ANO XII
p s i c o l o g i a p s i c a n á l i s e n e u r o c i ê c i a
ANIMAL
Como funciona a
rede social dos bichos
RONCO
Uma epidemia
barulhenta e perigosa
TERAPIA
Drogas psicodélicas
contra ansiedade e depressão
Cientistas desvendam
mistérios da dopamina
para compreender
melhor os mecanismos
de vários tipos de
dependência, da
memória, das variações
de humor e da doença
de Parkinson
ESPECIAL | GUIA PARA ENTENDER O
PSICODRAMA
A molécula
do
prazer
ww w.ment ec er ebr o.c om.br 9 771807 156009 00290 ISSN 1807-1562 R$ 15,90 4,90 €A senha
neuroquímica
da satisfação
O
prazer é a sombra da felicidade”, diz um provérbiohindu, para se referir a esse efeito efêmero da exposi-ção a estímulos sensoriais, estéticos ou intelectuais.
Em-bora intrinsecamente satisfatória, a sensação não se sustenta e, muito rapidamente, tende a se tornar neutra ou mesmo desagradável. Ainda que saibamos disso, a maioria de nós corre atrás dessa vivência, insistindo em repeti-la a todo custo. O fenômeno – comum tan-to a seres humanos quantan-to a outros animais – tem fascinado cientistas e, para aprofundar essa compreensão, pesquisadores de várias partes do mundo têm buscado entender o papel da dopamina, uma substância intimamente associada ao bem-estar. No cérebro, o neurotransmissor funciona como uma espécie de senha para a felicidade.
“Sob a óptica da neuroquímica, a dopamina cria o registro de que a vida valha a pena ser vivida, pois nos permite reconhecer experiências prazerosas”, explica Maia Szalavitz, autora de Unbroken brain: A revolutionary new way of understanding addiction (St. Martin’s Press, 2016, ainda não lançado no Brasil) e do artigo de capa desta edição.
Diante disso, seria lógico pensar que precisamos de dopamina para alcançar uma vida melhor, mais plena. Certo? Nem tanto. Essa ideia é controversa e cada vez mais cientistas concordam que o neurotransmissor não define neurologicamente o prazer. “Mas a molécula pode desvendar o mistério intricado daquilo que nos move”, afirma Szalavitz.
Uma descoberta recente abriu espaço para que seja considerada uma função muito interessante da dopamina: “contabilizar” quanto bem-estar teremos em determinada situação. “O neurotransmissor codifica a diferença entre o que estamos obtendo e o que esperávamos”, diz o neurologista Wolfram Schultz. No ano passado, seus estudos revelaram que embora a dopamina não avalie com precisão “quanto” uma experiência será agradável, pode determinar seu valor para o organismo naquele momento. Essas descobertas levam os cientistas a compreender que a sensação de prazer começa antes da vivência propriamente dita.
Os estudos também possibilitaram o estabelecimento de relações do papel da do-pamina na fixação de memórias, no aprendizado, nas dependências (de comida, jogo, drogas etc.) e até mesmo em sintomas da doença de Parkinson. Ou seja: a investigação trouxe desdobramentos até há pouco tempo impensados – o que, aliás, é ótimo.
Boa leitura! Que seja prazerosa.
GLÁUCIA LEAL
,
editora-chefe glaucialeal@editorasegmento.com.br“
Psicodrama
especial
sumário | março 2017
por Maia Szalavitz
A “neuroquímica do desejo” não funciona exatamente da forma como se acreditava até há pouco tempo. Novas constatações têm ajudado cientistas a compreender os mecanismos que regem não apenas a satisfação, mas a adicção, as variações de humor e a memória e a dinâmica de doenças neurodegenerativas
CAPA: SHUTTERSTOCK/FVAL
capa
Definido por Jacob L. Moreno como “a ciência que explora a verdade por caminhos dramáticos”, o método inspirado no teatro propõe o desempenho de papéis para elaborar questões psíquicas de forma terapêutica
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O teatro da mente
59
14
Uma epidemia barulhenta
por David Noonan
O ronco pode ser um indicador de apneia, uma doença grave, que pode até levar à morte. Especialistas apostam em estímulos cerebrais para ajudar o paciente e quem convive com ele
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Memória: use para preservar
por Hal Arkowitz e Scott O. Lilienfeld
À medida que envelhece, a pessoa deve ter claro que manter a mente saudável depende, em grande parte, dos próprios hábitos
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Sensação de não ter
escolha aumenta o estresse
por Gláucia Leal
Mesmo em situações de pressão extrema, causada pela vivência da violência ou pela morte de alguém querido, há a possibilidade de não se furtar a tomar decisões que nos fazem bem
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O componente auditivo do autismo
por Anne Pycha
Novas evidências sugerem que pessoas com o transtorno entendem bastante bem os sinais sociais transmitidos por vozes
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A rede social dos bichos
por Lee Alan Dugatkin e Matthew Hasenjager
Em muitas espécies, há desde associações simples entre alguns peixes que formam um cardume para viajar juntos até configurações muito complexas, como a de babuínos, baseada em hierarquia e afeto
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Gravidez causa mudanças
duradouras no cérebro da mulher
As novas mães apresentaram remodelação neural até dois anos após o parto; as alterações ajudam na adaptação à maternidade
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Entrevista – Roland Griffiths
Uma jornada além do medo e da morte
por Richard Schiffman
O farmacologista clínico Roland Griffiths, da Universidade Johns Hopkins, fala a respeito de uso da droga psicodélica psilocibina para tratar depressão e ansiedade em pacientes terminais
18
A molécula
do prazer
seções
12
PSICANÁLISE
Amando animais e seus limites
por Christian Ingo Lenz Dunker
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LIMIAR
Sete perguntas do nosso tempo
por Sidarta Ribeiro
NOTÍCIASNotas sobre fatos relevantes nas áreas de psicologia, psicanálise e neurociência. AGENDA Programação de cursos, congressos e eventos.
Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição
A localização das estruturas cerebrais nas imagens desta edição é apenas aproximada Os artigos publicados nesta edição são de responsabilidade dos autores e não expressam necessariamente a opinião dos editores
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especial digital
3
CARTA DA EDITORA6
PALAVRA DO LEITOR8
ASSOCIAÇÃO LIVRE Notas sobre atualidades,psicologia e psicanálise
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NA REDE
O que há para ver e ler na internet
34
NEUROCIRCUITO Novidades nas áreas de psicologia e neurociência
80
LANÇAMENTOSSono e ciência
A cada noite, milhões de pessoas se preparam para dormir – e não conse-guem conciliar o sono. Ou, se o fazem, acordam antes do que gostariam, ainda cansadas e, na maioria das vezes, ansiosas por saber que chegarão exaustas ao fim do dia. A longo prazo, essa privação compromete a qua-lidade da saúde física e mental. A insônia já é considerada um problema de saúde pública, muitas vezes associada a quadros de obesidade, de-pressão, ansiedade e psicose. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que aproximadamente um terço da população mundial enfrente problemas para dormir. No Brasil, a insônia é um distúrbio que acomete 36,5% das pessoas, segundo dados do Instituto do Sono de São Paulo. Na edição especial Mente e Cérebro 58 – Sono, especialistas tratam dos vários aspectos desse fenômeno psíquico tão fascinante e complexo que é o adormecer.
Principalmente nos últimos anos, mesmo quem não tem dificuldade para dormir tende, muitas vezes, a se habituar a permanecer mais horas acordado, seduzido pelas redes sociais ou por séries e filmes. Já as longas jornadas de vigília (ou o adormecimento entrecortado) em razão da ativi-dade profissional podem prejudicar a capaciativi-dade de raciocínio. Um estu-do desenvolviestu-do pelo psicólogo Ian Deary, da Universidade de Edimburgo, na Escócia, já mostrou que depois de uma noite de plantão, a capacidade dos médicos de lembrar resultados de exames e histórico do paciente, por exemplo, diminui quase 20%. Quer dizer: de cada cinco informações, uma seria esquecida por causa do sono atrasado. Saiba mais sobre o assunto. Veja como baixar seu especial em
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ISSN 1807156-2.
