• Nenhum resultado encontrado

COMO PENSAR A DISCIPLINA NA ESCOLA INDISCIPLINADA?

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "COMO PENSAR A DISCIPLINA NA ESCOLA INDISCIPLINADA?"

Copied!
158
0
0

Texto

(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO

COMO PENSAR A DISCIPLINA NA ESCOLA INDISCIPLINADA?

LAILA FERNANDA DE CASTRO GONÇALVES

NITERÓI 2017

(2)

2

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

G635 Gonçalves, Laila Fernanda de Castro.

Como pensar a disciplina na escola indisciplinada? / Laila Fernanda de Castro Gonçalves. – 2017.

160 f. : il.

Orientadora: Marília Etienne Arreguy.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2017.

Bibliografia: f. 144-150.

1. Disciplina. 2. Poder. 3. Subjetividade. I. Arreguy, Marília Etienne. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

(3)

3 LAILA FERNANDA DE CASTRO GONÇALVES

COMO PENSAR A DISCIPLINA NA ESCOLA INDISCIPLINADA?

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense como requisito para a obtenção do título de Mestre em Educação.

ORIENTADOR: PROFESSORA DOUTORA MARÍLIA ETIENNE ARREGUY

NITERÓI 2017

LAILA FERNANDA DE CASTRO GONÇALVES

(4)

4

BANCA EXAMINADORA

PROFª. Drª. MARÍLIA ETIENNE ARREGUY – ORIENTADORA – UFF _______________________________________________________________

PROF. DR. ANDRÉ MARTINS – UFF

_______________________________________________________________ PROF. DR. LEONANRDO MAIA – UFRJ

_______________________________________________________________ SUPLENTE

PROF. DR. RAFAEL VIEGAS

_______________________________________________________________

NITERÓI 2017

(5)

EPÍGRAFE Todos esses que aí estão Atravancando meu caminho, Eles passarão... Eu passarinho!

(6)

DEDICATÓRIA A Deus por ter me sustentado até aqui, ao meu marido e companheiro Rafael Pacheco, a João e José meus filhos queridos.

(7)

AGRADECIMENTOS

Agradeço a minha orientadora Marília Etienne Arreguy que com sua ternura, determinação e sabedoria me guiou durante todo esse percurso.

Agradeço a todos os integrantes do NUGEPPE, do GAPE/UFF e do NEPES/UFF pela aprendizagem e acolhimento.

(8)

RESUMO

O presente pesquisa pretendeu apresentar marcas do poder disciplinar presentes na escola contemporânea, a partir do estudo sobre a genealogia da disciplina e da compreensão da indisciplina como poder de resistência. Aspectos do poder disciplinar presente nas escolas foram retratados através da transcrição de conversas informais, entrevistas e grupos focais realizados com funcionários, gestores e alunos de duas escolas públicas do município de Niterói. Na escola "A" pertencente à rede municipal, atendendo ao segundo seguimento do ensino fundamental foi verificada a indisciplina como sintoma referente ao tratamento hostil dado aos alunos. Já na escola "B", ocupada por alunos do ensino médio, a indisciplina é percebida como resultado da resistência às normas estabelecidas pela escola. Dessa forma, a indisciplina pôde ser verificada como sintoma e poder de resistência. Assim, o olhar sobre a indisciplina escolar deve ser abrangido, uma vez que existem aspectos pertinentes ao desencontro dos alunos com as regras escolares. Tal desencontro deve ser visto para além do não cumprimento das normas, mas como o outro do poder exercido pelos alunos. A pesquisa sobre a não consonância da escola, forjados nos moldes da Modernidade, com as novas subjetividades construídas na contemporaneidade deve ser urgente, uma vez que as instituições disciplinares, dentre elas está a escola, estão em crise. Assim, essa investigação pretendeu analisar elementos presentes nas relações entre alunos e a escola, representada por seus gestores, funcionários e professores, para compreender as ações (in)disciplinadas.

(9)

ABSTRACT

The present research aimed to present the marks of the disciplinary power present in the contemporary school, from the study on the genealogy of the discipline and the understanding of the indiscipline as a resistance power. Aspects of the disciplinary power present in schools were portrayed through the transcription of informal conversations, interviews and focus groups held with employees, managers and students of two public schools in the city of Niterói. At school "A" belonging to the municipal network, attending to the second follow-up of elementary school, indiscipline was verified as a symptom referring to the hostile treatment given to the students. At school "B", occupied by high school students, indiscipline is perceived as a result of resistance to the norms established by the school. In this way, indiscipline could be verified as a symptom and power of resistance. Thus, the look at school indiscipline should be covered, since there are aspects pertinent to students' mismatch with school rules. Such disagreement must be seen beyond non-compliance, but as the other of the power exercised by students. The research on the non-consonance of the school, forged in the molds of modernity, with the new subjectivities built in the contemporaneity must be urgent, since the disciplinary institutions, among them is the school, are in crisis. Thus, this research aimed to analyze elements present in the relationships between students and the school, represented by its managers, employees and teachers, to understand (in) disciplined actions.

(10)

SUMÁRIO

Capítulo 1: Apresentação

04

1.1: Objetivos da pesquisa 09

1.2: Percurso metodológico 11

Capítulo 2 - Disciplina : concepções e análises

19 2.1: Alguns elementos da genealogia da disciplina 20 2.1.1: Disciplina e poder de soberania: uma relação de justaposição

20

2.1.2: Da Paideia ao Cristianismo 23

2.1.3: A disciplina no cotidiano das comunidades religiosas 27 2.1.4: A ascese como manifestação da disciplina 29 2.1.5: A ascese filosófica e o cuidado de si 33 2.1.6: A ascese cristã como regime de verdade 36 2.1.7: A Educação na Idade Média: um breve histórico 42 2.2: A ascensão da burguesia e sua influência na transformação da escola Moderna

45

2.2.1: A escola moderna e o poder disciplinar 61 2.2.2: Cultura, corpo e tecnologias: novos processos de subjetivação

64

Capítulo 3: A problemática da indisciplina

71

3.1: Indisciplina: onde se quer chegar? 77

Capítulo 4 - Experiências em uma escola em

funcionamento regular: a indisciplina como sintoma do

fracasso da escola

92

4.1: A hora do recreio: para onde ir? 94

4.2: Corredores da escola: caos por todo lado 98 4.3: A escola "A" em discussão: apresentação de entrevistas 100

4.3.1: A Gestão: olhares sobre a escola 100

4.3.2: O pedagogo da escola: resultado da intervenção 104 4.3.3: Os professores: desabafos e reflexões 105

(11)

4.3.5: Entrevista com a inspetora do pátio: uma visão panorâmica dos conflitos entre os alunos

111

4.3.6: Comentários sobre as entrevistas e relatos 113 4.4: Grupo focal com alunos do 9º ano da escola "A": reflexões sobre indisciplina e normas escolares

116

4.4.1: Análise do grupo focal 1 121

Capítulo 5 - Experiências em uma escola ocupada: da

resistência à (auto)disciplina

123

5.1: A escola ocupada: de quem é esse espaço? 125 5.1.1: As comissões organizadoras: por uma gestão participativa 126 5.1.2: Entrevistas com alunos da escola ocupada: como pensar a

escola nesse contexto?

127

5.1.3: Entrevista com uma professora da escola "B": repensando os olhares sobre a escola

132

5.1.4: Comentários sobre as entrevistas e as observações 133 5.2: Grupo Focal na escola "B": refletindo sobre as normas da

escola

135

5.2.1: Análise do Grupo Focal 2 139

Conclusão e perspectivas futuras

141

(12)

Capítulo 1: Apresentação

O homem tem necessidade de cuidados e de formação. A formação compreende a disciplina e a instrução. (KANT, 1999, p. 14)

O interesse pela pesquisa apresentada surge a partir da experiência como militar1 estadual do Rio de Janeiro e como diretora pedagógica do Colégio da Polícia Militar, no município de Niterói, desde 2010. A estreita relação com os dispositivos disciplinares que normatizam e fiscalizam a rotina do militar, bem como a responsabilidade pela manutenção das atividades da escola, despertou-me o interesse pela análise da relação educação - disciplina. No decorrer desses seis anos, percebi que muitas famílias, durante o processo de matrícula, justificavam o interesse em colocar seus filhos em colégios militares na crença de que um modelo educacional, cuja disciplina figura como um dos pilares da proposta pedagógica, poderia influenciar em aspectos comportamentais de seus filhos.

