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Do renascimento das marcas corporais na sociedade contemporânea

Mais recentemente, as formas culturais do punk, bem como de muitas outras culturas juvenis do pós-guerra, entram no circuito comercial e vão sendo transformadas em estilo, fundamentadas numa linguagem que destaca os valores da «autenticidade», da «di- ferença» e da «individualidade». Com este movimento, as marcas corporais vão também saindo da clandestinidade a que estavam vo- tadas, conhecendo um crescente sucesso associado à ideia implícita do corpo como objecto maleável, forma provisória. Escapam aos lugares marginais do sadomasoquismo, do fetichismo ou do punk e propagam-se ao conjunto da sociedade através do sistema da moda. Os estúdios dedicados à sua comercialização multiplicam- -se e, simultaneamente, acentua-se a sua procura.

Recuperadas e reactualizadas no âmbito daqueles contextos de dissidência microgrupal, o uso das marcas corporais intensi-

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ficou-se no decorrer da última década do século xx, começando

a permear a cultura dominante. Neste recente ressuscitar das práti- cas de marcação corporal, os seus usos não se limitaram a traduzir ou copiar práticas ancestrais. Embora reivindicados como uma herança cultural das sociedades ditas «primitivas», a tatuagem e o body piercing são hoje praticados em condições materiais, sociais e simbólicas radicalmente diferentes. Renovam-se nos cuidados a ter e nas técnicas empregues, nos materiais utilizados e nas iconogra- fias representadas, nos próprios conteúdos simbólicos que lhes são emprestados, os quais já não correspondem a significados comuns e unívocos, tacitamente aceites e colectivamente reconhecidos no contexto ritualista, iniciático e fortemente instituído em que eram praticados nas sociedades de tipo «holista».

Ainda que muitas vezes evoquem folcloricamente formas an- cestrais, nas sociedades contemporâneas as marcas deixam de corresponder a signos estatutários claros e precisos, socialmente determinados e codificados — como o eram em contextos «tribais» tradicionais9 —, para passarem a constituir signos identitários vo-

luntariamente apropriados, simbolicamente flutuantes, ambíguos e desconcertantes, ancorados em narrativas biográficas individuais a partir das quais assinalam e celebram expressivamente tomadas de decisão e opções pessoais, momentos, situações e vivências que con- substanciam uma existência particular, revelando também estéticas e éticas de vida que se pretendem «diferentes» e «alternativas» ao pa- drão dominante. As marcas correspondem a um recurso expressivo que ambiciona marcar e demarcar corporalmente um mundo de vida que se pretende singular, portanto, e já não legitimar colectivamente um dado corpo social.

Esta leitura que reconhece nas marcas um valor individual- mente distintivo não anula, contudo, aquela a que estava tradicio- nalmente associada — antes se justapõe — e que remete para o seu valor colectivamente estigmático. Como se observou, depois da sua introdução no contexto das sociedades ocidentais, a história social das marcas corporais tem vindo a caracterizar-se pela per- sistência com que são utilizadas para demarcar quem as ostenta, no sentido de circunscreverem e assinalarem socialmente os seus praticantes. Se nas sociedades tradicionais as marcas corporais

9 Onde este tipo de inscrições corporais atribuía a cada indivíduo o seu lugar

social exacto na organização social, assinalando estatutos de género, de etapa de vida, de hierarquia social, de clã, de pertença familiar, etc.

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acompanhavam ritos de passagem que visavam a inclusão social, o uso que lhes tem sido dado na sociedade ocidental tem-se associado sobretudo a ritos de exclusão, voluntária ou involuntária. Desde sempre a marcação indelével tem funcionado socialmente como acto classificatório de corpos estrangeiros, estranhos (Simmel 193 [190]), ou anormais (Foucault 001 [19]), adoptado por nati- vos de culturas temporalmente remotas, indígenas geograficamente longínquos ou autóctones socialmente distantes.

O uso de marcas corporais continua a não ser socialmente pacífico. Apesar da relativa democratização ocorrida com o alarga- mento da sua base de recrutamento social para além das chamadas «subculturas», «contraculturas» ou «tribos urbanas», o uso de body piercing e de tatuagens mantém-se polémico. Mesmo entre a mais nova geração, em Portugal, a percepção dominante das marcas corporais deliberadamente infligidas tende a persistir como sinó- nimo de autodestruição, patologia psíquica, marginalidade, desvio

e contestação social.30 Dotadas não apenas de uma longa história

que as marginaliza simbólica e socialmente, mas também de carac- terísticas que as particularizam no conjunto dos recursos estéticos potencialmente mobilizáveis na construção de um visual, o uso de marcas corporais perdura a suscitar controvérsia e a acarretar efeitos discriminatórios e estigmáticos na interacção quotidiana dos seus utilizadores.