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CORRER DA
DEPRESSÃO
Eu me identifi quei profundamente com a reportagem de capa da edição 289, de fevereiro. Passei por um episódio de depressão, precisei de medicação psiquiátrica e, durante as sessões de análise, com a ajuda da psicanalista que me acompanha até hoje, aospoucos me dei conta
de que voltar a me exercitar poderia ser importante para minha recuperação. Eu só não imaginava o quanto mexer o corpo faria diferença em minha vida. Hoje, passados três anos, treino em um grupo de corrida, participo de provas de rua quase todos os meses e pratico natação com regularidade. Retomei minha vida e posso dizer com alegria que esses três elementos – medicação (que deixei há muito tempo), análise e exercício – me curaram do marasmo doloroso em que eu vivia. Queria muito que milhares (ou milhões) de pessoas que passam por essa dor pudessem ter a mesma oportunidade de recuperação que tive.
Ana Rosa Ferreira – Osasco, SP
NO www .ment ec erebr o.c om.br 9 771807 156009 00289 ISSN 1807-1562 R$ 15,90 4,90 € , barato e sem ão, o exercício rado por muitoêutica auxiliar apel central no m muitos casos, r a medicação
ESPECIAL | A ESTRANHA CAPACIDADE DE VER SABORES E OUVIR CORES
p s i co l ogia • psicanálise • ne u ro c i ência
LINGUAGEM
A ciência pode ajudar no aprendizado de idiomas
ANSIEDADE
Não adianta fugir das pr eocupações, é melhor dar espaço a elas
MEMÓRIA
Como novas experiências reforçam recordações que pareciam perdidas
MEXER
O CORPO
PARA CURAR A
DEPRESSÃO
LIDERANÇA
Muito interessante o especial sobre liderança da edição 288, de janeiro. Recomendo a leitura para qualquer pessoa que pretenda trabalhar em empresas (e não apenas na área de psicologia ou recursos humanos).
Alisson Lima – Rio de Janeiro, RJ
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aneiro2017 •mentecérebro
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especial
O líder
focado
O AUTOR
DANIEL GOLEMAN, doutor em psicologia pela Un vers dade Harvard, é um dos diretores do Consórc o de Pesquisas sobre Inteligência Emocional em Organizações da Universidade Rutgers É autor de Inteligênc a emocional (1996), Foco (2013), ambos pela editora Objetiva, entre outros livros Este art go foi or ginalmente publicado pela Harvard Business Rev ew
Prestar atenção em si mesmo é fundamental, mas não basta – é preciso estar atento ao ambiente que nos rodeia. Profissionais que conseguem se concentrar efetivamente em outras pessoas emergem como líderes naturais, independentemente de sua posição organizacional ou social por Daniel Goleman
CONCURSO CULTURAL: ESCREVA E GANHE UM LIVRO!
Mande sua opinião sobre um dos artigos desta edição para o e-mail redacaomec@editorasegmento.com.br ou uma sugestão e concorra a um livro. Por limitação de espaço, tomamos a liberdade de selecionar e editar as cartas recebidas. A premiada deste mês é Ana Rosa Ferreira – Osasco, SP.
MOTIVAÇÃO
Mais uma vez venho dizer que admiro as publicações e artigos da Mente
e Cérebro. Ao ler a matéria de capa
da edição 288, “O que motiva você”, lembrei-me da matéria “Ursinho de pelúcia desperta a ética em adultos” da edição 283 e gostaria de sugerir, quem sabe, uma “compilação” de ambas, já que muito se tem falado sobre trabalho, motivação e mentiras. Parabéns novamente!
Luana Miranda Neves São Paulo, SP
SONO
Muito boa a matéria “Quer dormir? Desligue a TV e o celular!”, publicada na edição 288 de Mente e Cérebro. Precisamos de fato nos “desligar” da tecnologia para relaxar, e dormir com um sono de qualidade, pois uma boa noite de sono regula os hormônios e melhora o humor.
Emanuela Fernandes – via Facebook
CAPAS BONITAS
Adoro a revista e ultimamente também tenho gostado muito das capas das revistas: criativas, alegres e atraentes.
l midt – Porto Alegre, RS
três sugestões para reportagens rtigos das próximas edições de
e Cérebro: transgêneros, terapia
de casal e loucura.
Bruna lencar – São Paulo, SP
18
capa
motiva
O que
Estamos sempre buscando recompensas – que podem aparecer em forma de bens materiais, prazeres sensoriais, afeto ou sentimentos de profunda autorrealização – e evitando punições. Na prática, pessoas motivadas procuram se superar e buscar melhores resultados, são mais entusiasmadas, responsáveis, comprometidas – e, principalmente, mais felizes e realizadas. O problema é que nem sempre nosso empenho está alinhado com os resultados obtidos. Novas pesquisas indicam a importância de rever o que queremos e, eventualmente, corrigir rotas
você?
shut
ter
stock
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ciência para viver melhor
magens shut ter stock
Quer dormir?
Desligue a TV
e o celular!
Sabemos há décadas que a luminosidade intensa suprime a melatonina, o hormônio que o cérebro produz à noite para induzir o sono. Porém, estudos mais recentes provaram que alguns tons específicos emanados pela tela de aparelhos eletrônicos fazem isso de forma mais pronunciada, deixando as pessoas mais alertas quando deveriam começar a se sentir sonolentas PorFerris Jabr, jornalista
creveram alguns códigos para mudar o número e o com-primento das ondas dos fótons emitidas pelas telas dos computadores à medida que o dia avançava. O objetivo era imitar o máximo possível as mudanças naturais no ambiente da iluminação, transitando da luz clara e azu-lada da manhã, passando pelo efeito do sol da tarde para chegar à luminosidade fraca e alaranjada do entardecer. Primeiro eles pretendiam apenas harmonizar o es-quema de iluminação da casa. Mas logo começaram a suspeitar que seu novo aplicativo, que chamaram de f.lux, pudesse também trazer benefícios à saúde. “De-pois de usá-lo por algum tempo, começamos a notar que parecia mais fácil desacelerar à noite e dormir de-pois que os aparelhos eletrônicos eram desligados”, re-lembra Lorna. Não foram os únicos a apreciar o efeito relaxante. Desde que casal lançou o programa gratuito em 2009, o f.lux foi baixado mais de 20 milhões de vezes.
H
á uma década a desenvolvedora de software Lorna Herf, de Los Angeles, decidiu testar seu talento em pintura a óleo. Ela e o marido, Mi-chael, também programador de computadores, instalaram claras lâmpadas fluorescentes no mezanino do apartamento para que a moça pudesse pintar à noite e ainda ter uma ideia precisa de como as cores na tela pareceriam durante o dia. Uma vez, tarde da noite, ela desceu para a sala onde computadores estavam ligados. Já mais acostumada às diferenças da iluminação, reparou como as luzes intensas dos equipamentos entravam em choque com a suavidade dos bulbos incandescentes que os cercavam. Ela lembra ter pensado que as telas eletrô-nicas pareciam “pequenas janelas de luz artificial do dia”, comprometendo o ambiente aconchegante da sala.O casal, versado em tecnologia, projetou então uma solução criativa para minimizar a discrepância. Eles
es-Obras gigantes
abordam emoção, corpo
e consumismo
Criações híbridas de fíguras humanas e objetos cotidianos
propõem refl exão sobre a identifi cação com coisas que desejamos
e compramos; visitantes podem participar de performances
sugeridas na sala Esculturas de um minuto
U
ma inusitada casa obesa erguida no térreo do CentroCultural Banco do Brasil em São Paulo desperta a curiosidade de quem passa pelo prédio. A estrutura de duas toneladas é Casa gorda, uma das 40 obras da exposição
O corpo é a casa, do austríaco Erwin Wurm. Sucesso nas
galerias de arte de todo o mundo, Wurm se destaca por imprimir características orgânicas a esculturas de bens de consumo, como casas, carros, utensílios e alimentos industrializados. A aparente diversão despertada pelo sur-realismo das obras gigantes resguarda uma intenção mais profunda do artista – uma reflexão sobre como estamos emocionalmente identificados com os objetos que com-pramos e desejamos, a ponto de tratar marcas e produtos como extensão da nossa personalidade.
