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Marcas que demarcam: tatuagem, body piercing e culturas juvenis

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Academic year: 2021

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Vítor Sérgio Ferreira

Marcas Que Demarcam

Tatuagem, body piercing

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Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9

1600-189 Lisboa – Portugal Telef. 21 780 47 00 – Fax 21 794 02 74

www.ics.ul.pt/imprensa imprensa@ics.ul.pt

Instituto de Ciências Sociais – Catalogação na Publicação

Ferreira, Vítor Sérgio, 1970 –

Marcas que demarcam : tatuagem, body piercing e culturas juvenis /

Vítor Sérgio Ferreira. – Lisboa : ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2008.

ISBN 978-972-671-217-6 CDU 391.9(469)

Capa: João Segurado Artwork: Luís Guerra

Composição e paginação: Ana Cristina Carvalho Revisão: Soares de Almeida

Impressão e acabamento: Tipografia Guerra – Viseu Depósito legal: 277648/08

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Afirmar lá o meu estilo E demarcar o meu espaço.

[…]

[A minha mãe] não sabe a angústia Que esta diferença me poupa Não vou ser o zombie cinzento Que ela tem no guarda-roupa.

[…]

Mostrar na pele o meu tabu Ser por direito um ser tribal Quero ser afro-zulo Nativo urbano industrial.

Carlos Tê Extractos de O Meu Estilo Clã, álbum Kazoo, EMI (1997)

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Agradecimentos ... Introdução ...

Da curiosidade impressionista à inquietação sociológica ... Objectivos e questões de partida... Corpos entrevistos e corpus analisado ... Itinerário de um percurso ... Capítulo 1

Marcas que sempre demarcaram: uma sociogénese das práticas de marcação corporal ...

Histórias dos usos de marcar o corpo ... Do renascimento das marcas corporais na sociedade contemporânea Capítulo 2

Da «experiência» ao «vício»: a construção de um projecto de marcação corporal ...

Os contornos da experiência de marcar o corpo ... As vivências da experiência de marcar o corpo ... A formulação de um projecto de marcação corporal ... Capítulo 3

Joalharia exclusiva, permanente e invasiva: a expressão corporal de uma estética da divergência ...

Do gosto pelas marcas corporais ... 13 17 17 19 21 29 33 33 46 59 59 70 83 95 95

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Da encarnação invasiva das marcas corporais ... Capítulo 4

Marcar a diferença: a expressão corporal de uma identidade autobiográfica ...

Ser eu próprio: consistência e autenticidade nos projectos de

mar-cação corporal ...

Ser diferente: distintividade e singularização nos projectos de

marcação corporal ... A circunstância actual de um rito de passagem: ruptura e meta-morfose nos projectos de marcação corporal ...

Uma biografia à flor da pele: memória e narratividade nos

projec-tos de marcação corporal ... Capítulo 5

Do acto de rebeldia ao estilo de vida escapatório: a expressão cor-poral de uma política de dissidência ...

O corpo é meu: marcar o corpo como acto de rebeldia

emancipa-tória ... Da divergência corporal à dissidência social: imagens encarnadas

do corpo colectivo ... Da política do corpo à política de vida: reflexividade transforma-dora nos projectos de marcação corporal ... Da contestação à celebração: éticas e pragmáticas de um estilo de

vida escapatório ... Capítulo 6

Entre «nós» e «os outros»: expressões sociais da intercorporali-dade marcada ...

Entre nós: marcas corporais e biossociabilidade contemporânea .... Nós e os outros: um confronto de gramáticas ...

Gestão social do projecto: estratégias de enfrentamento e evita-mento ...

Conclusão: estruturas de sentido e processos de produção social da corporeidade marcada ...

Reflexividades e sentidos encarnados na corporeidade marcada Maleabilidade corporal, plasticidade identitária e corporeidade marcada ... 106 111 119 119 135 145 164 177 177 186 198 211 227 227 244 256 273 273 280

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Marcar o corpo: expressão de resistência ou de existência? ... A socialização de um corpo singularizado ...

Referências bibliográficas ... Índice remissivo ...

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Agradecimentos

Este livro corresponde a uma versão depurada e apurada da minha tese de doutoramento, apresentada ao Departamento de

Sociologia do ISCTE e aprovada em Dezembro de 2006.1 Alguns

capítulos do texto original foram revistos e reduzidos, havendo-se abdicado de outros, nomeadamente os mais teóricos e metodoló-gicos, a pensar no leitor não estritamente académico.

Como qualquer tese de doutoramento, é resultado de uma longa jornada, em grande medida empreendida solitariamente. Mais pró-xima ou longinquamente, no entanto, muitos acompanharam-na na forma de cooperação emocional, intelectual ou logística. É a todos esses que gostaria de deixar os meus sinceros agradecimentos.

Começo por agradecer aos meus entrevistados o tempo, histó-rias e segredos que, com entusiasmo e confiança, partilharam co-migo e sem os quais este trabalho nunca se poderia ter realizado. Em termos institucionais, agradeço à Fundação para a Ciência e a Tecnologia pela bolsa de doutoramento que me concedeu, a qual me permitiu sobreviver nos quatro anos de produção da dissertação. Agradeço também ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) as óptimas condições de acolhimento que me proporcionou no desenvolvimento desta investigação, nomeadamente através do Observatório Permanente da Juventude, programa de estudos fundado ao abrigo de um pro-tocolo entre esta instituição, a Secretaria de Estado da Juventude e Desporto e o Instituto Português da Juventude. Ao Instituto

1 Vitor Sérgio Ferreira, Marcas que demarcam. Corpo, tatuagem e body piercing

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Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), na pessoa institucional do seu Departamento de Sociologia, agradeço por ter acreditado neste projecto de investigação como forma de obtenção do grau de doutor.

Parte deste trabalho devo-o àqueles que tiveram a generosidade de me concederem o seu tempo, interesse, paciência, capacida-de crítica e reflexiva ao longo capacida-deste trabalho, nomeadamente a todos os meus colegas de outros projectos no âmbito dos quais tive oportunidade de apresentá-lo e discuti-lo: «L’espace public à petit pas. Le monde de l’adolescence et son rapport à la société civile. Études comparatives entre l’Europe du Sud et le Maghreb», coordenado por Vincenzo Cicchelli e Marc Breviglieri, projecto da iniciativa do Centre d’Études sur les Liens Sociaux (CERLIS) e financiado pelo Ministère de la Recherce ao abrigo do programa «Jeunes Chercheurs» 2000; «Tribus Urbanas: Produção Artística e Identidades», projecto coordenado por José Machado Pais e Leila da Silva Blass e desenvolvido no âmbito do programa CAPES- -ICCTI de Cooperação Brasil-Portugal; e «Expressões ‘Radicais’ do Corpo em Contextos Juvenis», projecto de que fui responsável no âmbito do Observatório Permanente da Juventude.

Agradeço também as dicas que Vanda Aparecida, Aurélio do Nascimento, Luís Gonçalves Junior, Susana da Cruz Martins e Lia Pappámikail me foram dando por entre conversas de café e reu- niões mais ou menos informais a propósito dos resultados parce-lares desta pesquisa. Agradeço especialmente à Sandra Saleiro e à Elsa Pegado, não apenas colegas que muito respeito mas sobretudo amigas de longa data, pelas suas leituras, sugestões e revisões aten-tas no final da dissertação. Não posso deixar de agradecer ainda as importantes contribuições de Juarez Dayrell (Universidade Federal de Minas Gerais), Maria Augusta Babo (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) e Miguel Vale de Almeida (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), enquanto membros do júri que leu, discutiu e avaliou o trabalho final que este livro espelha em parte. Um muito obri-gado também ao Luís Guerra pelo excelente artwork que produziu especialmente para a capa deste livro.

