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DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL. Thiago Sant Anna 1

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DIÁLOGO ENTRE O MESTRE E O PROFESSOR-APRENDIZ: A LÂMINA DAS PALAVRAS DE UM MACHADO

SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL

Thiago Sant’Anna1 Resumo

Nesse artigo é apresentada uma reflexão sobre o ensino jurídico no Brasil com base nas ideias levantadas no livro “Ensino Jurídico e Mudança Social”, de Antônio Alberto Machado. Ressaltam-se os desdobramentos que o autor cha-mou de crise estrutural vivenciada pelo profissional do Direito, assim como os sinais por ele levantados para a construção de um modelo de ensino jurídico voltado para a mudança social.

Palavras-chave: ensino jurídico, ideologia, crise dos paradigmas, indústria

cultural.

DIALOGUE BETWEEN THE MASTER AND THE STUDENT-TEACHER: THE BLADE OF THE WORDS OF A MACHADO

ABOUT LAW SCHOOL IN BRAZIL

Abstract

This article presents a reflection about the law school teaching in Brazil, based on the ideas shown in the book: “Ensino Jurídico e Mudança Social” by Antonio Alberto Machado. It is given emphasis to situations, named by the author as the structural crisis lived by lawyers besides other indicators to construction 1Thiago Sant’Anna é mestre em História pela Universidade de Brasília, foi profes-sor de Sociologia Geral e Jurídica no curso de Direito do Centro Universitário Uni-Anhanguera e, atualmente, é professor da Universidade Federal de Goiás/ Campus Cidade de Goiás.

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MACHADO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO BRASIL

of a model of law teaching that considers the social change.

Key-words: law school teaching, ideology, crisis of paradigms, cultural industry

Introdução

Se eu não acreditasse que uma transformação social relevante se iniciasse com uma mudança nos sistemas educacionais, decisivamente, o livro, “Ensi-no Jurídico e Mudança Social”, do autor Antônio Alberto Machado, não me flertaria. Mas, ao reconhecer o meu lugar de fala, como professor de História e Sociologia em cursos de graduação em Direito, justifico, a partir da minha paixão pela sala de aula e pelas minhas expectativas quanto às contribuições ao curso de Direito que pretendo possibilitar aos alunos que encontro todos os semestres, a vontade em compartilhar as reflexões profícuas que esse livro me trouxe sobre a situação do ensino jurídico no Brasil. Objetivo, desse modo, apresentar idéias do autor da referida obra mediante o meu particular ponto de vista, ao falar sobre ensino jurídico na simples condição de professor de disciplinas de ciências sociais dos períodos iniciais da graduação em Direito. Esclareço que, longe de ocupar o lugar de autoridade do autor referido na ques-tão, pretendo discorrer sobre as ideias daquele autor a partir da minha leitura e problematizar a questão do ensino jurídico, atualmente.

Não há como negar que a atualidade representa um momento significativo para que nós escutemos vozes novas sobre o ensino jurídico brasileiro, de modo a nos permitir avaliar de forma crítica as condições do modelo pedagógico do-minante, que forma os nossos juristas2. Em grande parte do Brasil, sobretudo na região do Centro-Oeste, onde ainda impera o modelo Dogmático/Positivista do ensino jurídico no final dos anos 1990 e início do século XXI. Dessa forma, apresentaremos as idéias desenvolvidas por Machado na sua referida obra. 2Da mesma forma que o autor, foi utilizado o termo “jurista” na acepção que identifi-ca “todo aquele que trabalha com as questões jurídiidentifi-cas, quer profissional, quer como cientista ou estudioso”. MACHADO, Op. cit., p. 15.