Essa ideia é trabalhada especialmente na sala
Escul-turas de um minuto, a obra mais conhecida de Wurm,
que tem sido apresentada em vários museus desde os anos 90 e inspirado não só outros artistas, mas tam-bém o público geral a subverter objetos do dia a dia. A proposta é que os visitantes toquem e interajam com alguns objetos escolhidos e deixados por Wurm na sala, seguindo algumas instruções do artista, explicadas com texto e imagem.
Basta uma simples pesquisa no site de vídeos You-Tube com o título da obra para visualizar vídeos de anô-nimos que visitaram e fi lmaram suas autoperformances de 60 segundos – são dezenas de cenas de homens e
mulheres encaixando-se dentro de mesas de centro, usando bolsas de luxo sobre a cabeça, abraçando produ-tos de limpeza, entre outras imagens surrealistas, mar-cadas pela descontextualização.
A seleção de obras compreende também as séries
Dentro de casa e Comida, que propõem uma inversão
irônica e bem-humorada da utilidade fi nal de móveis, utensílios e alimentos. A seleção traz, por exemplo, um mictório com pernas humanas e esculturas de bronze de salsichas em posições sexuais. Vídeos de performances e instalações do artista estão espalhados pelas paredes do CCBB. Depois de São Paulo, as obras seguem para as unidades do CCBB de Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
ssociação livre
divulgação
ESCULTURAS, INSTALAÇÕES E VÍDEOS serão exibidos nas unidades do CCBB de São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e Rio de Janeiro ao longo do ano
PÚBLICO É CONVIDADO a experimentar texturas, cheiros e sabores na mostra da artista plástica Maria Lynch: abaixo, imagem da sala Comida
Erwin Wurm – O corpo é a casa. CCBB São Paulo*. Rua Álvares Penteado, 11, Centro. De quarta a segunda, das 9h às 21h. Informações: (11) 3113-3651. Grátis. Até 3 de abril. CBB Brasília. SCES Trecho 2, Lote 22, Asa Sul. Informações: (61) 3108-7600. De 21 de abril a 26 de junho. CCBB Belo Horizonte. Praça da Liberdade, 450, Funcionários. Informações: (31) 3431-9400. De 11 de julho a 18 de setembro. CBB Rio de Janeiro. Rua Primeiro de Março, 66, Centro. Informações: (21) 3808-2020. De 11 de outubro a 8 de janeiro de 2018. *Para evitar fi las, a visita pode ser agendada no site do CCBB: culturabancodobrasil.com.br.
Festa para os sentidos
V
isão, tato, paladar, audição e olfato são osprotago-nistas da mostra Máquina Devir, em cartaz no espaço Oi Futuro, no Rio de Janeiro. São nove salas temáticas com títulos bem sugestivos, como Memória, Desejo, O que
você mais gosta de fazer?, Mito, Roupagem e Comida, que
convidam o visitante a participar de exercícios sensoriais elaborados pela artista plástica Maria Lynch.
Em uma das salas, o espectador ouve textos de pen-sadores como Nietzsche e Deleuze, recitados por atores fantasiados, em clima circense. Em outra, entra de olhos vendados para experimentar materiais de diferentes formas e texturas, testando suas percepções. Também pode criar suas performances, em uma sala sem câme-ras, com objetos tão provocativos como um bambolê ou um vibrador.
Máquina Devir. Oi Futuro Ipanema. Rua Visconde de Pirajá, 54, Ipanema, Rio de Janeiro. De terça a domingo, das 13h às 21h. Informações: (21) 3131-9333. Grátis. Até 19 de março.
elisa
mendes
XMONÓLOGO
Diário de uma transexual
O
Brasil está entre os países que lideram a lista de crimes contra travestis e transexuais. A transfobia é tema central do monólogo Gisberta, baseado na his-tória real de uma transexual brasileira assassinada em Portugal.O ator Luis Lobianco dá voz à personagem Gis. Conta sobre os motivos que a fizeram mudar-se para a Europa ainda nos anos 70, intimidada pelos casos de agressão contra LGBTTs no Brasil, e sobre seu pro-cesso de transição. De forma sensível, o texto passeia pelas descobertas e amores de Gis, que se apresen-tava em casas noturnas na cidade do Porto, apro-fundando-se em episódios dramáticos do fim de sua vida, como as complicações de saúde causadas pelo vírus HIV e a depressão, culminando na sua morte trágica – Gis foi atirada em um poço por um grupo de crianças, depois de, fraca e doente, ter sido torturada por elas durante dias.
Gisberta. Centro Cultural Banco do Brasil (Teatro III). Rua Primeiro de Março, 66, Centro, Rio de Janeiro. De quinta a domingo, às 19h30. Informações: (21) 3808-2020. R$ 20. Até 30 de abril.
LUIS LOBIANCO leva aos palcos a trágica história de
Gisberta, brasileira
assassinada em Portugal por um grupo de crianças
O
libanês Yasser Mroué tem dificuldade de compreenderos significados de palavras e de aplicá-las corretamente no cotidiano. Também não consegue reconhecer rostos nem objetos em fotografias. Esses sintomas, que caracterizam dis-túrbios como afasia, propagnosia e agnosia, respectivamente, são decorrentes de lesões cerebrais causadas por um tiro que Yasser levou na cabeça aos 17 anos, durante a guerra civil em seu país. Sua história é recontada de forma poética em
Cavalgando em nuvens, destaque da programação da Mostra
Internacional de Teatro de São Paulo.
No texto escrito e dirigido pelo próprio irmão, Rabih Mroué, Yasser interpreta um homem que não consegue mais usar palavras depois de ser ferido na guerra. O ator, que tem superado várias das sequelas por meio do treino de reconhe-cimento de imagens com o uso de vídeos, conta com um expositor de vídeos legendados em português para mostrar
flashbacks das memórias do protagonista, em passagens que
mesclam realidade e ficção.
divulgação
Cavalgando em nuvens. Sesc Vila Mariana. Rua Pelotas, 141, Vila Mariana, São Paulo. Informações: (11) 5080-3000. De 17 a 19 de março. Horários não confirmados até o fechamento desta edição, mas disponíveis no site da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo: mitsp.org
XMOSTRA INTERNACIONAL DE TEATRO
o que há para ver e ler
| na rede
reprodução/29acres.org
Pais de jovem com autismo
criam comunidade para adultos
com o transtorno
PROJETO PREVÊ 20 alojamentos individuais adaptados para pessoas com TEA, com controle de estímulos visuais e sonoros. Serão oferecidos programas educacionais para desenvolver habilidades e autonomia dos moradores
O futuro de John Heighten, de 19 anos, tor-nou-se uma preocupação para seus pais, os médicos Debra Claudy e Clay Heighten, à medida que envelheciam. John apresenta sintomas severos do transtorno do espec-tro autista (TEA) e precisa de acompanha-mento nas atividades diárias. Os pais são os principais responsáveis pela manuten-ção das suas rotinas e cuidados com sua higiene e alimentação. Realidade comum a muitos pais de adultos com autismo, aliás. Pensando em uma solução confor-tável para famílias que vivem situações semelhantes, o casal de médicos adquiriu por conta própria um terreno em Dallas, no Texas, e iniciou o projeto de construção de um conjunto habitacional específi co para adultos autistas.