Não obstante a nefasta carga simbólica dominantemente asso- ciada às figuras sociais extensivamente marcadas, a actual popula- ridade, visibilidade e familiaridade social com o seu uso e abuso é um dado objectivo. Inscrições corporais como a tatuagem e o body piercing circulam hoje com maior ostentação pelas ruas, escolas, praias e lugares nocturnos. Nos meios de comunicação social, escritos ou televisionados, proliferam artigos, programas e reportagens especiais sobre a temática, lançando e alimentando a polémica relação simbólica das práticas de marcação corporal com a Igreja e a Medicina, instituições que tradicionalmente se arrogam o

30 Dados provenientes do inquérito nacional aos jovens de 000 permitem ob-

jectivar que quem liminarmente rejeita qualquer hipótese de utilização de marcas corporais tende a associar o seu uso a formas de «exibicionismo», «loucura», «dor», «mutilação», «marginalidade» e «contestação». Esta é uma constelação simbólica que remete nitidamente para a imagem estereotípica que foi sendo historicamente construída no mundo ocidental acerca das marcas corporais, imagem essa que informa a capitalização de tais práticas como recurso de violência simbólica por parte de alguns segmentos juvenis mais contestatários (Ferreira 003, 33).

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papel de controlarem e disciplinarem os corpos. A publicidade exibe com frequência corpos marcados, fazendo associar os significados contemporâneos das marcas aos produtos que apresenta. Ícones mediáticos relacionados com a música, cinema, moda, desporto, etc., encarnam-nas em versões mais limitadas ou extensivas, contribuindo para a sua reabilitação social e simbólica.

A marcação corporal passa a fazer-se num contexto alargado de transacção económica de bens e serviços, sediada em estúdios onde o cenário tradicionalmente neobarroco da sala de espera contrasta com o ambiente clínico e asséptico do compartimento onde as marcas são aplicadas, povoado por uma panóplia de instrumentos com aparência cirúrgica, bem como por profissionais que se pre- tendem credenciados. Estes, por sua vez, tentam organizar-se em associações onde se partilham dificuldades, experiências e interesses, celebrando e promovendo estas práticas através da realização e parti-

cipação em convenções e concursos nacionais e internacionais.31 Ga-

lerias de arte e museus procedem à sua exibição sob suportes vários, sempre ancorados num certo discurso antropológico e estético que

lhes serve de caução cultural e histórica.3

A União Europeia organiza um grupo de trabalho no sentido de solicitar o diagnóstico e recomendações para cada país sobre

os riscos de saúde inerentes aos processos de marcação corporal.33

A DECO faz o primeiro estudo efectuado em Portugal sobre as condições de realização das intervenções e as informações prestadas

aos clientes em estúdios de tatuagens34. O grupo parlamentar do

31 Em Portugal já foi tentada a constituição de uma associação de tatuadores

e body piercers em 001, embora hoje em dia não goze de qualquer efectividade. Portugal também vem sendo lugar de convenções internacionais em várias cidades, embora ainda sem o carácter regular que um espaço central de protagonismo e caução simbólica exige, como o é o caso dos EUA, da Alemanha ou da Holanda, por exemplo.

3 Em Portugal são de referir eventos como a Exposição de Antropologia

Visual, organizada na estação do metro do Campo Grande por Zeca Capristano em 199, o Festival Atlântico, promovido pela produtora Zé dos Bois em 199 sob a temática «O corpo na sociedade pós-moderna: manipulações e limites», a exibição do documentário Of Skin & Metal, de Olga Schubart, na Culturgest em Maio de 199, seguida de uma exposição de fotogramas retirados do mesmo filme no Museu de História Natural do Jardim Botânico em Lisboa, ou a exposição «Quem vê corpos também vê corações» no Museu Antropológico da Universidade de Coimbra em Março de 1999.

