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DO ERRO: ENTRE DESCARTES E DAMÁSIO

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Academic year: 2019

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DO ERRO: ENTRE DESCARTES E DAMÁSIO

ACÁCIO BÁRBARA

Ciclo de palestras “Dez Livros que Mudaram o Mundo”

Organização conjunta das Bibliotecas das Escolas Secundárias Francisco Rodrigues Lobo e

Domingos Sequeira, Leiria

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Estrutura do trabalho

1- Introdução 2- O Autor 3- O Livro

4- A Filosofia Cartesiana: Um registo Epistemológico numa Fundamentação Metafísica 5- O Caso Phineas Gage

6- Que Erro? Erro de Quem? 6.1- O Erro

6.2- Que Erro?

6.3- Erro de quem? Diferentes Registos de Análise 6.4- O Erro de um Título

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DO ERRO: ENTRE DESCARTES E DAMÁSIO 1- Introdução

O aceitar da tarefa de apresentar uma palestra sobre a obra “O Erro de Descartes”, de

António Damásio, neste ciclo de Palestras “Os Dez Livros que Mudaram o Mundo”, organizado

em conjunto pelas Escolas Secundárias Rodrigues Lobo e Domingos Sequeira, de Leiria, representa para mim um desafio; tal como foi para o autor, seguramente, um desafio também escrevê-lo.

Para mim é um desafio, na medida em que sendo eu um simples professor de Filosofia ao nível do ensino secundário, faltam-me, obviamente, os conhecimentos técnico-científicos da área médica, em particular num domínio tão profundo e especializado como é o das neurociências. Do mesmo modo, penso ter sido um desafio também para o autor, António Damásio, escrever o livro, uma vez que sendo ele um médico especializado na área das neurociências, com este seu trabalho ousou entrar no domínio de uma área de saber tão problemática e por vezes tão subjectiva como é a Filosofia; uma disciplina alicerçada em quase dois milénios e meio de História e tradição de saber.

Hoje em dia os saberes não são, nem poderão voltar a ser no futuro, estanques e separados uns dos outros; o conhecimento, sendo por natureza multidisciplinar, o seu progresso faz-se, por isso, de forma interdisciplinar. Este facto, longe de ser uma limitação, é uma virtude, na medida em que é na intersecção dos saberes, ou seja, nas pontes que se estabelecem entre domínios aparentemente diferenciados e longínquos do conhecimento, que uma síntese pode ser alcançada. Intrinsecamente ligada a esta síntese, é possível e necessária a humanização desses mesmos saberes. Pode dizer-se que até ao século XIX, a filosofia foi capaz de efectuar essa síntese. Era, aliás, isso que se esperava dela. Desde então para cá, devido à proliferação e cada vez maior especialização, essa síntese ficou dificultada: a filosofia perdeu a sua capacidade natural de a efectuar e o risco de os saberes se aprofundarem em áreas de especialização herméticas e separadas umas das outras foi crescendo. Em meu entender, este facto tem contribuído para a desumanização do saber, com consequências dramáticas na ruptura dos equilíbrios entre o Homem e a Natureza, bem como do próprio Homem com o seu mundo humano.

É por esta razão que o diálogo entre os saberes, por mais diferenciados entre si, deve ser assumido por todos no mundo de hoje. Porque, no fundo, é o Homem o móbil e também o elo dessa ligação, “a ponte sobre o abismo”, de que falava Nietzsche. E o abismo, nada mais é do que a desumanização e a perda do controlo humano sobre os saberes. Um abismo que antevejo trágico para o futuro do próprio Homem, se uma articulação humanizada dos saberes não for conseguida.

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que este auditório espera desta minha intervenção. Por isso, atendendo ao objectivo central destas palestras, que é o de divulgação e da necessidade de motivar os diversos públicos, nomeadamente os estudantis, para a leitura de obras marcantes da história do pensamento e da cultura, abordarei esta obra de António Damásio no que de relevante ela nos traz sobre as novas ciências neurológicas e sobre o conhecimento do funcionamento cerebral e dos processos psico-mentais humanos, na medida em que se ligam com o comportamento na sua dimensão ético-moral de seres sociais, de seres relacionais ao outro, seja ele o outro o nosso congénere humano, seja o outro enquanto comunidade bio-cósmica natural. É importante, por isso, compreender os mecanismos bio-psico-mentais do funcionamento da acção humana, entendida como acção inteligente e qual a natureza dessa inteligência. É, portanto, a este nível de abordagem que eu pretendo situar esta minha comunicação.

2- O Autor

António Damásio, cientista português, um dos nomes mais destacados a nível mundial no domínio da investigação no campo das neurociências, formou-se em 1974 na Faculdade de Medicina de Lisboa, é professor no Salk Institute for Biological Studies na Califórnia, dirige o Departamento de Neurologia da Universidade de Iowa, é membro do Institute of Medicine da Nacional Academy of Sciences e membro da American Academy of Arts and Sciences.

Os seus trabalhos têm-lhe valido enorme reconhecimento da comunidade científica internacional e também do grande público. Referem-se os seguintes galardões: Prémio Pessoa (1992), em conjunto com a sua esposa Hannah Damásio, Prémio Beaumont (1995), da Associação Médica Americana, prémio Nonino (2003), prémio Príncipe das Astúrias (2005). Os seus livros “o Erro de Descates”, “O Sentimento de Si” e o mais recente “Ao Encontro de Espinosa”, foram autênticos ‘best-sellers’, que lhe valeram o reconhecimento público mundial, como atestam as mais de duas dezenas de línguas em que as suas obras estão traduzidas.

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3- O Livro

Cumpre-me fazer algumas observações prévias:

1. De modo nenhum considero que este seja um livro que tivesse mudado o mundo! 2. Se algum houve que o tenha feito, não foi seguramente este.

3. Coloco algumas reservas à veracidade do título e, se erro houver, talvez seja de Damásio pela leitura simplista e descontextualizada que fez de Descartes. E ainda que não haja propriamente erro, há pelo menos um equívoco de Damásio; um equívoco consubstanciado no título “O Erro de Descartes”.

No entanto, estas observações não significam que eu não considere esta obra importantíssima e pioneira nos domínios a que se refere. De facto, nesta obra, Damásio foi pioneiro de um percurso de investigação científica transversal que, partindo da investigação Fisioneurobiológica do cérebro, atravessa áreas tão tradicionais como a Filosofia, a Psicologia e a Sociologia, ao mesmo tempo que abre novos campos disciplinares de investigação, como as ciências da cognição, a “Neurofilosofia”, a “Neuroética”, ou a “Neuroestética”, etc. 1.

Não sendo objectivamente um livro de Filosofia, nem tampouco sobre a Filosofia cartesiana

2, pode colocar-se legitimamente a questão: porquê este título, quando é sabido que inicialmente o

título pensado foi “Sinto, logo existo”, em contraponto com o “Penso, logo existo”, de Descartes e não “O Erro de Descartes”? Diga-se, que a ideia inicial do “Sinto, logo existo” se ajustava muito melhor ao propósito e ao conteúdo do livro de Damásio. Também a expressão “uma paixão pela razão” 3, que intitula o capítulo onze, sintetiza perfeitamente o conteúdo e o propósito do livro. Embora mediaticamente menos marcante, esta expressão daria obviamente um excelente título. Mas não foram estas as escolhas de Damásio.

O título escolhido é, fundamentalmente, e em meu entender, uma estratégia de Markting muito bem conseguida, que surtiu um efeito eficaz, a atestar pelo número de exemplares vendidos em todo o mundo e de traduções efectuadas. Como “best seller” também entre nós, nesse ano o livro de Damásio só teve paralelo num outro título, curiosamente também na área da Filosofia, “O Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder.