Batizado 29 Acres, tamanho da área, o projeto já recebeu mais de US$ 1 milhão em doações e prevê cerca de 20
alojamen-tos individuais adaptados para pessoas com TEA, à prova de som e com poucos estímulos visuais, mas que podem ser customizados pelos moradores. O local serve tanto como lar permanente quanto lugar para passar parte do tempo. A ideia é que tenham pri-vacidade, mas também liberdade para transitar entre suas casas e áreas comuns. A assessoria de psicólo-gos, educadores e profi ssionais de saúde é perma-nente. O casal está organizando também uma “uni-versidade” destinada a trabalhar habilidades e a au-tonomia dos moradores e estimulá-los a desenvolver trabalhos voluntários e atividades de seu interesse.
A previsão é que a comunidade comece a funcio-nar até o fi nal de 2017. O custo estimado de cada morador é de cerca de US$ 50 mil por ano – a in-tenção dos pais de Heighten é que governo e insti-tuições privadas se interessem em fi nanciar bolsas para famílias que optem ou necessitem colocar os fi lhos na comunidade. Saiba mais em 29acres.org
psicanálise
inconsciente a céu aberto
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
A
nimais de estimação são comofilhos, mas filhos que não cres-cem nem nos abandonam. Retribuem nosso amor com sua presença e solicitude, sem conflitos ou oscila-ções na qualidade afetiva, oferecendo suporte simbólico para experiências de reconhecimento, metafóricas e me-tonímicas, centrais na formação e na reconstrução de nossa capacidade de amar. Eles podem ser parte de nossa recuperação psíquica, como vemos na abordagem proposta por Nise da Silveira, mas também se prestam a suportar, silenciosos, nossas formas mais patológicas de amar, como os acumuladores de cães ou gatos, os que submetem animais a uma vida “demasiadamente humana” e, no
limite, os estupradores crônicos de animais. Está em jogo aqui a sutil diferença entre ser como um filho, amigo ou amante e ser o próprio bebê, companheiro e objeto de satisfação erótica. Nossa gramática amorosa, definida pela inversão entre amor e ódio, entre amar e sem amado ou entre amar e ser indiferente depende essencialmente deste “como se”. Por isso, amar não é dissociável da poesia e suas práticas equivalentes. Por isso, em nosso amor pelos animais nós os fazemos falar conosco, sentindo suas atitudes como fidelidade canina ou independência felina.
Portanto, animais domésticos são “como nós”, eles vivem em nossa casa, como parte de nossa família e extensão metonímica de nosso modo de vida. No entanto, eles não são “nós”, mas uma metáfora dos huma-nos, pois a eles não aplicamos nossas leis, nem esperamos sua participação na vida política. Justamente por isso eles colocam-se em posição decisi-va para que exercitemos este limite tão difícil entre o amor narcísico, no qual nós amamos através do outro, amamos o outro como uma extensão projetiva de nós mesmos e esta outra forma de amor, na qual sua alterida-de, sua estranheza e sua diferença são os fatores decisivos. Reduzindo o problema: animais nos convidam a investigar este limite entre o amor metonímico (o outro como parte de
mim) e o amor metafórico (o outro como outro).
Quando amar se opõe a ser ama-do, segundo o tema clássico da cor-respondência, os animais tornam-se uma espécie de totem de nosso amor primário, cujo exagero nos faz en-tender a força irresistível da imagem de animais fofi nhos, desamparados e supremos em sua disponibilidade para receber e oferecer a nossa mera presença como um presente. Metáfo-ra do outro que um dia fomos, ou que gostaríamos de ter sido. Quando to-mamos a inversão entre amar e odiar, entendemos por que podemos dirigir nosso ódio aos animais, exercendo sobre eles crueldade impiedosa, vo-racidade instrumental e ambição de domínio. Metonímia do que não su-portamos em nós mesmos.
Contudo, quando falamos da opo-sição entre amor e indiferença, não es-tamos nem no totemismo metafórico nem no animismo metonímico, mas no cruzamento contingente de nos-sas perspectivas humanas, com uma espécie de destino comum e inuma-no. Desta feita, eles nos ensinam algo sobre nosso próprio limite que nos constitui, nos abrindo para formas de amor ainda não descobertas.
Amando animais
e seus limites
Eles podem ser parte de nossa recuperação psíquica, mas
também se prestam a suportar, silenciosos, nossas formas
mais patológicas de expressão de afeto e perversão
arquivo pessoal (foto), shut ter stock (imagem)
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER,
psicanalista, professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade
Uma epidemia
O ronco pode ser um indicador de apneia, uma doença grave.
Novos recursos, como estímulos cerebrais, ajudam tanto o
paciente quanto quem convive com ele a vencer esse problema
por David Noonan, jornalista científico
D
urante muitos anos, o roncoes-trondoso de Al Pierce costumava levar sua mulher a sair do quarto e se aconchegar no sofá da sala de televisão. Após inúmeras noites maldormidas, ele passou, então, a usar um pequeno controle remoto para ligar um sensor eletrônico implan-tado no peito. O dispositivo detecta pequenas mudanças no padrão de sua respiração – sinais precoces de que as vias aéreas de Pierce estão começando a entrar em colapso. Ao detectar essas mudanças, ele aciona um leve estímulo elétrico que percorre um fio até o pescoço. O fio termina em um minúsculo eletrodo ligado a um nervo que controla os músculos de sua língua. O nervo, estimulado pela carga, ativa músculos que empurram a língua de Pierce para a frente na boca, levando as vias aéreas a abrirem.
Durante toda a noite, o encanador de 65 anos de Florence, Carolina do Sul, recebe centenas de pequenos choques – mas dor-me tranquilador-mente. Na manhã seguinte, descansado e revigorado, Pierce usa o con-trole para desligar o dispositivo.
Essa nova tecnologia, chamada estimu-lação eletrônica das vias aéreas superiores, aprovada no verão passado pela Adminis-tração de Alimentos e Medicamentos (FDA) dos Estados Unidos, oferece muito mais que alívio de um barulho irritante. O ronco alto
de Pierce era o sintoma mais evidente de ap-neia obstrutiva do sono. O distúrbio é drasti-camente subdiagnosticado, com número de atingidos estimado em 25 milhões de ameri-canos. No Brasil, o Instituto do Sono de São Paulo estima que aproximadamente, 33% de pessoas sofrem de apneia. O problema é grave: está associado a hipertensão arte-rial, cardiopatias, diabetes, depressão e até diminuição da capacidade de aprendizagem, podendo deflagrar ou agravar esses quadros. Em geral, portadores de apneia do sono gra-ve têm o triplo do risco de morte por todas essas causas, em comparação com pessoas sem o distúrbio.
No entanto, não é fácil encontrar auxílio para quem sofre do problema. Uma opção efi-caz, uma máscara presa com tira que empurra delicadamente o ar para dentro da garganta para mantê-la aberta, é compreensivelmen-te rejeitada por grande parcompreensivelmen-te dos que compreensivelmen-tentam usá-la, por ser bastante desconfortável. Outras opções oferecem resultados contraditórios. Assim, por mais radicais que possam parecer, o implante cirúrgico e a estimulação do nervo talvez sejam a resposta para muitos roncado-res. Em um estudo publicado no ano passado no New England Journal of Medicine, a técnica reduziu episódios de apneia grave em cerca de dois terços. A aprovação da FDA viabiliza o tra-tamento com cobertura de seguro.