Este trabalho não seria possível sem a amizade, a boa vontade e o apoio de muitos que, ao longo dessa jornada, sempre acreditaram e me estimularam na sua realização, através de palavras de conforto e incentivo, de risos e de lágrimas, de «noitadas», «jantaradas»,

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«cafezinhos» e afins: Ana Cotrim, Teresa Amor, Pedro Alcânta-ra, Mónica SaavedAlcânta-ra, Rita Raposo, Sofia Aboim, Vanessa Cunha, Ângela Barreto Xavier, Luís Vasconcelos, Fernando Baião, Graça Silveira, Manuela Lourenço, Maria de Aires, Alexandra Figuei-redo, Susana Valente, Fernando Tavares Junior, Sofia Marques, Sandra Mateus, Sandra Pereira, Luíza Luzio e João Taborda. Um agradecimento muito especial ao Nuno Moreira, que, sempre com paciência e afecto, mais de perto conviveu com os meus momentos de insegurança, insatisfação ou ansiedade, tentando ajudar-me o melhor que sabia e podia.

Ao professor José Machado Pais agradeço não só a orientação, estímulo e apoio constante e duradouro no decorrer deste trabalho, mas, sobretudo, a amizade e confiança que, desde há muito, me prestigia academicamente e me orgulha pessoalmente.

Por fim, à minha mãe, Maria de Lourdes, agradeço tudo o que tem feito por mim, e por me ter instigado a vontade de saber sempre mais.

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Introdução

Da curiosidade impressionista

à inquietação sociológica

Decorria o ano de 1997 quando o Festival Atlântico, mostra internacional de arte, performance e tecnologia organizada pela produtora lisboeta Zé dos Bois, foi dedicado ao tema «O corpo na sociedade pós-moderna: manipulações e limites». Esse evento permitiu-me contactar de perto com projectos de relevo interna-cional habitualmente inscritos na body art pela expertise do mundo da arte contemporânea, como os de Orlan (França), Stelarc (Aus-trália), Annie Sprinkle, Fakir Musafar ou Cléo Dubois (EUA), entre outros.

Por entre vídeos de cirurgias plásticas esteticizadas com batas Gautier, performances que apostavam na demonstração de corpos robotizados, na estetização e politização da pornografia ou na re-produção de rituais onde práticas de perfuração da pele e de modifi-cação corporal são tradicionais, tudo isto ocorreu, ao jeito dos freak- -shows de outrora, defronte de uma plateia que oscilava entre reacções

de impressão ou mal-estar1 e reacções de entusiasmo, excitação e

surpresa. Para além da minha própria perturbação e perplexidade, uma das curiosidades que mais me suscitaram a atenção foi verificar que, por entre um público maioritariamente jovem, muitos indiví-duos se apresentavam extensivamente tatuados e perfurados, com uma joalharia muito específica e padronizada (barras e argolas de

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metal com pequenas bolas nas extremidades), colocada em lugares corporais bastante inusitados para a época e em Portugal.

A partir daqui, a visibilidade mediática concedida ao body pier-cing e, por decorrência, à tatuagem foi crescente, não só com direi-to a programas televisivos de debate e informação exclusivamente dedicados ao tema, como até à apresentação na Culturgest do documentário Of Skin & Metal, realizado por Olga Shubert sobre a «comunidade de body piercing» em Nova Iorque, com honras

de debate intelectual. Em face da visibilidade pública que práticas

como o body piercing e a tatuagem vieram a adquirir na época, comecei então a questionar-me sobre as motivações que estariam na base da mobilização de tais apetrechos por parte de alguns seg-mentos sociais aparentemente dotados de alguma especificidade.

A concepção deste trabalho de investigação começou a dese-nhar-se então a partir da curiosidade pessoal suscitada por uma observação impressionista: a crescente exposição e valorização do corpo na sociedade contemporânea, nomeadamente entre os seus segmentos juvenis urbanos, onde com frequência o sujeitam a expe-riências que desafiam alguns dos seus limites imagéticos, cinéticos e sensitivos. Com efeito, algumas das manifestações juvenis hoje em dia socialmente percebidas e categorizadas como «radicais» têm na base deste qualitativo a excessividade atribuída aos usos e investimentos corporais que as consubstanciam, ostensivos em ter-mos de imagem, movimento e sensações. Os corpos extensivamente tatuados e perfurados, bem como os que desafiam os seus limites cinéticos e sensoriais em actividades desportivas mais «extremas» ou em noites e dias de dança que se sucedem, são exemplos desse tipo de manifestações «radicais» juvenis.

A realidade da modificação corporal mais «radical» começou então a interpelar-me já não apenas como mera curiosidade perante manifestações artísticas mais iconoclastas, mas também enquanto potencial objecto de estudo: ao dar-se a ver no seu crescimento, foi-me estimulando para o desvendamento de alguns enigmas sus-ceptíveis de serem sociologicamente equacionados (Pais 00, 60- -68). A mera curiosidade impressionista foi tomando a forma de inquietação sociológica: se o traço de «radicalidade» atribuído a

 Esse colóquio, realizado no dia 14 de Junho de 1997, versou a problemática

dos modernos primitivos e teve como convidados Maria Carrilho, José Gil, André Lepecki, Alexandre Melo e José António Fernandes Dias, tendo sido moderado por António Pinto Ribeiro.

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determinados comportamentos juvenis passa pela excessividade reconhecida aos usos e investimentos feitos no corpo, é porque este é objecto de mecanismos de poder e de regulação social, no sentido da sua docilização, como diria Foucault (1979), em fun-ção de determinados padrões sociais de utilizafun-ção, intervenfun-ção e exploração. Alguns jovens, todavia, tentam escapar ou contestar esses mesmos padrões, ao introduzirem sub-repticiamente alguma desordem na ordem corporal dominante.

A espectacularidade associada a algumas dessas mobilizações corporais juvenis acabou, portanto, por suscitar a atractividade do corpo enquanto objecto científico, remetendo constatações impres-sionistas para mundos de reflexão sociológica, ricos em novidade teórica e potencialidade hermenêutica. No fundo, uma adesão subjectiva induzida por essa sensação de estranhamento que marca a nossa distância perante certo fenómeno e que induz a necessidade de transformar o exótico em próximo: «o que vemos e encontramos pode ser familiar mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico mas, até certo ponto, conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente» (Velho 1987 [1981], 16).

Objectivos e questões de partida

Perante o cenário traçado, o trabalho de investigação efectuado vem abordar a relação dos jovens com o seu corpo, no âmbito da problemática dos processos de construção identitária específicos à sociedade contemporânea. Tal acontece a partir de um caso particular focalizado em sujeitos que em dado momento das suas vidas, geralmente localizado na «adolescência» ou «idade jovem», começam a marcar extensivamente o seu corpo com tatuagens e body piercing. O trabalho centraliza-se, mais particularmente, na articulação entre esta forma de mobilização «radical» do cor-

po e as estruturas sócio-simbólicas que manifesta enquanto prática

 Isto é, que supõe uma forma voluntária de usar, de explorar e de intervir no

corpo que tende a ser socialmente reconhecida como «excessiva» ou «transgressi-va», considerando os limites físicos, as convenções culturais e as normatividades sociais que tendem a regular actualmente as suas possibilidades de mobilização.

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de referência nos processos de construção de identidades sociais e pessoais em determinados contextos juvenis.

Este livro propõe-se, assim, descobrir, compreender e interpretar sociologicamente os significados subjectivos que os praticantes investem nesse tipo de objectos, alcançar as lógicas simbólicas que estão subjacentes à utilização desses recursos corporais e examinar a relação entre a posse desses objectos e o respectivo papel na pro-dução e manutenção de um sentido de identidade. Propõe-se ainda analisar os efeitos sociais que daí decorrem numa sociedade que exige um elevado grau de plasticidade identitária e de maleabilidade corporal e que ainda vive com alguma relutância e preconceito a modificação corporal mais perene, nomeadamente a que revisita e evoca figuras corporais historicamente estigmatizadas na vida social, como é o caso do corpo extensivamente marcado.