No entanto, observando a problemática em torno do comportamento dos alunos e a fragilidade no controle das normas de conduta exigidas pela instituição, pude observar que o fenômeno da indisciplina está presente mesmo em instituições que apresentam um modelo disciplinar, em grande medida, como base do seu projeto educacional.

A percepção que obtive nos anos de experiência como diretora pedagógica é que os responsáveis pelos alunos, muitas vezes, tendem a desejar que seus filhos se tornem alunos disciplinados, a partir de normas de

1

Ingressei em 2000 no Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, formando-me em 2002. Na ocasião, tratava-se da minha primeira experiência profissional. Durante minha carreira trabalhei no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças, onde são formados os soldados da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Trabalhei na Diretoria Geral de Ensino e Instrução da PMERJ, e de 2007 a 2016, atuei no Colégio da Polícia Militar onde fui diretora durante seis anos.

(13)

condutas e rotinas normatizadas que moldem seus comportamentos. Nas entrevistas realizadas com as famílias percebi, em muitos casos, que o interesse por esse modelo comportamental, regido por uma série de regras e normas, algumas vezes ultrapassava o interesse pela própria formação intelectiva de seus filhos.

Na entrevista com uma das mães de um dos candidatos ao Colégio da Polícia Militar, cujo nome será mantido em sigilo, fez-se a seguinte afirmação: "Quero que meu filho estude aqui porque desejo que ele seja educado de forma rígida, pois acho que aqui ele será disciplinado" (entrevista realizada em 12/12/14, no processo de seleção de alunos para o Colégio da Polícia Militar).

Na resposta acima, dada pela mãe de um dos candidatos, é que se resgata uma questão importante também para uma análise, diante de tantas contradições e percalços que as escolas têm experimentado de uma forma geral. Terá a escola contemporânea a responsabilidade de disciplinar seus alunos no modelo ainda existente da escola moderna2, cuja formação moral era predominante?

Considerando tal questionamento, é preciso compreender alguns conceitos sobre a formação da escola moderna e suas transformações, assim como tentar entender as formas de dominação que perpassam toda a sociedade. Também se faz premente analisar a indisciplina para além dos seus atos, mas analisar seus interesses e motivações. Para tanto, no decorrer dessa pesquisa, tais conceitos serão detalhadamente descritos e analisados. Ganharão destaque inicial, porém, os conceitos sobre poder e resistência, que permearão todo o trabalho apresentado.

Dessa forma, torna-se necessária a análise dos aspectos que formam o poder disciplinar3 e, mais do que isso, a discussão da disciplina como fundamento por excelência da escola, frente às transformações políticas e sociais contemporâneas, que sugerem, por sua vez, uma contraposição e uma

2

Os aspectos que forjaram a escola moderna serão tratados com mais detalhes no decorrer da pesquisa.

3

(14)

resistência, cada vez mais acirradas diante das regras estabelecidas no interior da escola.

FOUCAULT afirma que:

Nesses últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos também; eles são cada vez mais diversos, diferentes e independentes. Há cada vez mais categorias de pessoas que não estão submetidas à disciplina (...) (2012, p. 262).

O que essa não submissão à disciplina quer dizer? Entende-se que a indisciplina pode ser compreendida como poder de resistência (FOUCAULT, 2013), fazendo oposição às relações de poder existentes na escola. Cabe esclarecer que as relações de poder estão em toda parte, não se localizando em um "ponto específico da estrutura social" (Ibid., p. 17). Desta forma, ninguém está isento dos seus mecanismos e, portanto, o poder não pode ser traduzido em algo que se possa possuir. Por mais que tenda a ser estruturado de forma hierárquica, atribuindo-se certa hegemonia no uso da coerção e da força às funções dos escalões superiores, o poder aparece disseminado nas micropolíticas que compõem o corpo social. Para Foucault (Ibid., p. 17), "o poder não existe; existem práticas ou relações de poder". É a partir dessa perspectiva relacional que as lutas contra o exercício do poder são praticadas em seu próprio interior, sendo o poder de resistência4 mais uma face do próprio poder. Sendo assim existem lutas constantes entre o exercício do poder e exercício do poder de resistência.

Segundo FOUCAULT, no apêndice da obra Michel Foucault, uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e hermenêutica :

O principal objetivo dessas lutas é atacar, não tanto "tal ou tal" instituição de poder ou grupo ou elite ou classe, mas, antes, uma técnica, uma forma de poder. Essa forma de poder aplica-se à vida cotidiana, que categoriza o indivíduo, marca-o com sua própria individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe lei de verdade, que devemos reconhecer e que os outros têm de conhecer

4

A indisciplina vinculada ao conceito de poder de resistência será desenvolvida amplamente no decorrer da pesquisa, como suporte filosófico no esforço de compreender as relações de poder no interior da escola contemporânea.

(15)

nele de verdade. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos. (1982, p. 278)

Nessa concepção de formação dos sujeitos a escola também se consolida como local de disputa e luta diante das relações de poder que nela circulam. E na sociedade apontada por Foucault (op. cit., p.6), em que há o aumento de sujeitos que não se submetem às regras disciplinares, a indisciplina surge como contraponto da tradicional escola que homogeneíza comportamentos.

Segundo Guimarães, "a escola está planificada para que as pessoas sejam todas iguais. A homogeneização é exercida através de mecanismos disciplinares" (1985, p. 66). Portanto, é indispensável colocar uma lente de aumento sobre o papel da escola contemporânea, considerando suas evoluções ao longo do seu campo sócio-histórico, considerando as novas formas de pensamento e comportamento presentes da sociedade.

As discussões em torno da indisciplina escolar podem ser avaliadas a partir da consideração de alguns aspectos. Para La Taille (2001) a indisciplina pode apresentar dois significados, importando a motivação da conduta transgressiva.

Há indisciplinas que, por vezes, podem decorrer em razão de motivos éticos, quando as regras não fazem sentido ou são ilegítimas. Por outro lado, há indisciplinas que vão de encontro às leis morais que garantem respeito a direitos legítimos. Assim, as imbricações do campo moral e ético podem garantir a legitimidade ou a ilegitimidade da indisciplina, de acordo com os fatores que, possivelmente, dar-lhe-ão sentido.

De acordo com LA TAILLE:

(...) disciplina corresponde ao que chamamos de moral: o respeito por certas leis consideradas obrigatórias. Portanto, a pessoa indisciplinada transgride as leis que deveria seguir (...) A indisciplina pode, às vezes, vir em decorrência de bons motivos éticos. Se as regras não fazem sentido (e há muitas na escola) e se derivam de valores suspeitos (como a subserviência cega à autoridade), a indisciplina pode se justificar eticamente. (2001, p. 90 - 91)

(16)

Partindo dessa reflexão, os atos de indisciplina podem estar apontando para um descontentamento com a ordem social da escola que ainda se utiliza do "poder da disciplina no ato pedagógico" (PASSOS, 1994, p. 119), surgindo por trás da relação entre autoridade e manutenção da ordem no interior das salas de aula e no ambiente escolar como um todo.

Portanto, verificar profundamente o terreno em que estão alicerçadas as relações de autoridade e a hierarquia no campo escolar é fundamental, para se analisarem os conflitos subjetivos que florescem na contemporaneidade.