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Em meio a uma crise paradigmática (FREITAS, 1995) que abala as ciên-cias humanas, desestabiliza as “verdades” e que denuncia as redes de poder escondidas atrás da enunciação de uma verdade, fica sob suspeita pensar que o ensino produtor das “verdades jurídicas”, o Direito, pudesse passar ileso nesta condição de ruptura ao sustentar um modelo Dogmático/Positivista em pleno século XXI. Aproximo, então, das palavras de Michel Foucault, o qual diz que “A verdade” está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem” (FOUCAULT, 2001, p. 14). Em que medida, a persistência das “verdades” do modelo dog-mático/positivista no ensino jurídico atual traduz uma situação de “efeito de poder” e sinaliza uma crise neste ensino?

Sem possibilidades de alcançar a resposta de forma imediata, mas na tentativa de apresentar caminhos para contornar uma crise estrutural vivida pelo profissional do Direito – crise de identidade, crise da perda do seu papel político frente à incapacidade de intervenção social, crise de legitimidade dos operadores jurídicos, crise advinda da descaracterização dos paradigmas cien-tíficos da ciência do Direito –, o autor, Antônio Alberto Machado, advoga em defesa de uma investigação crítica e dialética acerca do ensino jurídico. Tal investigação, segundo o mestre, se daria atrelada a um processo de inscrição do sujeito no campo do conhecimento e a uma metodologia interdisciplinar, onde o Direito pudesse dialogar com as outras disciplinas como a Sociologia, a Política, a Economia, a História, etc.

No intuito de animar tal perspectiva, Machado divide o seu livro em três partes, sendo a primeira voltada para uma reflexão sobre o fenômeno do Direito enquanto um produto ideológico, situado em uma determinada sociedade no tempo e no espaço; a segunda, relacionada à situação do ensino jurídico no Brasil e os desdobramentos da crise que o circunda; por último, a terceira que sugere rumos para uma transformação do ensino jurídico no Brasil, a partir de uma proposta curricular inovadora. Repartição esta seguida também por mim neste texto.

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O Direito como Instância Ideológica e a Crise no Ensino Jurídico

Frente à realidade na qual se encontra o ensino jurídico no Brasil, identi-ficada pelo autor, como caracterizado pela mercantilização do ensino superior, pela despolitização do ensino jurídico, pelo seu perfil quase que exclusivamente tecnicista e pela cultura3 jurídica liberal, burguesa, individualista, formalista e burocrática, reproduzida na nossa sociedade, cabe-me indagar até que ponto nós, professores de cursos de graduação em Direito, somos capazes de fazer do ensino jurídico um instrumento de mudança social e não apenas de manutenção do status quo e reiteração/reforço desta cultura jurídica? Para refletirmos sobre isso, Antônio Alberto Machado lança seu primeiro argumento, dizendo que não podemos deixar de reconhecer que o Direito é uma instância ideológica4, ou seja, é dotado de uma dimensão valorativa que expressa sempre “o desejo, as ambições, os propósitos, as preocupações e , enfim, os interesses de quantos se envolverem com o fenômeno jurídico, quer para instituí-lo, quer para estudá-lo, quer para aplicá-lo, quer ainda para a ele se submeter” (MACHADO, 2005, p. 39).

Dessa forma, faço a interpretação de que o Direito se manifesta-se como um campo ideológico, pois, está atrelado às relações de poder que privilegiam uma classe hegemônica, cujos interesses, desejos, ambições e valores ficam ocultos diante da construção de um discurso de neutralidade. Isto é, a defesa de que a nossa ciência jurídica impõe uma forma de conhecimento neutra, objetiva e livre de influências valorativas, não visa mais do que garantir e salvaguardar 3Entendemos “cultura” como uma rede de significações, ou seja, como um conjunto de formas

de compreensão de um objeto, no caso o “Direito”. Trata-se, portanto, do conhecimento e dos significados do Direito na nossa sociedade em determinado contexto. Neste caso, o Direito é percebido como efeito do modelo liberal, burguês e individualista de organização da nossa sociedade.