Na tentativa de ir mais além do que, durante longos anos, e não raras vezes ainda hoje, foi tratado como patologia ou «disfun-ção» psicossocial, a proposta deste livro é, em suma, caracterizar a densidade simbólica inerente à reflexividade produzida em torno da acção de marcar o corpo, sem esquecer as condições sociais de produção do corpo marcado, bem como os efeitos sociais da respectiva assunção. Que configurações de sentido são associadas aos corpos extensivamente marcados por tatuagens e body piercing? Que constelações de valores e representações sociais informam as suas mobilizações mais «radicalizadas»? Que justificações e moti-vações lhes estão subjacentes? Quais os respectivos ancoramentos sociais? Que efeitos decorrem da sua utilização no espaço social?

Esta ordem de questionamento remete para a caracterização dos contextos subjectivos dos indivíduos. Estes contextos correspondem aos universos simbólicos relevantes nas práticas quotidianas, con-substanciados em mapas de significação e idealização normativa que orientam e justificam as condutas pessoais e interpessoais, bem como as opções e decisões que informam os projectos de vida. A consideração desses universos simbólicos permite dar conta dos sentidos inerentes aos aparentes «sem sentido» atribuídos aos com-portamentos «radicais», muitas vezes remetidos para um quadro de patologia psicológica ou social.

Ultrapassar este tipo de preconceitos pressupõe ir além da gramática de recepção historicamente firmada sobre esses corpos e conhecer a respectiva gramática de produção (Veron s. d.). Tal tarefa implica um trabalho etnográfico de levantamento, compreensão e

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interpretação sociológica das constelações simbólicas associadas às marcas que alguns jovens fazem no corpo enquanto recursos de expressão identitária de pertença e diferenciação social. Na medi-da em que nos movemos no terreno analítico do comportamento habitualmente tido como excessivo e transgressivo, localizado em zonas sociais intersticiais, só a aproximação à subjectividade de quem o agencia potencia a descoberta sociológica sobre as margens do nomos dominante, bem como sobre as formas de produção de nomos marginais e da sua difusão na vida social.

Reconhecer aos indivíduos a capacidade de produção dos seus próprios nomos e de os colocar no jogo da vida social traduz uma perspectiva sociológica onde a acção social e a subjectividade que a informa não são encaradas como reflexo necessariamente deter-minado pelas estruturas objectivas. Os significados que os jovens atribuem às possibilidades concedidas pelas estruturas, assim como os sistemas normativos que informam os modos como lidam com as mesmas, podem condicionar o curso das suas acções (Castro 005). Daí que determinados comportamentos sejam não um efeito (causal) de estrutura, mas uma reacção (contextual) à estrutura.

É nesta perspectiva que se privilegiará a análise dos contex-tos subjectivos dos jovens portadores de corpos extensivamente marcados, tomando-os como matéria informante do espaço de possíveis reactivos às estruturas (e concedido pelas mesmas), por forma a ver como a sociedade se traduz, se gere e se negoceia nas opções referentes às condutas corporais dos jovens portugueses. Será, portanto, a partir da relação que se estabelece entre contextos subjectivos e objectivos que se propõe a identificação, compreensão e explicação sociológica de uma manifestação juvenil onde o corpo, na sua forma de apropriação, exploração e investimento, assume protagonismo expressivo.

Corpos entrevistos e corpus analisado

Em termos metodológicos, este trabalho seguiu, em larga me-dida, os protocolos qualitativos e intensivos de uma pesquisa de terreno (Becker 1994; Costa 1987). O trabalho de campo decorreu com a preocupação básica de procurar captar como os portado-res de corpos marcados os vivem (socialmente) e os significam

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(culturamente): numa palavra, como experienciam esses mesmos corpos nos planos da sociabilidade e da subjectividade. O proble-ma delimitado requereu uproble-ma postura epistemológica de abertura e disponibilidade perante o terreno empírico — os discursos e vivências juvenis do corpo marcado —, no sentido de o auscultar antes de se optar por determinadas perspectivas e hipóteses teóricas restritas (e restritivas).

O trabalho de campo decorreu entre 1999 e 00, partindo o investigador do lugar de outsider perante os universos sociais

onde ocorre este tipo de modificações corporais.4 O conhecimento

adquirido no decorrer de processos de pesquisa encabeçados por investigadores nestas condições será, com certeza, de natureza dife-rente do conhecimento produzido por investigadores em condições

diferenciadas.5 Não é, contudo, adquirido que a pertença e

fami-liaridade do investigador com o universo estudado seja sinónimo de acesso privilegiado à informação e ao entendimento da mesma, como alguns invocam.

Nestes casos, a postura do investigador requer maior reflexivi-dade, cautela e atenção sobre os enunciados que produz a respeito

do fenómeno em causa,6 obrigando-o a descentrar-se de si próprio

e a distanciar-se da centralidade da sua experiência vivida.7 Obriga-

-o também a estar consciente dos efeitos que o seu próprio visual poderá produzir nos processos de interacção e de identificação

4 Ao contrário do que acontece com algumas das investigações que

ultimamen-te têm sido publicadas sobre o ultimamen-tema, onde os investigadores são, geralmenultimamen-te, eles próprios sujeitos largamente marcados, como os casos de Albuquerque de Braz (006), Atkinson (00), DeMello (000), Leitão (004), Maccormack (006), Mendoza (004), Sanders (1989), Siorat (006) e Steward (1990). O que, aliás, vem na tradição dos «estudos subculturais», onde, frequentemente, os investigadores em acção detêm alguma proximidade inicial com o universo observado, partilhando alguns dos elementos que identificam os estilos desses «grupos sociais».

5 Alguns autores discutiram estas condições como um tipo de pesquisa

di-ferenciado, designando-o como insider doctrine (Merton 197), insider research (Roseneil 199; Hodkinson 005), native ethnography (Wolcott 1999) ou

experi-mental knowledge (Maxwell 1996, 0-1).

6 Decorrente não de uma observação participante empreendida depois de o

trabalho de campo começar, mas de uma efectiva implicação anterior no fenómeno social em análise.

7 Embora podendo trazê-la como recurso na própria pesquisa empírica (Hod-

kinson 005, 14-146), enquanto exercício de auto-reflexividade analiticamente informada, postura mais consciente do que as que propõem a exotização do

familiar (Costa 1987, 146-148; Velho 1988, 41) como forma de o investigador

socialmente implicado e comprometido com o objecto de estudo ganhar dele uma suficiente distância crítica.

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que decorrem no trabalho de campo, colocando-o num estatuto

ambíguo entre o «nós» e os «outros»,8 que o torna mais vulnerável

a classificações judicativas e especulativas, a suspeitas e descon-fianças, decorrentes do seu prévio (e visível) compromisso com o fenómeno estudado — no caso deste trabalho, com as marcas que portaria no seu corpo, respectivos significados, qualidade, correntes estéticas, envolvimentos grupais, etc.

Por outro lado, o facto de não haver qualquer tipo de proximida-de social e simbólica, corporalmente constatada, entre o investigador e o objecto de observação também não traz inevitavelmente prejuí- zos em termos hermenêuticos. Pelo contrário, poderá promover um efeito de pedagogia ou até mesmo de catecismo do informan-te sobre o investigador, não dando o primeiro por adquirido o conhecimento deste último sobre a experiência do fenómeno em observação. De facto, o efeito de alterização sentido pelo inves-tigador por parte dos informantes várias vezes se consumou na pergunta directa sobre se este tinha alguma tatuagem ou algum piercing mais escondido, habitualmente sucedida de uma proposta de marcação, por vezes com o aliciamento da gratuitidade. Também foi sentida muitas vezes entre os informantes a preocupação de dar a entender aspectos da sua experiência que estão perfeitamente «naturalizados», bem como de desculpar e esclarecer o investigador sobre algumas questões que só seriam plausíveis e legítimas por parte de um leigo.