Nesse sentido, questionar as regras de conduta disciplinar, muitas vezes estabelecidas de forma autoritária nas escolas, que parecem permanecer no passado, é a forma encontrada para abordar a crise educacional atual. Voltando à reflexão acerca dos fatores morais e éticos que podem motivar a indisciplina, é importante ressaltar que o cotidiano escolar está irrigado dos entraves entre as ordens sociais, culturais, políticas e econômicas (AQUINO, 2003) que servem de alicerces para o embate entre a tríade escola-aluno-professor. Sendo assim, compreender as macros e, sobretudo, as microesferas políticas em que estão mergulhados os sujeitos dessa análise, torna-se essencial para o desenvolvimento do estudo apresentado.

Diante dessas observações preliminares, surgiram questionamentos acerca de aspectos e mecanismos disciplinares existentes na escola: quais são os efeitos da indisciplina na relação de poder dentro do contexto escolar? Quais os reflexos do poder disciplinar na escola contemporânea? Quais são os possíveis pontos de apoio da positividade do poder disciplinar no ambiente escolar? Será a indisciplina, em tempos de violência exacerbada entre alunos e professores, uma manifestação da falência da escola no modelo disciplinar? Quais são os pontos de disputas na relação de poder existentes no contexto disciplinar da escola atualmente?

Com a finalidade de refletir sobre tais questões a pesquisa foi estruturada em cinco capítulos que se complementam na busca de oferecer elementos que permitissem a análise do tema.

(17)

No capítulo 1, são apresentados os objetivos que serviram como norteadores do trabalho de investigação e se apoiaram o percurso metodológico de base fundamentalmente qualitativa.

No capítulo 2, foram abordadas concepções e análises sobre a disciplina, considerando os elementos constituintes de sua genealogia.

No capítulo 3, foram apontados dados e informações acerca da indisciplina discente no Brasil e no mundo, mostrando que tal problemática não possui classe ou lugar, mas está presente em diversas realidades.

Os capítulos 4 e 5 tratam das experiências de campo vivenciadas em diferentes escolas públicas no município de Niterói/RJ. A observação da relação com o espaço e a gestão escolar dessas escolas serviu como suporte para a análise teórica sobre questões referentes à crise do poder disciplinar e à indisciplina como poder de resistência.

1.1 Os objetivos da pesquisa:

No esforço em refletir sobre cada questionamento, a presente pesquisa guia-se através do seguinte objetivo geral: analisar os aspectos que perpassam pela fragilização da instituição escolar, a partir do discurso da indisciplina como poder de resistência à ordem disciplinar.

Para tanto, a pesquisa perseguirá os seguintes objetivos específicos: investigar alguns elementos genealógicos da disciplina; analisar o processo de construção do discurso disciplinar como articulador da relação entre saber e poder, por meio da pesquisa genealógica da instituição escolar, desde o século XVIII; investigar o exercício da indisciplina como manifestação de poder de resistência; analisar a indisciplina como possível interlocutora das mudanças no modelo disciplinar da escola; detectar os aspectos sintomáticos e excessivos das manifestações da indisciplina (enquanto expressão da crise do modelo disciplinar); investigar os pontos de incidência em que poderá ocorrer a fragilização da plataforma disciplinar da escola contemporânea.

(18)

No entanto, para elucidação e base para a análise de tais objetivos mergulhados no corpo da pesquisa, serão realizadas algumas análises que transpassam a manifestação da disciplina e da indisciplina como formas de poder. De semelhante maneira serão transcritas e analisadas experiências de campo realizadas em duas escolas públicas sediadas no município de Niterói.

O trabalho de análise realizado no percurso desse estudo terá como bússola a pesquisa bibliográfica de obras filosóficas contemporâneas, sobretudo na filosofia da diferença de Michel Foucault, além de seus comentadores que remetem à problemática apresentada acima. Pretende-se por intermédio das obras filosóficas, repensar os aspectos disciplinares que permeia a escola contemporânea e as manifestações de indisciplinas em seu interior.

De acordo com GALLO:

Se a Filosofia, como afirma FOUCAULT, é este exercício de suspeita, esta busca inquietante por aquilo que ainda não pensamos, esta interrogação sobre a própria maneira de nos conduzirmos, então a Filosofia da Educação precisa ser um questionar-se sobre as certezas prontas do universo educacional. Para além de ser um dos pilares, um dos fundamentos da Educação, a Filosofia precisa ser para a Educação justamente aquilo que lhe tira os fundamentos, aquilo que lhe tira o chão, fazendo com que o pensamento uma vez mais emirja. (2013, p. 254)

Além do percurso teórico, para elucidar os questionamentos presentes no uso desse processo, foram empregados Grupos Focais em duas escolas públicas do município de Niterói, de modo a interpor os dados advindos das práticas escolares cotidianas com os argumentos teóricos adotados, de modo a compreender a realidade atual e tensionar os conceitos foucaultianos.

Diante do exposto, a pesquisa mais uma vez ratifica sua relevância, a partir da urgente discussão sobre os aspectos disciplinares da escola diante das novas subjetividades, que algumas vezes podem encontrar na indisciplina a voz que precisam para requererem mudanças. Afinal, disciplina para quê?

(19)

1.2 Percurso metodológico

A presente pesquisa, como já foi anunciado, pretende problematizar algumas questões que atravessam a escola contemporânea no processo de fragilização da plataforma disciplinar em que se sustentou, a partir do século XVIII (AQUINO, 1998; PRATA; 2005; RATTO, 2008; BOARINI; 2013). Para tanto, na metodologia empregada procurou-se demonstrar os procedimentos a serem empregados na análise dos questionamentos e objetivos apresentados.

Na busca de elementos que colaborem com as discussões e investigações, o trabalho de reflexão dos conceitos aqui preliminarmente apresentados servirá de suporte teórico para essa pesquisa. Portanto, no percurso metodológico serão apresentadas algumas definições essenciais para esse processo, tomando como partida a análise dos conceitos de "memória social" e de "pesquisa bibliográfica."

Le Goff (2003) ressalta que o "estudo da memória social é um dos meios fundamentais de abordar os problemas do tempo e da história" (p. 422). A memória social foi retratada, durante o curso da história do homem, através da oralização e da escrita.

Nas sociedades sem escrita, a memória coletiva era construída a partir da ressignificação dos conhecimentos transmitidos, distanciando-se da reprodução mecânica de saberes. De acordo com autor, nessas culturas, os interesses gravitam ao redor dos assuntos pertinentes aos conhecimentos práticos e profissionais, relacionados aos ofícios e técnicas laborais. A presença de pessoas especialistas em memória, os "Homens-Memória", supostamente garantiria a transmissão da cultura, hábitos e histórias das sociedades sem escrita. No entanto, essa transmissão, segundo o autor, não seria "palavra por palavra" (Ibid., 425), mas seria produto de uma reconstrução, cuja aprendizagem ocorreria longe dos aspectos mecânicos de uma escola. Assim, a transmissão oral permitiu às sociedades sem escrita a recriação de suas histórias, a partir da criatividade dos seus emissários. Para Le Goff "as sociedades sem escrita, excetuando certas práticas de memorização (...), das

(20)

quais a principal é o canto, atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades criativas" (Ibid., 426)

A escrita, porém, inaugurou uma outra forma de construção da memória. Ela permitiu o "armazenamento, memorização e registro de informações" (Ibid., p. 429), que ampliou-se no século XVIII. Os documentos tornam-se os materiais da memória coletiva. No latim, documento possui uma ligação com o significado de prova, que mantém uma estreita ligação com a escola positivista. Assim, o documento "será o fundamento do fato histórico, ainda que resulte da escolha, de uma decisão do historiador" (Ibid., p. 526).

Nessa perspectiva, o surgimento da escrita possibilitou o "armazenamento de informações, que permite comunicar através do tempo e do espaço, e fornece ao homem um processo de marcação, memorização e registro" (ibid., 429).