De facto, com o título principal (“O Erro de Descartes”) Damásio posiciona-se numa perspectiva de ruptura epistemológica com uma tradição filosófica (racionalismo dualista) e com um paradigma científico (mecanicismo) iniciado na Época Moderna (Descartes/Kepler/Galileu/Newton). Esta ideia foi eficazmente acolhida numa opinião pública

1 Ver entrevista do neurocirurgião João Lobo Antunes, RTP 2, Programa “Câmara Clara”, 12.01.07.

2 A referência a Descartes e ao cartesianismo aparece cerca 30 vezes no livro, que na edição portuguesa ultrapassa as

300 páginas. Se considerarmos ainda que na obra em análise apenas um subcapítulo do capítulo 11, num total de 5 páginas, é dedicado a Descartes, facilmente concluímos que este livro intitulado pomposamente “O Erro de Descartes”, não é um livro sobre Descartes nem sobre o cartesianismo.

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esclarecida, que mais facilmente ficou seduzida por essa ideia de ruptura filosófico-epistemológica, do que ficaria com o tema efectivo do livro, a saber, Emoção, Razão e Cérebro Humano, que na capa vem secundarizado em subtítulo, face à força da ideia imprimida pelo título principal.

No fundo, trata-se de um livro bastante agradável de ler, escrito com gosto e desenvoltura, por vezes, como se de um romance se tratasse. É frequente a evocação pelo autor de múltiplas referências de cultura geral muito diversificada, sobretudo da literatura e do cinema, num notório o objectivo do autor em cativar o grande público leigo em matérias tão especializadas como a das ciências neurológicas 4.

O Propósito do livro é desmontar a convicção tradicional sobre a natureza da racionalidade humana: uma suposta racionalidade clara, luminosa, lúcida e fria, por oposição a uma suposta emocionalidade afectiva e sentimental obscura, instável e desmedida.

Essa visão tradicional fundamentava-se na ideia de que decisões sensatas provêm apenas de uma cabeça fria e de que a emoção e a razão são tão misturáveis quanto a água com o azeite 5. Essa mesma tradição tê-lo-ia levado a aceitar que os mecanismos da razão e da emoção existiriam em regiões distintas da mente, mas em separado e sem qualquer ligação entre si; cada uma delas assente em sistemas neurológicos cerebrais também perfeitamente diferenciados.

4

Evolução das Neurociências: Desde a antiguidade que a interrogação sobre a natureza do cérebro e do seu funcionamento se coloca. Primeiro Hipócrates (460-370 ac.) e depois Galeno (129-200 dc.), ambos consideraram o cérebro o órgão das sensações e da inteligência. Contudo, só no século XIX, sob influência da corrente positivista na Filosofia e nas Ciências, começou verdadeiramente o estudo do cérebro, particularmente com a descoberta das localizações cerebrais e o aparecimento dos primeiros trabalhos sobre a teoria celular da rede nervosa. Olhemos este pequeno esquema cronológico dessa evolução:

1795: Cabanis, fundador da psicofisiologia, adianta que o cérebro é tanto o órgão do pensamento como o estômago é o da digestão;

1808: Cuvier impulsiona uma dissertação com vista à eleição para o Instituto de França, defendendo que as diferentes

"faculdades" do espírito (percepção, aprendizagem, memória, vontade, etc) e muitas outras coisas como a causalidade, a comparação ou a combatividade estão todas localizadas em regiões particulares e precisas do cérebro;

1820: Spurzheim e outros desenvolveram a teoria baptizada frenologia cujos ares, falsamente científicos, conheceram um grande sucesso popular, mas com o abandono da "psicologia das faculdades", a frenologia desaparece;

1ª metade do século XIX: constata-se que as diversas funções psicológicas ocupam o mesmo lugar na superfície do cérebro e que, por isso, constituem um sistema unitário;

1861: Broca apresenta, perante a Sociedade de Antropologia de Paris, um frasco de álcool contendo um cérebro com uma lesão do hemisfério esquerdo, estabelecendo a localização cerebral da linguagem;

1865: confirma-se finalmente que a "sede da faculdade da linguagem articulada" se situava no lobo frontal esquerdo, ao mesmo tempo que se reafirmava o princípio duma dominância hemisférica esquerda para a faculdade da linguagem;

1870: Frisch e Hitzig localizam o centro motor no córtex pré-central do cão e D. Ferrier especifica a esfera visual no lobo occipital;

1873: Golgi esboça a teoria celular do tecido nervoso;

1881: Munk mostra que a supressão unilateral dum lobo occipital não implica cegueira senão para metade do campo visual de cada olho;

1889: Ramon y Cajal demonstram que cada célula é uma unidade completa com os seus prolongamentos de fibras, de axónios e de dendrite;

1891: Waldeyer baptiza as células cerebrais nervosas de neurónios.

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Todavia, a experiência clínica com casos concretos levá-lo-ia a alterar o paradigma de análise da relação entre a razão e a emoção, na medida em que estes dois domínios se relacionam com a tomada de decisões.

“Tinha agora, porém, diante de mim, o ser inteligente mais frio e menos emotivo que se poderia imaginar, e, apesar disso, o seu raciocínio prático encontrava-se tão diminuído que produzia, nas andanças da vida quotidiana, erros sucessivos numa contínua violação do que o leitor e eu consideraríamos ser socialmente adequado e pessoalmente vantajoso” 6. Assim se referia Damásio ao caso mais marcante de “O Erro de Descartes”.

Este caso induz as seguintes questões:

1. Por que razão é que uma mente racional, perfeitamente lúcida e saudável, após doença neurológica que lhe danificou um sector específico do cérebro, deixou, de repente, de ser capaz de tomar decisões socialmente ajustadas e equilibradas?

2. Dependerá uma decisão racional unicamente dos mecanismos racionais da mente humana? Ou a eles é necessário ajustar-lhes outros mecanismos que conduzam ao justo equilíbrio social e moral dessa decisão?

Para Damásio, a resposta surge óbvia: “a emoção [é] uma componente integral da maquinaria da razão” 7. E esta é, no fundo, a tese central que Damásio pretende esclarecer com o seu livro.

Desta tese, o autor extrai seguinte consequência hipotética: “a razão pode não ser tão pura quanto a maioria de nós pensa que é ou desejaria que fosse, e que as emoções e os sentimentos podem não ser de todo uns intrusos no bastião da razão, podendo encontrar-se, pelo contrário, enredados nas suas teias para o melhor e para o pior”8.

Esta hipótese guia toda a obra de Damásio. E, como hipótese, ultrapassa o suposto dualismo cartesiano da “res cogitans” (Alma/Razão/Coisa Pensante) e da “res extensa” (Coisa Extensa/Corpo/Mundo Físico). E digo suposto, porque este dualismo, na história do pensamento ocidental, é muito anterior ao próprio Descartes: vem da Filosofia Grega, e continua com a tradição platónica, neo-platónica e cristã; diria mesmo que esta tradição dualista é matricial a toda a estrutura do próprio pensamento ocidental, incapaz de pensar, como diria Nietzsche, para além do jogo dos contrários: neste caso, da razão e da emoção, da alma e do corpo.

