Algures na América do Sul, entre a linha do Equador e o Trópico de Capricórnio.
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I
Todas as noites, quando olhava para o firmamento quase negro e via centenas de naves partirem, sentia aquele nó na garganta, como se uma mão impiedosa e imensamente for-te me estrangulasse. Sabia o que conduziam, para onde levavam aquela «carga preciosa» e por que razão era transportada, anos a fio, durante décadas. Sabia tam-bém que o espetáculo estava próximo do fim e a dor do enforcamento aumentava, ali naquele pedaço de plane-ta há muito deserto, onde a presença humana era rara e nem mesmo as patrulhas apareciam. E quase gritava, até me lembrar do início, alguns anos antes do «transporte» começar.
MÁRCIO CRUZEIRO
imaginada, nem mesmo nos remotos tempos em que o processo civilizador se encontrava na primeira infância. A «civilização», como a sonhávamos, mais uma vez ruiu, desintegrando-se. Desta vez, parecia não haver retorno, nem reparo. Perdi todos os meus entes queridos, pais, amigos e, desafortunadamente, me salvei, após quase noventa dias entre a vida e a morte, com os pulmões inundados, passados em um barraco de lona, sob uma ponte, onde fui recolhido por um morador de rua, que se apie-dou de mim quando me viu estertorando em frente a um hos-pital fechado. Curei-me, mas meu amigo, muito provavelmente por minha culpa, sucumbiu dias após eu estar de pé. Eu mesmo o enterrei a alguns metros do barraco. Durante três anos, vaguei pelas ruas da «cidade suja», comendo sobras, que disputava com outros milhares de famélicos abandonados, até que um dia fui reconhecido por alguém que descia de um automóvel em uma zona protegida da cidade, onde consegui entrar pela primeira vez desde que os muros foram erguidos, graças a um golpe de sorte. Uma explosão, cuja possível origem seria um ataque ter-rorista, desviou a atenção de um pelotão de policiais que guar-dava a via de acesso àquele Eliseu, e consegui subir e saltar a muralha, à procura de comida. Após me esgueirar por alguns minutos, tentando não ser descoberto pela onipresente polícia, ou seria espancado, preso e talvez executado, senti-me seduzido pelo aroma «decente» do local, com seus tons de gordura limpa, de carne fresca, de vegetais viçosos e brilhantes, coisas que não via há anos e, em completo êxtase, passei a andar pelas alame-das assépticas, que já não eram as mesmas desde que deixei de circular por ali, antes da doença. Foi quando aquele homem me chamou pelo nome, apesar de meus cabelos e barbas imensos, e minha feição doente de uma fome crônica de pelo menos três anos. Ele me abordou de forma amável e me tocou gentilmente.
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podres de proteína. «Por que eu tive tanto medo? Bastava en-tregar-lhes o que procuravam. Entenderiam que eu nada tinha que ver com aquele homem ou qualquer coisa contida naquele objeto. Ou, por outro lado, talvez me tratassem como uma teste-munha de algo que devesse continuar nas sombras.»
***
O mundo que deixei há dez anos havia piorado. Mais fome, mais violência, menos humanidade, sim, aquela substância que deveria irromper da consciência de cada homem, especialmen-te do ser coletivo, morria ou era impiedosamenespecialmen-te abatida. E não havia diferença se perecia logo com aqueles que faleciam pri-meiro — os setenta por cento de famélicos, doentes, violenta-dos —, ou mais tarde, com os trinta por cento de forniviolenta-dos, os mesmos que à época da pandemia forçaram o rompimento da quarentena, pois viram seus negócios, seus projetos, seus «so-nhos» se atrasarem. Então, forçaram o governo a decretar o fim do isolamento social que resultou na difusão da doença com velocidade inimaginada. Alguns dos que hoje fariam parte dos trinta por cento, pereceram, mas a maioria das vítimas já vivia no próprio lixo, nas periferias de uma cidade sempre suja. Para esses, os hospitais se fecharam muito mais rápido e a doença os abateu como moscas. A doença, a fome e a violência, o coquetel perfeito, de cujos restos surgiriam as duas cidades. Na verdade, dois mundos.
Após seis meses do meu regresso às sombras, consegui me alojar em um reduto de criminosos que me acolheram graças às minhas habilidades intelectuais e tecnológicas, recuperadas e potencializadas durante o tempo em que vivi na cidade limpa. O conhecimento matemático e os conceitos de engenharia
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isso, um fugitivo perigoso de um hospício, era esse homem que procuravam, apenas um louco, e eu abandonei a vida na «cida-de limpa», acreditando estar em perigo por conta do «cida-delírio «cida-de um miserável que perdeu tudo e foi abatido por um surto final.
Ao mesmo tempo, pensava na conversa dos doutores na minha biblioteca, sobre as tais pesquisas científicas, considera-das, por uns, ficcionais, e, por outros, realidade. Aquilo era uma completa bobagem e aquele louco simplesmente me enterrou para sempre na «cidade suja», obrigado a me esconder ao lado de ladrões, assassinos, traficantes, aos quais eu era útil.
Quando acordei no dia seguinte, drones enormes sobrevoa-vam a cidade a projetar imensos outdoors virtuais, que mostra-vam um planeta, o Navicorus, ou a Nova Terra, em colonização por humanos, e todos que desejassem seriam bem-vindos na incrível jornada. Havia depoimentos, vídeos de uma civiliza-ção nascente extra-terra, com a marca congênita da felicidade. Os drones começaram a jogar uma espécie de telefone celular, aos milhares, imagino que aos milhões pelo mundo, para que as pessoas entrassem em contato com seus governos e se preparas-sem para abandonar uma terra exaurida, que nada mais podia oferecer. O planeta seria deixado para uma pequena parte da população, que trabalharia para recuperá-lo e, talvez, em um século, nossos descendentes pudessem recolonizá-la, desta vez sem super-exploração, por sorte a garantir que a humanidade jamais voltasse a enfrentar fome, miséria e doença. A propaganda perfeita para vender o mundo perfeito.
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Um ano após o aparecimento dos drones, a primeira nave partiu da Ásia, com tripulantes e passageiros dos cinco