Dessa forma, recontar a história tornou-se um ato de revisitação aos registros e obras que carregam em si a função de guardiões do passado. Essa revisitação, em grande medida, poderá contribuir para o aporte metodológico da pesquisa bibliográfica, que inevitavelmente se utiliza da memória coletiva impressa nos livros.

Todavia, ressalta-se que o desenvolvimento da memória coletiva escrita surge no contexto histórico de disseminação da própria escrita, fruto do desenvolvimento social e urbano, intensificado, após o século XVIII com o surgimento da imprensa. Nesse mesmo período surgem as "instituições-memória" (Ibid. 429), que reúnem obras e documentos que remontam e descrevem a memória coletiva de uma ou mais sociedades (arquivos, bibliotecas, museus). Tais instituições passam a colocar o passado à disposição do presente, possibilitando a análise crítica de momentos históricos distintos, mas que emergem, através de suas relações, fenômenos sócio-históricos que se repetem ou se perpetuam. A pesquisa sobre a sociedade disciplinar em que se mantém a escola requer esse esforço de relacionar e compreender momentos distintos da história da escola e sua relação primordial com a disciplina.

(21)

Assim, na análise do desenvolvimento da trajetória da função da escola, a partir dos parâmetros da Idade Moderna, se faz necessário o recurso da descrição histórica, não de forma contínua, mas complementar. No entanto, essa análise deverá compreender as relações dos fatos passados com a realidade presente, propondo uma reflexão social sobre a fragilização da plataforma disciplinar escolar atual.

O trabalho de reflexão sobre os mecanismos de controle da (in) disciplina escolar requer uma relação dos fatos históricos com as manifestações sociais do presente. Essa relação, possivelmente, exigirá uma interpretação dos fatos, que partirá da tentativa de compreender a indisciplina para além das suas manifestações atuais e/ou imediatas.

Sendo assim, a descrição dos fatos estará presente ao longo da pesquisa, porém sob à ótica das ciências humanas com sua própria estrutura conceitual. Para Martins (2010), diferente das ciências naturais e exatas, as ciências humanas podem ser fundamentadas no modo de ser do homem. Assim, não possuem um domínio já delineado “dimensionado em seu conjunto” (p. 55). Foucault (1987) ressalta a fundamentação das ciências humanas na representação das palavras dos indivíduos ou grupos, da utilização de seus significados. Dessa maneira, as discussões propostas na pesquisa, principalmente sobre os mecanismos de controle da a (in) disciplina, utilizarão como suporte metodológico a análise dos aspectos “daquilo que o homem é na sua positividade”, ou seja, na atuação do ser humano em conhecer a essência da vida ao longo do seu percurso natural (Ibid., 2010).

Para alcançar esse intento, o estudo da memória social possui especial importância, à medida que auxilia na identificação dos fatores sócio-históricos que ergueram a estrutura disciplinar na escola. Desse modo, a pesquisa bibliográfica parece ser mais adequada aos propósitos da pesquisa, dando suporte ao fornecimento de fundamentação teórica ao trabalho, da organização lógica das fontes de conhecimento consultadas.

Os anos finais do século XVIII, principal período histórico a ser investigado no proposto estudo, também serviu de pano de fundo para a

(22)

explosão da memória coletiva, com a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Industrial.

Para Leroi-Gourhan (1983):

A memória coletiva tomou, no século XIX, um volume tal que se tornou impossível pedir à memória individual que recebesse o conteúdo das bibliotecas(...).O século XVIII e uma parte importante do século XIX viveram ainda sob cadernos de notas e catálogos de obras; entrou-se em seguida na documentação por fichas que realmente apenas se organiza no início do século XX (p. 72 e 73)

No processo de análise evolutiva da escola, a partir da Idade Moderna, sugere-se a investigação dos aspectos que contribuíram para a sua composição, de acordo com a ideia do Homem como cidadão.

Nesse propósito, refletir sobre o tipo de sociedade, que se encontrava mergulhado nos ideais da Idade das Luzes torna-se importante para a compreensão da base em que a escola foi construída. Nesse processo investigativo, o ato de recontar a história torna-se marcante. No entanto, deve-se cuidar para que esdeve-se ato não deve-se torne uma reprodução de verdades, em que, para cada consequência, enverede-se na a busca constante de uma causa, sem que haja uma análise política dos fatos.

Fenellon (2010) aponta para os perigos na “perspectiva de causalidade no reconstruir a história” (p. 135). Segundo a autora, essa perspectiva de causalidade está ligada intimamente à concepção positivista acerca dos fatos. Nessa concepção, a relação do pesquisador com a pesquisa deve ser absolutamente neutra, negando o envolvimento do sujeito com o objeto e, consequentemente, com os valores subjetivos.

Dessa forma, caberá apenas a organização dos fatos, a partir do critério cronológico. Todavia, Fellenon (Ibid.) lança criticas a esse pensamento, partindo da ideia da teoria do materialismo histórico que levanta questões referentes à construção da sociedade, em que o pesquisador ao “produzir o

(23)

conhecimento, está envolvido com ele, a partir do seu presente e da sua posição social” (p. 138).

Partindo dessa perspectiva, a relação do passado com o presente passa a ganhar mais espaço, a partir da concepção de que o pesquisador ou o historiador produz o conhecimento socialmente.

Sobre isso, Fellenon diz:

A problematização necessária a toda e qualquer investigação será e deve ser fruto de um questionamento e uma indagação sobre o real e não apenas sobre a teoria ou a bibliografia. A verificação do que um autor investigou ou deixou de investigar diz respeito à bibliografia e não ao real. Se não superarmos, isso, ficaremos no imobilismo ou na repetição da bibliografia, ou questionaremos apenas a historiografia produzida sobre o tema, o que também pode nos levar a uma falsa problemática (Ibid., p. 144)

Diante das afirmações acima, os objetivos dessa pesquisa que pretendem realizar uma recontagem da história deverão ser contextualizados com as expressões socais do presente. Dessa forma, a pesquisa poderá fugir da armadilha "causa - consequência" empregada pela problematização exclusiva da bibliografia e dos documentos.

Nesse contexto, para a análise do desenvolvimento da trajetória da função da escola, a partir dos parâmetros da Idade Moderna, faz-se necessário o recurso da descrição histórica. No entanto, essa análise deverá compreender as relações dos fatos passados com a realidade presente, propondo uma reflexão social sobre a fragilização da plataforma disciplinar da escola contemporânea.

O trabalho de reflexão sobre os mecanismos de controle da (in) disciplina escolar, como já foi posto, requer uma relação dos fatos históricos com as manifestações sociais do presente. Essa relação, possivelmente, exigirá uma interpretação dos fatos, que partirá da tentativa de compreender a indisciplina para além das suas manifestações atuais. Sendo assim, a

(24)

descrição dos fatos estará presente ao longo da pesquisa, porém sob à ótica das Ciências Humanas com sua própria estrutura conceitual.

A pesquisa bibliográfica muitas vezes é caracterizada como revisão de literatura. No entanto, é importante partir da concepção de que a revisão de literatura "é apenas um pré-requisito para a realização de toda e qualquer pesquisa, ao passo que a pesquisa bibliográfica implica em um conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, atento ao objeto de estudo" (LIMA e MISOTO, 2007, p.38).

Partindo desse entendimento, o trabalho de delimitação e ordenação desses procedimentos, deverá partir da compreensão de que a pesquisa bibliográfica deve buscar elementosque possibilitem "aproximações sucessivas da realidade" (MINAYO, 1994), que acabam refletindo em possíveis posições sobre a realidade posta. Para esse propósito, de acordo com Gil (2010), a realização da pesquisa bibliográfica necessita do cumprimento de algumas etapas importantes para a sua sistematização, que vão desde a escolha do tema até a sua organização lógica.

No trabalho metodológico desenvolvido na pesquisa, um dos objetivos é percorrer caminhos que pretendem levar o leitor a identificar as relações entre a escola do passado e a do presente. Dessa forma, trazer à baila aspectos basilares da constituição da escola moderna, como a sua profunda marca disciplinadora e o tipo de subjetividade que era formado naquele espaço escolar, poderá auxiliar na compreensão das problemáticas vividas na escola contemporânea.

