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Da encarnação permanente das marcas corporais

A construção simbólica das marcas enquanto acessórios imagé- ticos de excepção não advém apenas da legitimidade artística que lhes é conferida por parte de quem as encarna. Afinal, também às peças de joalharia ou de ourivesaria é actualmente reconhecido um estatuto artístico ou para-artístico a partir dos mundos sociais em que são produzidas e consumidas (Santos et al. 2003). São outras as particularidades que distinguem e singularizam as marcas no con- junto dos recursos de imagem disponíveis. A começar, desde logo, pela natureza permanente da sua incorporação. O facto de serem objectos de colocação à partida irreversível vem, efectivamente, conferir às marcas uma aura simbólica relativamente diferente da joalharia tradicional, por definição objectos de pôr e tirar, de en- carnação superficial e provisória.

Na época do descartável e do perecível, do efémero e do vir- tual, a aquisição de um adorno indelével no corpo, impossível de desaparecer, ser roubado ou substituído, tornou-se uma opção sedutora. Mesmo o piercing, apesar de a qualquer momento poder ser removido, a intenção que subjaz à sua colocação é a manuten- ção para a vida, sendo cuidado como se de uma parte do próprio corpo se tratasse. No caso da tatuagem, dadas as suas características técnicas particulares, essa intenção é ainda mais definitiva. Apesar do desenvolvimento de todo um conjunto de técnicas cada vez mais sofisticadas que permitem a sua remoção (Ramos 2001, 61), a permanência continua a constituir uma das suas especificidades mais salientes: sendo uma das suas características mais apelativas para quem se dispõe a encarnar uma tatuagem, funciona também, paradoxalmente, como um dos principais factores dissuasores a uma mais ampla generalização social das marcas corporais.

Quando as marcas são recuperadas para fins comerciais e ex- ploradas pelo sistema da moda, surge, contudo, a necessidade de gerir essa característica. O sistema da moda, ao alimentar-se, por definição, de produtos transitórios, promovendo a sua contínua e cíclica rotatividade, tem dificuldade em lidar com projectos imagéticos duráveis, preferindo trabalhar no sentido de produzir recursos para projectos rectificáveis, ou seja, que não exigem senão uma mobilização corporal de curto prazo. Dada a sua natureza permanente, aparentemente antitética ao modo de funcionamento

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dos mecanismos da moda, alguns autores vêm classificar as mar- cas corporais, a par de outras formas de modificação corporal de natureza igualmente irreversível, como um acessório antimoda, ou seja, recursos para a composição de visuais que começam por cair fora do sistema organizado da moda, relativamente estáticos, con- servadores e resistentes à mudança, englobando quer as formas de vestir mais tradicionais, como os uniformes, por exemplo, quer os estilos mais subculturais, regidos por normas abertamente hostis aos cânones dominantes (Polhemus e Proctor 1978, 62).

Nesta perspectiva, a mobilização das marcas corporais acaba por ser conceptualizada na sua vertente de resistência e reacção contra a superficialidade, banalidade e rotatividade dos visuais estandar- dizados, no sentido de dar ao corpo uma expressão acrescida de individualidade, a qual se pretende preservada ao longo de vida, enquanto forma de publicitação de um determinado sistema de afinidades estéticas e éticas que permanece no tempo. Ao sugerir que a natureza permanente da sua encarnação protegeria as marcas contra a domesticação do estatuto dissidente e do potencial sub- versivo que detinham nos contextos sociais da sua (re)emergência, Polhemus e Proctor não tiveram em linha de conta a capacidade de adaptação do próprio sistema de moda às características dos objec- tos de que se apropria. De facto, os objectos e referências «anti- moda», «longe de arruinarem o princípio da moda, limitaram-se a complexificar e a diversificar a sua arquitectura geral» (Lipovetsky 1989 [1987], 171). Numa época em que a diferença é largamente cultivada e o conformismo pouco apreciado na construção dos vi-

suais,7 sendo valorizada uma certa irreverência e dissidência perante

as normas que os regem, o sistema da moda apropria-se das marcas corporais como novidade a propor, a par de outros recursos que, na rua, são criados como contranorma e adoptados como gesto de

dissidência perante as normas de imagem instituídas.8

Ao apropriar-se destes recursos, porém, não deixa simulta- neamente de disponibilizar as estratégias que permitem lidar com

7 Ainda que, na prática, depois de um primeiro momento de novidade, o

cenário possa vir a ser de uma indescritível monotonia, banalização e saturação.