33 Papameletiou, Shwela e Zenié (003a, 003b e 003c).

34 V. «Corpos à espera da lei», Proteste 0: Julho-Agosto de 00, 13, e «Cor-

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Partido Socialista apresenta na Assembleia da República um pro- jecto de lei no sentido de regulamentar as práticas de body piercing e tatuagem em nome da «saúde pública», situação que foi amplamen- te mediatizada na praça pública e discutida no próprio parlamento

devido a algumas medidas de carácter proibicionista propostas.3

O alarmismo de que este renascimento das práticas de marcação corporal na sociedade actual tem sido alvo por parte dos media ou das mais altas instâncias políticas denota bem como o «pânico moral» característico dos anos 0 sobre a corporeidade marcada (Cohen 199) tem vindo a ser transmutado (ou camuflado) por uma outra espécie de pânico social, o «pânico higienista» (Greif et al. 1999; Millner e Eichold 001).

Que condições propiciaram este processo? Que significado só- cio-cultural adquire em Portugal? Apesar da ausência de estudos disponíveis que permitam aferir e dimensionar objectivamente o crescimento longitudinal do fenómeno de marcação corporal, diversos autores não hesitam em afirmar o incremento do uso de marcas corporais nas sociedades ocidentais contemporâneas, patente na expansão (alargamento em número) e transformação (perfis sociais de procura mais diversificados) da sua base social de recrutamento. Esta dinâmica é justificada, em alguns traba- lhos, pela penetração das práticas de tatuagem e body piercing entre segmentos sociais de estatuto mais elevado, com origem nas

«classes médias»,3 entre o género feminino,3 bem como entre as

3 O projecto de lei apresentado pelo Partido Socialista à Assembleia da Re-

pública em Março de 00 previa a proibição da realização de piercings, tatuagens e maquilhagem permanente a menores de 1 anos e vedava a todos os cidadãos a possibilidade de colocarem piercings na língua.

3 Benson (000); Blanchard (1991); DeMello (000); Greif (1999); Mendes

de Almeida (000 e 001); Pérez (00); Ramos (001); Rubin (19); Sanders (19 e 199); Sweetman (1999).

3 Atkinson (00); Fisher (00); Hardin (1999); Mifflin (199); Riley e

Cahill (00); Sanders (1991); Wroblewsky (199). Aquando da introdução das tatuagens nas sociedades ocidentais, a adesão das mulheres a essa prática era de facto bastante escassa, nomeadamente até cerca dos anos 0. Até aos anos 0, alguns tatuadores chegavam, inclusivamente, a recusar tatuar mulheres maiores de 1 anos que não fossem casadas e acompanhadas pelos maridos. As únicas que não estariam sujeitas a esta restrição seriam as lésbicas e as prostitutas. Ao contrário de algumas tribos do Pacífico (Borel 199, 14) ou africanas, como os Lunda-Quioco, em Angola, onde a mulher é sempre bastante mais tatuada que o homem, segundo um levantamento estatístico efectuado por Mesquitela Lima nos anos 0, onde se pode ver que «a percentagem de homens com o corpo absolutamente tatuado é mínima» (Lima 19).

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camadas etárias mais jovens.3 Também em Portugal se confirma a

heterogeneidade de clientelas indiciada, revelando-se a apropriação de marcas corporais relativamente transversal do ponto de vista do género, da origem de classe e da estrutura do capital escolar (Ferreira 003, 34-334).

No mesmo sentido vão os depoimentos dos profissionais en- trevistados: não só identificam o crescimento acelerado do número de apreciadores e de clientes de tatuagem e body piercing desde meados dos anos 90, como insistem na diversidade e transversali- dade social do fenómeno da marcação corporal, admitindo, porém, a sua notável juvenilização. Os profissionais tendem mesmo a en- fatizar a natureza qualificada e «insuspeita» da sua nova clientela, provavelmente como táctica de legitimação, despatologização e dignificação social e simbólica do uso de marcas tradicionalmente estigmáticas:

Podia dizer que há um modelo de consumidor, e esse, neste mo- mento, são os jovens […] Tens uma série de profissionais e uma série de clientes, uma série de consumidores, das mais variadas classes so- ciais, das mais variadas filosofias políticas, das mais variadas correntes de pensamento…

Profissional de body piercing, frequência universitária, sexo masculino,  anos

A imagem popular do tatuado exclusivamente associado ao operariado, ao marinheiro, ao militar, ao recluso, à prostituta, ao delinquente ou a outras figuras ligadas a guetos criminalizados e marginalizados ou, no caso do body piercing, relacionado com co- munidades homossexuais e/ou sadomasoquistas, ou com subcultu- ras nascidas nos países anglo-saxónicos, surge assim desactualizada. As marcas corporais saíram da penumbra de algumas zonas sociais, deixando de ser privilégio exclusivo de grupos ditos «alternativos» ou marginais, para passarem a ser blasonadas por homens e mulhe- res de estatutos e grupos sociais diversos, com principal incidência entre as mais novas gerações.