No entanto, é exígua a pesquisa bibliográfica diante da diversidade de ideias que podem ser contextualizadas com as práticas encontradas no interior da escola.

Assim, o trabalho de investigação entre as relações intercruzadas dos sujeitos que habitam a estrutura escolar terá como aporte a pesquisa qualitativa que servirá como apoio para analisar os objetivos propostos.

(25)

Segundo Minayo,

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes. Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes (2015, p. 21).

Na perspectiva qualitativa, busca-se compreender acontecimentos sociais que não podem ser quantificados. A investigação sobre a crise da instituição escolar, perante a prática da indisciplina como resistênciaàs normas estabelecidas pela escola, carece de instrumentos que sejam capazes de apreender as relações existentes entre os seus sujeitos.

Para cumprir tal necessidade foram realizadas entrevistas não estruturadas com gestores, professores, funcionários e alunos das instituições "A" e "B" para discutir suas opiniões sobre a função da escola e sua crise enquanto instituição disciplinar. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas.

A pesquisa não estruturada, também chamada de entrevista em

profundidade (grifo do autor), em vez de responder à pergunta por

meio de diversas alternativas pré-formuladas, visa obter do entrevistado o que ele considera os aspectos mais relevantes de determinado problema: as suas descrições de uma situação em estudo. Por meio de uma conversação guiada, pretende-se obter informações detalhadas que possam ser utilizadas em uma análise qualitativa. A entrevista não estruturada procura saber que, como e por que algo ocorre, em lugar de determinar a frequência de certas ocorrências, nas quais o pesquisador acredita. (RICHARDSON, 2015, p. 208)

Portanto, para complementar o trabalho de compreensão dos objetivos, dos questionamentos propostos na pesquisa e levantamentos feitos através das entrevistas foram realizados "Grupos Focais" como instrumentos da pesquisa qualitativa.

(26)

O grupo focal se constitui no agrupamento de pessoas selecionadas para discutir e comentar um tema, que é o objeto de pesquisa, a partir de suas experiências (GATTI, 2005).

Essa metodologia foi empregada em grupos de duas escolas públicas do município de Niterói, procurando alcançar estudantes matriculados no segundo segmento do ensino fundamental da escola "A" e do ensino médio na escola "B".

Os Grupos Focais foram organizados em dois momentos distintos. O primeiro Grupo Focal foi organizado com alunos do segundo segmento do ensino fundamental da escola "A" que possuíam idades entre 15 e 17 anos. O segundo Grupo Focal foi organizado com alunos do ensino médio da escola "B" que possuíam idades entre 16 e 19 anos.

O recorte do público pesquisado se deu em razão do desejo de trabalhar com jovens que pudessem ter maior capacidade de argumentação e compreensão dos objetivos da pesquisa.

Na escola "A", cujo funcionamento é regular, o principal objetivo foi analisar os aspectos que perpassam pela fragilização da instituição escolar, a partir do discurso e das práticas da indisciplina. Na escola "B", ocupada por alunos no mês de março de 2016, o principal objetivo foi analisar as praticas (in) disciplinares que podem se constituir como exercício de resistência às normas estabelecidas no interior da instituição escolar.

Justifica-se a oitiva dos sujeitos que estão imersos diretamente no universo da escola, vivenciando as problemáticas dos embates entre os mecanismos disciplinares e as manifestações da indisciplina, à medida que se pretende analisar quais são os pontos de apoio do exercício do poder desses sujeitos5 . As riquezas dessas informações diferem, assim, daquelas extraídas dos estudos que não se apoiam na escola.

5 Inicialmente a pesquisa pretendia analisar as falas dos alunos das escolas "A" e "B" , no

entanto em razão das observações tornou-se importante a escuta dos outros sujeitos presentes nas escolas (gestores, professores e funcionários) para o aprofundamento da pesquisa.

(27)

Assim, com a utilização desses instrumentos metodológicos buscou-se a coleta de informações de naturezas distintas, mergulhadas em experiências e relatos pessoais, impregnados por percepções diferentes acerca da (in) disciplina.

Dessa forma, a utilização da pesquisa bibliográfica em conjunto com a pesquisa qualitativa pretende buscar o que foi preconizado por Foucault (2013), que propôs o revezamento realizado pelas diversas teorias e diversas práticas. Para o autor, "nenhuma teoria pode de desenvolver sem encontrar uma espécie de muro e é preciso a prática atravessar o muro" (p. 130).

CAPÍTULO 2 - Disciplina: concepções e análises

Falar de disciplina requer uma análise minuciosa e atenta, em razão de tratar-se não apenas de um conceito, mas de um mecanismo do poder que atravessou e atravessa diversos períodos históricos.

Analisar as formas de poder suscita sua apreensão em suas extremidades e nas suas capilaridades, ou seja, em seus prolongamentos, a partir da consolidação de suas técnicas. Desta maneira as ações dos gestores, professores e inspetores podem ser consideradas como capilaridades do exercício do poder e de suas técnicas sobre os alunos. De um modo geral, a ação dos profissionais de educação sobre os alunos se faz de forma descendente, ou seja, de cima para baixo uma vez que, em muitos casos nas escolas públicas, os alunos se encontram em posição de sujeição e dependência em relação aos gestores, professores e inspetores, por exemplo. Da mesma maneira, em alguns casos, os alunos podem resistir a essa sujeição em relação aos profissionais da educação, exercendo sobre estes práticas do poder de forma ascendente, ou seja, de baixo para cima resistindo às normas de conduta da escola, por exemplo.

Dessa forma, o poder deve ser analisado e investigado no interior de suas práticas, no limite da relação com o seu objeto (FOUCAULT, 2010).

(28)

Assim, a disciplina será problematizada, primeiramente, a partir de suas concepções e práticas como mecanismo de poder. Para tanto, não será realizada uma narrativa linear da história da disciplina, todavia será realizada uma análise da disciplina em diferentes momentos da história buscando seus elementos genealógicos.

2.1: Alguns elementos da genealogia da disciplina:

2.1.1: Disciplina e poder de soberania: uma relação de justaposição.

A disciplina, como mecanismo do poder, não surge apenas nos séculos XVII e XVIII, com o advento das grandes instituições como a escola, os hospitais, as prisões e os quartéis. Pode-se perceber vestígios de sua justaposição em períodos anteriores, na Idade Média, quando ainda predominava o poder de soberania.

Na sociedade feudal, o poder de soberania se caracterizava pelo seu exercício, através da relação entre os soberanos e seus súditos, com a obrigação da obediência desses últimos. Possuindo características específicas, o poder de soberania se destacava do poder disciplinar nos seguintes aspectos: as relações vinculadas ao poder de soberania eram assimétricas, ou seja, de uma lado o soberano coletava impostos, produtos, colheitas e serviços e, do outro lado, seus súditos geravam despesas ao seu soberano. No entanto, tais coletas eram retribuídas, e aí geradas as despesas, através de cerimônias, festejos, assistência da Igreja, fazendo com que os súditos se submetessem ao poder de soberania, atraídos pelas recompensas; Em segundo lugar, para a concepção do poder de soberania era necessária a existência anterior de algo que o legitimasse, como uma conquista, vitória ou juramento de fidelidade, enfim, algo que vinculasse o súditos às ajudas concedidas pelo soberano; Em terceiro lugar, para a permanência do poder soberano era necessário sua reatualização, através de rituais, cerimônias, gestos e hábitos, fato que o

(29)

tornava suscetível à ruptura, caso não fosse reatualizado; Em quarto lugar, as relações de soberania não eram isotrópicas, ou seja, eram relações heterogêneas. São relações que não podem ser colocadas em condições igualitárias, a exemplo da relação do senhor com seu servo ou do padre com o leigo; Em quinto lugar, o poder de soberania pode ter como alvo outras coisas que não sejam sujeitos, pessoas, mas terras, por exemplo. No exercício do poder de soberania as individualidades são multiplicadas. Há uma multiplicidade dos corpos, pois quase nunca as ações são em direção a um indivíduo, mas a todos. Diferentemente do poder disciplinar, como será analisado mais adiante, que individualiza os corpos em sua coletividade. No entanto, percebe-se uma individualização do lado do soberano que exerce o poder de soberania, através do corpo do rei. Todavia essa individualização do corpo do rei é paradoxal, no momento em que o poder não pode sucumbir com a inexistência do rei. De todo modo é necessária a continuidade, a permanência do corpo do rei que se reafirma em seu reino. Assim, pode se dizer que não existe uma singularidade do corpo do rei, posto que este deve continuar existindo para além do indivíduo (FOUCAULT, 2006).