8 As zonas intersticiais onde são produzidos e sobrevivem os estilos «subcul-

turais», com as suas imagens e performances, tendem a ser frequentemente vigiadas e parasitadas pelo sistema capitalista, com os seus «olheiros», que, tal como no mundo futebolístico, andam à cata da criatividade e diferença para alimentar a constante inovação exigida pelo sistema da moda.

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os seus inconvenientes, neste caso a sua irreversibilidade. Assim, quando começam a ser comercializadas com vista a uma clientela mais alargada, a permanência das marcas corporais passa a ser gerida, por exemplo, através da utilização de produtos sucedâneos

e de natureza efémera, como a henna9 ou a tatuagem temporária.10

Contornando a permanência da marca genuína, a marca-simulacro (simulacro de permanência, note-se) é, de facto, o tipo de recurso de modificação corporal que mais convém ao modo de funciona- mento do sistema da moda, onde o compromisso permanente tem pouca oportunidade perante a renovação e substituição sazonal que a sua orientação capitalista tende a impor. Assim, há sempre lugar a mais uma forma de modificação corporal. A par do recurso à marca-simulacro, a permanência da marca é ainda susceptível de ser contornada através da gestão do seu posicionamento e dimensão no corpo. Um ou outro pequeno apontamento, colocado discretamen- te longe dos olhares quotidianos, dá a ilusão da sua ausência ou presença intermitente.

Ora as várias técnicas de remoção e de simulação das marcas hoje disponíveis, a par da gestão estratégica da sua localização e dimensão, põem em causa a suposta inadequação destes recursos imagéticos, à partida indeléveis, a um mundo que instila os dese- jos e vontades individuais à contínua mutabilidade expressiva das identidades. São, de facto, hipóteses que configuram um espectro de correcções, combinações e ajustamentos na tomada de decisão em marcar o corpo, as quais «apontam para a construção de um padrão alternativo e flexível na relação entre os sujeitos e o seu consumo de tatuagem» (Mendes de Almeida 2000, 119).

Não é, portanto, inevitável que as várias formas de inscrição corporal sejam mobilizadas como forma de antimoda. A natureza permanente da sua encarnação não garante obrigatoriamente esse

9 Uma tinta de natureza vegetal utilizada em várias regiões do mundo para

pintar temporariamente a superfície do corpo sem necessidade de recorrer à sua penetração intradermicamente.

10 Também chamada semipermanente, biotatuagem ou tatuagem biodegradá-

vel. No caso desta técnica, a agulha é introduzida a pouca profundidade na pele, sendo utilizadas tintas mais ou menos diluídas (com diluente líquido) e engros- sadas com glicerina. Posteriormente os pigmentos começam a desaparecer por eliminação através do circuito linfático ao mesmo tempo que outras excreções (como o suor, por exemplo), processo que ocorre progressiva e irregularmente, conforme as cores, o tipo de pele e a sua maior ou menor exposição aos raios solares.

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estatuto. Sobre as marcas recaem diferentes atitudes, associadas a diferentes constelações simbólicas e, consequentemente, diferen- tes formas de apropriação simbólica e material. A marcação do corpo poderá ser encarada como um fenómeno antimoda quando os recursos implicados são encarnados na sua forma projectual, enquanto acção reflexiva e indutora de metamorfose identitária, que se pretende perene. Corresponderá, por outro lado, a um fe- nómeno de moda quando as marcas são encarnadas na sua forma experiencial, acção empreendida impulsivamente com o fim de satisfazer um desejo consumista e imediato de conformidade com o estetismo marginal de hoje (Lamer 1995, 54), tentando estrate- gicamente contornar a natureza permanente da sua encarnação. Daí as marcas-simulacro, os pequenos apontamentos tatuados ou os piercings mais habituais serem os recursos mais frequentemen- te proporcionados nos novos contextos de aplicação de marcas corporais — como os cabeleireiros ou os institutos de beleza —, nascidos da sua popularidade e visibilidade social.