A compreensão aprofundada das estruturas de sentido subja-centes a actos de vontade sobre o corpo pressupõe a utilização de métodos e técnicas sensíveis ao espaço de subjectividade do agente social. O corpo, no seu estatuto simbólico de significante flutuan-te (Babo 001; Gil 1980), dificilmenflutuan-te fala por si. Daí os limiflutuan-tes relativos a técnicas fundamentadas apenas na recolha de imagens corporais (fotografadas ou videogravadas), própria de análises se-miológicas, ou somente na observação situacional de corpos em relação, própria de correntes interaccionistas. Contudo, enquanto reservatório de memória, suporte de experiência e acessório de

8 Ainda que no contexto de diversidade, multiplicação e fluidez característico

das culturas juvenis de hoje seja cada vez mais difícil aferir a real existência de «grupos» suficientemente substantivos que permitam empregar claramente a de-signação de «membro» ou «não membro» (Bennett 1999; Bennett e Kahn-Harris 004; Muggleton 00 [000]), como acontecia entre as subculturas do passado, com fronteiras mais precisas, distintivas e culturalmente consistentes (Cohen 1979; Hall e Jefferson 1976).

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presença no mundo, o corpo faz falar. O sentido atribuído ou reivindicado a uma determinada acção com o corpo ou sobre o corpo alude a componentes tanto de expressão como de valoração que são susceptíveis de perpassarem nos relatos dos agentes que a vivenciam, via privilegiada para captar os marcos das estruturas de sentido das acções (Selgas 1994, 51).

Há, portanto, que pôr os corpos a falar sobre si mesmos. Para tal, começou por se assumir neste trabalho a postura de «inves-tigador viajante» (Pais 00, 55-59), deambulando pelos espaços onde mais facilmente se poderiam encontrar corpos extensivamente marcados: espaços reais, como os estúdios onde são produzidos; espaços virtuais, como os sítios na Internet onde muitos desses corpos são expostos. E assim se mergulhou naquela fase a que muitos dos manuais de investigação em ciências sociais à la carte designam de «fase exploratória da pesquisa empírica» (Quivy e Campenhoudt 199 [1988], 45-88).

Durante essas deambulações aproveitou-se a frequência dos estúdios para fazer alguma observação in loco de todo o processo de execução das marcas, recorrendo-se quer a métodos discretos, ou técnicas de «escutar à porta», como lhes chamam Glaser e Strauss (1967), quer a métodos mais interventivos, através dos quais o investigador já acciona mecanismos de solicitação de informação, como a manutenção de algumas conversas mais informais e curtas com vários clientes, no sentido de avaliar as suas expectativas e motivações antes, no decorrer e após a experiência da marcação. Simultaneamente, foi-se lendo muita da inumerável literatura de testemunhos, conselhos e dúvidas que pauta o espaço virtual sobre a body modification scene.

O conhecimento decorrente deste tipo de estratégia de obser-vação directa e, por vezes, participativa não inclui apenas as infor-mações dadas pelos actores, solicitadas ou não pelo sociólogo, mas também o conjunto das práticas observáveis nos cenários vividos: o acanhamento em entrar nos estúdios sentido por muitos jovens ainda não iniciados, pelo constrangimento em se aproximarem de um mundo social que tinham como afastado do seu mundo de vida; o tipo de informação pedida ao representante do estúdio, considerando a intervenção pretendida; o tipo de informação «obrigatoriamente» concedida pelo representante mesmo quando não questionada; as inúmeras situações de negociação estética entre o trabalho pretendido e o trabalho possível e/ou aconselhável; as

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conversas tidas antes e depois da intervenção efectivada, a própria aplicação dos recursos, etc.

Para além desta informação mais «discretamente» obtida, a informação tratada e apresentada neste livro conta, sobretudo, com relatos obtidos em situação de entrevista semiestruturada na sua preparação e semidirectiva na sua aplicação (Colognese e Melo 1998, 144; Ghiglione e Matalon 1978, 57-58; Ruquoy 1997 [1995], 87). O corpo destes jovens é quotidianamente discutido, interpelado, questionado, exigindo constantemente a sua justifica-ção e agilizando a sua subjectivajustifica-ção. Daí a entrevista se ter revelado uma técnica privilegiada no acesso às racionalizações construídas para descrever e justificar a formulação dos projectos de marcação corporal, ou seja, para atribuir sentido ao corpo produzido.

Foram efectuadas quinze entrevistas individuais em profundida-de a portadores profundida-de corpos multitatuados e multiperfurados, pro-fissionais ou apenas consumidores de tatuagem e/ou body piercing. Oito dessas entrevistas foram efectuadas em duas sessões distintas, dada a duração média de cada uma, que oscilou entre o mínimo de cerca de três horas e meia e o máximo de seis horas. Prefe-riram-se, portanto, menos unidades observáveis, mas susceptíveis de encapsularem uma maior densidade de informação, a obser-vações mais numerosas, mas susceptíveis de produzirem mate-riais mais pobres em termos da densidade simbólica e biográfica captada. Em vez de se amplificar a homogeneidade do conjunto de entrevistados e de apostar na «multiplicação excessiva do idêntico», preferiu-se a «escolha intencional de diversidades típicas» «estrate-gicamente recolhidas e tratadas em profundidade»: «uma colecção de materiais, ainda que restrita, pode proporcionar a sua ‘saturação’ antes até de estar materialmente esgotada; o seu ‘resto’ será então um ‘luxo para verificação’» (Hiernaux 1997 [1995], 17, 174), com o qual muitas vezes os tempos e os orçamentos disponíveis para projectos de investigação não se compadecem.

Os entrevistados foram recrutados em estúdios de tatuagem e body piercing de Lisboa e arredores, bem como através da capita-lização de algumas redes de relações estabelecidas no meio, mas sem nunca utilizar o tradicional método de «bola de neve», por forma a evitar efeitos de homogeneização da amostra decorrentes da sua dependência de redes de sociabilidade previamente estabele-cidas. O processo de selecção dos entrevistados não foi aleatório, ou tão-somente decorrente das conveniências, constrangimentos

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e facilidades pragmáticas do investigador no acesso ao universo observável, como muitas vezes acontece no uso de técnicas qua-litativas (Payne e Williams 005, 08). Enquanto amostra estraté-gica e intencional, conceptualmente conduzida e tipoloestraté-gicamente

relevante,9 a selecção dos indivíduos entrevistados foi submetida a

intenções explícitas.

Entre estas foi considerada, em primeiro lugar, a sua exemplari-dade em termos do objecto de estudo (Ruquoy 1997 [1995], 10), enquanto portadores visíveis de projectos extensivos de tatuagem e body piercing, tomando a extensão e a visibilidade das suas mar-cas corporais como critérios indicativos do grau de «radicalidade» do projecto corporal. Fez-se também por diversificar a amostra de casos entrevistados em termos de variáveis sócio-demográficas clássicas, geralmente utilizadas em estudos extensivos, como o género, grau de instrução, origem social, condição perante o tra-balho, mas também uma outra variável estratégica (Ruquoy 1997 [1995], 104) relativa à pertença desses indivíduos a diferentes grupos de estilo.10

Trata-se, evidentemente, de uma amostra cuja representatividade é válida do ponto de vista da pertinência e conveniência socio-lógica dos casos seleccionados (considerando alguns princípios sócio-estruturais tipicamente indutores de variação comportamen-tal e representacional), e não da significância estatística dos casos acumulados. A intencionalidade que presidiu à sua construção, mais do que medir e determinar quantitativamente proporções, prevalên-cias ou probabilidades generalizáveis sobre os factores que influem na experiência social das marcas (Lieberson 199, 106-109), foi a de aceder à identificação e compreensão das estruturas de sentido reivindicadas e atribuídas a corpos extensivamente marcados, assim como das formas como estas foram sendo socialmente produzidas nas biografias dos seus portadores.