4Gostaria de esclarecer que, apesar dos questionamentos levantados ao conceito de “Ideologia”

na atualidade apresentados por intelectuais vinculados às correntes pós-modernas mediante o avanço da noção de “Representação Social”, optei por manter o conceito da maneira utilizada por Antônio Alberto Machado. Sobre o conceito de “Representação Social” ver: JODELET, Denise (org). As Representações Sociais. (Trad. Lílian Ulup). Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001.

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desejos, ambições, propósitos, interesses5.

Ao seguirmos por tal argumentação, no primeiro capítulo, o autor Antônio Alberto Machado constrói uma compreensão do Direito como um dos meca-nismos repressivos de dominação na sociedade capitalista, cujos elementos essenciais são a normatividade e o poder exercido pelo Estado. E para obter eficácia no funcionamento de tal discurso ideológico, a engenhosa oração da legalidade (“a lei acima de tudo”), constrói a idéia de um aparente consenso representante da “vontade geral” do povo.

Posso dizer, portanto, que compreender o Direito como um fenômeno ideológico é imprescindível para não somente decifrar os seus efeitos na so-ciedade como a atribuição de um caráter legal, legítimo e universal ao projeto da classe dominante, mas também, fortalecer a construção de um pensamento jurídico crítico capaz de desestabilizar a situação e mudar a maneira como se dá e como se percebe o ensino jurídico pelos professores e pelos estudantes. Digo “desestabilizar” porque isso implica reconhecer, como o autor, que

[...] todo discurso que se venha a fazer sobre o direito e sobre o seu método, por mais que se almeje fazê-lo de modo objetivo, com as conhecidas pretensões de verdade científica, sempre será um discurso ideológico, ou seja, um discurso que ao mesmo tempo em que visa descrever o fenômeno jurídico busca também produzir convenci-mento, ou até mesmo motivar as pessoas num ou noutro sentido em relação a esse fenômeno (MACHADO, 2005, p. 50).

Ao tentar superar tal perspectiva no ensino jurídico, Antônio Machado questiona os modelos baseados na teoria de Kelsen, segundo o qual “acabou desprezando, no âmbito da ciência jurídica, qualquer concepção que viesse a encarar o fenômeno jurídico como “realização da justiça”, ou dos ideais do direito natural” (MACHADO, 2005, p. 55). Ao privilegiar um método lógico-5

Esta concepção de que as ciências constroem o discurso da neutralidade como forma de

mas-carar as relações de poder que a subsidiam, vai ao encontro das reflexões do filósofo Michel Foucault. Sobre o assunto ver: FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003. Ver também: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16ª. Edição. (Trad. Roberto Machado). Rio de Janeiro: Graal, 2001.

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formal hipotético, o normativismo de Kelsen bem como o de outros positivistas inspirados no seu pensamento, “sempre acabaram por negar o valor reflexivo do discurso jurídico e o seu compromisso com a realização de valores no plano concreto e histórico” (MACHADO, 2005, p. 55).

Portanto, são estes modelos, para mim, que na pretensão de convencer pela “verdade científica”, ocultam sua dimensão ideológica bem como as relações de poder que atravessam, presidem e informam tais noções e práticas jurídicas ao reproduzir os interesses econômicos das elites. Ou seja, apoiando-me na leitura de Machado, o ensino jurídico não é menos que um verdadeiro “aparelho ideoló-gico”, ao difundir valores, objetivos e aspirações das elites econômicas, sociais e políticas (ALTHUSSER, 1985). Assim, segundo o mestre, para recuperar a dimensão axiológica e social do Direito, cabe-nos fazer uma revisão de seus paradigmas bem como promover uma reforma no ensino jurídico no Brasil6.

Em seguida, Machado faz uma leitura da condição do ensino jurídico no Brasil para melhor fundamentar sua hipótese de que este vivencia, no momento, uma crise. Ao considerar que a proposta contemporânea das universidades no Brasil pauta-se pela realização do tripé ensino-pesquisa-extensão, objetivando fomentar o desenvolvimento e a democracia, tal instituição apresenta-se em crise devido ao descaso das autoridades para com o ensino público e ao privilégio concedido para com o ensino privado.