De acordo com Norbert Ellias (1993), a reafirmação frequente do poder de soberania exercido pelo rei era necessária, não apenas para sua reatualização, mas também para a manutenção da posse de suas terras, suscetíveis à posse exercida pelos vassalos. Os reis tinham que delegar a outros poderes sobre parte do seu território, em razão de sua extensão, por questões econômicas e de locomoção.

Por outro lado, não havia juramento de fidelidade ou lealdade que impedisse os vassalos que representavam o poder central de afirmar a independência de suas áreas tão logo sentissem pender em seu proveito a balança de poder. Esses senhores territoriais ou príncipes locais possuíam na verdade, a terra que o rei outrora controlava. Exceto quando ameaçados por inimigos externos, não mais necessitavam do rei. Colocavam-se fora do seu poder (ibid., p. 26).

Desta forma, percebe-se que o poder de soberania do rei não funcionava de maneira permanente sobre aqueles que estavam localizados distantes geograficamente, por exemplo. Isso provocava questões sobre o

(30)

próprio arcabouço utilizado para a manutenção do soberano, uma vez que necessitava de mecanismos externos, visíveis, presentes para que seu poder se mantivesse. Isto é, além do alcance do rei, onde seus súditos situavam-se longe de seus tentáculos, seu poder poderia ser questionado e talvez até sucumbido, conforme a citação acima.

Diferentemente do poder disciplinar, que será examinado mais adiante, o poder de soberania não incide tanto nos corpos, mas sobre a terra e aquilo que é produzido nela, rogando para si mecanismos como tributos e obrigações para se manter ( FOUCAULT, 2010)

No entanto, colocadas as características principais do poder de soberania, cabe a seguinte pergunta: onde estaria o poder disciplinar no momento em que as organizações sociais eram marcadas pelo poder de soberania?

Partindo da compreensão que o poder soberano pune, estaria o poder disciplinar justaposto ao poder soberano ou dele seria completamente alheio? Na atualidade há essa justaposição de poderes?

Parte da resposta para essas indagações estaria nos mosteiros que se tornaram a principal estrutura educativa constituída pelo cristianismo. Principal centro de formação, os mosteiros ganhavam importância no "desenvolvimento do trabalho erudito, conservação do passado, favorecimento da vida espiritual, culta e disciplinada" (CAMBI,1999, p. 132). No intento de fomentar tal desenvolvimento do erudito e da vida culta e disciplinada, ao longo da Idade Média é retomada a dialética, através da Escolástica. Tornou-se preceito didático no ensinamento das classes medievais, inspirado em princípios racionais que justificavam a metafísica cristã e toda lógica de um poder disciplinar que veio a tornar a forma prevalente de poder em nossos tempos.

(31)

2.1.2: Da Paideia ao Cristianismo:

Com as Cruzadas6, houve a redescoberta da cultura grega, através das traduções de obras antigas, em especial as obras de Aristóteles que se deteve em praticar um modelo de educação também preocupada com a formação moral do sujeito.

Efetivamente, por meio das Cruzadas redescobrem-se, no século XII, obras esquecidas de Aristóteles, traduzidas para o árabe e comentadas por muçulmanos e por judeus. Há uma espécie de admiração excessiva por Aristóteles, e a teologia pode assim beneficiar-se de novas contribuições. Sonha-se com uma ciência que possa servir de base para a fé e permita defender a doutrina da Igreja contra os heréticos. Razão de ser de um movimento intelectual, a escolástica ocupa a cena entre os séculos XII e XIV por ter precisamente o objetivo de conciliar a razão e a fé. Com a escolástica, a teologia recorre à razão e se torna uma ciência (GAUTHIER e TARDIF, 2014, p 66).

No método adotado pela Escolástica utilizava-se o TRIVIO (gramática, retórica e dialética) e o QUADRÍVIO (aritmética, geometria, astronomia e música). Disciplinas completamente formais e centradas no raciocínio (GAUTHIER e TARDIF, 2014). O trivium e o quadrivium foram absorvidos pelo cristianismo para a disseminação da fé cristã dentro das escolas pagãs e naquelas encontradas nos mosteiros.

Mas, para compreender esse ponto de partida a respeito da educação fecundada no interior dos mosteiros é necessário um recuo histórico anterior à Idade Média. Isso se deve pelo fato de se entender que o delineamento da educação escolar, com seus elementos disciplinares nascentes e posteriormente modificados pelo poder soberano, iniciou-se ainda na Antiguidade.

O fim do império romano no ocidente abriu caminho para que a Igreja se colocasse como "protetora da cultura intelectual" (GAUTHIER e TARDIF, 2014, p. 59). Após tornar-se uma instituição regida e tolerada pelo império romano,

6 Tendo início no século XI, as Cruzadas consistiram em expedições armadas a Jerusalém,

para libertar a Terra Santa dos invasores mulçumanos que impediam as peregrinações dos cristãos (GAUTHIER e TARDIF, 2014).

(32)

visto que a Igreja Cristã era, em tempos pretéritos, perseguida pelos romanos7, o cristianismo é considerado como religião oficial do império, por volta do século IV. Com seu viés universalista, acolhendo a todos os povos, através da pregação dos evangelhos, o cristianismo "dá esperança aos desertados, aos pecadores, aos doentes e miseráveis" (Ibid., p. 55), garantindo sua inserção e expansão. Todavia, o cristianismo também obteve aceitação das classes mais favorecidas, pelo mesmo caráter universalista.

Dada a continuidade, inicialmente a cultura judaica que supunha o conhecimento das leis e do antigo testamento, o cristianismo se inscreve como religião erudita que requer o conhecimento do novo testamento, mantendo uma relação muito estreita com a palavra escrita, com o livro. Por conseguinte, o cristianismo, para sua expansão, necessitava de todo um arcabouço que permitisse o letramento de seus adeptos.

Segundo, Gauthier e Tardif:

(...) o cristianismo aparece e se difunde em um mundo pagão que é, deve-se sublinhar este aspecto, um mundo letrado. Nesse sentido, a cultura pagã e a religião cristã, longe de opor-se radicalmente, se cruzam constantemente. Esse fato é essencial: o cristianismo aceitou as escolas clássicas gregas e romanas existentes. A Igreja primitiva, perfeitamente consciente do caráter "erudito" (grifo do autor), letrado, da religião cristã, deixou a juventude se formar nas escolas de tipo pagão, isto é, as escolas gregas e romanas. Entretanto, dá-se no meio cristão um ensino exclusivamente cristão, mas ao lado das escolas pagãs (1993, p. 56)

A Igreja utilizava-se da estrutura educacional existente nas escolas clássicas gregas e pagãs para educar crianças e jovens. Assim, nas escolas eram lecionados a retórica, indubitavelmente grega, mas também uma pauta concernente à Igreja e à vida cristã.