Considerando esse objectivo, o número de entrevistas formal-mente efectuadas revelou-se suficiente para reconhecer a

variabili-9 Ou seja, uma amostra que vale mais pela profundidade analítica que

pos-sibilita sobre o universo observado do que pela sua profundidade morfológica, considerando o nível de descrição e generalização que permitirá (Pais 001, 110). Glaser e Strauss (1967) chamaram-lhe theoretical sample.

10 Entrevistaram-se indivíduos que durante a sua trajectória se identificam ou

já se identificaram no passado com grupos de estilo motard/byker, rock’a’billy,

heavy metal, black metal, punk, skinhead, gótico, hardcore, straithedge, skinhead e techno.

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7

dade de perspectivas e significados construídos por parte de quem tem o corpo extensivamente marcado, a qual, para todos os efeitos, não se vislumbrou muito distinta. O efeito de saturação da infor-mação (Bertaux 1997; Hiernaux 1997 [1995], 17) foi denotado quando se observou que os entrevistados, com recrutamentos, tra-jectórias e condições sociais muito diferenciados, e não mantendo qualquer relação entre si, recorrentemente produziam um discurso muito coerente e homogéneo, invocando quadros simbólicos muito semelhantes a propósito dos usos, sentidos e efeitos sociais de um corpo extensivamente marcado. Ou seja, quando a partir dos seus discursos começou a denotar-se a existência de uma narrativa sociologicamente convergente no sentido de uma certa estrutura de sentidos e contextos de produção (Abbott 199, 69), narrativa essa que resultou da «saturação dos casos que repetem a mesma estrutura de um determinado fenómeno, [estrutura essa] que não é do foro psicológico, mas releva do universo social» (Lalanda 1998, 878).

Além disso, o universo de observáveis sujeito à análise centra-se num universo social ultraminoritário que consubstancia um caso estatisticamente raro, atípico e marginal, reflectindo quadros sim-bólicos e modos de vida de um «núcleo duro» de indivíduos que, depois de terem experimentado, continuam a tatuar e a perfurar o seu corpo em larga extensão. É diferente do caso dos jovens que, em maior número, se limitam a tatuar um pequeno apontamento numa zona relativamente discreta do corpo ou a colocar um ou outro piercing num dos lugares já socialmente legitimados e consa-grados para a perfuração. As intenções invocadas, as significações investidas, os próprios recrutamentos e efeitos sociais decorrentes do uso dos mesmos recursos por uns e por outros, mas em quan-tidades diferentes, como se verá, são substancialmente diferentes.

Parte dessa amostra (cinco casos) é constituída por «profis-sionais» dedicados à prática da tatuagem (um) e do body piercing (restantes quatro), com graus de envolvimento e de dependência profissional muito diferenciados. São casos exemplares na medida em que a sua condição profissional resulta sempre de uma condi-ção prévia de consumidor durável desses recursos, sendo este o mote principal das respectivas narrativas. Embora alguns desses profissionais estejam integrados em escalões etários dificilmente conotados com a «condição juvenil», havendo sido inicialmente solicitados sobretudo na condição de informantes privilegiados,

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8

cedo se percebeu a densidade biográfica dos seus trajectos de vida, nomeadamente da sua vivência enquanto jovens. Por outro lado, as suas trajectórias são exemplares do modo como este tipo de corpos se traduz em modos de vida relativamente estabilizados, indo bastante além da mera manifestação corporal de uma certa «irreverência» tradicionalmente atribuída à fase juvenil do ciclo de vida. Daí se terem privilegiado os seus relatos, a par dos relatos dos seus clientes, independentemente da idade que apresentavam.

O conteúdo discursivo das entrevistas foi integralmente grava-do, transcrito (por colaboradores) e validado (pelo investigador). Posteriormente à transcrição e validação dos discursos obtidos através das entrevistas, estes foram sujeitos a procedimentos ana-líticos dos respectivos conteúdos, segundo uma lógica de análise qualitativa (Maroy 1997 [1995], 117), no sentido de desatar (Pais 199, 86, 001, 15, 00, 150) as unidades de sentido expressas e encadeadas pelo actor social e de voltar a atá-las de uma forma analítica e sociologicamente conceptualizada.

Os extractos das entrevistas que ilustram este livro correspon-dem a unidades de registo «quentes», aos excertos mais «salientes» e «significativos» na análise. Apesar de a sua forma de exposição poder transparecer uma lógica de análise eminentemente ilustrati-va,11 não foi essa a que imperou na produção deste trabalho. Esta

derivou e foi sendo desenvolvida, em larga escala, a partir de um trabalho analítico de redução, classificação e interpretação dos

conteúdos das entrevistas,1 reveladores das estruturas de sentido

que, a priori, cumprem o papel de guias na selecção dos elemen-tos enunciativos que se utilizam na sua construção, mediando o discurso como racionalidade e o discurso como oralidade (García 000, 89).

Nesta perspectiva, o que poderá transparecer um mero

exercí-cio de ilustração tem de facto por base uma lógica de restituição,1

11 A postura ilustrativa consiste no uso selectivo da palavra dos entrevistados

com a finalidade de servir uma lógica de demonstração impressa pelo investigador na condução da pesquisa empírica (Demazière e Dubar 1997, 16).

1 Trabalho analítico esse que parte do princípio da tomada de consciência por

parte do investigador de que os enunciados propostos em situação de entrevista «não falam por si mesmos» e de que os dados recolhidos não são «realidades» ou «verdades» em si próprios (Demazière e Dubar 1997, 4).

1 A postura restituitiva consiste em dar um lugar central à palavra do

entre-vistado na condução analítica da pesquisa, dela fazendo uso exaustivo e extensivo no sentido de dar a ver e restituir ao leitor a imagem discursiva a partir da qual as formulações teóricas foram construídas (Demazière e Dubar 1997, 4).

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9

no sentido de documentar, de visualizar in vivo, o conjunto de argumentos analíticos que se vão expondo, para que o leitor pos-sa situar a análise teórica desenvolvida numa realidade concreta. Na impossibilidade de apresentar todos os extractos demonstra-tivos do argumentário teórico exposto, seleccionaram-se os mais abrangentes, legíveis e inteligíveis (o que acaba por privilegiar os depoimentos de entrevistados com maior reflexividade e capacidade

de comunicação14), considerando quer as semelhanças discursivas

provenientes de jovens de condições sociais diferenciadas, quer o inverso, ou seja, distinções discursivas formuladas por jovens de idêntica condição social.

Itinerário de um percurso

Boa parte dos sociólogos interessados em investigar o signifi-cado cultural dos hábitos, técnicas ou projectos corporais tende a adoptar sobre estes uma aproximação a-histórica. Mas as culturas somáticas (Boltansky 1975) características de cada formação social não são, de facto, realidades históricas estanques e unificadas, sendo resultado do acumular sincrético e estratigráfico de porosidades

simbólicas que circulam no espaço e no tempo.15 Pelo que as várias

sensibilidades sobre as modificações corporais não permanecem encapsuladas dentro de quadros específicos de períodos históricos particulares. Elas são produto não apenas de dinâmicas sociais sincrónicas, como também de processos sociais mais amplos na sua diacronia.

14 Como é sabido, «o êxito de entrevistas que visam apreender conteúdos

profundamente interiorizados depende da capacidade do locutor para explorar e comunicar os próprios pensamentos» (Ruquoy 1997 [1995], 90). «Alguns infor-madores e determinadas circunstâncias da recolha são melhores do que outros; os dados ressentem-se e são, pois, de qualidade desigual. Na análise trata-se então de atribuir mais peso aos dados que são melhores» (Maroy 1997 [1995], 151-15).