Tal crise, segundo o autor, Antônio Alberto Machado, manifesta-se tanto no plano interno das instituições com a burocratização, o carreirismo, a erudição elitista, o corporativismo, o oportunismo, a mediocridade, etc quanto no âmbito externo com o descompasso entre os objetivos da universidade e os anseios da sociedade, o precário financiamento por parte do Estado, a deficiência na autonomia real, a elaboração de projetos que não atendem as necessidades primordiais da sociedade, os obstáculos para o acesso da maioria da população, 6O autor, felizmente, não deixa de apontar grupos e linhas de pesquisa que têm dedicado mais

atenção a elaboração de uma nova forma de ensino e prática jurídica como as correntes críticas do “Direito achado na rua” (UnB), coordenado pelo professor José Geraldo de Souza Júnior; a “Nova Escola Jurídica Brasileira”, de Roberto Lyra Filho; o “Direito Insurgente” (Rio de Ja-neiro), o “Uso Alternativo do Direito” (Rio Grande do Sul) e o “Núcleo de Estudos de Direito Alternativo” (NEDA) da Unesp (Franca).

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etc (MACHADO, 2005, p. 78).

Fora isso, o visível enfraquecimento das universidades públicas em contra-posição ao crescimento desordenado das universidades privadas, que acrescento, em exceção àquelas que gozam de respeito e tradição, acabou por efetivar, com respaldo da OMC e do Consenso de Washington, a transformação da educação em uma mercadoria cara e pouco acessível. Tal situação desdobrou-se em um ensino superior de caráter utilitarista, voltado para o aprendizado de um saber técnico/mecânico, para o distanciamento das questões sociais, bem como para a despolitização e alienação da maioria dos estudantes e profissionais.

Doravante, Machado avança no seu argumento ao constatar que esta re-alidade da educação superior brasileira serve de lugar comum para produção de um tipo de ensino jurídico que atenda às necessidades do capitalismo, da ideologia do Estado e das elites políticas e econômicas. Ou seja, mantém o sistema ao cumprir a mesma função quando da formação dos primeiros cursos jurídicos no Brasil do século XIX: formar a elite jurídica e política do Estado. No entanto, Antônio Alberto Machado esclarece que apesar destas conti-nuidades, houve uma mudança visível na formação do jurista do século XIX para o jurista dos séculos XX e XXI. Enquanto que no Brasil Imperial, o ensino superior jurídico era pautado pelas diretrizes científicas, crítica, huma-nística e interdisciplinar, uma vez que o currículo destas era apresentado com mais disciplinas filosóficas e menos disciplinas dogmáticas, a realidade atual caracteriza-se pela desqualificação acelerada mediante o modelo normativo e tecnicista, ao servir mais para formação de operadores técnicos do Direito do que para formação de pensadores do Direito.

A propósito, reconheço a importância de se formar “operadores jurídicos” para aplicação do Direito, pois, a natureza dos conflitos jurídicos demanda de-cisões, vontades e exercício de poder. Do contrário, não poderíamos resolver os conflitos jurídicos apenas a partir do exercício do saber, do ilimitado debate de ideias, levando-nos a uma multiplicidade de opiniões e teses que mais apontariam rumos, questões e problemas do que respostas. No entanto, o fato de privilegiar um currículo voltado para a operação técnica em detrimento do

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exercício do saber, do ilimitado debate de ideias, das reflexões e críticas, produz efeitos à formação dos nossos juristas, o que não posso deixar de partilhar com Machado quando afirma que, atualmente, é visível que a política de massificação do ensino jurídico consumou essa tendência de privilegiar matérias e disciplinas tecnológicas nas grades curriculares das faculdades de direito, em detrimento daquelas que apresentam um conteúdo mais humanístico e reflexivo. Tais opções curriculares podem ser entendidas até mesmo como parte da estratégia de despolitização do jurista e atrofia do seu senso crítico, como ingredientes necessários para garantir a inteira subserviência dos profissionais do direito aos reclamos de mercado (MACHADO, 2005, p. 112).