Apesar da consensualidade dos testemunhos em torno da pro- gressiva aceitação, difusão e apropriação transversal das marcas cor- porais no contexto da sociedade portuguesa desde há duas décadas a

3 Atkinson (003); Fleming (000); Lamer (199); Le Breton (00); Men-



esta parte, convém, contudo, relativizar tal notoriedade. Sobretudo, não cair no erro fácil de enfatizar excessivamente a dimensão do fenómeno. Mais do que uma difusão generalizada, a notoriedade social das marcas corporais na sociedade contemporânea ocidental, nomeadamente na sociedade portuguesa, transparece sobretudo no facto de serem acessórios estéticos que, num curto espaço de tem- po, adquiriram bastante visibilidade social em termos mediáticos, publicitários, artísticos, políticos e até mesmo académicos.

De facto, em Portugal, a mobilização efectiva deste tipo de aces- sórios não é assim tão generalizada, mesmo entre as mais jovens ge- rações, suas preferenciais consumidoras: em 000 eram apenas 4% os jovens entre 1 e 9 anos que referiam já ter feito pelo menos uma tatuagem, sendo menos de 1% os que dizem ter feito mais do que uma; quanto ao piercing, somente % diziam já ter feito um sem ser no lóbulo da orelha, sendo residual (0,4%) a percentagem de jovens que haviam feito mais de um. Por outro lado, % dos jovens portugueses afirmavam que nunca fariam um piercing sem ser no lóbulo da orelha, percentagem que sobe para 94% quando se fala em mais do que um; relativamente à tatuagem, apesar de menos rejeitada (31% não fizeram, mas admitiam vir a fazer pelo menos uma, percentagem que desce para 1% na predisposição para fazer um piercing), eram ainda cerca de 4% os jovens que afirma- vam que nunca fariam sequer uma, percentagem que sobe para 91% quando se fala em várias tatuagens (Ferreira 003, 33).

Os elevados índices de recusa denotam a legitimidade social controversa que as marcas corporais continuam a ter, mais ainda na sua versão de aplicação múltipla. Apesar do actual entusiasmo, visibilidade, curiosidade, interesse ou até «fascínio» social pelas inscrições corporais, não se está a falar de um fenómeno de massas, sequer de aceitação consensual. Embora já não detenham o estatuto outrora marginal, a utilização desses recursos ainda está longe de ser naturalizada. Na mesma medida em que fascina ainda repele muita gente: «sem nunca ter sido verdadeiramente desconsiderada, a tatuagem passeia em nosso quotidiano em liberdade condicional» (Ramos 001, 11).

Ainda que não seja um fenómeno massificado e consensual, a articulação de um conjunto de factores particulares ao mundo da marcação corporal num cenário estrutural de acelerada abertura, troca, mediatização e cosmopolitização da sociedade portuguesa, bem como da sua crescente liberalização, fragmentação, pluraliza-

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ção e individualização social, proporcionou as condições culturais propícias a que a disseminação social das marcas corporais em Por- tugal se anunciasse socialmente notável, aderindo ao renascimento que já se fazia sentir noutras sociedades ocidentais:39

Primeiro, eu tenho a facilidade porque viajei, porque conheci, porque sei. E eu volto a falar porque às vezes as pessoas esquecem mas, por exemplo, essas coisas da gente ter parabólicas, TV por cabo, pá, parece que não, mas deu a conhecer às pessoas montes de coisas. Porque os jovens também são influenciados pelas suas bandas e cada vez mais. E porque começaram a viajar e começaram a perceber […] Não vejo sequer que haja uma banalização neste momento. Há uma introdução muito grande no nosso país, e que nós estamos a viver, finalmente estamos a viver, pá!!

Empresária de tatuagem e body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 39 anos

A disseminação social das marcas corporais começa por be- neficiar do facto de serem recursos estéticos progressivamente integrados numa indústria de design corporal em franca expansão, onde passaram a ser explorados enquanto bens de consumo cuja aplicação é convertida em rito mercantilizado (Cassard 000, ). Com efeito, praticamente inexistentes há duas década, os estúdios de tatuagem e body piercing proliferam na paisagem urbana, ins- tituindo uma oferta cada vez mais numerosa e profissionalizada, alimentada por uma procura maior e cada vez mais diversificada. Se no início dos anos 90 apenas duas casas de tatuagem dividiam a clientela lisboeta («Bad Bonnes Tatoo» e «El Diablo»), hoje são dezenas os estúdios de tatuagem e body piercing abertos em Portu- gal, já não apenas concentrados em Lisboa, mas também dispersos pelos seus arredores, bem como no restante território português.