15 O conceito de cultura somática corresponde a um conjunto de regras,

con-dutas e códigos produtivos, perceptivos e consumistas que têm o corpo como avatar e que resultam de condições sociais objectivas. Nas palavras de Boltansky, a construção do corpo faz-se «em primeiro lugar pelo sistema de relações entre o conjunto de comportamentos corporais dos membros de um mesmo grupo e, em segundo lugar, pelo sistema de relações que unem aqueles comportamentos corporais e as condições objectivas de existência próprias daquele grupo, relações que não podem em si mesmas ser estabelecidas a não ser […] que se proceda à análise e à descrição somática própria desse grupo» (1975, 08).

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0

Embora as formas e conteúdos tradicionalmente associados à tatuagem e ao body piercing estejam, actualmente, sujeitos a um profundo processo de ressemantificação, dando origem a novos usos investidos de novos significados sociais, o facto é que as tradicionais constelações simbólicas que envolvem as marcas cor-porais permanecem enraizadas na memória colectiva das sociedades ocidentais, insistindo em informar processos de categorização e de estigmatização sobre os seus novos utilizadores. Daí a apresentação dos dados relativos ao caso investigado começar por contextuali-zar, em termos históricos, os usos que têm sido dados a adereços invasivos e permanentes no corpo, com os respectivos códigos culturais de apropriação (capítulo 1).

A pluralidade estratigráfica de constelações de sentidos atri-buídos às marcas corporais é, com efeito, uma evidência desta pesquisa. Pluralidade essa que se evidencia não apenas na história social do fenómeno, mas também nas respectivas histórias pessoais. É importante que não se tratem as marcas corporais, actualmente, como redutos de sistemas de significação unos e estagnados, con-vencionados e cristalizados no tempo, mas como formas iconográ-ficas cujos investimentos simbólicos se transformam no decorrer do próprio processo de inscrição corporal dos adereços ao longo do ciclo de vida. Nesta perspectiva, tentou-se conhecer as trajectórias, os contornos e os limites que circunscrevem a construção de projec-tos (extensivos) de marcação corporal entre os jovens portugueses, dando conta dos respectivos contextos sociais de descoberta, de experimentação e de formulação (capítulo ).

Só depois se tomará em mãos o duro empreendimento de análise e interpretação da densidade simbólica subjectivamente encarnada nas marcas, desde o seu grau zero de significação, enquanto inves-timento estético (capítulo ), passando pela sua mais-valia simbó-lica, enquanto suporte de referência fundamental na construção e expressão social de uma determinada forma de identidade pessoal (capítulo 4), até chegar à sua configuração de sentido socialmente mais comprometida, enquanto expressão corporal de um estilo de vida que tem na base uma ética de dissidência relativamente às formas estilísticas mais massificadas e, portanto, mais normativas e institucionais (capítulo 5).

Considerando que o corpo marcado é um corpo dotado de uma densidade semiótica acrescida — não só enquanto suporte expressivamente investido de significados por parte de quem nele

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1

inscreve signos, mas também suporte que se dá a ler, passível de ser interpretado, classificado e categorizado por parte de quem com ele se confronta —, prestou-se ainda atenção à problemática dos efeitos sociais decorrentes de se ser portador de um corpo extensivamente marcado. Interessa conhecer as significações que se escondem por detrás dos símbolos, mas também procurar as forças que eles encerram e através de que mecanismos são susceptíveis de desencadearem determinados efeitos. Trata-se de ficar não apenas pela interrogação acerca da carga semântica das forças, mas também sobre o poder enérgico dos signos.

Nesta perspectiva, e dada a pluralidade de universos simbólicos associados ao corpo marcado, informando as gramáticas de produ-ção e as gramáticas de recepprodu-ção potencialmente descoincidentes, importa salientar o papel que as marcas asseguram como recursos de classificação e categorização social dos indivíduos e respectivas consequências a nível da interacção social. Identificar as gramáticas de recepção e compreender a respectiva filogénese, bem como os impactos que produzem sobre as sociabilidades do sujeito marca-do, tornou-se, assim, objectivo da pesquisa (capítulo 6). Enquanto tradicional signo expressivo de processos simultâneos de exclusão e inclusão social, em que medida projectos de marcação corporal potenciam a criação de biossociabilidades, ou seja, de cumplicidades sociais com epicentro no corpo? Por outro lado, de que forma é que perturbam as relações sociais do indivíduo ao nível dos quadros de interacção nuclear em que quotidianamente se vê envolvido? Que estratégias de gestão, dissimulação e/ou enfrentamento social induzem?

Em suma, este livro propõe uma apreciação compreensiva e interpretativa sobre a construção das imagens do corpo marcado, a (re)encarnação destas figuras arquetípicas no mundo contemporâ-neo em corpos particulares e ainda o funcionamento destes corpos no espaço social, em interacção com outros actores incorporados. Para tal parte-se de uma noção encarnada do actor social, uma análise que privilegia a vivência e experiência do corpo do ponto de vista dos sujeitos que o portam, enquanto matéria viva e vivida no espaço social. Porque o indivíduo, ao modificar a sua corporeidade, está inevitavelmente a criar novos elos simbólicos entre si e os outros, numa luta corpo a corpo entre o individual e o social.

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Capítulo 1

Marcas que sempre demarcaram:

uma sociogénese das práticas

de marcação corporal

Histórias dos usos de marcar o corpo

Quando falamos de «marcas corporais», referimo-nos a um con-junto de práticas ornamentais do corpo que têm a particularidade de, literalmente, o encarnarem e de, deliberada e indelevelmente, marcarem a sua superfície, com recurso a um complexo e diversi-ficado conjunto de objectos materiais e de técnicas de aplicação. Tomam uma variedade de configurações, sendo as mais recorrentes, actualmente, no mundo ocidental as que se socorrem de formas

mais moderadas de perfuração epidérmica, como a tatuagem1 e o

body piercing.

Para além destas, outras formas de inscrição corporal mais ra-dicais começam discretamente a tomar lugar dentro do espaço de possibilidades disponíveis para adornar o corpo, formas essas onde são aplicados processos técnicos que vão além da tradicional

pica-1 Inscrição de desenhos na profundidade da derme através da injecção mecânica

de uma matéria corante de origem mineral, vegetal, animal ou sintética.

 Inscrição de uma peça de joalharia em determinada parte da superfície do

corpo, sendo, em geral, peças simples, como barras ou argolas. No entanto, dada a sua popularidade e procura, existe hoje uma maior diversidade em termos dos motivos e cores das peças relativamente à altura do seu surgimento em Portugal há praticamente duas décadas.

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34

dura, implicando o corte ou incisão, a queimadura, a distensão de órgãos ou até a intervenção cirúrgica. Falamos, nomeadamente, do cutting ou escarificação,3 do branding,4 do stretching ou dilatação,

da colocação de implantes subcutâneos ou ainda de outro tipo de

modificações corporais mais extremas, como, por exemplo, a cisão

da língua ou a amputação de membros.

As práticas de modificação corporal enumeradas não são, na sua maioria, uma invenção recente. Ancestrais, universais e praticamen-te ubíquas, as modificações parecem praticamen-ter marcado o corpo humano, desde sempre, por todo o mundo, tidas como um dos actos mais «primitivos» da história da humanidade (Peixoto 1990, 1-0). Arranhando, rasgando, perfurando, queimando a pele, cortando,

penetrando, distendendo, deformando ou amputando órgãos, o

corpo foi sempre sendo sujeito a modelações onde o cultural e o social se inscrevem e gravam sobre o biológico. No contexto das sociedades tradicionais, tomavam a forma de instrumento de biopoder, no sentido em que configuravam uma forma microfísica de exercício de dominação e controlo sobre o indivíduo (Foucault 199). Reproduzidas numa situação compulsória e obrigatória, as

3 Inscrição na epiderme de figuras geométricas ou de desenhos sob a forma

de cicatrizes em relevo, abertas com recurso a bisturi ou a outro instrumento cortante, podendo ou não ser preenchidas com determinados pigmentos corantes. A incisão cria na pele uma chaga, mais ou menos profunda, tratada de forma a criar uma cicatriz plana, saliente ou afundada.