“Escrevi este livro como a minha versão de uma conversa com um amigo imaginário, curioso, inteligente e sensato, que sabia pouco acerca de neurociência mas muito acerca da vida. Fizemos um acordo: a conversa tinha de ter benefícios mútuos. Para o meu amigo, esses benefícios consistiam em aprender coisas novas acerca do cérebro e daquelas misteriosas coisas mentais;

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para mim, consistia em esclarecer as minhas próprias ideias à medida que explicava a minha concepção do que são o corpo, o cérebro e a mente. Concordámos em que não transformaríamos esta conversa numa aula maçadora (...). Eu falaria sobre factos estabelecidos, factos não confirmados e hipóteses, mesmo quando não encontrasse nada para as suportar a não ser bom senso e intuições. Falaria sobre trabalhos em progresso, sobre vários projectos de investigação então decorrentes e sobre trabalhos que só seriam iniciados muito tempo depois de a conversa terminar (...).

No início da conversa, tornei claro o meu ponto de vista sobre os limites da ciência: é com cepticismo que encaro a presunção da ciência relativamente à sua objectividade e ao seu carácter definitivo. Tenho dificuldade em aceitar que os resultados científicos, principalmente em neurobiologia, sejam algo mais do que aproximações provisórias para serem saboreadas por uns tempos e abandonadas logo que surjam melhores explicações. No entanto, o cepticismo relativo ao actual alcance da ciência, especialmente no que diz respeito à mente, não envolve menos entusiasmo na tentativa de melhorar as aproximações provisórias.

Talvez a complexidade da mente humana seja tal que a solução para o problema nunca possa vir a ser conhecida devido às nossas limitações intrínsecas. Talvez nem sequer devêssemos considerar que existe um problema e devêssemos, em vez disso, falar de um mistério, estabelecendo uma distinção entre as questões que podem ser adequadamente abordadas pela ciência a as questões que provavelmente nos iludirão sempre (...).

Por esta altura, é provável que o leitor já tenha descoberto que esta conversa não se debruçou sobre Descartes nem sobre a filosofia, embora tenha, sido por certo acerca da mente, do cérebro e do corpo. O meu amigo sugeriu que a conversa decorresse sob o signo de Descartes, visto não existir forma de tratar tais temas sem evocar a figura emblemática que moldou a abordagem mais difundida respeitante à relação mente-corpo. Foi nessa altura que me apercebi de que, de um modo curioso, o livro seria acerca do Erro de Descartes” 9.

4- A Filosofia Cartesiana: Um Registo Epistemológico numa fundamentação metafísica

No afã de procurar a verdade, o espírito humano necessita de se dotar de um método capaz de a alcançar. Por esta razão, Descartes procura esse método que lhe permita não só chegar à verdade, mas sobretudo a verdades sobre as quais não subsistam quaisquer dúvidas 10. Assim, para o filósofo francês, é de elementar bom senso que, antes de admitir qualquer coisa por verdadeiro, se

9 Ibidem, Pp.19-20

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submeta primeiro à analítica da dúvida 11. A dúvida como método, ou dúvida metódica, é, pois, a base a partir da qual Descartes procura edificar todo o sistema do seu pensamento 12.

Todavia, desta dúvida resulta uma primeira certeza inabalável: a do eu (cogito). Com efeito, como pode não existir o sujeito que duvida? Se duvido, penso. E se penso existo 13. Trata-se, pois, de um registo epistemológico, aquele em que Descartes se situa. O autor procura construir um percurso de acesso à verdade, no qual encontre um apoio sólido, como seja, para ele, a certeza da sua existência enquanto sujeito pensante 14. Uma certeza sob a qual não pode subsistir mais qualquer elemento de dúvida.

Mas qual a natureza do eu, do sujeito que pensa? Para Descartes, trata-se, paradoxalmente, de uma ‘natureza não natural’; de uma coisa que não é coisa; de um ser que não é corpóreo, mas tão só racional: uma alma, um pensamento. A natureza do cogito é, assim, pensar. E este é talvez o erro maior de Descartes, a saber, o supor que pode haver pensamento desligado de um suporte corpóreo; um pensamento apenas como registo espiritual, que não precisa de nenhum corpo, de nenhum cérebro para se realizar enquanto pensamento 15.

Tratar-se-á efectivamente de um erro? À luz dos actuais conhecimentos cientificos, e entendida literalmente, esta ideia de um pensamento descorporizado, sim, é um erro. Como dizia Edgar Morin, o homem é um ser bio-psico-social 16: tudo o que é e tudo o que faz, incluindo pensar, fá-lo neste contexto interactivo entre o bio, o psico e o social. Jamais seria possível admitir hoje um pensamento sem o suporte bio-físico do corpo.

Mas será que Descartes supunha mesmo o contrário desta actual evidência científica? Penso que não. Então, porquê tamanha enormidade do seu pensamento filosófico? Como referi acima, o registo em que o filósofo francês se situa não é de um registo factualista de consideração do humano na sua integralidade físico-psicológica, mas sim num registo epistémico-ontológico de busca de um principio em que possa alicerçar a construção do seu edifício filosófico; um princípio

11“Que para examinar a verdade é necessário uma vez na vida, por todas as coisas em dúvida, tanto quanto se puder”. In Descartes, Princípios da Filosofia, I, § 1.

12“Mas, porque agora desejava dedicar-me apenas à procura da verdade, pensei que era forçoso que eu (...) rejeitasse,

como absolutamente falso, tudo aquilo em que pudesse imaginar menor dúvida, a ver se, depois disso, não ficaria alguma coisa na minha crença, que fosse inteiramente indubitável” (Descartes, Discurso do Método, Cap. IV)

13 “E notando que esta verdade: penso; logo, existo (Cógito, ergo sum), era tão firme e tão certa que todas as

extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava” (Ib).

14“Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia

nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passo que se deixasse somente de pensar, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria razão alguma para crer que eu existisse (Descartes, Discurso do Método, Ib).

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“Por isso compreendi que [eu] era uma substância cuja essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é” (Ib.).

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que o leve num percurso lógico-racional dedutivo das ideia ao mundo, do pensamento às coisas. Trata-se de sustentar o seu pensamento na base de uma fundamentação metafísica, que na ânsia de encontrar um princípio seguro, suspendeu todo o juízo (epoché) e decidiu não aceitar por verdade tudo o que pudesse ser passível de dúvida, incluindo o próprio corpo, fonte de ilusões, de paixões e de insegurança em matéria de conhecimento, já que os sentidos enganam e na base deles nenhum conhecimento seguro se pode alcançar. É, por isso, uma dúvida assumida por Descartes no seu valor heurístico de base de sustentação e condição da verdade; dúvida hiperbólica, no limite da possibilidade metafísica de um génio maligno poder inclusivamente pôr todo o seu engenho em me enganar 17. Mas se me engana, sou, enquanto pensar ainda que erróneo. De resto, jamais seria crível que Descartes negasse a factualidade da condição corpórea do seu eu, o que, de resto, não faz; antes afirma essa união radical, como iremos ver 18.

5- O Caso Phineas Gage

Damásio começa o livro pela análise do caso de Phineas Gage, ocorrido no século XIX, para depois, associando a análise de outros casos semelhantes, clinicamente estudados por si (ex: Elliot) passar em revista algumas descobertas recentes no campo da neuropsicologia em seres humanos e animais.

Sugere, como hipótese de trabalho, a ideia de uma ‘rede’funcional entre os vários sistemas cerebrais, que funcionam de uma forma concertada a muitos níveis da organização neuronal e que, no fundo, a razão humana não está dependente de um único, mas de vários desses sistemas cerebrais. Nesta rede funcional, tanto as regiões cerebrais “de alto nível” como as de “baixo nível”, desde os córtices pré-frontais até ao hipotálamo e ao tronco cerebral, cooperam umas com as outras na feitura da razão 19.