Por outro lado, foram actividades crescentemente acolhidas em salões de beleza e estética, de cenário menos barroco do que os tradicionais estúdios, o que veio propiciar a diversificação dos seus contextos de produção e, por consequência, a emergência de novas clientelas. O facto de algumas das potenciais novas clientelas das marcas corporais não se identificarem com o cenário de clandesti- nidade (mais simbólica do que social) que tenta ser mantido pelos

39 O termo renascimento é utilizado por vários autores para descrever a recente

dinâmica centrípeta a partir da qual as marcas emergiram das margens para o centro da cultura ocidental (DeMello 000; Fleming 000; Rubin 19).

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estúdios convencionais — construído no sentido de restituir ao cliente o simbolismo dissidente que configura a aura desses ob- jectos — fez, efectivamente, extrapolar a comercialização desses bens e a prestação do serviço da sua colocação para além do seu universo tradicional, integrando as rotinas produtivas de muitos institutos de beleza, onde passam a ser transaccionados como mais um produto e serviço cosmético entre tantos outros:

Havia de certeza montes de gente como eu, que gostava imenso, principalmente falando das tatuagens, mas não havia resposta. E agora, de repente, e muito tudo ao mesmo tempo, começou a haver tudo isto, e por isso as pessoas recorrerem assim, em massa.

Profissional de body piercing, 9.º ano de escolaridade, sexo feminino, 34 anos

Neste contexto de comercialização e profissionalização da prá- tica de marcação corporal, os desenhos, os estilos, as técnicas, os materiais utilizados, bem como as condições de higiene exigidas na aplicação de marcas, sofisticaram-se e aperfeiçoaram-se, sendo actualmente os riscos de contaminação e de sofrimento físico pra- ticamente nulos — desde que as disciplinas que envolvem todo o processo de intervenção antes, durante e depois sejam cuida-

dosamente seguidas. A invenção da máquina de tatuar eléctrica,40

bem como a disponibilidade de materiais descartáveis e a melhoria das condições de esterilização dos materiais que não o são, foram factores que favoreceram a actual difusão das marcas corporais a segmentos sociais, à partida, menos disponíveis à sua aplicação, ao tornarem-nas menos dolorosas e dispendiosas, bem como mais seguras, simples e melhor conseguidas.

Por outro lado, apartadas dos seus contextos de origem, as várias formas de marcação corporal não têm necessariamente os mesmos significados sócio-culturais de outrora. A encarnação de marcas por parte de algumas destacadas figuras e griffes do sistema da moda, da publicidade, do desporto e, sobretudo, do star-system musical nacional e internacional funcionou como meio de relativa aceitação e familiarização social, sobretudo junto dos segmentos sociais mais jovens, para quem, frequentemente, essas celebridades constituem referências culturais e identitárias. Tais dinâmicas de recontextualização e familiarização acabaram por, em parte, des-



mistificar e retirar às marcas corporais a aura de marginalidade que as enformava simbolicamente. Permaneceu nelas, contudo, um re- manescente de excentricidade envolto numa espécie de transgressão consentida (Mendes de Almeida 000, 111) ou de diferença tolerada (Atkinson 003, 14-10):

É sempre aquela coisa de que nunca fizeram, porque a sociedade era assim, ou por causa do trabalho, ou porque achavam mal, ou porque dantes era só feito à mão e agora já é feito à máquina e […] Mas montes de pessoal faz. Alguns já fazem porque os pais já dei- xam, porque já se faz com métodos diferentes e com... prontos, com higiene e essa coisada toda. Prontos, já aceitam melhor e também já vêem a arte da tatuagem como uma arte e não como uma... sei lá, desmoralização, uma onda assim um bocado [...] É como eu digo, eles lá fora são bastante influentes sobre nós, e vai-se passando muita coisa na televisão e muitos adeptos portugueses, cantores, os locutores, jogadores da bola e outras áreas assim, têm sido entrevistados, e todos eles não se fecham e dizem mesmo «sim, tenho!», como a Romana