4 Inscrição na pele de figuras geométricas ou desenhos através de uma

quei-madura com ferro em brasa, podendo ou não ser preenchida com determinados pigmentos corantes.

 Corresponde ao alargamento do orifício do piercing com o objectivo de

co-locar uma peça de joalharia mais volumosa; no contexto das sociedades ocidentais, esta intervenção é habitualmente feita no lóbulo da orelha.

 Colocação de objectos por debaixo da pele de forma a dar-lhe relevo,

recor-rendo-se frequentemente à joalharia utilizada no body piercing.

 Sobre outros tipos de modificação corporal menos comuns no contexto

das sociedades ocidentais, v., por exemplo, Borel (199), Brain (194), Chippaux (199 [1990]), Ebin (199), Heuze (000) e Rubin (19) especificamente sobre a modificação dos órgãos sexuais; v. ainda Mascia-Lees e Sharpe (199), Myers (199) e Rowanchilde (199). Em Portugal, estoutro tipo de intervenções é ainda muito raro, sendo normalmente auto-infligidas ou adquiridas no estrangeiro, não integrando ainda o segmento da indústria de design corporal responsável pela per-furação mercantilizada do corpo, como já acontece noutras metrópoles do mundo.

 Dilatação do pavilhão auricular, perfuração do septo, dos lábios, das faces,

decepamento das falanges, amputação das unhas, alongamento do pescoço, incrus-tações, apontamento dos dentes ou extracção dos mesmos, deformação cefálica, atrofiamento dos membros, são algumas das práticas desde há muito conhecidas noutras formações sociais (Atkinson 003; Borel 199; Caplan 000; Cassard 000; Chippaux 199 [1990]; Rubin 19; Vasseur 004).

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3

marcas submetiam o indivíduo à autoridade que as impunha, sendo nelas claramente expressas as relações hierárquicas subjacentes ao quadro institucional em que o sujeito marcado se inseria.

Como Isabel Mendes de Almeida explica, «no caso específico da tatuagem, esta sempre se caracterizou, no passado e até épocas não muito remotas, como uma forma de classificação de indivíduos e grupos onde o registo e a supremacia da sociedade sobre esses sempre se verificavam de forma rigorosa e inescapável. Valores, visões do mundo, ritos de passagem, comportamentos rituais, nascimentos e morte, as diversas formas de classificação moral e jurídica marcam ao longo da história e das sociedades (diacroni-camente) formas de controlo e ascendência da sociedade sobre os indivíduos» (000, 103). As marcas funcionavam, portanto, como formas de decoração corporal complexas mas consistentes, veicu-lando um sistema de signos que identificava, localizava e orientava socialmente os seus portadores, em conformidade com códigos de comunicação definidos no contexto de sistemas sócio-culturais específicos. Através dessa gramática corporal normativamente codi-ficada e materialmente incorporada era sublinhada a determinação colectiva e o controlo do social sobre os membros de um dado grupo, manifestando uma noção de pertença colectiva que actuava no sentido de agregar identidades individuais e sociais, ou melhor,

de submeter as primeiras às últimas.9

No Ocidente, ao serem violentamente combatidas e

condena-das pela Igreja enquanto atentado moral à integridade corporal,10

as marcas corporais permaneceram numa relativa obscuridade até

ao século xviii. Representadas como marcas de iniquidade no

con-texto da tradição judaico-cristã,11 as diversas formas de inscrição

indelével do corpo faziam distinguir o pagão do crente, o ímpio

9 Brain (194); Clastres (19 [194]); Durkheim (00 [191]); Ebin (199);

Gil (190); Johnson (001); Lévi-Strauss (19 [19]); Peixoto (1990); Pritchard (001); Schildkrout (004); Taylor (003); Turner (190, 199 [199] e 1999); van Gennepp (1991 [1909]).

10 O respeito pela integridade do corpo é uma forma essencial de submissão

às leis de Deus enquanto gesto de demonstração de fidelidade ao acto de criação. Se o corpo é «feito à imagem e semelhança de Deus», modificar essa imagem, nomeadamente através da inscrição corporal, equivale a desfigurar a sua «perfeição natural», o que seria uma blasfémia digna de reprovação moral (Bíblia Sagrada, Génesis 4:1, Deuteronómio 14:1 e Levítico 19:).

11 Reza no Velho Testamento que Caim, tido como primeiro pecador da

história da humanidade, terá sido marcado por mão divina. As marcas não são proscritas apenas no cristianismo. Também no Alcorão, livro sagrado dos povos islâmicos, são consideradas marcas de iniquidade e injúria.

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3

do fiel. Constituíam interditos só aceites quando tomavam a forma de práticas de autoflagelação divinamente inspiradas, utilizadas para assinalarem virtude, obediência e devoção religiosa. Num sistema social em que o corpo era codificado como um signo de transcen-dência só deveria ser tocado em rituais sagrados e autorizados pela Igreja Católica, como se passava, por exemplo, no caso dos estig-mas (stigmatas), inspirados pela Epístola de São Paulo aos Gálatas : 1. Os próprios médicos monásticos estavam proibidos, segundo o Concílio de Trento (113), de procederem à sangria — prática de cura habitual na época —, pois violava os limites do interior do corpo (Gustafson 000; Jones 000; MacQuarrie 000). Ora o corpo marcado é um corpo inscrito, perfurado, cujos limites interiores foram violados.

Durante os períodos medieval e renascentista, envoltas num conteúdo místico, as marcas corporais estiveram discretamente presentes no seio de algumas «subculturas pagãs», as quais inte-gravam druidas, mágicos, médicos, astrónomos e físicos que, hete-rodoxos relativamente às tradições cristãs, apadrinhavam filosofias e práticas relacionadas com as ditas «artes» ou «ciências ocultas», como a astrologia ou a própria feitiçaria (Rosecrans 000). Nesses contextos, as marcas eram investidas de significados mágicos e protectores, cumprindo a função de amuleto sagrado e ancestral. Tal como também entre povos guerreiros de cultura wiccan, como os celtas e os vikings. Daí encontrarmos ainda hoje uma maior tradição e visibilidade da tatuagem em países que tiveram nas suas origens este tipo de culturas pagãs e esotéricas, por comparação com os países da velha Europa católica, como Portugal. Se a tra-dição católica acabou por nunca conseguir impedir totalmente o acto de marcar o corpo, limitou-o notoriamente, por comparação com os países de tradição protestante (países escandinavos, Países Baixos, Alemanha, Reino Unido, ou até mesmo os EUA).

De acordo com a tradição popular e alguma história social acu-mulada — muito mais relatada do que documentada, segundo

al-guns historiadores (Fleming 000) —, foi em finais do século xviii

que as marcas corporais começaram a popularizar-se no contexto da sociedade ocidental europeia, aquando das expedições marítimas à descoberta do «novo mundo», empreendidas entre cruzadas,

des-cobertas e colonizações.1 A tatuagem e o brinco passaram então

1 Praticamente toda a bibliografia específica sobre marcas corporais faz

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3

a constituir uma importante parcela simbólica da experiência de navegação, difundindo-se não só entre os seus protagonistas mais directamente implicados (ou seja, as tripulações dos navios), como também, por contágio ou mimetismo, entre as respectivas redes de relações sociais (Bradley 000).