No ano de 313, séc. IV, Constantino, imperador de Roma, outorga à Igreja Cristã o papel de representante da religião do Império Romano. Inicia-se, a partir desse momento, a longa empreitada da Igreja Cristã no desenvolvimento de ações "sobre toda a comunidade, substituindo cada vez

7 "Os cristãos representavam uma ameaça, principalmente por sua recusa de prestar juramento

(33)

mais o poder civil, primeiro ligando-se a ele, depois tomando o seu lugar e fazendo o papel de reguladora, formativa e administrativa" (CAMBI, 1999, p. 126). Para alcançar seu projeto de consolidação, a Igreja inaugura suas próprias práticas educativas, sobretudo, a partir da concepção da paideia cristã que rompe com preceitos importantes de algumas ideias da paideia clássica.

A paideia cristã parte de alguns pressupostos da paideia clássica, concepção de educação da Grécia antiga, concebida no curso dos séculos V e VI a. C.. O império romano por volta de 202 a. C entra em contato com a cultura grega e absorve dela as concepções da paideia clássica. A Igreja Cristã como representante da religião do império romano também toma para si concepções da cultura grega, no entanto, reformula algumas delas para que possam atender, e assim universalizar ideias e valores da ética cristã. Surge nesse contexto a paideia cristã, que se favorece da cultura grega, vinculava a educação à formação cultural e moral, embora possuísse uma visão educativa austera e rigidamente religiosa (JAEGER, 2013)

Na paideia clássica a formação do ser humano deveria ser voltada para a construção da sua universalização8, formação cultural e ética, utilizando-se da dialética. O homem deveria ser formado através de modelos educativos que lhe tornasse apto a "reconhecer e realizar sua própria e livre universalidade humana" (CAMBI, 1999, p. 86).

Na Grécia de Sócrates, Platão, Isócrates e Aristóteles (séc. VI e V) a filosofia afirma-se como ciência régia organizando, dentre outras questões, os problemas éticos e cognitivos concernentes à vida humana. A paideia clássica confirmava-se como centro teórico da pedagogia da Antiguidade. Os principais filósofos do período clássico inauguram questões como a formação individual e universal, a partir do autodomínio e autodireção; a formação da alma individual; a visão política da educação, a partir das classes sociais da polis9; a educação oratória; a educação para a política, segundo a estratificação social da polis. Apesar de cada filósofo ter atribuído à paideia clássica algumas de suas perspectivas sobre a educação, a principal ideia que as unia era de que a

8

A educação universal remete ao ideal de uma formação mais geral e mais livre. (CAMBI, 1999)

9

(34)

educação, traduzida na pedagogia, estaria a serviço da formação intelectiva do homem, mais livre e sem limites, através do humanismo (humanitas) (Ibid., p. 87), no entanto, mantinha os interesses da polis no cerne de suas atenções.

No cenário do período clássico, apresenta-se também o "Helenismo", período de afirmação da humanitas10 como modelo educativo, no período de declínio da polis. Para Cambi (1999), é um período de "afirmação da individualidade típica de um sujeito que se sente e se reconhece, sobretudo como homem e não mais como cidadão" (p. 94). O helenismo coincide com o período em que se desenvolve a hegemonia da cultura grega no Mediterrâneo, em que se chega a constituir uma verdadeira koiné grega (uma língua grega) e a firmar um modelo de cultura baseada na humanitas.

Surge assim, a paideia helenística. Nessa concepção, a formação da subjetividade se realiza como cuidado de si, buscando a autorregulação, num constante jogo de renúncias e prazeres, através da utilização do tempo com práticas e atividades que promovessem o encontro com o sujeito interior, reconhecido como ascese.

Assim, a Igreja, atrelada ao império romano em sua gênese, herda a concepção de paideia do mundo clássico, que serviu de suporte para a construção da paideia cristã. No entanto, durante o século IV, houve grandes conflitos entre paganismo e cristianismo (CAMBI, 1999 e JAEGER, 2013). Conflitos que foram atenuados com a simbiose da cultura cristã com a cultura helenística, sendo Santo Agostinho (354 d.C - 430 d.C) o principal responsável por realinhar a cultura grega ao modo de pensamento cristão.

Santo Agostinho foi considerado o mestre do ocidente cristão (Ibid., p. 135) com suas obras: Confissões; De Magistro; De doctrina christiana; A cidade de Deus; De catechizandis rudibus. Foi um dos grandes responsáveis em propagar a educação cristã medieval. O projeto educativo de Santo Agostinho foi aquele:

10

(35)

(...) que desfraldou - pela primeira vez em toda a sua altura/complexidade - a bandeira da educação cristã, destacando suas diferenças radicais em relação aos itinerários da paidéia clássica: seu caráter pessoal, sua dramaticidade, sua oscilação entre cultura e ascese, sua referência a um Mestre supremo (Cristo, modelo de humanidade sublime), sua colocação dentro da história como responsável pelas suas culpas e expectativas, com espírito, ao mesmo tempo, penitente e profético (Ibid., p. 138)

Inaugurado o modelo de educação cristã, sendo a Igreja sua titular, a Idade Média teve seus recursos educacionais voltados para consolidação dos seus preceitos e conservação da sua cultura sendo os mosteiros seus guardiões.

2.1.3: A disciplina no cotidiano das comunidades religiosas

Caracterizado pela vida cultural interiorizada, as escolas monacais se transformaram nas mais importantes instituições de ensino entre os séculos V e XI. Segundo HILSDORF (2006) "essas comunidades apresentavam outros traços comuns de estabilidade, oração, trabalho manual, obediência ao abade e cultura religiosa, que supunham formação e aprendizado formal" (p. 13).

A vida nos mosteiros era regida por mecanismos que controlavam os horários das orações, das atividades laborais, das refeições, instituindo regras de obediência interna, fortalecendo todo um sistema hierárquico. Essa instituição consolidou-se como local de orientação espiritual, através de processos formativos e práticas balizadas pela ascese, necessária para disciplinar a vida dos religiosos que ali residiam. Desta forma, os mosteiros e outras comunidades religiosas representavam, na Idade Média, núcleos de exercício do poder disciplinar, com todos os seus regramentos e controle sobre as ações dos monges e de seus integrantes. Assim, o poder disciplinar colocava-se justaposto ao poder de soberania em seu pleno exercício, através do controle e de mecanismos de disciplinarização sobre às ações dos monges.

(36)

No entanto, o poder disciplinar não apenas inscreveu uma outra forma de dominação em suas iniciais manifestações, ele também inovou as técnicas do poder, através de novos mecanismos.

Sobre essa afirmação Foucault diz que:

Ora, o que me parece importante é que esses dispositivos disciplinares tais como vemos nas comunidades religiosas tiveram, no fundo, durante a Idade Média e até o século XVI inclusive, um papel duplo. Claro, eles se integraram ao esquema geral de soberania, ao mesmo tempo feudal e monárquica; é verdade que funcionaram de maneira positiva no interior desse dispositivo mais geral que os enquadrava, que os suportava, em todo caso que os tolerava perfeitamente. Mas também tiveram um papel crítico, um papel de

oposição e de inovação (grifos meus). Creio que se pode dizer

muito esquematicamente o seguinte: de um lado, é através das elaborações ou, ainda, das reativações dos dispositivos disciplinares que se transformaram, na Igreja, não apenas as próprias ordens religiosas, mas as práticas religiosas, as hierarquias e a ideologia cristã também (2006, p. 80).

Nesse contexto as Ordens e comunidades religiosas colaboraram para a transformação das práticas religiosas incrustadas, até então, nas relações feudais e do exercício do poder de soberania. Assim, os mecanismos disciplinares instituídos nessas comunidades acabaram por gerar inovações nos campos econômicos e políticos (FOUCAULT, 2006). No campo econômico, consolidaram-se as relações disciplinares, como: controle do tempo; prática de atividades laborais manuais; regulação do regime alimentar; etc, desencadearam mudanças econômicas diversas daquelas exercidas nas ordens monásticas em um dispositivo de soberania. No campo político, os mecanismos disciplinares representavam o rompimento com certas práticas de soberania, inaugurando uma nova forma de dominação.