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Grande parte dos médicos ainda não se dedicam muito a encontrar terapias para a apneia. Mesmo os pacientes tendem a não considerar que o distúrbio seja grave. “A ap-neia do sono não aparece em um atestado de óbito”, avalia Patrick J. Strollo, Jr., especialista do sono do Centro Médico da Universidade de Pittsburgh. “Apesar de poder contribuir para a morte, não é realmente uma causa di-reta e o tratamento costuma ser visto como pouco urgente.”
Aproximadamente metade das pessoas que roncam alto têm apneia do sono, segun-do a Fundação Nacional segun-do Sono, nos Es-tados Unidos – mas nem todos sabem que sofrem desse quadro. Pierce só descobriu que tinha apneia porque sua mulher, Gail, so-licitou ao médico uma receita de pílulas para dormir. Ele perguntou o motivo, e ela expli-cou que o ronco do marido não a deixava des-cansar. O médico lhe disse que, se as coisas eram assim tão sérias, o marido deveria fazer uma polissonografia. Durante o exame, feito à noite, enquanto o paciente dorme, vários sensores são ligados a ele. A observação re-velou que Pierce tinha até 30 episódios de ap-neia por hora – ou seja, a cada dois minutos
apresentava dificuldade para respirar. Apesar de anos de cansaço contínuo, ele ficou ator-doado ao saber do problema médico. “Pensei que era assim que todos viviam; não sabia de nada diferente”, recorda .
A apneia obstrutiva do sono costuma se desenvolver quando as pessoas envelhecem ou engordam, o que causa o estreitamento do tubo das vias aéreas, assim como a perda do tônus dos músculos da boca e da gargan-ta. Quando os músculos relaxam durante o sono, as vias aéreas sofrem constrição e blo-queiam o fluxo de ar para os pulmões.
Algumas pessoas com apneia grave pa-ram de respirar completamente, por até um minuto ou dois, até 600 vezes por noite. Essa privação de oxigênio força o coração a traba-lhar mais e cria ondas de adrenalina, que por sua vez provocam picos de pressão arterial. Além disso, os níveis de oxigênio oscilantes podem provocar danos em células e tecidos nos pulmões e em outros órgãos.
Grandes intervenções, como a cirurgia re-construtiva da garganta, têm sido ineficazes. Médicos frequentemente recomendam alte-rações no estilo de vida como perda de peso e às vezes até mesmo tocar instrumentos de sopro para fortalecer e tonificar os músculos da língua. Dilatadores nasais e bocais gené-ricos, fáceis de adquirir em farmácias, visam o ronco, o sintoma, em vez da apneia sub-jacente. O problema é que o que ajuda um paciente pode ser completamente inútil para outro. Além disso, qualquer objeto projetado para ficar na boca ou na garganta durante o sono, e manter as vias aéreas abertas, pode incomodar o paciente e realmente atrapalhar o sono. Qualquer tratamento precisa ser con-fortável, fácil de usar e confiável.
É o caso da máscara de oxigênio, chamada CPAP, que pressiona as vias aéreas, cobrindo o nariz (ou o nariz e a boca), sendo mantida por tiras que envolvem a cabeça. Uma peque-na bomba de cabeceira proporciopeque-na um fluxo constante de ar pressurizado para a máscara através de tubo plástico. A terapia, disponível desde o início da década de 80, alivia sinto-mas de apneia obstrutiva do sono, e pesqui-sas indicam índices mais baixos de doenças cardiovasculares e mortalidade entre pacien-tes que a adotam.
Enquanto você dorme
A MÁSCARA DE OXIGÊNIO (CPAP) cobre o nariz e a boca; uma pequena bomba externa proporciona fluxo constante de ar pressurizado através de tubo plástico
Língua
Via aérea superior aberta Via aérea superior fechada
Palato mole
Úvula
Amígdalas
Quando os músculos relaxam durante o sono, as vias aéreas sofrem constrição e bloqueiam o fluxo de ar para os pulmões
do pescoço, sob o queixo do paciente, coloca um eletrodo sobre o nervo hipoglosso, que controla os músculos da língua. Ele também implanta um conjunto de bateria e um sen-sor no peito e os conecta ao eletrodo com um fio condutor. Geralmente, o paciente tem alta no dia seguinte; o dispositivo é ligado e ajustado após um mês.
Pesquisadores investigam alternativas, como medicação. Em um estudo de seis se-manas envolvendo 120 pacientes, David W. Carley, médico da Universidade de Illinois, em Chicago, está testando um fármaco de-nominado dronabinol, versão sintética de um composto ativo da maconha. Ele está comparando pessoas que recebem o medica-mento com as que não o recebem. O drona-binol pode prevenir ou reduzir episódios de apneia do sono, estimulando certa atividade dos neurotransmissores no cérebro. Outros pesquisadores examinam o papel exercido pela leptina, hormônio que suprime o apetite e pode melhorar a função respiratória. Um pequeno estudo de 26 obesos com IMC su-perior a 45 sugere que determinados níveis de leptina podem minimizar o colapso das vias aéreas superiores.
Schwartz também quer modificar a téc-nica de estimulação, testando um dispositi-vo que elimina o sensor. Em vez disso, ele envia uma carga repetida ao nervo da língua para manter as vias aéreas abertas. Esse refinamento deve simplificar a cirurgia e re-duzir peças que poderiam falhar, segundo Schwartz. Pierce, no entanto, está muito feliz com seu sistema. Seja acordado ou dormin-do tranquilamente, ele nem percebe a pre-sença do dispositivo.
Porém, metade das pessoas que tentaram usar a máscara desistiram. Pierce é um deles. Como tantos outros, ele não conseguia dormir facilmente enquanto usava algo sobre o rosto, e ele não gostava do modo como a tubulação restringia seus movimentos na cama.
Strollo é um forte defensor da CPAP, mas há muito reconheceu a necessidade de alter-nativa. A estimulação eletrônica de vias aé-reas superiores pode ser essa opção, segun-do ele. O pesquisasegun-dor conduziu um amplo estudo sobre o novo tratamento, um ensaio de um ano sobre sua segurança e eficácia, en-volvendo 126 pessoas com apneia obstrutiva de moderada a grave. Todos os participantes tinham índice de massa corporal (IMC) de 32 ou menos (um homem com 1,77 m de altura e 101 kg de peso tem IMC de 32), tinham ten-tado CPAP inicialmente e não apresentavam histórico de doença cardiovascular. Em um estudo de janeiro passado no New England
Journal of Medicine, Strollo e seus colegas
relataram que a terapia, com um dispositivo feito pela Inspire Medical Systems, reduziu eventos de apneia do sono dos participantes em 68%, de uma média de 29,3 eventos por hora para nove por hora, basicamente trans-formando a apneia grave em um caso leve. (O CPAP, após ajuste, pode ter resultado ainda melhor, reduzindo a quantidade de eventos de apneia grave a menos de cinco por hora, em média, mas apenas em pacientes que o usarem continuamente.)
O cientista Alan R. Schwartz, especialista do sono na Universidade Johns Hopkins e res-ponsável por grande parte do trabalho inicial de estimulação no nervo – ele mostrou, em animais, que dar choque no nervo controla-dor da língua abriria as vias aéreas –, diz estar satisfeito, mas cauteloso. “Ainda temos mui-to a aprender”, observa ele, ressaltando que pessoas com sobrepeso e obesas, grupo que representa porcentagem significativa da popu-lação com apneia obstrutiva, não são conside-radas boas candidatas para o procedimento devido ao excesso de tecido em vias aéreas.
