista, que pretende que uma forma de coesão social superior, marcada pelo espírito cientifico e - por que não dizê-lo - moderno, abolira, n'algum futuro, formas de saber marcadas pela sensação, tal como a arte e a religião.

Ora, pode-se deduzir, a partir desses exemplos, que as duas grandes matrizes da reflexão estética, que são os pensamentos de Hegel e de Kant participam, ambos, da referida matriz dominante do pensamento ocidental.

Porém, como se sugeriu acima, a matriz secundaria de pensamento - o impulso hermenêutico, mais antigo que o impulso epistemológico, ressurge magicamente em alguns momentos da historia social do Ocidente. De acordo com diversos autores ele estaria ressurgindo, com força particular, nos dias atuais. Seu indicio fundamental seria uma certa tendência à mescla entre ciência e arte.

Com efeito, data de nossos dias uma sorte de recuperação dessa fusão de horizontes entre arte e técnica, tão própria ao mundo pré-socrático, como ao mundo barroco. As ciências físicas de nosso tempo, tão grande é sua abertura a possibilidades, a possibilidades antes intangíveis, que parecem fazer ruir a noção aristotélica de universo-máquina, determinista e perfeccionista. Descobertas como a de que a matéria constitui não mais que 4% do universo - o restante pertencendo a uma forma abundante de energia "negra" - nos fazem sair do universo de Ptolomeu, tão, ainda, geocêntrico.

Poderíamos dizer que a equação física que calcula o universo vai tomando, aos poucos, a forma de um poema. A ciência vai perdendo seus pés firmes enquanto descobre que aquilo a que chamamos de visível e de real resulta, fundamentalmente, das propriedades físico-quimicas de nossa retina. Ou enquanto a teoria do Big-bang, que parecia validar as teses monoteístas judaica, cristã e islâmica de uma criação única e mesmo ex nihilo do mundo, vai sendo questionada por teorias como as de Andrei Linde e de Alan Guth, as quais falam de uma criação plural - como por exemplo, de bolhas de universo que surgem do espaço-tempo, interpenetrando-se. Ou, ainda, enquanto se descobre que as dimensões não são apenas três ou quatro, mas onze e mesmo catorze, de acordo com algumas idéias contemporâneas.

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Poder-se-ia lembrar, a este momento, que o grande escritor Dostoievski se dizia chateado com a idéia de que 2 e 2 façam sempre quatro ao mesmo tempo em que a idéia de que, alguma vez, pudessem fazer 5, lhe parecia sedutora. Evento que, aparentemente, ocorreria também a alguma ciência de nossos dias, importunamente comovida, chateada de seus números e desejosa igualmente, quem sabe, de que a soma de 2 e 2 chegasse a 5.

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