Assim, conclui-se:

1. O cérebro, ainda que possuindo áreas de especialização funcional, funciona como um todo, uma unidade sistémica;

17 Cf. Descartes, Meditações, I, 12.

18 “Mas o que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto dizer? Quer dizer: uma coisa que duvida, que

compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente”, Ibidem, I, 8, p. 124. E mais adiante Descartes confirma a união da alma com o corpo: “A natureza também ensina por estas sensações de dor de fome, de sede, etc., que não estou apenas alojado no meu corpo como um marinheiro num navio, mas que estou muito estreitamente ligado a ele, e tão misturado que componho com ele como que uma unidade. Se assim não fosse, quando o corpo está ferido, eu, que sou apenas uma coisa pensante, não sentiria por isso dor, mas teria a percepção desta lesão pelo puro intelecto” (Ibidem, VI, 13, p.211). Ao contrário do que parece supor Damásio, Descartes dedicaria reflexão bastante à união da alma e do corpo (Cf. Descartes, Tratado do Homem, Paixões da Alma e Cartas à Princesa Elisabeth).

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2. A ideia de integração funcional do cérebro, ou seja, que funções tão complexas quanto a linguagem, a memória, a aprendizagem, etc., dependem do funcionamento integrado de várias área cerebrais;

3. A ideia de suplência ou função vicariante do cérebro, a saber, que o cérebro é possuidor de uma tal plasticidade funcional que permite recuperar funções perdidas em determinadas áreas cerebrais afectadas.

Quanto ao caso Gage, e segundo a documentação da época, corria o ano de 1848 e Phineas Gage, de 25 anos de idade, capataz de uma empresa de construção civil, que trabalhava para os caminhos de ferro Rutland & Burlington, preparava uma carga explosiva para detonar no interior de uma rocha. Por distracção sua, aquando da colocação da pólvora no interior do buraco na pedra, e sem que fosse colocada a areia a tapar a pólvora, condição para que a explosão não se projectasse para fora da rocha, Gage começou de imediato a calcar a pólvora com um bastão de ferro, utilizado para o efeito (cerca de 6 quilos de peso, um metro de comprimento e três centímetros de diâmetro). Uma faísca libertada por essa fricção faz de imediato explodir a pólvora, que lhe rebenta directamente no rosto. O bastão atinge-o pelo lado esquerdo da face, trespassa-lhe o crânio, atravessando a parte anterior do cérebro, saindo em alta velocidade pelo topo do cérebro, projectando-se a mais de 30 metros de distância, envolto em sangue e massa cerebral. Phineas Gage é projectado no chão, segundo as notícias de então, atordoado, silencioso, mas vivo e consciente. Para dar uma ideia da lesão física causada pelo bastão, segundo a descrição de um dos médicos que o observou, “o topo da cabeça assemelhava-se a um funil invertido”20.

O que é surpreendente nesta história é não só o facto de Phineas Gage sobreviver à explosão, com uma lesão crânio-encefálica daquela natureza, mas sobretudo ter sido capaz de falar e de permanecer lúcido e coerente após o acidente. E em menos de dois meses, o capataz foi dado como fisicamente curado e apto para o trabalho. Não obstante este sucesso clínico, do ponto de vista comportamental, Phineas Gage viria a sofrer uma extraordinária modificação de personalidade: “as suas disposições, os seus gostos e aversões, os seus sonhos e aspirações, tudo isto se irá modificar. O corpo de Gage pode estar vivo e são, mas tem um novo espírito a animá-lo”21.

A verdade é que, em resultado desse acidente, Phineas Gage deixou de ser o mesmo que fora até então. A mudança operada nele não residia na sua capacidade física, mas no seu novo carácter: de um homem de hábitos moderados e sociável, tornou-se um indivíduo grosseiro, caprichoso, emocional e moralmente instável. Esta inadequação aos padrões sócio-morais de então conduziu-o a uma vida de permanente instabilidade sócio-profissional até à morte, ocorrida em 1861, com 38 anos de idade.

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Em que sentido é que esta triste história do infeliz Phineas Gage, merece destaque científico? Destaquemos quatro aspectos:

1. Áreas de especialização funcionais do Cérbero. Para além de comprovar o que já se sabia do cérebro, como sede da linguagem, da percepção e das funções motoras, o caso Gage mostra que existem “sistemas no cérebro humano mais dedicado ao raciocínio do que outros e, em particular, às dimensões pessoais e sociais do raciocínio”22.

2. Relação do moral e do cognitivo. Mostra ainda que “a observância de convenções sociais e regras éticas previamente adquiridas poderia ser perdida como resultado de uma lesão cerebral”23, ainda que o intelecto de base e a linguagem não tivessem sido comprometidos.

3. Sistema de valores e mundo real. No fundo, o caso mostrou que no cérebro há algo que está encarregue de “propriedades humanas únicas”, nos domínios da responsabilidade social e ético-moral e na capacidade de organização da vida pessoal e social sob a égide de uma liberdade individual ou livre arbítrio. “O seu sistema de valores era agora diferente ou, se era o mesmo, não existia maneira de os antigos valores influenciarem as decisões que tomava”. O sistema de valores encontrava-se “desligado das situações da vida real” e, quando necessitava deles nos processos decisórios ou não estavam presentes ou influenciavam de forma mínima 24.

4. Processo de “Dissociação” (conceito da neuropsicologia). Representa uma discrepância entre as funções degeneradas e a integridade dos vários instrumentos da mente (atenção, percepção, memória, linguagem, etc.). No caso de Gage, o carácter diminuído das funções sócio-morais estava dissociado ou desenquadrado da cognição e do comportamento.

Da constatação das situações descritas pode concluir-se o seguinte:

Conclusão 1: existem regiões do cérebro humanos (córtices pré-frontais ventromedianos e córtices somatossensoriais), cuja danificação compromete funções tão importantes quanto o raciocínio, a tomada de decisões, as emoções e os sentimentos, tanto ao nível pessoal como social, entre outras 25.

Conclusão 2:“Parece existir um conjunto de sistemas no cérebro humano consistentemente dedicados ao processo de pensamento orientado para um determinado fim, ao qual chamamos raciocínio, e à selecção de uma resposta, a que chamamos tomada de decisão, com ênfase especial sobre o domínio pessoal e social”26.

Para além do confronto científico na época entre os que defendiam a perspectiva de que o cérebro era um todo funcional e não um conjunto de partes com funções específicas e os que, defendiam a perspectiva inversa, ie, que o cérebro possuía partes especializadas que davam origem

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a funções mentais distintas, qual o significado das modificações comportamentais verificadas no caso Gage?

Destacam-se as seguintes leituras hipotéticas:

1. A conduta sócio-moral normal humana requeria uma região específica do cérebro; 2. Observar convenções sociais, comportar-se segundo princípios ético-morais e tomar

decisões “requerem o conhecimento de normas e estratégias comportamentais e a integridade de sistemas específicos do cérebro”27.

A partir destas constatações, levanta-se necessariamente a questão da imputabilidade ou inimputabilidade da responsabilidade dos actos comportamentais desviados em resultado das lesões sofridas.

1. Teria Gage sensibilidade relativamente ao moralmente certo ou errado ou seria vítima de um “novo design cerebral”, do qual não era responsável?

2. E quanto aos múltiplos Gage anónimos que pululam entre nós, cuja possibilidade de acções destrutivas para si próprios ou para os outros são um perigo público constante? Qual a solução: compreendê-los para se poder resolver humanamente os seus/nossos problemas ou condená-los ao encarceramento ou à pena capital?

Somos chegados à intersecção crucial entre os domínios da neurobiologia com os domínios psico-socias, onde as questões de fundo que ao humano dizem respeito se colocam. Isto é, o plano filosófico da acção ético-moral, na fronteira entre a normalidade e a anormalidade comportamental.