Além disso, a estimulação envolve um procedimento invasivo. A cirurgia para im-plante do dispositivo leva cerca de duas horas. Um cirurgião de cabeça e pescoço, operando através de uma incisão na lateral
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O dronabinol, uma versão
sintética de um composto ativo da
maconha, estimula a atividade dos
neurotransmissores, o que ajuda
a prevenir ou reduzir episódios de
interrupção da respiração
A AUTORA
MAIA SZALAVITZ é jornalista, autora de vários livros, entre eles Unbroken brain: a revolutionary
new way of understanding addiction (St. Martin’s
Press, 2016, não lançado no Brasil).
Uma nova teoria postula
que o cérebro utiliza a
dopamina para fazer
predições de quanto
uma experiência será
gratificante. Os níveis
do neurotransmissor
são elevados quando
uma vivência supera as
expectativas. Descobertas
recentes sobre o
funcionamento da “química
do desejo” têm ajudado
cientistas a compreender
os mecanismos que regem
não apenas a satisfação,
mas a adicção, as variações
de humor, a memória e
até sintomas de doenças
neurodegenerativas,
como Parkinson
porMaia Szalavitz
Q
uando Stephanie (nome fic-tício) começou a comer em excesso, as pessoas que con-viviam com ela estranharam: aquele não era um compor-tamento típico da gerente comercial de 34 anos. Ela nunca tinha tido problemas com peso. Porém, em 2009 passou a sentir um apetite incontrolável – especial por doces – e, rapidamente, passou a acumular quilos. Com a mesma rapidez, ela desenvolveu uma ob-sessão por jogos de azar online. “Até então, nunca tinha sequer arriscado um palpite na loteria em toda a minha vida”, lembra-se. No entanto, começou a apostar de forma com-pulsiva. “Eu percorria diversas lojas à procura dos bilhetes; acreditava que, se comprasse em determinados lugares, teria mais chances de ganhar.” Além disso, comprava compulsi-vamente em sites na internet e, muitas vezes, era atormentada por uma excitação sexual in-tensa, que lhe trazia desconforto.A jovem só se deu conta anos mais tarde de que seus comportamentos poderiam ser considerados efeitos colaterais de uma me-dicação à base de pramipexol (que atua no cérebro, aliviando problemas motores). Seu médico havia prescrito o remédio para tratar a doença de Parkinson, com a qual tinha sido diagnosticada aos 29 anos, algo bastante in-comum nessa faixa etária. Naquele momen-to, a preocupação maior de Stephanie era evi-tar o agravamento dos sintomas da doença neurodegenerativa, em especial os tremores e as dificuldades de movimento. Embora sob vários aspectos esse quadro permaneça um mistério, os cientistas sabem que a doença gradualmente destrói células cerebrais que produzem o neurotransmissor dopamina. E o pramipexol atua como uma espécie de versão artificial dessa molécula, ativando os
mesmos receptores no cérebro, o que pode ajudar a explicar os problemas de Stephanie.
Embora poucos de nós despendam tem-po contemplando os mensageiros molecula-res em funcionamento em nosso cérebro, de-vemos muitíssimo a eles – e à dopamina em especial. Essa substância desempenha papel fundamental no movimento, na motivação, no humor e na memória. E, como a história de Stephanie sugere, tem também um lado obscuro. O neurotransmissor está relacio-nado aos mecanismos de recompensa e à dependência (de comida, drogas, jogo etc.), à esquizofrenia, a episódios de alucinação e paranoia. Ainda assim, a dopamina é mais conhecida pelo seu papel na sensação de pra-zer. O neurotransmissor está associado à sa-tisfação (uma espécie de senha cerebral para a felicidade) e ao efeito estimulante ou seda-tivo produzido pelas drogas psicoativas. No nível neuroquímico, muitos já leram ou ou-viram dizer que a dopamina é elemento que faz com que a vida valha a pena ser vivida, é o que permite que cada momento prazeroso seja reconhecido como tal e aproveitado. Isso se justificaria porque ela está na “composição da euforia” que todos buscam seja por meio da exposição (e aceitação) nas mídias sociais, do uso de drogas psicoativas, do esporte, da comida ou do sexo, por exemplo.
Mas pode ser hora de repensar esses conceitos. “A dopamina não é a molécula do prazer da maneira simples e direta como muitos acreditam; sua função é muito mais cheia de nuances”, afirma a pesquisadora Nora Volkow, diretora do Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos Estados Unidos, que vem estudando esse neurotransmissor há vários anos. Em sua opinião, a ideia muito difundida atualmente de que “precisamos da
dopamina” é controversa. Alguns pesquisa- imagens shut
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dores argumentam que, quando esse neuro-transmissor atua na área cerebral conhecida como sistema de recompensa, sinaliza dese-jo. Outros defendem que a substância ajuda o cérebro a prever recompensas e a direcionar o comportamento para buscá-las. Um tercei-ro grupo ptercei-rocura um consenso, dizendo que ambas as explicações podem ser válidas. Iro-nicamente, se há algo com que os cientistas concordam neste momento é que a dopami-na não define neurologicamente o prazer. Em lugar disso, essa molécula pode desvendar o mistério intricado daquilo que nos move. ENTRE O QUERER E O GOSTAR
Em 1978, o neurocientista Roy Wise, então na Universidade Concordia, no Québec, publi-cou um artigo crucial sobre dopamina. Em
la-boratório, ele rebaixou níveis do neurotrans-missor em ratos com medicações antipsicó-ticas e constatou que, sob esse efeito, os roe-dores deixavam de se empenhar para receber alimentos saborosos ou drogas desejáveis, como anfetamina – embora não tivessem nenhuma limitação física que os impedisse de fazer os movimentos necessários para ob-ter algo prazeroso –, o que sugere que seu comportamento mudou, pois a experiência deixou de ser recompensadora. Parecia que, pelo menos quando atuava em um circuito localizado próximo à área central do cérebro, a dopamina era necessária para a sensação de satisfação.
Na década seguinte, dados que respalda-vam a ideia de Wise só fizeram crescer. Por-tanto, era compreensível que, quando
come-çou a pesquisar a dopamina na Universidade de Michigan, o neurocientista Kent C. Berridge acreditasse – como a maioria de seus colegas – que a molécula fosse um sinal de “prazer”. O próprio trabalho de Berridge se concentrava em expressões faciais de bem-estar, que têm uma correspondência surpreendente entre os mamíferos. Os ratos lambem avidamente os lábios quando recebem doces e abrem a boca com repugnância após experimentarem um gosto amargo – assim como os bebês hunos. Expressões de satisfação típicas de ma-míferos se intensificam quando, por exemplo, um roedor faminto recebe uma guloseima es-pecialmente saborosa ou um animal sedento finalmente bebe água. Berridge pensou que estudar e medir essas respostas poderia con-firmar ainda mais a ideia de que a dopamina significa prazer para o cérebro.
Nessa mesma época, seu colega da Uni-versidade de Michigan, o neurocientista Terry Robinson, vinha utilizando uma neurotoxina para destruir neurônios dopaminérgicos e criar ratos que simulavam sintomas severos da doença de Parkinson. Berridge decidiu dar alimentos doces a esses roedores e observar se pareciam satisfeitos. Sua expectativa era que a falta de dopamina nos animais faria com que essa resposta não se manifestas-se. Como estavam com estoque tão baixo de dopamina, os ratos de Robinson quase não se moviam quando eram deixados sozinhos,
não buscavam alimentos e tinham de ser ali-mentados artificialmente. “Não queriam se alimentar nem beber nada”, diz Berridge. To-davia, para surpresa de todos, suas reações faciais ficavam completamente normais – continuavam a lamber os beiços em resposta a algo doce e a fazer caretas diante de uma refeição amarga.