Tal realidade é percebida pelo autor, Antônio Alberto Machado, a partir da predominância do modelo normativo e tecnicista do ensino jurídico onde há o predomínio das aulas-conferências ou também chamadas aulas expositi-vas nas quais o professor ocupa sempre o “lugar de fala”, com a ausência de problematizações, críticas e reflexões mediante a participação dos estudantes, a adoção de uma literatura jurídica formada por manuais e compêndios repro-duzindo um saber massificado e tecnicista e a inexistência de uma formação pedagógica e didática, voltada para alunos interessados na carreira de docente. Tais encaminhamentos alimentam um ensino despolitizado, alienado, enfim, conhecido pela historiografia sobre a história do ensino jurídico como legalista, liberal e burguês7.

De tal forma, não deixa de ser ideológico o discurso de que vivenciamos uma democratização do ensino superior no Brasil e, principalmente, do ensi-no do Direito, com a proliferação em massa de cursos jurídicos. Tal situação reproduz e esconde, apenas, um modelo em crise.

A “Indústria Cultural” e a Fabricação do Senso Comum Jurídico”

7Sobre o assunto ver: WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. Revista e

atualizada. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. Ver também: WOLKMER, Antônio Carlos. Fundamentos de História do Direito. 3ª. ed. Belo Horizonte: Del Rey: 2006.

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Para Antônio Alberto Machado, vivenciamos no campo do ensino jurídi-co brasileiro, o que Marcuse, Adorno e Horkheimer, pensadores da Esjurídi-cola de Frankfurt, traduziu como “indústria cultural”. Trata-se do processo de reorga-nização e transformação das produções artística e cultural em mercadorias a serem consumidas no mercado, dentro dos quadros do sistema capitalista. Ou seja, o acesso a estes bens passa a ser feito pelo capital. Tal processo, segundo o professor Machado, pode ser identificado na prática do ensino jurídico no Brasil como sendo uma “Indústria Cultural do Direito”, viabilizada por meio de aspectos como: a privatização do ensino jurídico no Brasil marcada por um alto grau de mercantilização deste, sendo criadas escolas de Direito em qual-quer bloco de concreto; a massificação das obras de Direito, tanto impressas quanto veiculadas em CD-ROM, caracterizadas por resumos sobre a dogmática jurídica; os eventos culturais jurídicos supostamente científicos, mas de cunho empresarial; a proliferação dos “cursinhos jurídicos” que são outro aspecto da mercantilização do ensino jurídico, oferecendo desde preparatórios para concursos até cursos de especialização.

Como “autênticos negócios empresariais” (MACHADO, 2005, p. 117), os “cursinhos” chegam a utilizar estratégias de marketing próprias do cenário mercadológico empresarial, ao utilizar da velha mensagem do discurso com-petente, isto é, “o discurso que conduz ao ingresso no mercado de trabalho”. Tudo isso, para Machado, contribui para reforçar o modelo normativo e a cultura tecnicista e despolitizada que marca o ensino jurídico no Brasil. Ou seja, percebo isso como a forma despolitizada e tecnicista pela qual o direito é percebido por docentes e discentes. Deparamo-nos, portanto, com a dupla face da Indústria Cultural do Direito, assinalada por Antônio Alberto Machado:

Essa indústria cultural do direito, se, por um lado, exibe a impressão de que se verificou um saudável aumento da produção científica na área do conhecimento jurídico, pela oferta de todo tipo de obra e pela suposta democratização da cultura, com o aumento das possibilidades de acesso a livros, cursos e eventos culturais; por outro, representa também uma espécie de massificação da cultura jurídica, com a

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conseqüente queda da qualidade da produção científica nessa área e com o impressionante aumento dos produtos repetitivos e super-ficiais, que atendem muito mais às exigências do mercado do que, propriamente, às necessidades culturais dos bacharéis e profissionais do direito (MACHADO, 2005, p. 119).