Ouçamos Damásio a propósito do drama referido: “Gage perdeu algo exclusivamente humano: a capacidade de planear o seu futuro enquanto ser social. Até que ponto esteve consciente dessa perda? Poderá ser descrito como um ser consciente de si mesmo, tal como qualquer um e nós? Será sensato afirmar que a sua alma foi diminuída ou que perdeu a sua alma? E, se assim foi, o que pensaria Descartes se tivesse conhecimento deste caso e possuísse os conhecimentos que hoje possuímos sobre neurobiologia? Ter-se-ia interrogado sobre a glândula pineal de Gage?”28.

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6- Que Erro? Erro de Quem? 6.1- O Erro

Às questões acima colocada por Damásio a Descartes, eu responderia, obviamente, que sim. De facto, se Descartes tivesse conhecimento do caso Phineas Gage e se possuísse os conhecimentos actuais no campo da neurobiologia, ter-se-ia interrogado sobre a glândula pineal de Gage. Mas quer-me parecer que as questões colocadas por Damásio representam hoje uma clara e falaciosa provocação a Descartes. Não só porque o filósofo francês não lhe pode responder, nem possuía no seu tempo os actuais conhecimentos sobre o cérebro e as suas funções mentais, mas, sobretudo, porque essas questões encerram um juízo de valor mordaz e sobranceiro de alguém que, situado no plano mais ou menos seguro da actual abordagem científica, ajuíza sobre um outro plano distinto, o filosófico, à distância de quatro séculos.

Aparentemente Descartes incorreu num erro, o erro de que Damásio o acusa expressamente. Um erro que ficou consagrado sob a designação de Dualismo Antropológico, ou seja, o da consideração do humano como um ser dual, constituído por uma alma, substância pensante (Res Cogitans), e um corpo, entidade extensa, física (Res Extensa), segundo o filósofo, domínios completamente distintos entre si.

Paralelamente a este, um outro erro em que Descartes incorre é o do mecanicismo; no fundo um erro não apenas seu, mas de toda uma concepção científica moderna do mundo e da natureza, que perpassa pela Filosofia e se sistematiza na Física e na Astronomia com Copérnico, Kepler, Galileu e Newton, só para citar os mais representativos. Segundo esta concepção, tudo na natureza se assemelha a uma máquina e funciona segundo rigorosas leis mecânicas, que a ciência cuidaria de equacionar. Trata-se de uma mecânica de relojoeiro, que se estenderia também à biologia e à prática médica, razão pela qual se teria pensado uma mente (alma/res cogitans) descorporeizada e, daí decorrente, uma prática clínica de raiz somática, até hoje ainda muitas vezes “amputada” da mente.

São estes os erros, supostamente nascidos do pensamento cartesiano, que Damásio pretende ultrapassar à luz das actuais investigações das ciências neurobiológicas; erros que, na linguagem computacional dos nossos dias, pensariam o corpo em termos de ‘Harware’ e a mente de ‘Software’

29.

29“... a ideia de que a mente e o cérebro estão relacionados mas apenas no sentido de a mente ser o programa de

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6.2- Que Erro?

Porém, uma análise filosoficamente mais cuidada do pensamento cartesiano, que Damásio não cuidou de fazer, mostraria que o erro de que o cientista luso o acusa à luz dos actuais conhecimentos em neurobiologia, não o é tanto assim, ou não o será de todo, à luz da analítica filosófica. E se em matéria científica, por exemplo, as funções que Descartes atribui à glândula pineal poderão ser discutíveis, ainda assim o filósofo encontra nelas algo que contraria a acusação de que é alvo, isto é, de separar a alma do corpo. Afinal, a glândula pineal também é corpo. Onde está então o dualismo, considerando esta base somática da alma?

Com efeito, para Descartes, é na referida glândula, situada no cérebro, que se localizaria a alma racional 30. E esta estabelece a diferença radical entre o humano e o animal. Nela se unifica a alma e o corpo, interactuando um sobre o outro.

Pergunta-se: onde encontramos aqui a separação de que o acusam? Não reside a alma no corpo? Alma e corpo não interagem entre si? E ainda que seja errado essa residência da alma na dita glândula pineal, não vê o filósofo também nela uma unidade bio-psíquica entre a alma e o corpo? Ou, numa linguagem mais próxima de Damásio, uma unidade entre o domínio lógico do pensamento racional e o domínio patológico das emoções e dos sentimento, ambos sustentados numa base somática, que é o funcionamento neuronal do cérebro?

Assim, pergunta-se ainda: será Descartes o responsável efectivo pelo dualismo radical entre a alma e o corpo? E que dizer então da tradição do pensamento ocidental, que, desde Parménides e Platão, continuada pelo judeo-cristianismo, nos vem falando do dualismo da alma e do corpo, do sensível e do inteligível, da terra e do céu, etc.?

Terá razão Damásio ao acusá-lo desse erro maior na história ocidental, à luz actual da ciência? Admitiria, de facto, Descartes esta separação radical entre alma e corpo, colocada nos termos em que Damásio a ela se refere no plano neurobiológico?

Penso, sinceramente, que não. A crítica à ideia de separação entre alma e corpo é cientificamente correcta e epistemologicamente profícua, mas acusação de Damásio a Descartes não é legítima. Por um lado, porque o dualismo que encontramos no pensamento cartesiano enraíza muito profunda e longinquamente na nossa tradição ocidental de que Descartes é herdeiro e, portanto, quanto muito, o filósofo ter-se-ia limitado a dar-lhe continuidade; por outro lado, Damásio e Descartes não se situam no mesmo plano de análise do problema e, neste caso, a crítica só seria legítima se situada no mesmo plano argumentativo.

A verdade é que o problema da relação mente-corpo só aparece tematizada com alguma sistematicidade a partir da idade moderna, uma época em que a neurobiologia como ciência, obviamente, não existia. Descartes é um autor que se situa no epicentro dessa tematização. Este

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facto, aliado ao enorme desenvolvimento das ciências neurobiológicas nos nossos dias, conduz necessariamente a uma demarcação relativamente às concepções modernas da mente, assentes em conhecimentos pouco mais que rudimentares que os modernos teriam nesta matéria. Note-se ainda que a actual concepção de mente não existia no tempo; esta, a que desde os gregos se chamava alma (psique), só aparece muito mais tarde, no século XIX, com a elevação da Psicologia ao estatuto de ciência. É, por isso, curioso de notar que Damásio escolhe para interlocutores da sua reflexão neurofilosófica precisamente dois dos filósofos maiores da modernidade: precisamente Descartes e Espinosa. Não é por acaso. Talvez porque filosofia e ciência não se edifiquem senão em diálogo mútuo.

6.3-Erro de quem?Diferentes registos de análise

Enquanto que Descartes se situa num registo epistemológico de procura de uma verdade, a partir da qual pretendia edificar todo o seu sistema filosófico, Damásio situa-se num registo clínico, de natureza científica-experimental e não filosófico. Descartes buscava efectivamente uma verdade segura, uma espécie de ponto arquimediano a partir do qual pretendia edificar todo o seu sistema de pensamento 31. Esse ponto arquimediano encontrou-o na certeza do “Cogito”, ou seja, na certeza da sua existência enquanto ser pensante não significando de modo nenhum, ainda que o admitisse como hipótese heurística, mas provisória, a inexistência de um corpo a sustentar a sua natureza pensante. No fundo, o que ele pretendia, à semelhança das matemáticas, era desenvolver um método que lhe permitisse, em matéria de conhecimento, alcançar a verdade e evitar o erro 32.