Fizeram o experimento diversas vezes – e Berridge e seus colegas obtiveram os mes-mos resultados. Quando simulavam uma si-tuação que basicamente criava as condições opostas – ao aumentar os níveis de dopami-na em ratos utilizando eletrodos implantados em regiões apropriadas –, os roedores não lambiam os lábios de modo mais ávido ao comer alimentos saborosos, como a teoria “dopamina é prazer” previa. Na verdade, al-gumas vezes os animais pareciam até sentir menos prazer quando abocanhavam seus do-ces. No entanto, continuavam a comer com muito mais voracidade do que o normal.
Os pesquisadores ficaram perplexos. Em vez de produzir prazer, a dopamina parecia
impulsionar o prazer. O desejo em si pode ser
agradável em pequenas doses – mas a longo prazo, se não for satisfeito, causa sensação oposta, de desconforto. No final, Berridge e Robinson se deram conta de que havia tipos distintos de prazer: aquele envolvido em bus-car uma recompensa e aquele relacionado a obtê-la de fato. Os cientistas rotularam o
im-divulgação
EM TEMPO DE
DESPERTAR (1990),
baseado no livro homônimo de Oliver Sacks, Robin Williams faz o papel do neurologista: médico tratou pacientes que sofriam de letargia
pulso que a dopamina parecia induzir como “querer” e chamaram de “gostar” a alegria da sensação de saciedade (que não parecia estar conectada à dopamina).
Essa dissociação encontrou respaldo nos estudos realizados com pacientes diagnosti-cados com Parkinson. Eles são capazes de aproveitar as alegrias da vida, mas muitos costumam ter problemas com motivação. Talvez o exemplo mais vívido disso tenha ocorrido no começo do século 20, quando, nos Estados Unidos, uma epidemia de en-cefalite letárgica deixou milhares de pessoas com uma condição parkinsoniana especial-mente severa. Seu cérebro estava com esto-que tão baixo de dopamina esto-que eram inca-pazes de dar início a movimento e fi cavam basicamente “congeladas no lugar”, como estátuas vivas. O fi lme Tempo de despertar, em que Robin Williams fazia o papel do neu-rologista Oliver Sacks, se baseou no livro homônimo (Companhia das Letras, 1997) e narra a fase em que o médico tratou pa-cientes com esse quadro na década de 70. O autor mostra que um desencadear externo forte era capaz de estimular ação para pes-soas com essa condição, ainda que o efeito não perdurasse. Em um caso mencionado por Sacks, um homem que tipicamente se
sentava imóvel em sua cadeira de rodas na praia viu alguém se afogando. Ele saltou da cadeira, resgatou o nadador e então voltou à sua posição anterior, rigidamente fi xa. Outro paciente de Sacks costumava fi car quieto e imóvel em sua cadeira, a menos que lhe fos-sem lançadas várias laranjas, que ele então agarrava e com elas fazia malabarismos. O CÍRCULO INFINITO
A droga que Stephanie tomava pertence a uma classe de medicamentos conhecida como ago-nistas dopaminérgicos, utilizados para reabili-tar movimento e motivação. Os receptores do-paminérgicos “percebem” essas drogas como a substância produzida pelo organismo e rea-gem como se assim fosse. Como consequên-cia, as medicações podem oferecer um alívio excelente para sintomas como tremor, rigidez e outros problemas de movimento. Porém, as drogas podem ter também alguns efeitos cola-terais desagradáveis.
Stephanie, por exemplo, passou de um estado de desânimo para um excesso de motivação. Ou, pelo menos, a motivação que a droga estimulava era mal direcionada, já que, além de comer em excesso, seus pro-blemas com agonistas dopaminérgicos in-cluíam dependência de jogos de azar, obses-Apesar de ser há muito tempo associado à satisfação,
o neurotransmissor está ligado a muitos outros fenômenos
A novidade sobre a dopamina
Memória de trabalho
Indução de movimento
Comportamento repetitivo
Percepção de dor Compulsão
Aprendizado
Humor
Uso indevido de drogas e dependência Alucinação e paranoia
Atenção e vigilância
Ciclo sono/vigília
Recompensa e motivação
Dopamina
são com seu iPhone, compras compulsivas online e desejos sexuais classifi cados por ela mesma como “inadequados”, que a coloca-vam em situação de risco. Subjeticoloca-vamente, as experiências que descrevia eram muito parecidas às relatadas por pessoas que so-friam de variados tipos de compulsão e de-pendência. “No caso da compra de bilhetes de loteria, era como se estivesse presa num círculo de repetição, já que perdendo ou ganhando, sempre havia a necessidade de tentar de novo e de novo; era como se não houvesse possibilidade de fazer diferente”, lembra Stephanie. “A diferença entre joga-dores compulsivos e outras pessoas é que os primeiros vão atrás de ganhos e vamos atrás de perdas, e nunca há o sufi ciente para se ganhar e nunca o sufi ciente para se per-der”, escreveu Arnie Wexler, um ex-jogador compulsivo, autor de All bets are off, lançado nos Estados Unidos em 2004, sem tradução para o português.
Muita gente que sofre de alguma depen-dência e compulsão vivencia a intensifi ca-ção no desejo que, da mesma forma, não é acompanhada por um aumento semelhante na capacidade de desfrutar o prazer. “O que-rer era tanto que eu nunca parei para pensar coisas do tipo: ‘Será que eu realmente gosto disso?’. O curioso é que naquele momento isso simplesmente não importava”, diz Ste-phanie. Suas palavras descrevem de modo bastante preciso o que Berridge e Robinson chamam de “sensibilização de incentivo à dependência”, que se relaciona à ação dopa-minérgica, uma teoria que, desenvolvida em 1993, tem sido reforçada por estudos mais recentes.
Em 2005, por exemplo, uma equipe de pesquisadores da Faculdade de Medicina de Wisconsin e do Instituto Nacional de Abuso de Drogas acompanhou a atividade cerebral de oito pessoas com dependência de cocaí-na quando se preparavam para se autoadmi-nistrar a droga. Condizente com a teoria do “querer” de Berridge, a atividade nos percur-sos de dopamina atingia o ápice pouco antes de a droga ser consumida.
“O que a dopamina realmente faz é absor-ver e decodifi car os estímulos como se fossem pistas para o cérebro; aquilo que cheiramos e ouvimos tem um signifi cado motivacional que se torna intensifi cado, o que também aumenta o impulso para buscar esses elementos”, ex-plica Berridge. Segundo o cientista, inserir do-pamina diretamente no núcleo accumbens dos ratos faz com que se esforcem de duas a três vezes mais para obter o que anseiam – mas, uma vez obtida a recompensa, a experiência prazerosa não será intensifi cada.
UMA MOEDA PODEROSA
Mais recentemente, outros pesquisadores se concentraram em estudar uma função dife-rente da dopamina nos sistemas neurológi-cos associados à motivação. Esses cientistas argumentam que o cérebro usa dopamina nessas regiões não tanto como uma maneira de incentivar comportamentos determinados pelo que quer, mas como um sinal de pre-visões de ações ou aposta em objetos que mais seguramente fornecerão a recompensa pretendida. “O neurotransmissor codifi ca a diferença entre o que você está obtendo e o que você esperava”, diz o neurologista Wol-fram Schultz, agora na Universidade de
Cam-GOSTO BOM: humanos, orangotangos e ratos expressam sua satisfação com uma guloseima lambendo os lábios: esse código comum possibilitou que pesquisadores avaliassem o grau de prazer em experimentos em que eram oferecidos alimentos doces
bridge, que publicou um artigo crucial em 1997 sobre o que conhecemos como “teoria da dopamina do erro de predição das recom-pensas”.