Apresenta-se como exemplo a Ordem Beneditina, fundada no século VI por São Bento. Os monges beneditinos "submetiam-se a uma disciplina rigorosa e dedicavam-se ao trabalho intelectual e manual" (ARANHA, 2006, p. 106). Mais tarde, já no século XVI, a história apresenta os Jesuítas que, com suas comunidades religiosas instaladas no novo mundo, regiam suas rotinas e a dos nativos com uma complexa engrenagem disciplinar.

Como reação à reforma cristã protestante a Igreja católica reagiu com a contrarreforma. Uma de suas ações foi a criação da Companhia de Jesus em

(37)

1534 por Inácio de Loyola. A Ordem possuía como proposta a propagação da fé católica pelo mundo e uma de suas estratégias foi a criação de colégios para ensinar, dentre outros conhecimentos intelectuais e morais, a fé cristã. Aranha afirma que:

Os jesuítas tornaram-se famosos pelo empenho em institucionalizar o colégio como local por excelência de formação religiosa, intelectual e moral das crianças e dos jovens. Para atingir esses objetivos, instauraram rígida disciplina, aplicada nos internatos criados para garantir proteção e vigilância. Além de controlar a admissão dos alunos, concediam férias bem curtas para evitar que o contato com a família afrouxasse os hábitos morais adquiridos.(2006, p. 129)

Como método de ensino os jesuítas utilizavam o Ratio Studiorum11 que organizava a rotina pedagógica e a organização administrativa escolar. No entanto, os jesuítas também se ocuparam de conquistar novos adeptos ao catolicismo, através da catequese dos nativos de diversos locais do mundo. Para tanto, criavam verdadeiras colônias onde regulavam a rotina dos nativos com austera disciplina, ensinando a língua do povo colonizador e a fé cristã, durante mais de duzentos anos, findando apenas na segunda metade do século XVI.

2.1.4: A ascese como manifestação da disciplina

A Idade Média começa a entrar em declínio e chega ao fim, em meados do século XV, dando espaço às novas formas de produção e, com elas, às novas maneiras de se pensar. Para tanto, a compreensão sobre os poderes de soberania e, sobretudo disciplinar, que se rascunhava na Idade Média, na perspectiva do controle dos corpos, será percebida ao longo deste estudo, a partir da consolidação completa da hegemonia do poder disciplinar na concepção da escola moderna. Suas consequências e as subjetividades constituídas em seu exercício são fundamentais para a compreensão do

11

Sobre o Ratio Studiorum consultar FRANCA, Leonel. O Método Pedagógico dos Jesuítas. Rio de Janeiro: Agir, 1952.

(38)

funcionamento do modelo escolar que se tem hoje e, por conseguinte, de sua crise.

Todavia é necessário mergulhar na análise dos conceitos fundamentais para esta pesquisa. Uma delas é a compreensão do que seja disciplina na totalidade de suas concepções.

O dicionário Houaiss (2001) apresenta oito significados para a palavra disciplina:

1) ensino e educação que o discípulo recebia do mestre; 2) obediência às regras e aos superiores; 3) regulamento sobre a conduta dos diversos membros de uma coletividade imposto ou aceito democraticamente, que tem por finalidade o bem-estar dos membros e o bom andamento dos trabalhos; 4) ordem bom comportamento; 5) obediências à regras de cunho interior, firmeza, constância; 6) castigo, penitência, mortificação; 7) ramo do conhecimento; ciência, matéria; 8) cordas, correias ou correntes com que frades, devotos e penitentes se flagelam.

Percebe-se que a palavra disciplina está intrinsecamente ligada aos conceitos de ordem, conduta, comportamento e regras. Além desses conceitos também é percebido o seu sentido ligado à firmeza, mortificação e penitência, consistindo em características e condutas de ordem interior e disciplinar. Tal fato, talvez revele que as práticas disciplinares não são exclusivamente extrínsecas, mas também estão na ordem interior das condutas dos sujeitos, que não apenas se sujeitam à regras exteriores, mas também criam suas próprias regras, a fim de investigarem interiormente seus corpos e espíritos.

A palavra disciplina tem vários sentidos e conotações. Um deles é a ascese, na qual se imergirá a pesquisa no momento e que para Foucault (2016, p. 45) "tratava-se de constituição de si mesmo, isto é, da formação de uma relação consigo mesmo que fosse plena, acabada, completa, autossuficiente".

A ascese será analisada como ação disciplinarizante não apenas do corpo, mas da alma no que concerne ao cuidado de si, que contribuirá para um dado processo de subjetivação dos sujeitos.

(39)

Oriunda do grego, a ascese possui dois tipos de proposições, a ascese filosófica e a ascese cristã. Na ascese filosófica, presente na cultura helenística e romana, o objetivo era a concepção de práticas que proporcionassem o cuidado de si, de maneira que o sujeito se colocasse de forma "mais explícita, mais forte, mais contínua e obstinada possível - como fim da sua existência" (FOUCAULT, 2010, p. 296), ligando o indivíduo à verdade.

O cuidado de si, segundo à ascese filosófica, requeria alguns passos que deviam ser observados e seguidos para que se encontrasse a verdade. Essa busca consistia no encontro do indivíduo consigo mesmo, através da "subjetivação de um discurso verdadeiro em uma prática e um exercício de si sobre si” (Ibid., p. 297).

Segundo Foucault:

(...) o que caracteriza a ascese (áskesis) no mundo grego, helenístico e romano, quaisquer que sejam, aliás, os efeitos de austeridade, de renúncias, de interdição, de prescrição detalhada e austera que essa

áskesis possa induzir: ela jamais será fundamentalmente o efeito de uma obediência à lei. Não é por referência a uma instância como

a da lei que a áskesis se estabelece e desenvolve suas técnicas. A

áskesis é na realidade uma prática de verdade. A ascese não é

uma maneira de submeter o sujeito à lei: é uma maneira de ligar o sujeito à verdade. (2010, p. 283, grifos nossos)

O constante exercício do cuidado de si poderia acarretar na emancipação do indivíduo, uma vez que se reconhece enquanto sujeito de suas ações e não por preceitos advindos do poder externo que subjuga os outros (FOUCAULT, 1985).

Assim, entende-se que a ascese filosófica significava, sobretudo na cultura antiga, uma transformação e uma preparação do sujeito, através de uma relação plena que este estabelecia consigo. Tal preparação dotava os sujeitos de elementos que o protegiam e o conduziam à verdade, diante "de acontecimentos imprevistos" (ibid., p. 286), sem a intenção de superar-se a si mesmo, mas de ser mais preparado para aquilo que poderia lhe advir como intempérie. Ademais, a ascese importava na preparação do sujeito para uma

Referências

Documentos relacionados

Ao analisar o conjunto de empresas de dois segmentos da BM&FBOVESPA –Energia Elétrica e Bancos –, verifi cando as métricas fi nanceiras de rentabilidade e risco Nunes, Nova

Ainsi, nous avons pu vérifier que les musées sont plus participatifs et engagés dans la mise sur pied du projet que les autres partenaires (école, familles, chercheurs).. Nous

No anexo 6 são apresentados os métodos para o cálculo do número de estágios teóricos de McCabe-Thiele e o método para o cálculo do número de unidades de

Portanto, mesmo percebendo a presença da música em diferentes situações no ambiente de educação infantil, percebe-se que as atividades relacionadas ao fazer musical ainda são

Na Tabela 21 são apresentados os valores de degradação de todas as amostras de argamassa de revestimento confeccionadas com Votomassa, com adição de dióxido de titânio na

Após a utilização da história em quadrinhos e a sua leitura em sala de aula, os alunos receberam uma apostila simples como observaremos na próxima pagina na figura 11, contendo

Realizou-se um estudo utilizando os solventes metanol e etanol, em diferentes concentrações, para determinar-se qual solvente seria mais eficiente na extração dos

Nos anos destinados à educação infantil, as crianças precisam desenvolver algumas capacidades, entre elas: • desenvolver uma imagem positiva de si, atuando de forma cada vez