Para tanto Descartes tudo submeteu à dúvida: a chamada “Dúvida Metódica”. Tudo, incluindo ele próprio, naquilo que cada sujeito tem naturalmente como mais evidente: o seu próprio corpo 33. Assim, ainda que tudo fosse falso e enganoso, uma coisa por certo não o seria: a sua existência enquanto sujeito pensante (Cogito), porque pensa e enquanto pensa; ainda que aquilo a partir do qual ou com o qual pensa deixasse para posterior análise 34. E é a esta análise, que Descartes deixou para posterior consideração, que Damásio consagra hoje a sua investigação

31“Arquimedes, para mover a Terra inteira do seu lugar, pedia apenas um ponto que fosse firme e imóvel: por isso

devo esperar grandes coisas, se descobrir, mesmo um mínimo que seja, certo e inabalável” (Descartes, Meditações, II, p.118).

32“... não é suficiente ter o espírito bom, mas o principal é aplicá-lo bem” (Descartes, Discurso do Método, I).

33Que para examinar a verdade é necessário uma vez na vida, por todas as coisas em dúvida, tanto quanto se puder” (Descartes, Princípios, I, § 1). Ver Também no Discurso do Método, Cap. IV: “Mas, porque agora desejava dedicar-me apenas à procura da verdade, pensei que era forçoso que eu (...) rejeitasse, como absolutamente falso, tudo aquilo em que pudesse imaginar menor dúvida, a ver se, depois disso, não ficaria alguma coisa na minha crença, que fosse inteiramente indubitável”.

34 E notando que esta verdade: penso; logo, existo (Cógito, ergo sum), era tão firme e tão certa que todas as

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científica e julga ter Descartes negado no acto de afirmação do princípio alcançado, o “Cogito”35. Disso o acusa de facto no título do seu livro em análise.

6.4-Erro de um Título

É por isso que, a meu ver, a haver erro, não é tanto de Descartes quanto de Damásio. Talvez nem erro haja, mas tão só equívoco: o equívoco de um título, parafraseando a professora Mª de Lurdes Ribeiro Ferreira 36. Com efeito, será crível, como afirma Damásio, que Descartes negasse a existência do corpo na sua interacção funcional com a mente? Como interpretar então estas afirmações do filósofo francês: “mas o que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto dizer? Quer dizer: uma coisa que duvida, que compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente 37? E estas ainda, nas quais afirma e confirma na

realidade a união da alma com o corpo: “A natureza também ensina por estas sensações de dor de fome, de sede, etc., que não estou apenas alojado no meu corpo como um marinheiro num navio, mas que estou muito estreitamente ligado a ele, e tão misturado que componho com ele como que

uma unidade. Se assim não fosse, quando o corpo está ferido, eu, que sou apenas uma coisa pensante, não sentiria por isso dor, mas teria a percepção desta lesão pelo puro intelecto”38.

Em suma, no “Erro de Descartes”, Damásio incorre, a meu ver, num equívoco: o de misturar e confundir os planos científico e filosófico, em razão de ter efectuado uma leitura porventura apressada e descontextualizada de Descartes, num registo epistémico diferenciado daquele em que o filósofo se situava. Com efeito, ao contrário do que parece supor Damásio, Descartes dedicaria reflexão bastante à união da alma e do corpo, como pode facilmente ser verificado numa simples leitura de algumas das suas obras, nomeadamente “Tratado do Homem”,

“Paixões da Alma” e “Cartas à Princesa Elisabeth”; obras que não acreditamos que Damásio desconheça. Ainda ao contrário do que parece depreender-se da sua crítica, também para Descartes, o Homem é, como o definiu Edgar Morin, numa afirmação já clássica, “um ser bio-psico-social”39.

35 “Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia

nenhum mundo, nem qual quer lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passo que se deixasse somente de pensar, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria razão alguma para crer que eu existisse” (Ib).

36 Cf. Mª Luísa Ferreira,“Erro de Descartes ou Erro de um Título”, in PHILOSOPHICA, Vol. 7, Dep. de Filosofia, Fac. Letras de Lisboa, 1996, Pp.163-70.

37 Cf. Descartes, Meditações, I, 8. 38 Ibidem, VI, 13.

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7- Importância de “O Erro de Descartes”: A Paixão pela razão

O surgimento de “O Erro de Descartes”, de António Damásio, revestiu-se de grande importância científica e cultural. Ainda que em termos científicos a temática da relação entre a emoção, a razão e o cérebro já há muito estivesse presente na abordagem investigadora da ciência, tal como em diversas teses filosóficas e teorias psico-sociais, a sua importância foi acrescida pela atenção que suscitou noutros domínios paralelos do saber e nas implicações práticas no plano sociológico da acção humana, bem como em termos de consciencialização de uma opinião pública mais esclarecida para estes domínios tão complexos como o das neurociências. A sua virtude maior, foi, em meu entender, a de dar sustentabilidade científica, em termos neurobiológicos, a todo um conjunto de teses ou tão-só intuições teóricas que desde a filosofia grega às ciências humanas sempre falaram desta unidade bio-psíquica do ser humano.

Damásio tem o cuidado de apresentar as suas teses como hipóteses que, em linguagem científica, são propostas de investigação que carecem de maior aprofundamento e posterior comprovação pela comunidade científica. Portanto, não se trata de um conjunto de conhecimentos perfeita e definitivamente concluídos. De resto, a ser assim, seria algo abusivo em termos epistemológicos.

Aproximando-se de uma abordagem emocional da inteligência e da racionalidade, sobre a qual abundante literatura se vai publicando hoje em dia 40, a tese principal que António Damásio procura sustentar em estudos clínicos ao longo de toda a obra é esta de que existirá uma interacção anatómico-funcional entre a razão e a emoção e entres estas e o corpo 41. A ser assim, conclui-se:

1) Não há uma razão pura lógica, nem uma emoção completamente irracional.

2) Razão e Emoção não são faculdades mentais distintas e estanques entre si, mas mecanismos mentais interactivos.

3) A conclusão final a extrair da sua tese é a da unidade da natureza humana, que a tradição ocidental, em particular a medicina, desvalorizaram e que agora urge recuperar.

4) O conhecimento destes mecanismos bio-psico-mentais é fundamental para a compreensão do humano como um ser global, não só no domínio clínico-terapêutico das doenças do foro

40 Cf. Entre nós GOLEMAN, Daniel, Inteligência Emocional, Lisboa, Temas e Debates, 1995. Trata-se de um livro que procura redefinir o significado de ser inteligente e à sigla QI (quociente de Inteligência) apõe o QE (Quociente Emocional), dando expressão a uma corrente de pensamento e investigação surgida nos EUA nos anos 90, à qual os contributos das neurociências e dos trabalhos de Damásio vêm trazer outras bases de sustentação.

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neurológico, mas também ao nível sócio-cultural, numa mais correcta integração e equilíbrio entre o homem e o seu meio (social e ambiental) 42.

5) Não há uma razão (de primeira) e uma emoção (de segunda) no equilíbrio das faculdades mentais do humano; antes pelo contrário, é necessário conhecer a relevância de cada uma delas para o justo equilíbrio das nossas acções 43. Deste modo, será possível controlar as circunstâncias da acção em proveito dos indivíduos e da sociedade e, assim, melhorar o mundo em domínios como a ética, o direito, a arte, a ciência, a tecnologia, etc.

6) A nível prático, a compreensão da função das emoções no domínio da racionalidade responde a algumas questões cruciais que se colocam no domínio pedagógico, por exemplo, sobre a educação e a violência 44. Coloca-nos perante a urgência de uma pedagogia dos afectos e não apenas cognitivista.