Em uma série de experimentos iniciados na década de 80, Schultz e seus colegas mos-traram que, quando macacos obtêm pela pri-meira vez algo agradável – nesse caso, suco de frutas –, seus neurônios dopaminérgicos disparam mais intensamente quando tomam o líquido. Mas, uma vez que aprendem que uma pista como uma luz ou um som prevê a entrega de algo delicioso, os neurônios disparam quando o estímulo é percebido, e
não quando a recompensa é recebida. Essa resposta se altera quando o valor da recom-pensa muda. Se ela é maior ou melhor do que o esperado, os neurônios dopaminérgicos disparam mais em resposta a essa surpresa feliz; se não ocorrer ou for inferior à expectati-va, os níveis de dopamina despencam.
Em um estudo de 2016, Schultz e seus colegas solicitaram a 27 voluntários que se submetiam a ressonância magnética que olhassem para uma tela de computador em que aparecia uma série de retângulos, cada um representando uma escala de valores em dinheiro (de zero a US$ 100, por exemplo),
A ação neuroquímica é capaz de
explicar por que, quando estamos
desapontados, é confortante saber que
as coisas poderiam ter sido ainda piores
sem a indicação de quantias específicas. Um ponto para onde as pessoas deveriam olhar na tela surgia em algum lugar aleatório so-bre um retângulo para indicar um prêmio em dinheiro. Em vários ensaios, os participantes adivinhavam a quantia e depois, virtualmen-te, recebiam o valor correspondente. Enquan-to isso, os pesquisadores moniEnquan-toravam a ati-vidade em áreas seletas de intensa atiati-vidade dopaminérgica. Constataram que a atividade na substância negra e na área tegmental ven-tral, regiões vizinhas no mesencéfalo, estava relacionada ao erro de predição das pessoas – se tinham uma surpresa gratificante ou se ficavam desapontadas pelo prêmio. Além dis-so, a atividade nessa área ao longo do expe-rimento estava associada ao grau de sucesso com que os participantes ajustavam suas estimativas à medida que obtinham insights a partir de erros passados. Com base nessas observações, Schultz ressalta o papel da do-pamina tanto no aprendizado quanto no pro-cesso de buscar quando evitar determinadas situações e experiências.
Levando isso em consideração, o neuro-transmissor não pode avaliar com certeza o quanto uma experiência será agradável, mas
quanto valor ela representa para o organismo naquele momento em particular. Schultz ob-serva que os neurônios dopaminérgicos não distinguem entre diferentes tipos de recom-pensa. “Só estão interessados no benefício que trazem; não se ‘importam’ se é uma re-compensa de alimento, bebida ou dinheiro. Há precisão quanto ao erro de predição, mas não se importam com qual é a recompensa”, diz o neurologista.
Schultz sugere que a dopamina serve como um sistema monetário, uma espécie de moeda para o desejo. Por exemplo: quan-do o cérebro recebe um sinal de que o corpo está com sede, aumenta o valor da água para aquele indivíduo naquele momento. O líqui-do fresco se torna mais atrativo, e evitar o desconforto – e a desidratação, que coloca o organismo em risco – será uma ação prioriza-da. “Mas, quando nos apaixonamos, a quími-ca cerebral muda e todas as recompensas se tornam relativamente menos valiosas”, diz. Mesmo um copo de água significará pouco em comparação à oportunidade de estar com a pessoa amada – por isso, nossas priorida-des tendem a mudar quando estamos ena-morados.
Dessa perspectiva, é fácil ver por que a dopamina é crucial para a questão da depen-dência. Se as drogas e outros prazeres irresis-tíveis alteram a maneira como o sistema de recompensa determina aquilo que é valioso, será atribuída prioridade máxima ao objeto de desejo, e a motivação mudará de acordo com isso. Entender a função da dopamina sob esse prisma pode explicar também uma série de fenômenos psicológicos. Não por acaso, tantas pessoas costumam preferir uma re-compensa menor imediata a uma maior mais tarde – algo que os economistas chamam de “desconto do futuro”. Isso ocorre porque, à medida que as recompensas estão “poupa-das” para serem desfrutadas posteriormente, parecem distantes e muito menos atraentes do que aquelas prestes a serem recebidas – e são representadas por níveis progressiva-mente menores de dopamina.
Além disso, se a dopamina codifica erro de predição da recompensa, pode explicar também a chamada adaptação hedônica, aquela experiência universal em que aquilo
QUANDO MACACOS obtêm pela primeira vez algo agradável, como suco de frutas, seus neurônios dopaminérgicos disparam mais intensamente ao saborear a bebida; mas, se associam esse prazer a um estímulo luminoso ou sonoro, por exemplo, os disparos passam a ocorrer antes mesmo de receberem a bebida
sua reação menos intensa”, diz Shultz. Essa lógica confi rmaria a hipótese de 1965 de Mick Jagger em relação à baixa probabilidade de obter satisfação a longo prazo.
Outros pesquisadores começaram a tes-tar as ideias de Schultz. Em 2016, nos
Procee-dings of the National Academy of Sciences USA,
o neurocientista Read Montague, da Virginia Tech, e seus colegas publicaram descobertas envolvendo 17 pessoas com Parkinson que tinham feito implantes cerebrais que eram capazes de medir mudanças em dopamina no estriado, outra área no mesencéfalo asso-ciada a experiências gratifi cantes. Constata-ram que a sinalização da dopamina pode ser ainda mais cheia de nuances do que a rea-lização de um simples cálculo que compara experiência com expectativas.
No experimento desenvolvido por Schultz, os pacientes participavam de um jogo que que nos faz sofrer de desejo com o tempo
se torna menos fascinante, exigindo maior intensidade de experiência, novos graus de novidade ou maiores doses para alcançar a mesma satisfação. Todo mundo já passou por isso: você compra um carro novo, mas dirigi-lo logo se torna rotina, e você começa a ansiar por um carro mais completo. Ou a pessoa anseia por um chocolate, mas, se continuar comendo grandes quantidades do doce, logo vai enjoar e desejar outros alimen-tos. Em linhas gerais, é o que os fi lósofos bu-distas defi nem como “sofrimento de prazer”.
De acordo com a teoria do erro de predi-ção da recompensa, quando o cérebro acerta (algo ocorre igual ao previsto, nem mais nem menos), os níveis de dopamina não se alte-ram. “Mas o nível de prazer pode aumentar as expectativas para a experiência seguinte; então o erro de predição é menos elevado e
Os sinais que se originam em estruturas ricas em dopamina no mesencéfalo, como o núcleo accumbens, e viajam para o córtex pré-frontal, têm sido, por muito tempo, considerados como “vias do prazer”. Trabalhos mais recentes, no entanto, sugerem que a
dopamina estimula o desejo ou querer em vez da satisfação propriamente dita.
O lugar do desejo no cérebro
Córtex pré-frontal Núcleo accumbens Estriado Área tegmental ventral Substância negra
envolvia apostar fazendo uma simulação de mercado. Enquanto jogavam, consideravam as possíveis consequências de várias esco-lhas e posteriormente avaliavam suas deci-sões baseados naquilo que ocorreu de fato. Os sinais de dopamina registrados não mo-nitoravam um simples erro de predição de recompensa. Em vez disso, variavam pelo real desempenho das apostas comparado a como o investimento teria se saído se tives-sem feito uma escolha diferente. Em outras palavras, se alguém ganhasse mais do que esperava, mas poderia ter ganho mais ainda se tivesse feito uma escolha diferente, apre-sentava menor liberação de dopamina do que
se não tivesse sabido que havia uma maneira de ter um desempenho ainda melhor.
Além disso, se alguém perdesse alguns dólares quando poderia ter perdido muito mais se tivesse feito uma escolha diferente, a dopamina aumentava. Essa descoberta expli-ca por que saber que “poderia ter sido pior” pode tornar a experiência, ainda que desagra-dável, mais positiva – ou, pelo menos, não tão penosa.
Embora alguns cientistas considerem in-compatíveis as teorias do erro de predição da recompensa e da sensibilização do incentivo de Robinson e Berridge, elas não invalidam diretamente uma à outra. Muitos