A partir daí criaram-se as condições sociais e culturais para a consolidação do processo no âmbito do qual as marcas corporais foram sendo socialmente construídas como estigma, já não no sentido religioso do termo, mas como evidência ou característica corporal cuja leitura social induz um efeito de descrédito sobre quem o porta (Goffman 19 [193], 1). Ao peso do interdito re-ligioso juntou-se o ónus da distância cultural e social na percepção ocidental das marcas corporais, na medida em que representavam um encontro com o outro, ou seja, alguém que não é como «nós» e que, portanto, não é um de «nós» (Fleming 000, ).

Em primeiro lugar, o corpo tatuado representava um outro colonizado, primitivo, exótico, pré-moderno e pagão, encarnado no nativo tatuado e profusamente adornado — como refere Blanchard, «a diferença entre o colonizador e o colonizado está na textura da pele» (1991, 13). Reminiscências de um corpo incivilizado, em estado «selvagem», um corpo supostamente constrangido por poucas normas de comportamento, que dá expressão e satisfação imediata aos seus impulsos, emoções, desejos e necessidades mais básicos, sem a auto-restrição do «refinamento das maneiras» exi-gido pelo sistema de etiqueta que passa a controlar e a disciplinar as relações intercorporais das classes dominantes. De acordo com a visão «branca» e «burguesa» da Europa «civilizada» (Barkan e Bush

vários arquipélagos da Oceânia e descobriu a Nova Zelândia, como personagem histórica responsável pela emergência da tatuagem e de algumas formas de body

piercing na sociedade ocidental europeia. Conta-se, designadamente, a história de

que a etimologia da palavra tatuagem está associada ao fonema tatau utilizado no Taiti para descrever o acto de desenhar no corpo, remetendo-a para os diários das viagens do capitão Cook. O fonema conserva na duplicação do radical ta a encenação do ritual de picar, golpear repetidamente a pele, com o fim de intro-duzir dermicamente os corantes que darão forma aos traços (Utanga e Mangos 00; Va’a 00). Há, no entanto, quem refute esta explicação mais popularizada, na convicção (não apenas assumida mas devidamente documentada) de que «a prática [da tatuagem] não foi importada para o Ocidente como resultado de um encontro colonial com os «primitivos», sendo um fenómeno cultural do antigo Mediterrâneo, da Europa e da América do Norte» (Gustafson 000, 1). É este o argumento forte de alguns textos presentes nas colectâneas organizadas por Jane Caplan (000) e Arnold Rubin (19).

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3

199; Elias 199 [1939] e 1990 [1939]), o corpo tatuado represen-tava a barbárie, lamentando-se não apenas um gosto esteticamente deplorável, como a indiferença e falta de sensibilidade à dor.

Ao mesmo tempo, o corpo tatuado encarnava também um outro marginal, na medida em que, no processo de importação ocidental das marcas corporais, a sua apropriação se localizou, em grande medida, dentro das culturas populares urbanas, figurando entre marinheiros, estivadores, prostitutas, reclusos, membros de gangs e mafias, a par de outro tipo de malandros. Até meados do

século xx, sujeitos extensivamente tatuados eram expostos em

freak-shows de circos e feiras itinerantes,13 ao lado de anões,

gi-gantes, gémeos siameses, mulheres barbadas e outras bizarrias corporais e curiosidades animais. Eram corpos que também se vislumbravam por entre bairros populares de boémia, pobreza e marginalidade, onde se fixaram os primeiros estúdios dos profissio-nais que até aí, em regime itinerante, vendiam os seus serviços aos protagonistas e clientes daqueles espectáculos do bizarro. Apesar de constituir uma actividade bastante comercial e rentável, a tatua- gem permanece marginal, praticada no âmbito de uma clientela restrita, habitante ou frequentadora desse «meio de becos e de facadas» (Rio s. d., 1):

Os adultos, depois de inscritos na armada e no exército e, em maior proporção, seguidamente à permanência nas cadeias, é que se entregam à prática com mais frequência. Nas mulheres a tatuagem aparece raramente e, quando tal acontece, é devido à convivência com tatuados e violentadas por eles; está neste último caso uma mulher que habitava à Ribeira [Porto] à qual haviam desenhado a agulha, nas coxas e no ventre, enormes barcos de vela. Os símbolos amorosos e as iniciais do nome dos amantes são a tatuagem comum no número diminuto de mulheres das quais pôde haver notícia […] Do que pre-cede e do que vai seguir-se poder-se-á inferir a moralidade do maior número dos tatuados. A multiplicidade, a sede, de ordinário escolhida

13 Muitas vezes nativos capturados, mas também marinheiros aposentados

que encontravam nestes contextos o seu ganha-pão contando histórias acerca de supostas aventuras junto de «selvagens» perigosos e pagãos por quem haviam sido raptados, reafirmando e confirmando todos os estereótipos sobre as culturas ditas «primitivas». Mais tarde, a partir do início do século xx, de forma a conceder

maior exotismo e erotismo a esses espectáculos, mulheres extensivamente tatua- das, frequentemente as esposas e namoradas dos donos dos circos, começaram a ser o pólo de atracção. A este propósito, v. Atkinson (00 e 003, 33-3), DeMello (000, 3-9) e Mifflin (199). Sobre o modo de produção, promoção e apropriação deste tipo de espectáculos «do exótico», v. Bogdan (1994), Gil (1994), Oettermann (000) e Tucherman (1999, 1-13).

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39

nas regiões do corpo vulgarmente ocultas, a intenção pornográfica de uma grande percentagem de desenhos, denunciam a insensibilidade à dor, o impudor e a obliteração, ou melhor, a ausência de elevação moral da maior parte dos tatuados [Peixoto 1990, -4].

Era mais usual no nosso país nos antigos tempos que alguns ho-mens de certa categoria, como soldados, marinheiros, alguns hoho-mens do campo e mesmo da classe baixa das cidades e vilas imprimissem no corpo, e de ordinário nos braços e no peito, diferentes figuras, especialmente a de um crucifixo, a imagem de Nossa Senhora e um chamado signo de Salomão, etc. As prostitutas da terceira ordem, que vivem com os soldados e com os marujos, os imitam e adquirem estes costumes [Cruz 194 (141), 111-11].

Ainda que, na mesma época, a tatuagem e algumas formas de body piercing também tenham sido experimentadas por personagens distintas pertencentes a estratos sociais mais elevados — quer da aristocracia tradicional europeia, quer da alta sociedade americana, enquanto signo de excentricidade e luxo, bem como de distância irónica perante o rigor dos códigos cortesãos e de celebração do

carisma pessoal e poder político dos respectivos portadores14 —, a

burguesia tendia a olhar para as marcas corporais voluntárias como um indício socialmente inquietante.

Tanto mais quanto, na viragem para o século xx, a associação

entre tatuagem e marginalidade acaba por se institucionalizar no discurso médico e jurídico através dos tratados elaborados por al-guns criminologistas, entre os quais o de Cesare Lombroso (19), criminalista italiano e professor de jurisprudência médica em Turim, bem como o de Alexandre Lacassagne (11), cirurgião da armada francesa e professor de jurisprudência em Lyon. Ambos se de-bruçaram sobre os indícios físicos da delinquência, entre os quais destacam o uso da tatuagem «como sinal de criminalidade inata, mostrando a insensibilidade dos criminosos à dor e o seu gosto atávico pelo ornamento» (Rocha 19, 101), tal como o «homem primitivo», o «selvagem». Deste modo, o que começou por ser visto como mera curiosidade e exotismo é tornado expressão corporal de uma patologia criminal, legitimando jurídica e medicamente o

descrédito social em que as marcas corporais haviam caído.1

14 Atkinson (003, 33); Blanchard (1991, 14); Borel (199, 1-10); Bradley

(000); Fisher (00, 9); Guest (000, 101); Le Breton (00, 34).

1 O principal estudo desenvolvido em Portugal neste domínio é de Álvaro

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