7) Os contributos da neurobiologia moderna, entre os quais situam os seu estudos, concorrem para reformular a ideia de uma medicina integral, que vinha de Hipócrates, e se perdera nos últimos três séculos, segundo ele por culpa de Descartes, a saber, uma medicina unicamente preocupada com a patologia e a fisiologia do corpo, da qual a mente fora excluída e relegada para os domínios da filosofia e da religião. E apesar da reabilitação da mente efectuada a partir do século XIX pela Psicologia, só muito recentemente vem sendo integrada na biologia e na medicina. Portanto, o conceito de natureza humana, com o qual a medicina trabalha, não pode continuar

42 “Com efeito, os sentimentos parecem depender de um delicado sistema com múltiplas componentes que é

indissociável da regulação biológica; e a razão parece, na verdade, depender de sistemas cerebrais específicos, alguns dos quais processam sentimentos. Assim, pode existir um elo de ligação, em termos anatómicos e funcionais, da razão aos sentimentos e destes ao corpo. É como se estivéssemos possuídos por uma paixão pela razão, um impulso que tem origem no cerne do cérebro, atravessa outros níveis do sistema nervoso e, finalmente, emerge como sentimento quer como influências não conscientes que orientam a tomada de decisão. A razão, da prática à teórica, assenta provavelmente neste impulso natural através de um processo que faz lembrar o domínio de uma técnica ou de uma arte. Retire-se este impulso e não é mais possível alcançar esta perícia” (Ibidem, Pp.251-2).

43“Conhecer a relevância das emoções nos processos do raciocínio não significa que a razão seja menos importante

do que as emoções, que deva ser relegada para segundo plano ou deva ser menos cultivada. Pelo contrário, ao verificarmos a função alargada das emoções, é possível realçar os seus efeitos positivos e reduzir o seu potencial negativo” (Ibidem, p.252).

44 “Os sistemas educativos poderiam ser melhorados se se insistisse na ligação inequívoca entre os cenários de

resultados futuros, e que a exposição excessiva das crianças à violência, na vida real, nos noticiários e na ficção audiovisual, desvirtua o valor das emoções na aquisição e desenvolvimento de comportamentos sociais adaptativos. O facto de tanta violência gratuita ser apresentada sem um enquadramento moral só vem reforçar a sua acção dessensibilizadora” (Ibidem, p.253).

Ainda sobre este tema, numa conferência realizada no ano passado no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, intitulada “Cérebro, Arte e Educação”, Damásio alertou para o facto de no actual contexto da globalização e da enorme

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amputada da sua dimensão mental 45. Como conceberam os gregos na expressão “alma sã em corpo são”, só no equilíbrio entre o físico e o mental reside efectivamente uma genuína ideia de saúde.

8) Esta “negligência cartesiana da mente” por parte da biologia e da medicina ocidentais, agravada nos nossos dias com a sua industrialização e com a “crise espiritual do ocidente”, tem contribuído para a proliferação das “medicinas alternativas” não ocidentais. Estas vêm colocando em evidência este ponto fraco da “medíocre medicina ocidental” e só agora começa a ser tema de debate. Para Damásio, esta proliferação de medicinas alternativas é um indício da incapacidade da nossa medicina tradicional pós-cartesina em considerar o humano como um todo e irá agravar-se nos próximos anos à medida em que se agudiza a crise espiritual do ocidente 46.

9) Sem pretender reduzir o domínio psico-social do comportamento a fenómenos meramente biológicos, Damásio procura esclarecer a relação entre eles, por forma a compreender os estados mais evoluídos da espiritualidade humana, consubstanciados na cultura e na civilização. É este o seu o objectivo e, segundo pensa, um dos objectivos também das neurociências. Assim, merece destaque a sua tese de uma “mente incorporada e não apenas cerebralizada”47.

Para Damásio, a mente teve de se ocupar primeiro do corpo ou então nunca teria existido. Assim, o cérebro humano e o resto do corpo constituem um todo orgânico indissociável que, no desenvolvimento filogenético da espécie, conduziu a que a função primordial da mente fosse ocupar-se dos estados do corpo, nomeadamente ao nível da regulação biológica e da sua própria sobrevivência. Sobre este modelo de desenvolvimento cerebral se construiriam as outras estruturas superiores do cérebro, entre as quais as emoções, os sentimentos, a razão e a própria consciência.

Estaremos aqui em face de uma concepção teleológica da evolução da natureza humana não assumida por Damásio; um progresso evolutivo entendido como regresso da criatura (o animal humano) ao criador (Deus), como corolário final do seu percurso evolutivo, consubstanciado na expressão maior dessa evolução nas formas superiores da espiritualidade, ao nível da consciência e do sentimento moral? Seria interessante confrontar Damásio com esta questão filosoficamente tão profunda. Outra questão ainda é a de aferir a relação do binómio natureza e cultura na construção da pessoa moral e na manifestação superior da espiritualidade humana 48. Damásio vai aqui ao

45“Começa finalmente a ser aceite o facto de as perturbações psicológicas poderem provocar doenças no corpo (...).

As nossas avós conheciam bem o assunto: diziam-nos que o sofrimento, a preocupação obsessiva, o mau humor, e assim por diante, podiam estragar a pele e tornar-nos mais atreitos a infecções (...). A medicina demorou muito tempo a descobrir que valia a pena tomar em consideração o que estava por detrás de tanta sabedoria humana” (Pp.260-1). 46 “Seria absurdo pretender que a medicina curasse sozinha uma cultura doente, mas é igualmente absurdo ignorar esse aspecto da doença humana” (Ibidem, p.262).

47“A mente encontra-se incorporada, em toda a acepção da palavra, e não apenas cerebralizada”. Ibidem, p.133. 48 “... Muito embora a

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encontro das teorias psico-sociais, para quem, sem sociedade e cultura, não há pessoa moral, nem manifestação superior dessa espiritualidade humana.

10) A Hipótese do “Marcador Somático”. Segundo a tradição racionalista, para se alcançarem os melhores resultados, o processo racional não deveria ser prejudicado pela paixão. Nesta linha de pensamento se situaram, por exemplo, Platão, Descartes e Kant. No entanto, em situações concretas da vida em que temos de fazer opções e decidir, constata-se que uma razão lógica não decide tão bem quanto uma razão afectiva. Porquê? Provavelmente algo acontece em nós e nos diz “não vás por aí”; talvez um sinal, uma sensação visceral, um estado que em nós se imprime ou marca uma imagem positiva ou negativa e nos alerta para uma opção ou decisão que nos será favorável ou não. A isto chama Damásio de “Marcador Somático”. Trata-se de uma espécie de memória intuitiva automática, ligada a situações vivenciadas que, auxiliadas pelo raciocínio, no ajudam na tomada de decisões favoráveis 49. Das hipóteses teóricas apresentadas por Damásio, esta é talvez a mais discutida e questionada no âmbito da neurociências 50.