No decorrer do seu trabalho, Machado levanta também outros elementos profundos na crise do ensino jurídico, marcada pelo esgotamento dos próprios paradigmas científicos da ciência do Direito. Dessa forma, por trás da crise do ensino jurídico existe, entretanto, uma crise epistemológica da Ciência do Direito no qual o normativismo como objeto, o raciocínio lógico-formal como metodologia, o liberalismo como sustentáculo ideológico e a mentalidade po-sitivista como base do saber jurídico não respondem mais satisfatoriamente a realidade atual. Ou seja, segundo o autor, Antônio Alberto Machado, a Ciência do Direito, inscrita atualmente na chamada Crise dos Paradigmas, não consegue mais proporcionar diretrizes e rumos novos para o trabalho científico, não forne-ce mais respostas adequadas aos problemas científicos da contemporaneidade, desdobrando-se em um conjunto de equívocos que exigem nada menos que a busca por novos paradigmas (MACHADO, 2005, p. 122).

Esta crise tem como matriz o esgotamento do ainda presente paradigma normativista kelseniano, sustentado pelo mito da neutralidade e da pureza científica. Segundo Antônio Alberto Machado, ao ter seu mérito em emprestar à Ciência do Direito uma metodologia e uma reflexão filosófica, Hans Kelsen acabou por reduzir o Direito à norma, desdobrando-se em uma situação de positivismo lógico que se mostra questionável nos dias de hoje.

Tais opções, por parte dos atuais “operadores do Direito” e pelos seus subsídios buscados na teoria positivista jurídica de Hans Kelsen, fabricaram, nas palavras de Machado, o chamado “senso comum” do jurista que acabou por reforçar a necessidade de uma reprodução mecânica da legalidade em de-trimento da reflexão e da crítica (MACHADO, 2005, p. 134-135). Esse “senso comum jurídico” tem como principal impacto a neutralização do comportamento político do bacharel e do jurista, subserviente a um pensamento acrítico ante

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as ideologias que produzem o saber jurídico e também não-histórico ao tomar a norma como algo ideal.

Assim, os reflexos desta crise epistemológica são visíveis na crise do ensino jurídico mediante o predomínio da leitura e ensino acríticos e não re-flexivos dos códigos, desvinculados de suas condições sociais e econômicas, reproduzindo, no plano jurídico, uma lógica de controle e dominação social, mantenedora do status quo atual.

Uma Alternativa: o Ensino Jurídico Voltado para Mudança Social

No entanto, Antônio Alberto Machado não é um autor que apresenta ape-nas as falências do sistema, mas se mostra também um pesquisador engajado, politicamente, ao propor rumos para produzir um ensino jurídico comprometido com a mudança social. Tais sinais estão voltados, para ele, na emergência dos chamados “novos direitos”, preocupados sobretudo com as relações interdis-ciplinares e com as dimensões sociais, políticas, econômicas e culturais que esses direitos encerram. Daí, não há como deixar de relacionar o Direito com o problema da globalização, da cidadania, dos Direitos Humanos, do acesso à justiça, do Meio Ambiente, da dignidade humana, das relações de trabalho, da bioética, do urbanismo, da questão agrária, da democracia, do papel do Estado, etc. São estes rumos que nos permitem tomar o Direito como “instrumento de liberdade contra todas as formas de opressão” (MACHADO, 2005, p. 195) e não como mantenedor do status quo, pois, sabe-se que os vínculos entre o Direito, a ética e a política são indispensáveis para a realização da democracia. O Direito deve, portanto, servir como ferramenta transformadora das rela-ções sociais incompatíveis com a realidade atual (MACHADO, 2005, p. 199). Tais mudanças, para Antônio Alberto Machado, passam pela transformação das práticas do advogado em direção a uma prática profissional atuante na defesa do interesse público, e pelo alcance da condição quarto poder pelo Ministério Público (e não somente três poderes – executivo, legislativo e judiciário), capaz de atuar na sociedade civil em proveito desta e pela configuração da