Para quem desenvolve um projecto de marcação corporal, ainda que a maioria das vezes recorra, em simultâneo, à tatuagem e ao body piercing, o valor expressivo concedido a ambos é, porém, bastante desigual. Em regra, a tatuagem tende a ser simbolicamente sobrevalorizada por relação ao piercing, o que sucede, em grande medida, devido ao reconhecimento da sua natureza irrevogável. Fazer uma tatuagem é, em princípio, para sempre. Essa é a sua ma- gia — e quem a faz fá-la com lucidez. Tomada como permanente e irreversível, sacrificial mesmo (Gans 2000), a tatuagem envolve uma maior reflexividade e ponderação no processo de tomada de decisão em encarná-la, uma decisão longamente maturada e consciente do compromisso que o praticante estabelece com o seu próprio corpo e deste com o mundo social. Exige uma longa preparação, que implica escolher desenhos, muitas vezes criá-los ou recriá-los, escolher a zona do corpo a que melhor se adaptará, pou- par algum dinheiro para a sua realização, escolher alguém talentoso que o faça nas melhores condições técnicas e de higiene, etc.

O body piercing, por sua vez, não se apresenta como um recurso tão indelével quanto a tatuagem, sendo percepcionado por parte de quem o pratica como um recurso potencial ou efectivamente reversível, ou seja, que pode ser retirado provisoriamente, em qual- quer situação contextual, ou em definitivo, sem deixar vestígio da

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sua anterior presença. Por outro lado, as decisões que precedem a tomada de decisão em aplicar um piercing são menos versáteis do que no caso da tatuagem, resumindo-se à escolha do objecto a colocar (argola ou barra), respectiva cor, espessura e localização corporal. Daí a sua mobilização exigir um tempo de planificação mais curto do que a tatuagem, ainda que, quando integrado num projecto corporal, o recurso ao body piercing já não suceda tão impulsivamente quanto no início, na fase de experimentação:

Literalmente furei-me todo, assim de um momento para o outro. Sei lá, foi mesmo assim brrrrrrummmm!! […] Eram sempre cenas do instante […] Tenho 16… Digamos que já tive mais. Devo ter tido para aí uns 31, 32… […] Quando faço uma tatuagem, penso para aí dois ou três anos. Também não é tipo como o piercing, instantâneo [...] A tatua- gem é mesmo para a vida […] É mesmo irreversível, de certa forma.

Estudante universitário, sexo masculino, 20 anos Eu gosto muito mais de tatuagens do que piercings, porque aquilo que eu fizer de tatuagens fica. Como é óbvio, hoje já existem técni- cas para tirar, blá, blá, blá, e um dia mais tarde será de esperar, mais hipóteses de tirar haverá. Mas, à partida, eu faço com a intenção de ficar para o resto da vida e não de as tirar. Por isso gosto muito mais de investir na tatuagem.

Cozinheiro, frequência universitária, sexo masculino, 28 anos

Nesta perspectiva, compreende-se que os casos de remoção total ou parcial de body piercing sejam substancialmente mais fre- quentes do que os casos de tatuagem. Dada a facilidade em retirar a peça de joalharia sem o risco de deixar qualquer vestígio da sua presença, o projecto corporal construído em torno da mobilização do piercing acaba por ter consciente a hipótese da sua reversibi- lidade — embora não seja assumida aquando das perfurações —, ao contrário do projecto centrado em torno da tatuagem, indelével e definitivo. As situações de reversibilidade no caso da tatuagem dão-se, sobretudo, com as inaugurais, nomeadamente quando são auto-infligidas pequenas inscrições naïf, tecnicamente mal execu- tadas e artisticamente depreciadas:

[Aquelas que tapaste, tapaste porquê?] Porque estavam muito feias. Primeiro comecei por tapar uma. E depois, com o que eu tapei, vi uma tal diferença a nível de qualidade que, de facto, aí levou-me a tapar o resto e... Pronto, porque de facto havia uma disparidade muito grande

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nas coisas novas que eu estava a fazer, e naquilo que eu antes até achava que não era tão mau assim, e que depois passou a ser. E hoje em dia vejo de facto que foi muito mal feito e um grande disparate.

Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 34 anos

De facto, quando se desenvolve um projecto corporal orientado por valores de ordem estética cada vez mais exigentes, algumas dessas tatuagens acabam por ser tapadas ou disfarçadas. A vivên- cia próxima e continuada com o mundo da tatuagem concede um capital de competências que permite um juízo de qualidade estética cada vez mais informado e exigente, deixando de se compatibili- zar com o amadorismo auto-infligido ou a excessividade gratuita. Quando identificadas estas características, cobrem-se algumas ta- tuagens e retiram-se alguns brincos, em nome da qualidade estética da obra que se projecta para revestir o corpo.