a civilização não podiam ter surgido de indivíduos isolados, não podendo por isso ser reduzidas a mecanismos biológicos e ainda menos a subconjuntos de especificações genéticas. A compreensão destes fenómenos requerer não só a biologia mas também as ciências sociais”. Mais adiante acrescenta: “Creio ser possível entrever, para a maior parte das regras éticas e das convenções sociais (...) um elo significativo com metas mais simples, assim como com impulsos e instintos”. E interroga-se logo a seguir: “Quererá isto dizer que o amor, a generosidade, a bondade, a compaixão, a honestidade e outras características humanas louváveis não são mais do que o resultado de uma regulação neurobiológica, que é orientada para a sobrevivência e que é consciente mas egoísta? Será que isto nega a possibilidade do altruísmo e anula o livre arbítrio? Quererá isto dizer que não existe amor verdadeiro, amizade sincera, compaixão genuína?”. Claro que não: “O amor é verdadeiro, a amizade sincera e a compaixão genuína se eu não mentir em relação ao que sinto, se eu realmente me sentir apaixonado, amigável e compadecido. Talvez eu fosse mais merecedor de elogios se alcançasse estes sentimentos através de um puro esforço intelectual e de uma pura força de vontade, mas não vejo qualquer problema se a minha natureza me ajudar a atingi-lo mais rapidamente e me fizer simpático e honesto sem esforço”. E acrescenta: “O facto de sabermos que existem mecanismos biológicos subjacentes ao comportamento humano mais sublime não impõe uma redução simplista deste comportamento aos rudimentos da neurobiologia”. O ser humano é “um organismo que surge para a vida dotado de mecanismos automáticos de sobrevivência e ao qual a educação e a aculturação acrescentam um conjunto de estratégias de tomada de decisão socialmente permissíveis e desejáveis, os quais, por sua vez, favorecem a sobrevivência (...) e servem de base à construção de uma pessoa. À nascença, o cérebro humano inicia o seu desenvolvimento dotado de impulsos e instintos que incluem não apenas um kit fisiológico para a regulação do metabolismo mas também dispositivos básicos para fazer face ao conhecimento e ao comportamento social”. Estes mecanismos biológicos “requerem a intervenção da sociedade para se tornarem naquilo em que se tornam, e estão por isso relacionados tanto com uma determinada cultura como com a neurobiologia geral. Além disso, fora dessa dupla condicionante, as estratégias supra-instintivas de sobrevivência criam algo de exclusivamente humano. Um ponto de vista moral que, quando necessário, pode transcender os interesses do grupo ou até mesmo da própria espécie” (Damásio, Pp.140-1).

49“... os marcadores somáticos são um caso especial de uso de sentimentos que foram criados a partir de emoções

secundárias. Estas emoções e sentimentos foram ligados, por via da aprendizagem, a certos tipos de resultados futuros ligados a determinados cenários. Quando um marcador somático negativo é justaposto a um determinado resultado futuro, a combinação funciona como uma campainha de alarme. Quando, ao invés, é justaposto um marcador somático positivo, o resultado é um incentivo. [Trata-se de] “um sistema de qualificação automática de previsões, que actua, quer se queira quer não, com vista à avaliação de cenários extremamente diversos do futuro que antecipamos”. Ibidem, p.186.

50 Por exemplo, o jovem investigador português na Carnegie Mellon University, Pittsburgh, E.U.A., Tiago Maia, que

aponta como “Erro de Damásio”, precisamente esta hipótese do “Marcador Somático”. Cf. In

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8- Considerações Finais

Do percurso analítico efectuado sobre “O Erro de Descartes”, sobressaem ainda algumas notas finais a considerar:

1) O cérebro continua a ser um universo por descobrir. É, por isso, um dos grandes desafios actuais das neurociências. Muito do que já se sabe sobre a natureza e funcionalidade do cérebro é ainda do domínio hipotético, sem que isso signifique um pessimismo epistémico relativamente à possibilidade de o vir a conhecer mais profundamente. Um cérebro que sabemos constituído por vários milhares de milhões de neurónios, com um número 10 triliões de sinapses formadas entre esses neurónios e com um número de várias centenas de milhares de cabos de axónios que formam os circuitos neurais, permanece, ainda um dos mais complexos desafios para a nossa inteligência e imaginação 51. Ao mesmo tempo que um desafio, os mistérios do cérebro e da mente humana colocam-nos perante a evidência do limites da compreensão neurobiológica da mente humana.

2) A grande relevância epistemológica de Damásio, em meu entender, foi a de fazer das emoções um domínio estruturante da racionalidade, que deixaram de ser vistas como algo de acessório e perturbador. Trata-se de um novo paradigma de compreensão do ser humano aberto por si: o da intersecção do afectivo com o racional na estrutura da inteligência humana 52. As suas investigações, para além da importância científica de que se revestem no domínio particular das neurociências, mostram-se também fundamentais para outros domínios epistémicos como a psicologia, a sociologia, as ciências da cognição, a inteligência artificial, etc., bem como para domínios mais práticos como o jurídico-criminal e a medicina. Este facto atesta o carácter incontornavelmente transversal e interdisciplinar dos saberes nos nossos dias.

51“Gostaria de poder afirmar que sabemos com certeza como é que o cérebro cria a mente, mas não o posso fazer e

receio bem que ninguém possa” (262); “Para se compreender satisfatoriamente o modo como o cérebro cria a mente e o comportamento humanos, é necessário considerar o seu contexto social e cultural. E isso é uma empresa tão espantosamente difícil” (Ibidem, Pp.264-5).

52

À primeira vista, não existe nada de caracteristicamente humano nas emoções, uma vez que é bem claro que os animais também as têm. No entanto, há qualquer coisa de muito característico no modo como as emoções estão ligadas às ideias, aos valores, aos princípios e aos juízos complexos que só os seres humanos podem ter, sendo nessa ligação que reside a nossa ideia bem legítima de que a emoção humana é especial.

O impacto humano de todas as causas de emoção (...) e de todas as tonalidades de emoção que estas provocam, subtis e não subtis, depende dos sentimentos gerados por essas emoções. É através dos sentimentos, que são dirigidos para o interior e são privados, que as emoções, que são dirigidas para o exterior e são públicas, iniciam o seu impacto na mente. Mas o impacto completo e duradouro dos sentimentos exige também a consciência, pois só com o advento do sentido de si podem os sentimentos tornar-se conhecidos do indivíduo que os experimenta (...).

Resumindo, a consciência tem de estar presente para que os sentimentos possam influenciar o sujeito que os tem, para além do aqui e agora imediato”, Damásio, O Sentimento de Si, Pp.55-7.

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3) “O Erro de Descartes” é um trabalho notável de António Damásio em termos de divulgação científica, tornando-se um dos livros de maior relevância neste domínio nos finais do século XX.

4) Com esta obra e as seguintes (“O Sentimento de Si” e “Ao Encontro de Espinosa”), nas

quais desenvolve os temas iniciados com o primeiro livro, Damásio Demonstra claramente que nem a ciência nem o cientista são entidades à parte do mundo humano, contribuindo, assim, nesta transversalidade analítica, para a democratização e humanização dos saberes.

5) Damásio contribuiu decisivamente para o reencontro originário e originante da ciência com a filosofia, da qual proveio 53. Não é por acaso que os interlocutores privilegiados dos seus livros são precisamente Descartes e Espinosa, dois expoentes máximos da filosofia moderna. Mas ao longo da sua reflexão epistémico-filosófica, alusões a outros filósofos, como Platão, Pascal, Montaigne, Kant, entre outros, são bastante frequentes.

6) Numa era de profunda crise identitária e sócio-política, Damásio como que nos traz uma lufada de contentamento e orgulho em termos de ego colectivo; deve representar, por isso, um ideal de esperança no valor dos portugueses em matéria de pensamento e investigação científica. A par de outros nomes da Filosofia e das Ciências, Damásio ombreia efectivamente com os mais destacados intelectuais mundiais de hoje. Temos, pois, razões para acreditar que, com as mesmas condições, podemos ser tão bons quanto os melhores. É esta a mensagem que pretendo deixar com este trabalho.

Leiria, 28 Fevereiro de 2007

Acácio Bárbara

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9- Bibliografia

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Referências

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