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Magistratura como poder independente, apto a rejeitar os interesses de poder que muitas vezes perpassa as suas decisões.

Além disso, o autor chama a atenção para a veiculação no campo do Di-reito dos chamados interesses difusos ou diDi-reito difusos como sendo aqueles cuja titularidade pertence a uma “série indeterminada de sujeitos”, a satisfação destes significa a satisfação de todos e a “lesão que atinge um indivíduo atinge, ao mesmo tempo, toda a coletividade” (MACHADO, 2005, p. 227). Ou seja, segundo Celso Fiorillo, são interesses e direitos que não pertencem a ninguém, são indivisíveis ao serem utilizados por todos e cuja realização serve para a manutenção da qualidade de vida e dignidade de todos8. Tal perspectiva significa também reconhecer a dimensão política de todas essas áreas que englobam o Direito do Consumidor, Direito da Criança e do Adolescente, Direito Penal, Direito dos Idosos e dos Portadores de Necessidades Especiais.

Enfim, todos esses campos jurídicos são áreas que nos exigem atuações politicamente conscientes, voltadas para a satisfação dos interesses da socie-dade civil e para a desestabilização das relações de poder. Possibilisocie-dades estas ampliadas, sobretudo a partir da Constituição de 1988 que

[...] confere aos aplicadores do direito meios e legitimidade para zelar pelo efetivo respeito aos Poderes Públicos, aos serviços de relevância pública e aos direitos assegurados na Constituição Fede-ral, promovendo as medidas necessárias à sua garantia; ao mesmo tempo, assegura, como função institucional, a promoção da ação popular e da ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (MACHADO, 2005, p. 241).

Tais inovações no campo do Direito não podem desassociar-se das mu-danças correspondentes no campo do ensino jurídico. Isto implica, para o mestre, mudanças nestas “empresas” de produção e fabricação de advogados 8Exemplo de Direito Difuso ocorre com o Direito Ambiental como sendo de titularidade

in-determinada, de uso comum de todos e sadio à qualidade de vida. Para mais informações ver: FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental. 6 ed. ampl. São Paulo: Sa-raiva, 2005.

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e advogadas como romper com a formação tecnicista e despolitizada, fruto do predomínio da dogmática que nos tornam frágeis diante das hegemonias. Implica, também, alimentar nossa função social na defesa da justiça social com a adoção de tarefas imprescindíveis para os juristas como: criticar per-manentemente os valores predominantes no seu contexto social em que atua, realizar uma contínua adaptação da técnica aos valores da sociedade e assumir compromissos com o meio social em que atua (MACHADO, 2005, p. 259).

Assim, Machado descreve o que seriam pontos de uma nova proposta peda-gógica para um curso de Direito, seguindo as diretrizes do art. 2º, § 1º, e art. 4º da Resolução nº 9/2004 do CNE/MEC: formação humanística e enciclopédica, formação interdisciplinar, capacidade de compreensão e operação criativa do direito, formação axiológica voltada para o desenvolvimento do senso ético profissional, aptidão para equacionar problemas e conflitos, capacidade para situar-se no mundo globalizado, capacidade para conciliar o exercício da vida profissional com o exercício da cidadania (MACHADO, 2005, p. 277). Tais indicações procuram realizar a inserção de disciplinas novas que normalmente se encontravam fora da grade tradicional, diminuir a carga horária de disciplinas correspondentes ao grupo do direito privado e aumentar a das disciplinas de eixo fundamental bem como a das disciplinas dos “novos direitos” (difusos, coletivos, sociais, individuais indisponíveis, etc) (MACHADO, 2005, p. 278).

Com certeza, Machado reconhece que tais propostas de mudanças não são fáceis de serem implementadas, pois dependem de mudanças no conteúdo programático das disciplinas e no perfil do corpo docente, no envolvimento dos alunos e alunas e de um acompanhamento pedagógico voltado para a imple-mentação dos objetivos. Ele ainda reconhece que o modelo atual voltado para o privilégio das universidades particulares em detrimento das públicas é um grande obstáculo à mudança porque tais propostas são mais difíceis de serem efetivadas no âmbito das primeiras (MACHADO, 2005, p. 285). E o resultado deste modelo pedagógico acaba por alimentar a construção de uma cultura jurídica formalista, centrada no estudo das normas, descritiva, despolitizada e reforçadoras das relações de poder predominantes.

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Dessa forma, a mudança na prática jurídica vigente no Brasil implica uma mudança na mentalidade jurídica que se inicia no processo educacional, com a substituição do paradigma de ensino jurídico tradicional para um novo paradig-ma voltado para a justiça, para a democracia e para o comprometimento com a sociedade civil. Estas seriam, possivelmente, algumas estratégias voltadas para a construção de um modelo de ensino jurídico voltado para a libertação e emancipação dos sujeitos. Acreditamos que a sua viabilidade implica escu-tar vozes novas sobre a educação jurídica no Brasil, dentre as quais, Antônio Alberto Machado está incluído. Tais vozes também passam por aquelas que anunciam novas perspectivas no Direito, por aquelas vindas de outras áreas do conhecimento, bem como por aquelas para quem o ensino jurídico é destinado. Ao redirecionarmos nosso olhar para a experiência do ensino jurídico, em destaque às idéias de Machado, espero que tais reflexões possam problematizar e nortear práticas de ensino e aprendizagem mobilizadas em uma graduação em Direito. As reflexões de Antônio Alberto Machado possibilitam-nos denunciar que o arsenal de conhecimentos acionados em uma graduação em Direito estão assentados em “economia política” de verdade que serve, segundo Foucault, a “uma constante incitação econômica e política”, é “objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso consumo”, “circula nos aparelhos de educação ou de informação” e é “produzida e transmitida sob controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômi-cos”. 9 As verdades precisam ser, portanto, relativizadas, pois são histórica e culturalmente situadas. Dessa forma, não há como desvencilhá-las de interesses de poder. Algumas perguntas são, assim, indispensáveis para aqueles/as que se dedicam a refletir sobre o ensino jurídico no Brasil: a quem interessa a conti-nuidade deste sistema no ensino jurídico? Quem se beneficia dele? Isso porque se trata de reconhecer que existem visões de mundo, valores e ideologias que preenchem os conhecimentos jurídicos mobilizados, ensinados e aprendidos nas faculdades de Direito do Brasil. Mercantilizado, o ensino jurídico passou 9FOUCAULT, MICHEL. Verdade e Poder. In FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 16.

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a ser despolitizado, identificado com uma cultura jurídica liberal, burguesa, individualista, formalista e burocrática, além de se desdobrar em um saber técnico/mecânico, distante das questões sociais. Engolido pela “Indústria Cul-tural do Direito”, o ensino jurídico busca, enfim, esconder suas limitações e sua crise, às vezes imperceptível para professores/as e alunos/as. Assim, retomar a condição de “aprendizes”, explorar outras literaturas – como nos possibilitou o livro e a lâmina das palavras do “mestre”, Antônio Alberto Machado – pode ser um caminho profícuo para que professores/as e alunos/as afiem suas críticas e façam do ensino jurídico um poderoso instrumento de transformação social.

Referências Bibliográficas

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